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O campo da ética, seu lugar na política

Dirce Mendes da Fonseca

Sumário
1. Introdução. 2. Esfera pedagógica da polí-
tica. 3. Estado democrático, ético e de cultura.

1. Introdução
Este texto toma como foco a apresenta-
ção da discussão ética no campo da política
e da esfera pública, e a atualidade desse tema
na vida social e política. Os conceitos ética,
esfera pública e publicidade do poder estão
interconectados no texto. Este artigo não tem
a pretensão de aprofundar questões filosó-
ficas relativas à ética, mas trazer à luz ques-
tões que, na vida política, corroem as insti-
tuições, a política, a sociedade e empobre-
cem a cidadania. Apresenta a visão de ética
e política de diferentes autores. Reforça a
necessidade da ética como componente in-
dispensável da moralidade pública.
As doutrinas éticas nascem e desenvol-
vem-se como respostas aos problemas bási-
cos apresentados pelas relações entre os ho-
mens e têm um caráter histórico e social.
Mudanças substanciais na vida social pro-
vocam mudanças também na vida moral.
Surge a necessidade de novas reflexões, ou
de uma nova teoria moral para fundamen-
tar a relação entre os homens e as institui-
ções políticas e sociais. Assim, “toda cultu-
ra e cada sociedade institui uma moral, isto
Dirce Mendes da Fonseca é Professora ad- é, valores relacionados ao bem e ao mal, ao
junta aposentada da Universidade de Brasília. permitido e ao proibido, ou seja, institui um
Professora do curso de Mestrado em Direito sistema de valores, cria uma filosofia mo-
do UniCEUB. ral” (CHAUÍ, 1994).
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O objeto da ética é o estudo do mundo vel. “Age de tal maneira que a máxima de
moral dos homens, estes considerados como sua ação possa sempre valer como princí-
seres sociais e históricos. Assim, os valores pio universal de conduta”. “Age tendo a
morais modificam-se na História e, por isso, humanidade como um fim e jamais como
são também construídos historicamente. As um meio”. A universalidade da razão ga-
transformações histórico-sociais exigem, rante a universalidade do sentido da ação.
igualmente, reformulações nas doutrinas Kant rompe a normatividade fundada em
tradicionais éticas sobre vários aspectos. conteúdos empíricos. Em Kant, o agir mo-
Desde a Antigüidade, os problemas éti- ralmente se funda na razão. A ética kantia-
cos ocupam uma parte especial na filosofia na é uma ética formal e autônoma. A essa
grega, sobretudo no pensamento de Sócra- perspectiva ética, Dilthey (1994, p. 26) cha-
tes, Platão e Aristóteles. Para Sócrates, o sa- ma experiência interior. O ético está contido
ber fundamental é o saber da natureza hu- no indivíduo e o indivíduo é a razão pró-
mana, daí a sua máxima: “Conhece-te a ti pria da ética. Assim, para Dilthey, a “ética
mesmo”. Dessa forma, o homem que conhe- do presente precisa ser uma ética social” *.
ce o bem não pratica o mal. Define o sujeito Hegel, procurando superar o ponto de
ético e moral como aquele que tem consciên- vista kantiano, segundo o qual a norma se
cia de sua ação. enraíza na própria natureza da razão, no
Platão relaciona a ética com a filosofia indivíduo isolado, instituiu uma esfera que
política, ou seja, a pólis – o terreno próprio se chamou esfera da eticidade ou vida ética.
da vida moral. A ética desemboca e relacio- Nessa esfera, a liberdade se realiza etica-
na-se necessariamente com a política. “O ho- mente dentro das instituições históricas e
mem é bom enquanto bom cidadão”. Na éti- sociais, tais como a família, a sociedade ci-
ca de Platão, encontra-se a unidade moral e vil e o Estado. Por isso a liberdade só pode
da política, uma vez que, para ele, “o ho- efetivar-se no Estado, realização da razão
mem se forma espiritualmente somente no na História, momento objetivo da liberda-
Estado e mediante a subordinação do indi- de. A eticidade significa aquela esfera da
víduo à comunidade”.
Existe um elo entre a ética aristotélica e a *
A ética social parece ser, todavia, apenas um
de Platão no que se refere à filosofia políti- nome diferente para designar o mesmo modo
diltheyano de conceber a vida. Vejamos de que
ca. Para ambos, a comunidade social e polí- modo, de fato, isso acontece, ou seja, de que modo
tica é o meio necessário da moral. Aristóte- se verifica uma mudança de rótulo apenas, perma-
les acrescenta à consciência moral, trazida necendo o conteúdo o mesmo e velho nosso conhe-
por Sócrates, a vontade guiada pela razão. cido. Como sabemos, a ética diltheyana, em sua
As virtudes aristotélicas inserem-se numa estrutura constitucional, encontra-se subjugada ao
conceito de vida do autor, uma vez que ela deve
sociedade que valoriza as relações sociopo- extrair do fim da vida o fim da educação. Com
líticas. essa tarefa, a ética se transforma em verdadeira
Três aspectos poder-se-iam mencionar serva da pedagogia, que, como sabemos, é o mais
como sintetizando a ética dos antigos: o ra- elevado destino da ciência e da filosofia e, como tal,
cionalismo, o naturalismo e a inseparabili- o ponto central da desembocadura de todo o cau-
dal das investigações filosóficas do autor sobre a
dade entre ética e política – relação entre a vida. Isso porque o fim de todo o navegar do autor
conduta ética do indivíduo e os valores da pelos mares muitas vezes indóceis, revoltos e, prin-
sociedade. cipalmente, traiçoeiros da compreensão da vida, é
A ética iluminista rejeita as concepções necessariamente a pedagogia. Temos, então, mais
morais da filosofia grega e cristã e formula o uma vez captado nessas relações de subordinação
ou de finalidade entre filosofia e pedagogia o senti-
imperativo categórico, procedimento pelo do fundamental de nossa tese, sentido esse formal-
qual o indivíduo testa a máxima de sua ação mente expresso no título de nosso trabalho.
para saber em que medida ela é generalizá- (DILTHEY, 1987, p. 133).

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sociedade em que a consciência moral se va”, que instrui o indivíduo e a sociedade, a
concretizou não na consciência do indiví- sociedade e o indivíduo, para o exercício da
duo, mas em normas, usos, instituições e atividade pública. Se a política é o espaço
organizações. A ética adquire um caráter público da práxis e a ética o seu conteúdo
social e todo o processo ético se desenvolve moral, exigem-se, em nome da dignidade
na convivência social e histórica, o que con- pública e da cidadania, sujeitos éticos e
substanciaria o ideal da ética social. O ho- morais na condução da “coisa pública” e
mem é um ser histórico e cultural. Além da no exercício da atividade política e pública.
vontade individual subjetiva, existe uma Para reforçar essa idéia, Kant é categórico
outra vontade – a vontade objetiva, circuns- ao defender a tese da publicidade dos atos
crita às instituições ou à cultura. Essa von- de governo como remédio contra a imorali-
tade objetiva – impessoal, coletiva, social, dade política. Afirma que “todas ações rela-
pública – cria as instituições e a moralidade tivas ao direito de outros homens cuja má-
como sistema regulador da vida coletiva, isto xima não é conciliável com a publicidade
é, dos valores de uma sociedade, numa épo- são injustas”. Esse princípio busca trazer a
ca determinada (CHAUÍ, 1994). Os valores discussão da ética na política e da necessi-
de uma sociedade são determinados e con- dade de se transformar o “poder invisível”
formados pelos sistemas culturais, morais e em “poder visível”. O caráter público do
políticos e representam a consciência moral poder – aberto ao público – fortalece a afir-
de uma dada sociedade, a expressão da éti- mação de Bobbio (1986, p. 30) sobre a neces-
ca social. A política representa o espaço sidade de governo do poder público, em
positivo de realização da ética. público:
Diferente dessa perspectiva, Maquiavel “(...) a exigência da publicidade dos
vê a política como instrumento para a con- atos de governo é importante não ape-
solidação de um novo poder e, assim, deixa nas, como se costuma dizer, para per-
de ser obra de Deus, da natureza e da razão mitir ao cidadão conhecer os atos de
para tornar-se obra social e trabalho histó- quem detém o poder e assim controlá-
rico dos próprios homens, em que os “fins los, mas também porque a publicida-
justificam os meios” (o príncipe deve aca- de é, por si, uma forma de controle,
bar com a anarquia feudal). um expediente que permite distinguir
O divórcio entre ética e política está em o que é lícito do que não é”.
tratar a ética como esfera da vida privada e A publicidade dos atos de governo é uma
a política como esfera da vida pública. No exigência da vida democrática e representa
entanto, para Maquiavel, ética e política têm o fortalecimento democrático das institui-
uma intencionalidade absoluta. Tal inten- ções, da vida pública, da democracia con-
cionalidade deduz as regras para um esta- solidada nas regras que possibilitam a livre
do forte e livre de qualquer critério ético e e pacífica convivência dos cidadãos em so-
sobrepuja todo e qualquer critério. No cam- ciedade. Democracia entendida como orde-
po da ética, há duas dimensões que poderi- namento jurídico, político e social que per-
am ser chamadas de “ética restritiva” e “éti- mite a concretude dessa convivência social.
ca ampliada”. Esta última, consubstancia- É no estado democrático que se realiza a
da na junção do público e do privado. práxis democrática. Bobbio (1998) concei-
tua o Estado democrático “como aquele no
2. Esfera pedagógica da política qual se efetua com maior adequação o mo-
delo ideal, a liberdade na coexistência, vale
O conceito e a prática de ética social en- dizer, a coexistência dos seres livres, por-
contram na política e na esfera pública o tanto a mais próxima efetivação, entre to-
espaço de realização de uma ética “positi- das de que se tem notícia na história con-

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temporânea, da comunhão pessoal e defini- ca e para o exercício do poder de forma de-
tiva do ideal de justiça”. Reforçando a tese mocrática e transparente? Como tornar o po-
do caráter público do poder com uma ne- der “visível” e reforçar a esfera de eticidade
cessidade ética e democrática, Kelsen, ao no nível do Estado e dos governos? Para
conceituar a democracia por uma visão de Hannah Arendt (1989, p. 517), é no corpo
mundo no respeito pelo outro e pelo princí- político que se estabelecem as leis, chama-
pio de legalidade, de controle e de respon- das por leis positivas:
sabilidade do poder, que exigem que os go- “No governo constitucional, as leis
vernantes estejam à luz pública para os efei- positivas destinam-se a erigir frontei-
tos específicos das avaliações dos governa- ras e a estabelecer canais de comuni-
dos, reforça o princípio da publicidade dos cação entre os homens, cuja comuni-
atos de governo. Assim, a visibilidade do dade é continuamente posta em peri-
poder permite o controle do Estado pela so- go pelos novos homens que nela nas-
ciedade civil. O público, como esfera visí- cem. A cada nascimento, um novo co-
vel, estabelece uma nova relação de trans- meço surge para o mundo, um novo
parência do poder e da publicidade dos atos mundo em potencial passa a existir.
de governo. A crise ética e de governabilida- A estabilidade das leis corresponde
de aparece no momento em que os cidadãos ao constante movimento de todas as
e a sociedade tomam conhecimento da apro- coisas humanas, um movimento que
priação do público pelo privado, no momen- jamais pode cessar enquanto os ho-
to em que o ilícito e o não ético vêm à tona e mens nasçam e morram. As leis cir-
o rei se desnuda. A sociedade civil e política cunscrevem cada novo começo e, ao
se enfraquece. mesmo tempo, asseguram a sua liber-
No Brasil, a Constituição de 1988 avan- dade de movimento, a potencialidade
çou ao estabelecer a publicidade da admi- de algo inteiramente novo e imprevisí-
nistração pública, em todos os níveis e mo- vel; os limites das leis positivas são para
dalidades. “A administração pública dire- a existência política do homem o que a
ta, indireta ou fundacional de qualquer dos memória é para a sua existência histó-
poderes da União, dos Estados, do Distrito rica: garantem a preexistência de mun-
Federal e dos Municípios obedecerá aos do comum, a realidade de certa conti-
princípios de legalidade, impessoalidade, nuidade que transcende a duração in-
moralidade e publicidade” (art. 37). A Cons- dividual de cada geração, absorve to-
tituição brasileira avança por seu conteúdo das as origens e delas se alimenta.”
ético democrático. Vale dizer que uma cons- Arendt chama atenção para o risco de
tituição é democrática “quando não apenas isolamento na esfera política e o perigo da
consolida as liberdades civis, mas cria ór- destruição da esfera da vida pública, o que
gãos e leis que ajudem no sentido de que significaria destruir as capacidades políti-
essas liberdades tenham realidades e sejam cas dos homens. Será que tal risco não se
salvaguardadas, e que ali, onde os bastiões aplica, também, à destruição da esfera ética
erguidos contra os abusos de poder desmo- do Estado, governo e sociedade?
ronem ou estejam ameaçados de ruir, passa Hegel, ao afirmar que o “Estado é a reali-
rapidamente a mobilizar-se para erguer no- dade efetiva da idéia ética”, reforça a dis-
vos redutos” (BOBBIO, 1998). cussão da ética no nível das estruturas ins-
A Constituição brasileira fixou para a titucionalizadas, e da função do Estado
administração pública os princípios da mo- como instância do interesse comum e uni-
ralidade e da publicidade. Como desenvol- versal. No entanto, tal concepção idealista
ver uma pedagogia para a afirmação dos de Estado não dá conta de abarcar as con-
valores éticos na sociedade e na vida públi- tradições e a correlação de forças que emer-

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gem no interior do Estado. Dessa forma, para certos direitos; consiste, essencialmente, no
melhor compreender o Estado, há que situá- fato de ser co-participante no governo, su-
lo como instância determinada pelo conjun- jeito e agente de cidadania no reforço de
to das relações de produção. Logo, os inte- valores culturais, sociais, políticos e morais
resses do Estado não estão relacionados de uma sociedade (ARENDT, 1967).
somente ao interesse público e ao controle Desse modo, poder-se-ia aprofundar o
público. Há outros interesses ligados e me- conceito de cidadania ativa e ampliada –
diados pelas relações capitalistas. aquela que coloca os sujeitos no centro de
sua própria história, com possibilidade de
3. Estado democrático, reforçar e recriar os valores culturais, soci-
ético e de cultura ais, políticos e morais da sociedade e da vida
pública; estabelecer o consenso de ordem
O Estado tem, na obra de Gramsci (1989), mais alta da convivência democrática. O que,
uma perspectiva político-estratégica de se no entendimento de Agnes Heller (1998),
construir um espaço hegemônico do conjun- significa que as leis de um corpo político
to dos meios de direção intelectual e moral são legitimadas por seus cidadãos (todos
resultante do esforço conjunto do aparelho os cidadãos participam no discurso de va-
governamental e sociedade civil – instânci- lor), e é por isso que tais leis se aplicam a
as interligadas e dialeticamente constituí- todos os cidadãos daquele corpo político.
das, no reforço da idéia do “estado ético e Uma comunidade em particular (dentro des-
de cultura”. Cada Estado é ético quando uma se corpo político) legitima certas normas e
de suas funções mais importantes for a de regras como pertencendo àquela comunida-
elevar a grande massa da população a um de, e elas são válidas para tal, e aplicadas aos
determinado nível cultural e moral de suas membros daquela comunidade legitimada.
condições objetivas, em nível social, políti- A ampliação da cidadania está intima-
co e econômico. Pode-se, pois, conceber um mente ligada à função do Estado e das insti-
Estado ético que também se torna educador tuições sociais na formação dos cidadãos
pela cultura que cria e se desenvolve, no ní- ativos co-participantes no governo. Desse
vel da práxis política e de suas instâncias modo, todos os cidadãos são considerados
públicas, visando à emergência de uma cul- como governantes em potencial; tornam-se,
tura que reforce as condições concretas de na forma aristotélica, “bons cidadãos” e
cidadania. Tais condições significam am- desenvolvem o que Agnes Heller chama de
pliar a democracia, dando representação po- virtude dos cidadãos, ou seja, aquela virtu-
lítica às classes excluídas e condições para de que todos os cidadãos precisam parti-
que os sujeitos lutem pelos seus direitos. lhar na construção do melhor mundo socio-
Essas condições traduzem-se na ampli- político e, na visão gramsciniana, de um
ação dos direitos sociais, civis e políticos e Estado educador. Nesse sentido, o bom ci-
dos deveres de cidadão. Pensar cidadania dadão é comprometido com o discurso de
significa ampliar direitos, criar espaços para valor como procedimento justo. Entende que
valer os direitos. Cidadania abrange um as normas e regras devem ser validadas pela
conceito ampliado de direitos e deveres. autorização dos sujeitos envolvidos por con-
Deveres no sentido de os sujeitos serem co- senso. Dessa forma, o cidadão prepara-se
participantes da vida pública. Conforme para a vida pública e social tendo o com-
propõe Aristóteles, a cidadania é, pois, a promisso ético além dos interesses particu-
participação ativa nos assuntos da cidade. lares.
É o fato de não ser meramente governado, O fortalecimento da esfera pública, que
mas também governante. Nesse sentido, a educa pela práxis e excelência política, re-
cidadania não consiste apenas em gozar de força a ampliação da cidadania, exige um

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estado democrático de fato, que avance da A democracia, como governo do “poder
forma para o fato, ou seja, que não se esteri- visível”, e a ética, como categoria de regula-
lize apenas na forma (democracia formal que ção da atividade pública e política, funcio-
diz respeito precisamente à forma de gover- nam como constitutivos de uma forma su-
no), mas, fundamentalmente, que aja con- perior de sociedade. A ética como categoria
teudisticamente pelo exercício concreto da de regulamentação da atividade pública
democracia substancial que diz respeito ao permite desenvolver novas relações sociais,
conteúdo dessa forma (BOBBIO, 1987). Um sustentadas por uma cidadania ativa em
dos conteúdos essenciais da democracia é a todos os níveis.
constituição da cidadania. Democracia e No entanto, há que considerar que, numa
cidadania são categorias relacionadas – sociedade baseada na prática política como
uma não existe sem a outra. São interliga- esfera privada, na exploração do trabalho,
das. A existência da democracia pressupõe na desigualdade social e política e na ex-
a existência de cidadãos livres, criativos e clusão dos sujeitos dos direitos políticos e
transformadores, que ajam e lutem por seus culturais, a realização ética e moral encon-
direitos e exerçam de forma consciente seus tra-se definitivamente comprometida. Avan-
deveres de cidadania e da eticidade da esfe- çar na construção da ética e da cidadania
ra pública. significa, objetivamente, desenvolver políti-
Nesse sentido, tomo essas categorias re- cas que contemplem a melhoria das condi-
ferenciais para seguir a análise da demo- ções de educação política e cidadã, e na ne-
cracia como um “processo inacabado”, e da cessidade de reinventar o que todos os ho-
cidadania como um “processo em constru- mens têm em comum: a dignidade humana
ção”. Logo, as instâncias de concretização e a dignidade da política como instrumento
da cidadania também se situam em dois ní- de transformação social.
veis relacionais: Estado e sociedade civil. A A educação é um dos elementos essenci-
junção dessas esferas representa o espaço ais da cidadania e da vida política. Há que
ético e educativo de construção de uma so- se educar para a cidadania. Uma educação
ciedade melhor, mais justa, igualitária e de- que priorize a formação da consciência crí-
mocrática. tica e reflexiva, formando sujeitos ativos que
Constitui tarefa política e educativa da atuem na vida social e política do país. Da
sociedade contemporânea reedificar a cida- mesma forma, é tarefa educativa do Estado,
dania real – uma cidadania que contemple da sociedade, da escola e da família a for-
direitos civis, políticos, sociais e culturais. mação de sujeitos éticos e morais que pos-
Não se pode pensar numa cidadania presa sam construir uma sociedade mais justa e
somente ao Estado, mas numa que dependa igualitária, tendo a ética como referencial
da ação dos sujeitos coletivos e da ação e de promoção da cidadania para o exercício
práxis de cidadania, que deve ocorrer na da política, o que, na visão de Weber, con-
política, no Estado, nos sindicatos, partidos, substanciaria a “política como vocação”.
escolas, enfim, em todas as esferas da socie- A sociedade brasileira assiste, por um
dade. Os sujeitos passam a atuar como ci- lado, aos escândalos na política, marcados
dadãos ativos e co-participantes no gover- por interesses escusos à vida política e de-
no e na sociedade, pelas relações que criam mocrática e, por outro lado, à retomada das
e desenvolvem. O exercício da cidadania discussões sobre a ética em todas as áreas
consciente e responsável, e de uma práxis do conhecimento, na sociedade, na política
individual e coletiva, no nível da política e e na ciência. Tais fatos revelam – no campo
de instituições da sociedade civil e do Esta- da produção intelectual e do comportamen-
do, fortalece a esfera da eticidade da socie- to social – um incontestável retorno às exi-
dade civil e do Estado. gências éticas e uma reação da sociedade

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na luta por espaços sociais mais qualifica- • recriar a ética da solidariedade, rea-
dos e formativos. firmando os valores coletivos e a luta contra
A sociedade brasileira tem exigido e lu- todo tipo de desigualdade e exclusão social;
tado pela ética na política e por uma morali- • fortalecer a “democracia como valor
dade pública. Gianotti traz a contribuição universal” e o Estado publicizado como con-
de procurar definir este conceito – o da mo- quistas democráticas;
ralidade pública: consiste numa esfera em • fortalecer a sociedade civil e a participa-
que todos os seres humanos participam, na ção social em todas as instâncias para o exer-
medida em que cada sistema moral, a fim de cício de uma cidadania ativa e consciente;
revelar sua unilateralidade, precisa ser con- • universalizar a educação como direito
frontado por outros. Segue-se a necessida- de todos e incentivar práticas pedagógicas
de de que todos os seres humanos sejam in- que reforcem a participação dos sujeitos na
cluídos no seu âmbito. Sob esse aspecto, é produção de novas relações sociais, políti-
uma moral cosmopolita, estabelecendo re- cas, econômicas e culturais;
gras de convivência e direitos que assegu- • fortalecer as esferas coletivas de decisão
rem que os homens possam ser morais. É e de construção de políticas públicas que pri-
nesse sentido que os direitos dos homens, orizem as necessidades de cidadania;
tais como em geral têm sido enunciados a • educar cidadãos para o exercício pú-
partir do século XVIII, estipularam condi- blico.
ções mínimas do exercício da moralidade. A discussão da ética força, necessaria-
Por certo, cada um não se deixará afetar na mente, o pensar em novas formas de convi-
sua moral; entretanto, aprenderá a conviver vência social e política, nas quais a “huma-
com outros, a reconhecer a unilateralidade nidade seja tratada como um fim e nunca
do seu ponto de vista. E, com isso, estará como um meio”, e na necessidade de, coti-
obedecendo à sua própria moral de uma dianamente, reinventar o nosso tempo, para
maneira especial, tornando-a imperativa e que, a cada novo momento histórico, garan-
categórica, dela se utilizando como um mo- ta a humanidade e a humanização, e que
mento particular do exercício humano de jul- cada um de nós esteja representado numa
gar moralmente. Desse modo, a moral do ban- vida política que qualifique o político como
dido e a do ladrão tornam-se repreensíveis esfera e estratégia de transformação da so-
do ponto de vista da moralidade pública, pois ciedade e do espaço público.
violam o princípio da tolerância e atingem os
direitos humanos fundamentais, agridem a
cidadania e empobrecem a política. Referências
Considerando as discussões sobre a éti-
ca e a política, bem como sobre política e AMARAL, Maria Nazaré de Camargo Pacheco.
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cidadania, constituem desafios contempo- Paulo: Perspectiva, 1987.
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