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Professora da UFRJ/UERJ.
1Quanto aos movimentos que levaram à formação da pólis, Claude Mossé os
identifica no séc. VIII a.C. in: As Instituições Gregas, Lisboa, Ed. 70, 1985, p.1. Mas Henri
Van Effanterre identifica-os no séc. XII a.C., in: La Cité grecque, des origines à Ia défaite
de Marathon, Paris; Hachelte, 1985, p. 47.
2VERNANT, J. P. Origens do pensamento grego. São Paulo: Difel, 1972. capo
4, p. 34-37.
3ELlAOE, M. Mito e Realidade. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1972. p. 8. 7GREEN, A. Un oei! em trop. Le complexe d'OEdipe, dans Ia tragédie. Paris:
Ed. du Minuit, 1969. p. 224.
Também traduzido pela Ed. 70, sob o título Aspectos do Mito, Lisboa, 1986.
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Dionisos era neto de Cadmo, por Sêmele - Zeus, o fundador de Tebas. imortalidade da alma e a aspiração de felicidade, para o que seria
pode-se, portanto, notar a importância e a influência que necessária a prática de determinados modos de vida e a purificação,
tinham esses cultos tutelares para as cidades. Guardar o túmulo de um pela contemplação intelectual, elementos eminentemente aristocráticos.
grande morto representava guardar sua força e adquirir um aliado. No A inspiração religiosa dos pitagóricos, no século VI a.C.,
século 11 a.C. o culto dos heróis serviu de bandeira a manifestações afastava-se tanto do otimismo prosaico dos rnilésios quanto da piedade
políticas, uma vez que o grego honrava um herói por sua força e aristocrática dos poemas homéricos, pois tanto uns quanto outros
potência. Dessa forma um morto era temido pela força que guardava na consagravam um sólido amor à vida perecível, sem qualquer inclinação
terra, sob o seu túrnuto". Para que essa força revertesse em beneficio à consagração de uma imortalidade bem-aventurada, de caráter
da cidade ou da família, necessário fazia-se que homenagens fossem espiritual. No século VI a.C. essas idéias foram absorvidas pela
prestadas adequadamente a ele, através de oferendas junto a seu aristocracia, que as refinou. A vida terrestre passou a ser um tempo de
túmulo. provação: ao homem restava esforçar-se para se "assemelhar ao divino",
Essa era uma doutrina eminentemente aristocrática. Desde 476 a fim de escapar ao ciclo das nascimentos, Convinha, pois, cultivar a
a.C., na 118 Olímpica de Plndarc" apareceu uma nova doutrina, moderação, a ordem e o equilíbrio. Essa noção de harmonia para os
inspirada em idéias outras, opostas aos sentimentos do povo. A alma pitagóricos estendeu-se a partir do Cosmos, numa religião aritmológica,
imortal seria divina e julgada após a morte. Se pecadora, sofreria que retomou velhas tradições da magia dos números, A justa proporção,
tormentos; se piedosa, continuaria sua existência entre os bem- a harmonia, concilia componentes que, se abandonados a si próprios,
aventurados, mas deveria voltar a reanimar outro corpo e em seguida opor-se-iam violentamente. O ponto principal, portanto, é o da existência
um terceiro. Se se conseguisse manter pura, após esta última de duas espécies de polaridades bem distintas: como o mais e o menos,
reencarnação, seria associada a um sábio, a um rei ou a um ou o agudo e o grave. Há pares de opostos harmonizáveis e em conflito,
conquistador, depois do que seria liberada do ciclo dos nascimentos e e sua desordem apenas se manifesta se a medida não Ihes é imposta;
reencarnações e honrada pelos homens como potência heróica. Essa formam, pois, juntos, numa oposição desta vez fundamental, um só
doutrina conciliava-se com a antiga crença aristocrática dos heróis. Só termo, o indeterminado, o AP~RION, submetido à ação benéfica e
os grandes é que seriam honrados, e essa grandeza fora adquirida por pacificadora de um termo superior, o limite, A partir da fixação do
méritos anteriores, no período aristocrático. Nessa doutrina podemos ver indeterminado pelo limite é constituído o Cosmos e tudo o que ele
uma influência do pensamento dos pitagóricos. abraça. O limite ou unidade suprema instaura a universal afinidade entre
Herdeiros das crenças órticas na metempsicose, os as coisas."
pitagóricos 17 sustentavam que a verdadeira substância é a alma imortal, Sobre esses princípios meditaram Empédocles 19 e Platão. Se
distinta do corpo, ao qual preexiste e no qual se encarna, como numa os pitagóricos ensinavam que os seres existem por imitação dos
prisão ou num túmulo, como um castigo pelas culpas de existências números, para Platão existiam enquanto participantes das Idéias, das
anteriores. A alma deve percorrer várias existências; mas, conhecendo quais não passam de cópias em reprodução imperfeita. Todavia, se o
a Lei e praticando a Justiça, pode-se libertar do "ciclo dos nascimentos" ser das coisas não está dentro, mas fora delas, como apreendê-Io? A
e recuperar a liberdade e a felicidade a que tem direito de aspirar, solução acha-se na Teoria da Rerniruscência'". Em existência anterior,
graças à sua Natureza Divina. Concentram, portanto, a convicção na antes de se unir ao corpo, a alma contemplou as idéias no tópos
ourenos. Encerrada no corpo, delas se esqueceu, uma vez que o corpo
não é instrumento, mas obstáculo ao conhecimento. A experiência
15ldem, OEdipe et les Mythes de conquête. Paris: Belies-Lettres, 1981.
16131 e 133.
17Há grande dificuldade para o conhecimento da personalidade de
18Cf. BERNHARDT, J. A filosofia pagã: do séc, IV a.C. ao séc. lil d.C. Rio
Pitágoras. Já a partir de Empédocles (frag. 129) é apresentado como sobre-humano.
de Janeiro: Zahar Ed., 1973. p. 32.-33.
Heródoto associa seus ensinamentos aos milagres do trá cio Zalmoxis, e a hesitação de 19 •
Aristóteles em não pronunciar seu nome, mas apenas falar em "pitagóricos", parece-nos ROHDE, E. Phyché. Fibrourg: 1843. p.431-446. Trad. francesa.
que, para ele, Pitágoras parecia uma figura nebulosa. Ct. Leon Robin, in: La Pensée 2OCf. ROBIN, Léon. La Pensée Grecque. Paris: Renaissance du Livre, 1923,
Grecque, Paris, Renaissance du Livre, 1923. p. 59. p. 221 e sego (Col. L'Evolution de I'Humanité).
BIBLOS, Rio Grande, 6:59·67, 1994. BlBLos, Rio Grande, 6:59.67, 1994.
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sensível proporciona apenas a oportunidade e o estímulo para que a sobre Édipo, nem na tltede, nem na Odisséia. Ésquilo representou-o.já
alma recorde-se das idéias contempladas nas vidas pretéritas. Para o maculado, mas vítima de filhos ambiciosos e de um cunhado implacável.
homem, portanto, conhecer não é ver o que está fora dele, mas lembrar- Sófocles o cobriu de infâmia, no ~dipo-Rei. Fez dele o último dos
se do que se encontra dentro dele, adormecido na alma. homens, autor de crimes hediondos, mas concedeu-lhe a purgação de
É interessante observar o culto dos heróis no séc. V a.C., seus . erros por grandes sofrimentos. Porém, no final, em Édlpo em
quando adquiriu condições especiais. A melhor fonte para este estudo Cofona, restaurou-lhe o prestígio de herói, transformando-o no protetor
são as tragédias. Seus autores, como uma reação ao pensamento dos de sua própria cidade, Atenas, enterrado em sua própria localidade de
pitagóricos, como cidadãos que eram da Democracia, não heroificaram origem, Colona.
seus personagens, mas os humanizaram. Ésquilo não atribuiu honra
heróica a qualquer de seus personagens. Sófocles apenas dignificou
Édipo, em Colona, mas em benefício de Atenas. Já Eurípides heroificou
alguns personâgens. Mas se o fez não foi em função de méritos
adquiridos devido à sua potência ou em função de suas reencarnações
anteriores. Se o fez, foi para valorizar as qualidades morais desses
personagens, cujas virtudes não eram explicadas por seu passado. Nas
tragédias gregas, de 430 a 405 a.C., as honras são dadas: aos filhos de
Medéia, aos chefes da expedição contra Tebas, a lfigênia, a Amphictião,
a Helena, a Neptólemo, a Orestes e a Édipo. Essas honras são-Ihes
dadas não por seus méritos ou virtudes, mas por suas provações. São
mártires. São vítimas.
Outra questão importante é a de que os autores das tragédias
demonstram e revelam xenofobismo em suas manifestações de
Aticismo. A guerra do Peloponeso, seus desastres e suas ruínas
provocaram esse Aticismo, o que, por sua vez, estimulou a vida religiosa
ateniense, na medida em que representou um sentimento cívico.
Eurípides e Sófocles agiram do mesmo modo que Clístenes de Sícione,
quando expulsou Adrasto e seu culto de Argos.
Para um grego do povo, ou mesmo no pensar de Eurípides, a
única maneira de recompensar dignamente a virtude era a felicidade
terrestre, conseguida por essa virtude. Senão, o morto seria um morto
insatisfeito, a quem se necessita aplacar através de um culto, a fim de
que se tornasse o protetor dos que estavam à sua volta, e não o
perseguidor.
Édipo, em Colona, recusou aos filhos amaldiçoados seu
cadáver, dando-o de presente a Teseu, o que fez de seu túmulo uma
fonte de benefícios para Atenas. Os tebanos tudo fizeram para recuperar
esse túmulo, colocado em terra estrangeira, para eles uma eterna
ameaça, uma vez que, em Atenas, Édipo seria sempre seu protetor,
contra o ataque de quem quer que fosse, inclusive dos próprios tebanos.
O destino do mito Édipo é singular. Seus relatos mais antigos
mostram-no como um herói. Homero, apesar de reconhecer seus erros,
dignificou-o e lhe atribuiu um fim honrado. Não há infâmia pesando