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O SAGRADO DIANTE DO INFLUXO DA RELIGIOSIDADE: O CASO

DO ESPIRITISMO

José Roberto de Lima Dias


Doutorando – PUCRS
roberto_dias2004@yahoo.com.br

Resumo: O presente trabalho tem o objetivo de expor como a religiosidade, no decorrer


dos séculos, é percebida e relacionada aos símbolos e mitos sagrados, principalmente
com o surgimento e a instauração dos estudos da doutrina Espírita. Essa investigação
apoiou-se sobre o ato de manifestação do sagrado, oriunda das realidades religiosas,
através do conceito de “horizontes culturais”, conforme a Antropologia Cultural de John
Murphy. A pesquisa procurou demonstrar que o sentimento de adoração é inato ao ser
humano, mas influenciado pelas hierofanias religiosas, conforme Mircea Eliade e
Ernesto Bozzano. Assim, percorreram-se, analiticamente, alguns conceitos de sagrado
que permeiam os conteúdos doutrinários da maioria das religiões e que se mantiveram
vivos ao longo do tempo, alargando a noção de religiosidade, até alcançar o advento do
Espiritismo.
Palavras-chave: sagrado; religiosidade; espiritismo.

Em todas as experiências religiosas da humanidade, sejam elas arcaicas ou


contemporâneas, o sagrado1 desempenha significativo papel, a partir de uma estrutura
de ressonância, manifestada através de seus sistemas culturais religiosos. O sagrado
apresenta-se nessas experiências sob uma multidão de formas e variantes, cujas
modalidades podem ser: deuses, símbolos, mitologias, espíritos, cosmogonias, rituais ou
ideias morais.

1
Aplicaremos o conceito de sagrado no sentido de totalidade, conforme tratado por Mircea Eliade, mas
sempre pensando na relação entre Deus e o homem, a qual se mostra nos gestos, nas palavras, nos
objetos.
Dessa forma, o sagrado é o traço marcante dos fenômenos religiosos, e a
transferência cultural deles, ao longo da temporalidade histórica, revela-nos a sua
permanência no cotidiano das pessoas e no interior das sociedades manifestada pelo
desejo de uma força ou de uma energia que agiria sobre o profano. Eis o ponto
fundamental do estudo do sagrado pelo influxo da religiosidade que procura
compreender a dinâmica da organização social na área do sagrado, a partir de algumas
categorias utilizadas como referenciais, que serão levantadas ao longo do trabalho.
Sendo assim, constatamos que é necessário trazer à tona essas possibilidades de
entendimento do sagrado.
Uma vez expostas as questões preliminares necessárias, outro aspecto
importante precisa ser analisado, antes de aprofundarmos as permanências do sagrado,
que é a religiosidade popular, a qual nada tem a ver com os tratados de teologia, ou seja,
com as religiões dos teólogos. Referimo-nos, na verdade, à religiosidade natural que
todo ser humano possui, seja em maior ou menor grau. Esse sentimento imanente ao
homem independe de um sistema de crenças, pois trazemos em nosso arquétipo mental
as bases concretas que constituem a religiosidade primitiva. A religião pura e natural do
povo nasce da lei de adoração e não das sacristias, e é um impulso instintivo do homem,
que busca Deus na natureza. A religiosidade no ser humano é decorrente do influxo
cósmico do criador, que exerce uma dinâmica “inconsciente”, isto é, a relação entre
Deus e o homem é imanente à natureza humana.
Nesse sentido, a religiosidade pode ser conceituada como uma dimensão
humana, histórica e culturalmente determinada, que se abre à transcendência, mobiliza
energias e se materializa em formas cognitivas e emocionais na construção de sentido
para a totalidade da existência.
A religiosidade é uma qualidade do indivíduo, caracterizada pela disposição ou
tendência do mesmo para perseguir a sua própria religião ou a integrar-se às coisas
sagradas. Em tais circunstâncias, o processo religare nada mais é do que o
desenvolvimento das faculdades psíquicas da alma, que faculta a percepção da sua
relação com Deus. Toda existência do ser humano é pautada nessa dinâmica, mas
podemos perceber com mais intensidade no simbolismo arcaico das religiões o
arcabouço dos símbolos de religião, adotados pela humanidade como fontes de
religiosidade. Ao estudarmos a gênese descrita nos livros sagrados dos sistemas
religiosos, observamos alguns elementos similares, frutos de uma fonte comum. Esses
símbolos se tornaram sagrados para a humanidade, ou para parte dela. Algo interessante
é quando o símbolo deixa de ser estático ou inativo e passa a ser um elemento ativo do
sistema religioso, através das ritualísticas e práticas religiosas.
Pelos motivos citados anteriormente, o sagrado destaca-se por ser tudo aquilo
que é consagrado à divindade, que possua uma referência ou um simbolismo venerável.
Assim, um objeto, um rito, uma pessoa, que sejam considerados sagrados, tornam-se
referência, fruto de admiração e de cobiça, seja no plano do ter, do estar ou ainda do
equivaler-se. Lembremos aqui o que já foi dito antes a respeito da lei de adoração: ela é
a chave para que possamos compreender o sagrado, principalmente quando
reivindicamos o “método cultural” dos antropólogos ingleses trabalhado por John
Murphy, na análise das origens e história das religiões, também aplicado por Herculano
Pires2, em sua obra O espírito e o tempo3. Esse método está centrado na ideia de
“horizontes culturais”, a partir do qual podemos analisar as várias fases do
desenvolvimento humano em toda a extensão que cada uma delas comporta.
Nesse sentido, as fases da evolução humana, para John Murphy4, distribuem-se
através dos horizontes: primitivo, que comporta três aspectos, sendo eles o próprio
primitivo e ainda a fase anímica e a agrícola; na sequência, o horizonte civilizado e o
profético. Já Herculano Pires, ao resgatar o método cultural, condensa os dois primeiros
elementos do horizonte primitivo transformando-os em horizonte tribal e dando
autonomia ao horizonte agrícola porque, segundo ele, é nessa etapa do desenvolvimento
humano que surgem as práticas mágicas ou religiosas.

2
Herculano Pires, docente titular da cadeira de filosofia da educação na Faculdade de Filosofia, Ciências
e Letras de Araraquara, foi um jornalista, filósofo, educador e escritor espírita brasileiro. Autor de oitenta
e uma publicações, dentre elas: livros de filosofia, ensaios, histórias, psicologia, pedagogia,
parapsicologia, romances e obras sobre espiritismo.
3
PIRES, José Herculano. O espírito e o tempo: introdução antropológica ao espiritismo. 7. ed. Barsília:
Edicel, 1995.
4
MURPHY, John. Origines et Histoire des Religions. Payot: Paris, 1951.
As superstições decorrentes das práticas mágicas, na vida primitiva dos
selvagens, assentam-se em realidades positivas, em fatos concretos, cuja origem é
determinada pela ação de uma força misteriosa e pela ação de entidades espirituais.
Portanto, as referidas práticas, conforme destaca Herculano, não eram e nem poderiam
ser de natureza abstrata, imaginária. Essa tese, na verdade, é levantada por Ernesto
Bozzano5, em sua obra Povos primitivos e manifestações supranormais que, por sua
vez, esposa seus estudos com base nas pesquisas do antropólogo Andrew Lang e do
etnólogo Max Freedom Lang, os quais afirmam essa possibilidade através de ampla
fenomenologia, colhida a partir da observação das tribos primitivas, em diversas regiões
do mundo. Baseando-se no método da análise comparada, conforme relata em seu livro
The making of religion, onde defende a tese da origem mediúnica da religião6, o
antropólogo Andrew Lang estabelece paralelos entre os fenômenos mediúnicos7 dos
povos primitivos, observados em tribos de várias partes do mundo, e as experiências
metapsíquicas do seu tempo.
A partir da ideia de Herculano, Bozzano e Andrew Lang, de que todas as
religiões fundam-se na mediunidade, podemos então inferir que o mito das revelações,
das aparições, das línguas de fogo, de falar línguas estranhas, das curas milagrosas são,
portanto, todos fatos mediúnicos.
Assim, a religião não se configura como produto artificial e transitório de certas
circunstâncias, mas como consequência inevitável da própria natureza humana. Logo,
para os autores mencionados, no plano social, a pedra-de-toque do sentimento religioso,
ou seja, que o desperta, o sustenta e o desenvolve, permitindo o surgimento das mais
variadas formas de religião, é a mediunidade. O homem, então, também traz consigo a
ideia de Deus e da imortalidade da alma, como afirmava Descartes8, mas essa ideia se

5
Ernesto Bozzano (1862 -1943) nasceu em Gênova, Itália, e morreu na mesma localidade. Professor da
Universidade de Turim, dedicou-se primeiramente à filosofia científica, interessando-se sobretudo pelas
ideias do inglês Herbert Spencer (1820-1903). Em 1891, começou a se ocupar da telepatia e do
espiritismo, assuntos que interessavam àquele tempo tanto os estudiosos da Europa quanto os da América.
6
LANG, Andrew. The making of religion. Michigam: Green Longmans, 1900, p. 328.
7
Mediunidade é uma condição natural da espécie humana, segundo Herculano Pires (PIRES, 1995, p.
16).
8
A causa geral de todos os movimentos do mundo não pode ser senão Deus. Ao examinar o mundo
psíquico, manteve Descartes o dualismo tradicional, radicalizando a distinção entre corpo e alma,
desenvolve na vida de relação, no plano social, através dos fatos concretos que a
sustentam.
Nesse sentido, com Bozzano, temos uma maior facilidade de compreensão,
através de seu exame antropológico e sociológico do homem primitivo, ao revelar-nos,
com base em investigações científicas, as formas pré-históricas da religião pelo viés do
fenômeno mediúnico.
Assim, retornando ao pensamento de Herculano Pires, quando ele chama de
"horizonte primitivo" o mundo do homem primitivo, a expressão é metafórica, isto é, é
possível percebermos que a palavra "horizonte" mostra que devemos encarar esse
homem dentro dos limites da nossa visão, de todas as condições do meio físico e social
em que ele vivia na paisagem cultural fechada pelos horizontes do mundo primitivo.
Nessa fase, um dado importante é a forma como o homem interpreta todas as coisas em
termos exclusivamente humanos, é a visão antropomórfica, que antecede ao animismo9,
já que o seu psiquismo não está desenvolvido de maneira adequada. O homem, então,
aplica ao exterior os conhecimentos rudimentares que possui da natureza humana,
projetando forma humana aos elementos naturais.
John Murphy afirma que estamos diante de um estágio de adoração
rudimentar10, no qual o homem parece adorar-se a si mesmo através das coisas

caracterizando ainda esta como substância completa, espiritual, simples e imortal: “[...] depreendi daí que
eu era uma substância, cuja essência ou natureza toda não consiste senão em pensar, e que para existir não
carece de nenhum lugar, nem depende de coisa alguma material; de sorte que eu, isto é, a alma, pela qual
eu sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo, e até mais fácil de conhecer que este, e que ainda que o
corpo não existisse, ela não deixaria de ser tudo o que é”. (DESCARTES, René. Meditações Metafísicas,
São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 29).

9
O animismo baseia-se na tentativa do homem em dominar a interferência que os fenômenos e as forças
da natureza exercem sobre os assuntos humanos. Constitui, dessa forma, a capacidade do homem
primitivo de objetivar o mundo e dar uma racionalidade frente aos poderes sobrenaturais. Para o
antropólogo inglês Edward B. Tylor, o animismo é o primeiro grande passo evolutivo do pensamento
religioso. Para Alexandre Aksakof, filósofo russo, animismo significa a tendência a atribuir vida anímica
a todas as coisas, inclusive aos objetos “inanimados”, conforme explica em sua obra Animismo e
Espiritismo, de 1890.
10
MURPHY, 1951, p. 34
11
HERCULANO, 1995, p. 31
exteriores. Projeta seu sentimento e sua vontade, personalizando e dando vida ao que é
inanimado. No entanto, Herculano Pires rejeita essa tese para defender a tese espírita,
pois a mesma apresenta o antropomorfismo como decorrente de fenômenos mediúnicos.
O homem primitivo, nesse sentido, percebe o mundo pelas categorias nascentes da
razão, e são as sensações que vão fornecer os conteúdos necessários a tais categorias,
pela dinâmica da experiência que o coloca frente a frente com os agentes espirituais,
implicando fatos supranormais.
Por outras palavras, conforme já comentado anteriormente, é a adoração,
resultante de um sentimento inato ao homem, que determina, numa verdadeira escala de
adoração no mundo primitivo, o processo de ocorrência das referidas categorias.
Segundo Herculano, dá-se em primeira instância “[...] a litolatria pela adoração de
pedras, rochas e relevos do solo [...]”; logo após, a “[...] fitolatria, pela adoração de
plantas, flores, árvores e bosques [...]”; já numa fase ascendente, encontramos a “[...]
zoolatria ou adoração de animais [...]”; na sequência, a “[...] mitologia com sua forma
clássica de politeísmo [...]”11 até atingir uma fase superior de adoração, manifestada
pela racionalização do sentimento.
A tese espírita da lei de adoração defendida por Herculano Pires também está
inserida no capítulo segundo da terceira parte de O livro dos espíritos, obra organizada
pelo sistematizador da Doutrina dos espíritos, Allan Kardec. Nessa obra, que foi
concebida mediunicamente, segundo o próprio Kardec, os espíritos que o instruíram na
elaboração de O livro dos espíritos afirmaram que “a adoração é o resultado de um
sentimento inato no homem”, assim como o “sentimento da existência da divindade”12.
Encontra-se, portanto, em concordância com as teses defendidas por Ernesto Bozzano,
John Murphy e Herculano Pires.
Outra fase importante defendida por Herculano e Murphy é a do “horizonte
agrícola”, das primeiras formas sedentárias de vida social, caracterizada pelo
surgimento do animismo no plano da racionalização, é a fase em que a razão se

12
KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. Tradução de Salvador Gentile. 143ª ed. São Paulo: IDE, 2003,
p.265.
desenrola no processo histórico do desenvolvimento mental do homem. Nesse
momento, em que se torna mais evidente a crença tribal nos espíritos, do processo de
categorização da razão pela perspectiva do Universo como base da racionalização
anímica, aparece a concepção da “Terra-Mãe” e do “Céu-Pai”. Enfim, temos a eclosão
da mitologia popular, impregnada de magia.
Para Ernesto Bozzano, o enquadramento de aspectos ou elementos da natureza
nas categorias da razão ou categorias da experiência, na fase em questão, vai levar ao
surgimento da primeira forma de religião antropomórfica através do culto aos
ancestrais13. São os deuses-lares, deuses-locais, deuses-reais que impregnam o processo
de racionalização, no qual o fetichismo se funde ao culto dos ancestrais. Na projeção
anímica através de uma experiência concreta, nasce a mitologia pela perspectiva
histórica, pois a existência histórica de Osíris é convertida em mito, pela necessidade de
racionalização do mundo.
Na questão 521 de O livro dos espíritos, Allan Kardec pergunta às entidades
espirituais que o auxiliaram na codificação da doutrina espírita se “certos espíritos
podem ajudar o progresso das artes, protegendo os que dela se ocupam?”, obtendo a
seguinte resposta: “Há espíritos protetores especiais e que assistem aqueles que os
invocam, quando eles os julgam dignos. Mas que quereis vós que façam com aqueles
que crêem ser o que não são? Eles não fazem os cegos verem, nem os surdos ouvirem”.
Imediatamente, Kardec analisa a resposta dos espíritos, fazendo os seguintes
comentários:

Os Antigos fizeram divindades especiais; as Musas não eram outras que a


personificação alegórica dos Espíritos protetores das ciências e das artes,
como designou sob o nome de lares e de penates os Espíritos protetores da
família. Entre os modernos, as artes, as diferentes indústrias, as cidades, os

13
BOZZANO, Ernesto. Povos primitivos e manifestações supranormais. Tradução de Eponina Mele
Pereira da Silva. São Paulo: FE Editora, 1997, p. 28.
continentes têm também seus patronos protetores, que não são outros que os
Espíritos superiores, mas sob outros nomes. 14

Ora, ao fazerem dos espíritos divindades especiais, como demonstram Kardec e


Bozzano, os antigos operacionalizavam a racionalização do mundo. Essa ideia ganha
expressão, se invocarmos o “horizonte agrícola” de Murphy e se considerarmos que, no
antigo Egito, os deuses mitológicos haviam sido personagens reais. Seguindo também
essa linha de raciocínio, Herculano Pires vai afirmar que a sucessiva transformação dos
deuses é a chave das raízes históricas de vários dogmas, sacramentos e instituições das
religiões dominantes em nosso mundo. Na sequência, ainda irá afirmar, citando o
exemplo de Imhotep e Amenhotep, que: “[...] anteriormente adorados na família real,
como deuses-familiares, depois se tornaram deuses-populares e, por fim, se
transformaram em divindades mitológicas ou deuses-cósmicos, assim também
aconteceu, forçosamente, com a família osiriana”.15
No esquema proposto por Herculano e Murphy, aparece o “horizonte
civilizado”, caracterizado pelo surgimento dos Estados Teológicos, em que o humano e
o divino se fundem numa estrutura única, principalmente no Oriente, com as
civilizações da Babilônia, do Egito, da Assíria, Índia, China, Pérsia e, no Ocidente, com
a civilização Greco-Romana. Em algumas dessas civilizações, lentamente ocorrerá a
separação dos poderes político e religioso; entretanto, na Grécia, teremos, em Esparta, a
projeção do Estado Político por excelência, e, em Atenas, o Estado Teológico,
dominado pelos deuses. Nos Estados Teológicos das civilizações orientais, segundo os
autores citados, temos um panorama da evolução humana, quando vemos que o
monarca egípcio, babilônico, hindu ou chinês assume uma importância herdada do
“horizonte tribal”, que o eleva à categoria de deus, exercendo domínio absoluto sobre o
povo obrigado, então, a adorá-lo e respeitá-lo.
Importante salientar ainda que, embora a evolução econômica e técnica do
“horizonte agrícola” tenham propiciado acentuado desenvolvimento do animismo,

14
KARDEC, 2003, p. 224
15
PIRES, 1995, p. 31
dando estrutura racional mais sutil e complexa a tais prerrogativas, Herculano afirma
que:

Nos Estados Teológicos, a estrutura política assemelha-se à estrutura


metafísica ou divina. A Religião e o Estado se modelam reciprocamente, uma
sobre o outro, e vice-versa. A classe sacerdotal, racionalmente organizada,
elabora os mitos no plano intelectual, criando a teologia, estruturando o
ritualismo, estabelecendo a genealogia dos deuses e as formas de relações
entre estes e os homens. A teogamia egípcia, [...] é um dos mais perfeitos
exemplos dessas formas de relações: a genealogia divina se prolonga na
genealogia humana dos faraós, graças à fecundação da rainha por um deus.
Amalgamados assim os dois poderes, o temporal e o divino, na própria carne
dos monarcas, os Estados Teológicos tornam-se monolotícos. 16

Já Murphy, ao analisar as condições em que o homem se liberta das amarras da


organização social no “horizonte civilizado”, afirma que, embora os deuses sejam as
forças da natureza, como anteriormente, na vigência do “horizonte agrícola”, o
diferencial é que essas forças estão agora mais profundamente personalizadas e providas
de uma realidade dramática, resultante do progresso da reflexão mental. Assim, o
aparecimento da razão como acontecimento de enorme consideração é caracterizado por
três funções especiais: “capacidade de formulação de conceitos abstratos, de formulação
de juízos éticos e morais e de formulação de princípios jurídicos”17; da conjugação das
três funções, o homem descobre-se como indivíduo.
O espírito de civilização, cuja origem Murphy relata como resultante do
“horizonte agrícola” sinaliza a fase de superação do animal-político, com a
transformação do ser-social do homem num ser-moral18 e, consequentemente, a
transformação da espécie humana num processo histórico. Esse processo de exigências
sociais permitirá a elaboração de princípios que tomam parte dos primeiros códigos,

16
PIRES, 1995, p. 40
17
Murphy, 1951, p. 34
18
Murphy, 1951, p. 38
como o de Hamurabi. Entendemos, assim, que, ao atingir o “horizonte civilizado”, o
homem projeta-se em direção ao ser espiritual do futuro. Como consequência, os juízos
éticos, morais e jurídicos remodelam as antigas formas de relações entre os homens e os
espíritos, cercando as relações daí decorrentes de cuidados especiais no plano moral.
Um dado importante quanto ao “horizonte civilizado” é o fato de os oráculos
dominarem todo esse período, sendo parte essencial e de convergência de toda a sua
vida urbana e rural, política e religiosa. Mas, o que seriam os oráculos? São locais
especiais onde os deuses dão respostas aos consulentes, através de pessoas dotadas de
certa capacidade para tal mister, que exigia certo aprendizado para a interpretação.
Poderia um oráculo ser um templo ou santuário consagrado à adoração e consulta de um
deus profético, mas também um bosque sagrado, uma gruta misteriosa ou uma fonte
miraculosa. A pessoa que transmite profecias de uma divindade também é chamada
oráculo ou profeta. Enfim, a Divindade que aí se manifesta pode tanto falar por si
mesma quanto estar encarnada no santuário, no templo, na trípode, na pitonisa ou nos
elementos da natureza.
Nos oráculos, reis e sábios, guerreiros e comerciantes, homens e mulheres do
povo procuram respostas para a vida cotidiana. Todos reconhecem e respeitam a
presença de uma força sobrenatural nesses locais sagrados. Para Herculano Pires, os
oráculos atingem uma forma de síntese através da lei de adoração, reunindo as
conquistas operacionalizadas ao longo de sua evolução nos horizontes anteriores.
Segundo o autor, “O fenômeno mediúnico aparece na instituição oracular como um
mistério”. No entanto,

O processo de racionalização, [...] exige a elaboração de cosmogonias. Os


oráculos não são, portanto, formas simplórias de culto religioso, ou simples
locais de consulta mediúnica. Sua estrutura, muitas vezes bastante
complicada, alicerça-se numa concepção do mundo.19

19
PIRES, 1995, p. 45
A concepção do sagrado no “mediunismo”20 oracular, no dizer de Herculano, é
uma forma de transição para o culto individual dos espíritos. A História das Religiões
nos mostra que o culto dos ancestrais foi inicialmente coletivo, os espíritos dos mortos
considerados em conjunto e, assim, adorados, como no caso dos “manes”21 romanos.
Por isso mesmo, o mediunismo primitivo, o animismo e o culto dos ancestrais se
dissolvem numa forma nova de exteriorização psíquica: o mediunismo oracular.
À medida que o homem passou a organizar sua existência numa base racional, a
multiplicidade de poderes divinos e sobre-humanos levou-o a estabelecer uma relação
coerente com as múltiplas forças espirituais que povoavam o universo. Nessa fase, o
homem liberta-se dos instintos, toma consciência de si mesmo, de sua potencialidade
individual, e entra no “horizonte profético”; segundo a teoria de Murphy e Herculano, é
o mundo da individualização.
A nova condição demonstra o surgimento das grandes individualidades de
“sábios, místicos, poetas e profetas, numa vasta área de grande desenvolvimento da
civilização”22. Nas fronteiras de tempo e espaço do mundo antigo, vemos manifestarem-
se a filosofia grega, o profetismo hebraico, o misticismo hindu e o moralismo chinês.
Entretanto, os hebreus, ao demarcarem na Canaã a sua influência, fixam o “horizonte
civilizado” sobre as bases herdadas do “horizonte agrícola”, distendendo as perspectivas
do “horizonte profético”, pela aceitação do monoteísmo. A culminância do “horizonte
profético”, no entender de Herculano, decorre da “[...] aceitação popular do
monoteísmo, pela primeira vez na História, e consequente individualização da ideia de
Deus; da acentuação dos atributos éticos” e do “estabelecimento de ligações diretas do
Deus individual com o indivíduo humano; no caso, o profeta”.23

20
A expressão mediunismo, criada por Emmanuel, mentor espiritual de Chico Xavier, designa as formas
primitivas de mediunidade que fundamentam as crenças e as religiões primitivas. Mediunismo são as
práticas empíricas da mediunidade
21
Os “manes” entre os antigos romanos eram as almas dos mortos, consideradas como divindades e
invocadas sobre os túmulos.
22
PIRES, 1995, p. 50
23
PIRES, 1995, p. 51
Como decorrência natural, em que tudo se explica pela teoria dos “horizontes
culturais” de John Murphy, Herculano acrescenta o “horizonte espiritual”, assinalado
pelo poder transformador e renovador do mundo pelo fenômeno do Cristianismo. Nessa
perspectiva, o homem descobre que ele e os deuses são semelhantes e, por isso, mesmo
se eleva sobre sua própria condição, atingindo a divina através da transcendência
humana. Esse processo de transcendência do “horizonte espiritual” assinala uma forma
superior de construção de valores sagrados, pelo viés da religiosidade.
Vamos, agora, analisar um pouco mais as noções de simbolismo religioso, mito
e sagrado pela ótica de Mircea Eliade. Para este historiador das religiões, também o
sentimento de adoração é inato ao ser humano, porém influenciado pelas hierofanias24
das diversas religiões. Nesse contexto, o conceito de sagrado deve ser visto, levando-se
em conta a Lei de Adoração. Assim, o mito, por exemplo, conta uma história sagrada,
um acontecimento primordial que teve origem no começo do tempo - ab initio – a fim
de revelar um mistério. Somente os deuses podem revelar esse mistério. Quando
contada pelos reveladores, torna-se uma verdade apodítica, ou seja, demonstrável,
evidente.
Mircea denominou "hierofania" a manifestação do sagrado, ou seja, algo sagrado
que é mostrado ao homem. Essa manifestação do sagrado, seja uma pedra ou uma
árvore, trata-se sempre de uma hierofania25, de um ato misterioso que revela algo
completamente diferente da realidade do mundo natural, profano. A diferença aqui em
relação ao pensamento de Herculano e Murphy decorre do fato de que esses dois autores
procuram racionalizar o “ato misterioso”, dando um sentido não de revelação, mas de
uma realidade espiritual a impulsionar o homem primitivo para os níveis de uma
consciência superior.
O sagrado e o profano, segundo Mircea, configuram duas modalidades de estar
no mundo e duas atitudes existenciais do homem ao longo de sua história. Contudo, as
reações do homem frente ao sagrado, em diferentes contextos históricos, não são

24
O termo hierofania será utilizado no sentido empregado por Mircea Eliade como ato de manifestação
do sagrado, de que algo de sagrado se/nos revela.
25
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. 2ª ed. são Paulo: Martins Fontes,
2008, p. 18.
uniformes e expressam um fenômeno cultural e social complexo, apesar da base
comum. Por isso que, quando o sagrado faz-se conhecer por uma hierofania, institui
ontologicamente o mundo. Significa dizer, em outros termos, que, para aqueles que têm
uma experiência religiosa, toda a natureza é suscetível de revelar-se como sacralidade
cósmica. O Cosmos na sua totalidade pode tornar-se uma hierofania.
Submetida a várias origens etimológicas, considera-se que a palavra sagrado
deriva do verbo latino “sacer”, isto é, designa o que não pode ser tocado, que é querido
dos deuses. Contempla a ideia de “sanctus”, que corresponde ao que é tornado sagrado,
inviolável, respeitável, virtuoso, poderoso. Opondo-se a tais concepções que lhes dão
um sentido oposto, encontramos a ideia de execrável, detestável, abominável. Por essas
e por outras designações, o homem, ao vivenciar a essência desses múltiplos
significados, reage de maneira aparentemente contraditória, com manifestações de
respeito ou de aversão ao sagrado.
Os gregos utilizavam o conceito de “hieros” para significar algo que era sagrado
e que se referia ao divino, algo que era dotado de força e de luz. Em oposição ao
“hieros”, usavam o conceito de “hagios”, que continha a ideia de maldito. A religião
judaica introduziu a contraposição entre “sagrado” e “profano”, que foi incorporada
pelo cristianismo, acrescentando-lhe a ideia de santidade de Deus e a de pecado.
Durkheim, ao trabalhar o conceito de sagrado em oposição ao conceito de profano,
ressaltava que:

Todas as crenças religiosas conhecidas, sejam simples ou complexas,


apresentam um mesmo caráter comum: supõem classificação das coisas, reais
ou ideais, que os homens concebem, em duas classes, em dois gêneros
opostos, designados geralmente por dois termos distintos que as palavras
sagrado e profano traduzem bastante bem. A divisão do mundo em dois
domínios que compreendem, um, tudo o que é sagrado, outro, tudo o que é
profano, tal é o traço distintivo do pensamento religioso: as crenças, os mitos,
os gnomos, as lendas, são representações ou sistemas de representações que
exprimem a natureza das coisas sagradas, as virtudes e os poderes que lhes
são atribuídos, sua história, suas relações mútuas e com as coisas profanas.26

Eliade parte da suposição da existência do Sagrado como uma realidade que se


manifesta por si mesma, daí todo o cosmos poder ser visto como sacramento. Não é
aleatoriamente que seu conceito-chave é o de hierofania: o sagrado que, enquanto
sujeito da ação, manifesta-se ao ser humano. A este só cabe elucidar o mistério do
sagrado, a menos que, tendo abandonado a sua condição religiosa, dessacralize o mundo
ao negar-lhe qualquer significação impenetrável.
O sagrado não é um estágio primitivo na evolução da consciência do homem,
mas é intrínseco à estrutura da subjetividade humana, que pode traduzir-se em uma
palavra, em uma experiência ou um objeto, incluindo a família e a própria vida. O
sagrado mantém a chama do mistério: de um lado de exaltação e de outro sombrio. O
homem tem necessidade de crer em algo que dá sentido à vida, seja na personificação de
um Deus, uma Igreja, uma Doutrina ou em um personagem.
Para os povos antigos, o céu manifestava o sagrado. A natureza tinha formas
familiares e personificação divina, conforme anteriormente comentado. Portanto, a
natureza permitia a comunhão entre o homem e o divino. Conforme Mircea, com o
temor da natureza, a terra e o céu eram fontes da reflexão, assim, surge o animismo: a
crença de que objetos são habitados por forças divinas e que explicam as dúvidas do
homem. Nesse sentido, o sagrado é carregado de símbolos em decorrência da
personificação. O uso dos símbolos é como o uso de instrumento tangível para tocar o
intangível. Devido a isso a necessidade de objetos tangíveis para explicar o sagrado.
Dessa forma, o sagrado passa a ser compreendido como conjunto de valores e ideias,
com a função de dar sentido às causas da existência humana.
Os símbolos são tão necessários à expressão do espírito como o corpo o é à sua
existência. A pluralidade das estruturas simbólicas liga-se à natureza multiforme do

26
DURKHEIM, Emile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p.
20.
espírito, que exige uma expressão múltipla. A constituição essencial do homem é,
portanto, simbólica: não há um ato seu sequer que seja só espiritual, do mesmo modo
que não há qualquer ato seu que seja vazio de significação.
O homem, ao situar-se dentro de um universo mitológico, em um corpo de
pressupostos e crenças desenvolvidos a partir de suas inquietações existenciais, resenha
sua própria história através de um corpo de imagens concretas. Nessa caminhada,
aparecem: cidade, montanha, rio, jardim, árvore, óleo, fonte, pão, vinho, noiva, carneiro
e muitas outras. Elas são tão recorrentes que indicam claramente a existência de um
princípio unificador. Com isso, queremos dizer que a estrutura unificada das imagens
determina a permanência no âmbito das religiões do espaço sagrado.
Diante desse contexto simbólico, podemos situar a religiosidade como intrínseca
à natureza humana, anseio de apreender a totalidade da vida e do mundo. Assim, as
imagens sacralizadas são, antes de se tornarem objetos religiosos, representações
dotadas de sentido e fonte(s) de energia(s) que postulam uma dimensão própria a se
recriar permanentemente na história e nas manifestações culturais, como heranças
herdadas das ações humanas impostas pelos horizontes culturais.
Seja qual for o contexto histórico em que se encontre, o homem acredita sempre
que existe uma realidade absoluta, o sagrado, que transcende este mundo, mas que aqui
se manifesta, santificando-o e tornando-o real. Crê, além disso, que a vida tem uma
origem sagrada e que a existência humana atualiza todas as suas potencialidades, na
medida em que é religiosa, ou seja, partícipe da realidade. “Os deuses criaram o homem
e o mundo, os heróis civilizadores acabaram a criação, e a história de todas as obras
27
divinas e semidivinas está conservada nos mitos”. Reatualizando a história sagrada,
imitando o comportamento divino, o homem instala-se e mantém-se junto dos deuses,
quer dizer, no real e no significativo.
Nesse sentido, o símbolo não somente torna o mundo aberto, mas também ajuda
o homem em sua religiosidade a alcançar o universal. Os símbolos despertam a
experiência individual e convertem-na em ato espiritual, em compreensão metafísica do
mundo. Por isso, quando diante de uma “[...] árvore qualquer, símbolo da árvore do
mundo e imagem da vida cósmica, um homem, seja em que temporalidade histórica for,
é capaz de alcançar a mais alta espiritualidade: ao compreender o símbolo, ele consegue
viver o universal”.28
A imagem da árvore não foi escolhida unicamente para representar o Cosmos,
mas, em especial para manifestar a vida, a juventude, a sabedoria e a imortalidade,
símbolos que estão presentes em todas as religiões, eminentemente no Antigo e no
Novo Testamento. Com isso, significa dizer que a religiosidade humana expressa na
simbologia da árvore tudo o que é real e sagrado por excelência, tudo aquilo que foi
recebido como herança cultural religiosa dos deuses, do homem primordial e
racionalizado no encadeamento dos tempos no “Deus inteligência suprema, causa
primeira de todas as coisas”, conforme responderam os espíritos a Allan Kardec, na
obra O livro dos espíritos.29
Por isso, o esforço para explicar o sentido da vida ou da morte está impregnado
de mecanismos que refletem a importância de se manter um contato constante com o
transcendente, o qual, muitas vezes, materializa-se em diferentes concepções religiosas.
As mudanças necessárias à construção do humano exigem também a transformação das
subjetividades pessoais e coletivas, buscando, a cada dia, um sentido novo para o viver.
Dessa forma, se a presença da religiosidade é uma constante nesta trajetória, ela se
fundamenta na percepção da existência de forças superiores e na esperança de uma vida
mais forte que a morte.
O sagrado começa com o cultuar dos mortos. Por isso, era necessário contatar
com a vida após a morte. Assim, o homem preocupa-se com o sentido do tempo, de vida
e morte, isso equivale a dizer que é preciso retornar à página branca da vida. Significa
dissolver-se no mundo profano, para renascer no mundo sagrado, no mundo dos deuses.
Como decorrência natural, o processo de sacralização da morte vai ao encontro de suas
múltiplas representações.

27
ELIADE, 2008, p.164.
28
FRYE, Northrop. O código dos códigos: a Bíblia e a literatura. Tradução de Flávio Aguiar. São Paulo:
Boitempo, 2004, p. 98.
29
KARDEC, 2003, p. 45.
Portanto, o conjunto das representações construídas e das experiências vividas,
seja pelo caráter sacramental da religiosidade, seja pelo santorial, pelas pajelanças, pelos
cultos afros, pela crença nas forças sagradas da natureza, pela interveniência dos
espíritos desencarnados, formou um cabedal religioso próprio, constituído de formas
específicas de relacionamento com o sagrado que alcança um sentido racional
atualizado pela concepção espírita ao interpretar o próprio sentido da vida e por via de
consequência do sagrado.

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