Você está na página 1de 27

ENTREVISTA

Interview

Adeus ao trabalho? 1995 — está completando vinte anos, o


que motivou a publicação de uma edição

Vinte anos depois... especial comemorativa, nasceu a ideia de


realizarmos uma entrevista com seu autor,

Entrevista com Ricardo o professor Ricardo Antunes, abordando


várias dimensões dessa obra e para além
Antunes* dela, que teve — e tem — tanta incidência
em diversas áreas do conhecimento e em
Farewell to work? Twenty years later... particular no Serviço Social. Esse livro,
Interview with Ricardo Antunes que é consagrado e um clássico da socio-
logia do trabalho, fez parte da formação
e da vida acadêmica de muitas gerações.
Claudia Mazzei Nogueira A gentil concordância do autor re-
Professora doutora da Unifesp-Baixada Santista/Santos, sultou em uma longa e densa entrevista,
São Paulo – Brasil. Departamento de Saúde, Educação e
com mais de três horas de duração. O seu
Sociedade, Curso de Serviço Social.
mazzeinogueira@uol.com.br
eixo orientador percorreu a revisitação
de temas referentes às metamorfoses no
mundo do trabalho atual, os múltiplos
Maria Liduína de Oliveira e Silva significados do livro Adeus ao trabalho?,
Assistente social e professora do Curso de Serviço
Social da Unifesp-Baixada Santista/Santos; assessora suas principais teses e seus elementos de
editorial da área de serviço social da Cortez Editora. vigência e atualidade, a nova morfologia
liduoliveira@ig.com.br do trabalho e da classe trabalhadora, bem
como suas formas de exploração, intensi-
ficação e precarização, vinte anos após a
No momento em que o livro Adeus ao sua primeira publicação.
trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses
e a centralidade do mundo do trabalho Entrevistadoras: Agradecemos a sua dis-
— publicado pela Cortez Editora, em ponibilidade em conceder esta entrevista,
que tem o intuito de fazer parte da come-
moração dos vinte anos da primeira pu-
* Agradecemos a Maria Izabel que defendeu, em
2014, tese de doutorado sobre a obra de Ricardo blicação do seu livro Adeus ao trabalho?
Antunes junto ao Serviço Social da Unesp-Franca, pela Cortez Editora. Temos aqui várias
com o título A apropriação das obras de Ricardo
perguntas. Primeiro, gostaríamos de saber
Antunes pelo Serviço Social: a categoria trabalho
em debate, pelas sugestões de perguntas, as quais qual a sua formação e trajetória acadêmica.
foram incorporadas na entrevista. Agradecemos
também a Felipe Queiroz pela transcrição da entre- Ricardo: Sou formado em Administração
vista, que foi revisada pelo autor. Pública pela Fundação Getúlio Vargas,

Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 124, p. 773-799, out./dez. 2015 773
http://dx.doi.org/10.1590/0101-6628.050
entrei na FGV, comecei o primeiro ano nhos preparatórios, porque eu precisava
em 1972. Eu queria ser administrador me manter: entrei na FGV em fevereiro
de empresas, olha como são as ironias de 1972, e na semana em que raspei o
da história: queria ser administrador de cabelo fui fazer concurso numa escola
empresas, tinha dezoito anos... E no curso para dar aula de História. Naquela época
de Administração Pública da FGV eu me eu já tinha uma vontade humanista. Tive
percebia estudando sociologia, política, no ensino médio público bons professores.
economia, história, e me sentia um estra- Acho que foi a última onda de professores
nho no ninho quando tinha que estudar da “velha escola pública paulista secun-
administração, contabilidade, estatística, dária”, que tinha professores engajados e
matemática financeira... matérias que eu críticos. E tudo isso me ajudou, tanto é que
verdadeiramente odiava! Isso tem a ver me formei em 1975 e tinha absolutamente
com uma singularidade que a FGV tinha claro que iria fazer mestrado em Sociolo-
naquele período: em plena ditadura, em gia e Política. Antes disso, deve ter sido
um momento dos mais terríveis da ditadura em 1973 ou 1974, eu tinha tanta vontade
militar, em 1972, 1973, onde tinha Dops, de estudar humanas que fiz vestibular e
Oban, eles perseguiam professores da entrei em Filosofia na USP, chegando a
USP, de universidades públicas, e a FGV cursar disciplinas durante um semestre,
era uma espécie de ilha — quer dizer, uma por pura vontade de estudar humanas, por-
espécie de ilha entre aspas, porque a GV é que eu não tinha condições de fazer dois
uma escola do capital, uma grande escola cursos pesados. A Administração Pública
do capital — e lá eu tive professores espe- da FGV é um curso muito pesado — ou
taculares, muitos dos quais me ajudaram. você estuda ou não passa — e a Filosofia
Jovens cientistas sociais, jovens economis- da USP também, ou você estuda ou você
tas... Cito aqui dois que já se foram: o meu não passa, então eu não tinha condições
querido amigo Maurício Tragtenberg, que de estudar dois períodos cheios em duas
foi um dos sociólogos mais originais que o faculdades porque no outro período eu
Brasil teve, pelo menos dos anos 1970 para tinha que trabalhar. Tinha que dar aula de
cá, e morreu tristemente há uns anos atrás; manhã e à tarde, ou de tarde e à noite. E
e tive como professor também o historiador a USP daquele momento passava por um
Edgard Carone, que também me incentivou período assustador. Durante as aulas nos
muito a estudar história do Brasil. antigos barracões da USP você olhava para
E lá percebi, já no segundo ano, que o lado para ver quem era da Oban e quem
eu era um cientista social em uma escola era do Dops, enquanto na FGV não tinha
de Administração Pública! Não por acaso, isso, porque ninguém ia perder tempo
eu já era professor de História em cursi- para ver quem ali era comunista, pois era

774 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 124, p. 773-799, out./dez. 2015
uma instituição que, em última instância, de História Social na Unesp de Araraquara,
era do capital, voltada para ser a melhor e lá trabalhei de 1979 a 1986. Em 1986
escola de Administração de Empresas prestei um concurso na Unicamp — estava
da América Latina e que se equiparava terminando meu doutorado, o qual defendi
à Universidade de Harvard nos Estados em junho desse mesmo ano — e me tornei
Unidos. Então minha formação se deu professor de Sociologia da Unicamp. Aí fiz
basicamente aí, e sempre, desde o início. minha livre-docência, da qual o Adeus ao
Fui fazer mestrado em Ciência Política em trabalho? é a parte principal, original, ao
1976 com o orientador Décio Saes, uma qual se somam outros ensaios. Um deles
pessoa muito especial, sendo eu o primeiro se chama O novo sindicalismo no Brasil,
aluno de Administração Pública a entrar no que deu um pequeno livro, que publiquei
Mestrado em Ciência Política da Unicamp. logo depois. Minha tese de livre-docência
Em 1981 comecei meu doutorado em foi apresentada e defendida em 1994.
Sociologia na USP, o qual defendi em Em 1997 eu fui fazer meu pós-douto-
1986, com o orientador Paulo Silveira, rado no exterior. Eu já conhecia pessoal-
outra pessoa especial. Trago dos meus mente o István Mészáros desde 1983, tinha
dois orientadores citados a melhor recor- planos desde o fim do doutorado para fazer
dação: foram pessoas que me ensinaram pós-doutorado, e só em 1997 — portanto
muito o que é ser professor, o que é ser três anos depois de fazer minha livre-do-
cientista social, a ter posições firmes e cência — tive a oportunidade de fazê-lo.
ao mesmo tempo ter abertura e diálogo. E eu queria fazê-lo na Itália, com a qual eu
Aprendi muito com eles! Então na minha tenho um vínculo muito forte até hoje, mas
trajetória, desde quando comecei a fazer meu querido amigo, esse muito querido e
graduação na FGV, quando comecei a especial, o István Mészáros, insistiu muito
estudar Ciências Humanas — e inclusive e devo muito a ele esta opção: “Venha para
essa pequena experiência que não durou a Inglaterra, venha para cá, venha para a
nem seis meses na USP —, percebi que eu Universidade de Sussex, venha trabalhar
queria ser na verdade um cientista social, e aqui conosco!” Ele já era aposentado da
de lá para cá a história seguiu deste modo. universidade, mas como ele é quase um
Tornei-me professor em 1976 da FGV fundador da Universidade de Sussex, ele
pois, já quando me graduei, fui contra- me incentivava a ir para lá e falava muito
tado como professor de Ciência Política, que “além ser muito útil para você, a ci-
e fiquei lá até 1981 mais ou menos... Em dade é muito bonita, é muito perto de Bri-
1979 fui convidado pelo professor Edgard ghton, um clima muito mais agradável, é
Carone a concorrer a uma vaga — não era sul da Inglaterra, cidade ­marítima, do outro
concurso público na época, era seleção — lado do Canal da Mancha está a França, e

Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 124, p. 773-799, out./dez. 2015 775
os teus filhos irão aprender inglês”, então queria ser administrador de empresas.
acabei aceitando a sugestão dele e foi a Foi quando um professor de Sociologia
melhor coisa que eu fiz. aqui, outro ali, um professor de Economia
Passei um ano espetacular! Estreitei aqui, outro ali, um professor de História
muito minha relação com István Mészáros aqui, outro ali... e comecei a estudar na
e lá se consolidou uma pesquisa de um FGV autores como Durkheim, Weber —
outro livro meu — que, para minha sorte, porque a FGV era uma escola com muita
se tornou outra obra consagrada —, que influência weberiana — e Marx. Aí come-
é Os sentidos do trabalho, publicado pela cei a estudar sociologia e política, além
Boitempo, e eu o apresentei em meu con- de história, porque eu já era professor de
curso para professor titular da Unicamp História e tinha um autor que influenciou
em Sociologia do Trabalho. Grosso modo, muito na minha formação, que foi Caio
é mais ou menos essa a minha trajetória. Prado Júnior. Li muito Nelson Werneck
Sodré, mas o historiador que fez a minha
cabeça, que me ajudou a entender o Brasil,
Entrevistadoras: Pensando nessa sua traje-
foi Caio Prado Júnior. Então muito jovem,
tória, como se deu a sua aproximação com
como professor de História, tinha que me
Marx, com o marxismo?
defrontar com livros — além dos clássi-
Ricardo: Nossa vida intelectual — como cos de História que tinha de ler —, mas
é a vida de todos os indivíduos, homens a minha leitura da formação de sociedade
e mulheres de todas as classes sociais, brasileira, o sentido da colonização, é
sejam trabalhadores, “classe média” como inteiramente “caiopradiana”. Caio influen-
nós etc. — é eivada de contingências. Eu ciou muito a minha formação, mas a leitura
queria ser administrador de empresas, de O capital foi decisiva na faculdade, pois
fui fazer Administração Pública porque de 1972 a 1975 li o volume 1, enquanto a
era um curso gratuito, pois meu pai não leitura do Caio — esta não foi na univer-
tinha condições de pagar um curso de sidade; é que para ser professor eu tinha
Administração de Empresas, e meu salário que estudar História — eu já estudava
como professor de cursos pré-vestibulares desde o primeiro colegial porque gostava,
também não garantia isso. Eu ainda esta- especialmente a história do Brasil. Nesse
va começando a trabalhar, e o curso de momento, quando comecei a ler Marx,
Administração de Empresas na FGV era que ele foi um autor que virou totalmente
caríssimo. Inclusive entrei na Faculdade a minha cabeça! Eu tinha um colega, o
de Economia e Administração (FEA) da qual já registrei em outras oportunidades,
USP, também gratuito, mas acabei prefe- chamado Armando de Santi, e nós ali
rindo fazer a FGV porque era gratuita e conversávamos muito: éramos dois, entre
eu não queria ser administrador público; alguns poucos que existiam numa classe

776 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 124, p. 773-799, out./dez. 2015
de cinquenta alunos, que, vamos dizer livro, numa mesa em que estava o José
assim, empiricamente estávamos nos Paulo Netto, a Ana Elizabete Mota, e eu,
formando na esquerda, e então decidimos se minha memória não falha. Assistiam
fazer um grupo de estudos de O capital, à mesa tinha, creio, umas mil pessoas...
ele e eu, nos reunindo ora na casa dele, Assim que acabou a mesa, tivemos o lan-
ora na minha. Li farta literatura marxista çamento do livro, e poucas horas depois,
naquela época. Existia uma livraria cha- o José Xavier Cortez chegou para mim,
mada Livraria Avanço, na Rua Aurora, que com os olhos arregalados e disse: “Ri-
não sei explicar, mas que trazia livros de cardo, não sei o que aconteceu! A editora
Portugal de Marx, Engels, Lenin, Trotski, mandou trezentos, quatrocentos livros
Mao Tsé-tung, e era estranho, porque isso pra cá, e acabou, não tem mais nenhum!”
era em plena ditadura militar, anos 1970. Perguntei: “O que aconteceu, roubaram?”
Mas foi lendo Marx que modestamente me E ele: “Não, vendeu tudo!!!” A partir daí a
tornei um antigestor do capital. primeira edição durou, acho, quinze, vinte
dias... fez a segunda edição, durou um
Entrevistadoras: Como você recebeu a mês; a terceira... Enfim, foi uma explosão
publicação dessa edição comemorativa de do Serviço Social para as Ciências Sociais,
seu livro Adeus ao trabalho?? das Ciências Sociais para a Economia,
Ricardo: Com muita felicidade! Eu não da Economia para a História, da História
tinha a menor ideia, quando comecei a para a Enfermagem, para a Medicina do
escrever esse livro em 1993, 1994, que Trabalho, para a Geografia do Trabalho...
ele iria ter o impacto que teve. Nem a Agora, é inegável que quem deu o sinal
mais remota ideia! Fui saber depois que que o livro teria essa explosão que teve
o livro teria o impacto que teve quando foi o Serviço Social. Naquele momento
Maurício Tragtenberg fez um comentário estávamos imersos na tese equivocada do
para mim que foi espetacular — prefiro fim do trabalho, de Claus Offe, Habermas,
não fazê-lo aqui, mas me deixou muito que diziam: “A centralidade do trabalho
feliz — e foi público, porque Maurício acabou, o trabalho não é mais central!”
o fez em minha banca de defesa na Uni- O livro de Habermas, Teoria da ação co-
camp. Ele foi à minha banca de defesa da municativa, já sinalizava isso com muita
minha livre-docência, onde o apresentei força; o ensaio de Claus Offe, “Trabalho:
[o livro], e aí tive a sensação forte quando categoria sociológica chave?”, e tantos
ele foi lançado no congresso de Serviço outros, como o Gorz, com seu Adeus ao
Social: fui a Salvador em 1995 para um proletariado (que foi vital na provocação
congresso do Serviço Social, um CBAS, desse meu livro), e isso tudo fez com que
e aí me lembro que o Cortez lançou esse eu, através do Adeus ao trabalho?, desse a

Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 124, p. 773-799, out./dez. 2015 777
primeira resposta mais abrangente: “Essa setembro ele será relançado em uma segun-
leitura é eurocêntrica, nosso problema é da edição revista e ampliada pela Editora
compreender o novo desenho da classe da Universidade de Veneza na coleção
trabalhadora, a nova morfologia do tra- coordenada pelos professores Pietro Basso
balho, e nós temos que entender a classe- e Fabio Perocco. E tenho já praticamente
-que-vive-do-trabalho hoje”. acertada sua possível publicação — espero
que seja no ano que vem — em língua
Entrevistadoras: Em quantos e quais idio- inglesa. Então, esse livro teve, além de
mas esse livro foi editado? tantas edições no Brasil, se eu não estiver
me esquecendo de algo, ele teve edições
Ricardo: Olha, depois que ele saiu pela
em todos esses demais países.
Cortez Editora, em seguida foi publicado
na Venezuela, por uma pequena editora
Entrevistadoras: Você considera essa a
que nem sei se ainda existe chamada La
principal obra de sua autoria? Por quê?
Chispa; depois pelos queridos amigos,
companheiros e companheiras da revista Ricardo: Na verdade é muito difícil um
Herramienta da Argentina, Herramienta autor falar de sua obra. Meu querido ami-
Editorial, que hoje é uma editora consagra- go, José Paulo Netto, me presenteou com
da na Argentina, uma das melhores editoras um posfácio lindíssimo, em que disse:
de livros marxistas e críticos da América “Eu me atrevo a dizer que neste livro o
Latina, uma editora autônoma e coletiva, Ricardo pela primeira vez faz uma análise
que não é empresarial, que publicou uma claramente inspirado na ontológica do
linda edição do Adeus ao trabalho?. Da trabalho”. Não tenho tempo de expor aqui,
Argentina foi à Colômbia, publicado pelo pois nos levaria longe demais, mas meus
meu querido amigo Renán Veja Cantor, primeiros livros... meu primeiro livro foi O
um grande marxista latino-americano, dos que é o sindicalismo?, de 1980. Em 1984
mais criativos. Depois houve uma edição publiquei a primeira edição, pela Cortez
que o Cortez preparou para ser lançada no Editora, do Classe operária, sindicatos e
México, da Biblioteca Latinoamericana partido no Brasil. Em 1986 defendi minha
de Serviço Social, então preparada no tese de doutorado que foi publicada em
Brasil, mas lançada para a Feira do Livro livro em 1988, cujo título era Rebeldia do
no México. Posteriormente foi publicado trabalho, publicado pela Editora Ensaio
na Espanha em galego; e depois na Biblio- em coedição com a Editora da Unicamp.
teca Franco Serantini, na Itália. Neste ano O livro Rebeldia do trabalho tem uma
de 2015 ganho um duplo presente desse diferença em relação ao Classe operária,
livro: um é essa belíssima edição, com esse sindicatos e partido no Brasil: Classe
cuidado especial da Cortez Editora; e em operária, sindicatos e partido já tinha

778 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 124, p. 773-799, out./dez. 2015
uma clara influência lukacsiana oriunda da fundamentais, e no segundo pude enfren-
leitura de História e consciência de clas- tar um debate com Habermas. Eu estava
se; mas nós, em 1982, 1983, estávamos muito provocado com essa história de que
começando a conhecer a edição italiana o trabalho deixava de ser central, de que
da Ontologia do ser social e lendo os a classe operária perdia relevância, muito
primeiros textos publicados pela revista provocado com a tese de Gorz, Adeus ao
Temas, que eu tive a felicidade de partici- proletariado. Foi esse contexto que me
par, ainda jovem, do projeto que foi uma vez escrever Adeus ao trabalho?, e eu
iniciativa do Chasin com Gildo Marçal diria que ele e Os sentidos do trabalho
Brandão, Marco Aurélio Nogueira, Nelson são o que condensam minha reflexão mais
Werneck Sodré, Carlos Nelson Coutinho, centrada no debate sobre o que é, afinal, a
Leandro Konder... um grupo muito grande centralidade do trabalho hoje.
de intelectuais marxistas que fundou e
apoiou essa revista. O meu livro A rebel- Entrevistadoras: Quando você escreveu
dia do trabalho, publicado em 1988, já é sua tese de livre-docência, que depois
um momento em que estou transitando virou o livro Adeus ao trabalho?, ela foi
entre uma leitura do Lukács da História e pensada como uma resposta ao livro do
a consciência de classe para uma leitura André Gorz, Adeus ao proletariado?
ontológica dele. Esse salto para uma leitu- Ricardo: Certamente! Embora ele não se
ra mais inspirada na ontologia começa aí, resuma ao Gorz, este aparece como o texto
mas acho que o José Paulo acerta ao dizer com o qual mais debato. Certamente, foi
que o Adeus ao trabalho? é um livro em uma inspiração travar uma polêmica e
que me apodero de uma leitura ontológica uma primeira resposta a Gorz. Eu entendia
do trabalho. E o Adeus ao trabalho? foi que o livro do Gorz era demasiadamente
meu primeiro texto em um longo projeto eurocêntrico, provocando um estrago es-
de pesquisa que se mantém até hoje. Então petacular porque foi um livro que causou
fui estudar a Itália, a Inglaterra, um pouco muito impacto no movimento operário
a Europa Ocidental, os Estados Unidos e europeu e ajudou a propagar a ideia de
o Japão. Logo, o Adeus ao trabalho? foi “sepultar” a classe trabalhadora. Agora
decisivo para mim! Caso me perguntem eu preciso fazer uma lembrança que nem
se o considero o mais importante, eu não todos percebem (e está em um dos apên-
saberia responder. Dois livros que são dices do Adeus ao trabalho?): um outro
marcantes na minha formação, com todas livro que me provocou muito a escrever
as lacunas e limitações que possam ter, esta tese de livre-docência foi o de Roberto
são Adeus ao trabalho? e Os sentidos do Kurz, O colapso da modernização, que foi
trabalho, pois o primeiro lançou as teses publicado se não me falha a memória em

Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 124, p. 773-799, out./dez. 2015 779
1992 no Brasil. Há um apêndice crítico Então essa é a primeira tese, a de que a
que eu dedico a ele, um apêndice onde classe trabalhadora não morreu. Segundo,
eu menciono os acertos e erros de Kurz, é preciso pensar numa classe trabalhadora
em minha avaliação. Tratou-se de um ampliada. Em que sentido? Se entender-
autor que eu prezo demais, eu conheci mos como classe trabalhadora os homens
pessoalmente e tive o prazer de debater e mulheres que vivem da venda de sua
com ele — tristemente morto poucos anos força de trabalho em troca de seu salário,
atrás — dos mais qualificados. Posso então a classe trabalhadora não diminuiu, mas
dizer que estes dois livros me provocaram se ampliou! Está embutido aqui no Adeus
muito a escrever o Adeus ao trabalho?. ao trabalho? a seguinte tese: a classe ope-
rária não é composta só por trabalhadores
Entrevistadoras: Neste momento de co- operários industriais, não é só composta
memoração da 16ª edição, além das várias por trabalhadores operários agrícolas, mas
reimpressões do livro Adeus ao trabalho?, ela é composta também por trabalhadores
já se passaram vinte anos desde a primei- assalariados do setor de serviços, que eu
ra edição. Qual o balanço, que análises, chamaria — e esta é a minha pesquisa atual
o professor faz hoje? Você o considera — de “o novo proletariado não industrial
ainda atual? de serviços”, e o “não industrial” é entre
Ricardo: Considero. Se eu não consideras- aspas. Não é o caso de debater isso agora,
se, eu não teria nenhuma dificuldade em mas este novo proletariado de serviços
dizer. O livro tem duas ou três teses funda- não é o proletariado da indústria. Mas
mentais. Primeiro, a classe trabalhadora, a atenção, só um parêntese aqui: o Marx,
classe operária, o proletariado não morreu, um autor verdadeiramente genial, diz que
não morreu nem na Europa e muito menos quando uma indústria atingiu um processo
na Ásia e na América Latina. Esta tese me de produção capitalista, do capitalismo
parece hoje explosivamente atual. A classe pleno, da grande indústria, da subsunção
operária chinesa, a população economica- real do trabalho ao capital, nós temos a
mente ativa chinesa, hoje, está perto de 1 industrialização do processo industrial;
bilhão de pessoas. Na Índia, perto de 700 quando a agricultura — diz Marx — as-
milhões de pessoas. Então, a tese do fim sumiu a forma de produzir da indústria,
da classe operária é muito eurocêntrica! ocorreu a industrialização da agricultura,
Não adianta você olhar a França e querer a agricultura se torna a indústria agrícola;
explicar o mundo pela França. E acho que e quando os serviços se tornam totalmente
acertei. Muitos livros que fizeram um ré- mercadorizados e subsumidos ao capital,
quiem para a classe trabalhadora nos anos nós temos o processo de industrialização
1990 não têm hoje importância nenhuma. dos serviços. Então, o proletariado agrí-

780 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 124, p. 773-799, out./dez. 2015
cola, industrial e de serviços mostra que meiros passos na teoria social é o Marx, e
a classe trabalhadora não diminuiu, mas uma questão vital dele é a que o trabalho
em certo sentido até aumentou! No Adeus no capitalismo é impossível de ser tra-
ao trabalho? procuro apresentar a tese de tado na medida em que o trabalho deve
que a classe trabalhadora heterogeneizou- ser entendido com o trabalho abstrato e
-se, complexificou-se, fragmentou-se e trabalho concreto. E esta tese desmontava
ampliou-se! autores como Gorz e Claus Offe porque
Em terceiro lugar, eu dizia que aden- eles desconsideravam ou minimizavam
trávamos em uma era de precarização acentuadamente essa questão crucial! Há
estrutural do trabalho em escala global, uma dialética profunda do trabalho: o tra-
e hoje essa tese é triste e absolutamente balho é criação e perda; é emancipação, é
atual. Então o que costumo fazer em cada ato poiético, mas trabalho também é tripa-
nova edição é o seguinte: não reescrevo lium, é sofrimento, e estas duas dimensões
meus textos, mas republico sempre uma caminham com o trabalho ao longo da
nova parte, com novos apêndices. Na história da humanidade. Essas teses estão
edição original acho que ele tinha oito ou todas presentes, mais ou menos embrio-
nove apêndices, depois ela foi ganhando nariamente, em Adeus ao trabalho?, e se
mais deles, tanto que a edição original ti- essas teses não fossem atuais... o Cortez
nha cerca de 160 páginas e hoje tem quase não investiria seus recursos em um livro
trezentas. Ou seja, o livro foi ganhando que não tivesse atualidade!
em volume. É claro que eu vou atualizando, eu
É claro que algumas teses embrioná- ganhei muitas apresentações — esse livro
rias tornaram-se claras aqui, mas essen- tem José Paulo Netto, apresentações do
cialmente as teses presentes em Adeus Alan Bihr, do Octávio Ianni, comentá-
ao trabalho? se mostraram verdadeiras, rios do Nelson Werneck Sodré, tem os
em especial a principal delas, a de que é comentários que estão na orelha do livro
impossível dizer “adeus” ao trabalho e a que são de vários autores com os quais eu
de que, para se definir o que preservar e o dialogo no cenário internacional — quer
que eliminar do trabalho é preciso partir dizer, o livro foi ganhando importância,
de uma distinção marxiana crucial entre e eu acho que ele não se desatualizou,
trabalho concreto e trabalho abstrato. especialmente porque a edição atual é
A minha influência do Lukács é grande, muito mais ampla, pelos apêndices, do
porém o autor que fez a minha cabeça foi que aquela primeira, ainda que as teses
Marx. Então tenho uma forte influência essenciais da primeira ainda se mante-
lukacsiana, motivo de orgulho para mim, nham porque eu não tirei sequer um texto
mas o autor que me inspira desde os pri- do livro, só acrescentei.

Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 124, p. 773-799, out./dez. 2015 781
Entrevistadoras: O que significa, signifi- faço uma análise nesse livro das condições
cou ou continua significando esse livro na de trabalho e de suas metamorfoses, que
sua vida acadêmica? geraram muito interesse, dada a onda
conservadora que então predominava.
Ricardo: Pode pular esta pergunta? (ri-
Recebi vários documentos de sindicatos
sos). Todos os livros têm sempre alguma
e partidos, além de colegas intelectuais.
significação para seu autor. Até já tenho
um livro, que está na minha cabeça, o Na Argentina, deveu-se à edição de
Herramienta, que é uma editora que tem
qual quero publicar no ano que vem, com
ligação com o movimento operário e sin-
o título O uno e o múltiplo: o novo pro-
dical, com os movimentos de periferia,
letariado de serviços. Mas na minha vida
de bairros etc.
intelectual não caberia um livro do tipo
“Viva o trabalho!”, porque seria um infer- A edição italiana de Sentidos do
no uma sociedade onde só se trabalhasse. trabalho tem como subtítulo “La-classe-
-che-vive-del-lavoro”, que é uma deno-
Agora, é um conto de carochinha, um
minação que uso em Adeus ao trabalho?
sonho dourado numa sociedade de verão,
pela primeira vez. Sei muito das minhas
imaginar uma sociedade sem trabalho! É
limitações, até onde não consigo chegar,
essa a dialética que nos obriga a pensar, e
os pontos que não consegui enfrentar, os
foi Marx quem fez a síntese mais sublime.
pontos que tinha vontade de resolver e
Hegel, na “Dialética do senhor e do servo”,
não resolvi... Mas penso que esse livro
capítulo da Fenomenologia do espírito,
auxiliou na luta sindical, nos embates
nos apresenta essa dialética. Marx foi além
do trabalho, porque a tese que afirmava
de Hegel ao mostrar que o trabalho pode
que “a classe operária acabou” estava
ser servidão (voluntária ou involuntária),
à época com muita força e influência,
mas pode ser também ato emancipatório,
especialmente nos países do Norte. Acho
espaço central da revolução.
que o livro foi um dos primeiros estudos
que dizia claramente que “a tese de que o
Entrevistadoras: Você considera que esse
trabalho acabou e que o proletariado está
livro resultou em algum efeito político,
definhando é equívoca”. Então sinto que
sindical na luta dos trabalhadores em geral?
ele teve em muitos espaços, lugares, uma
Ricardo: Posso responder pelo que vi repercussão que chamais imaginei que
e recebi de colegas vinculados ao mo- pudesse ter.
vimento operário e sindical argentino, Cheguei a ir a sindicatos, a vários
português, italiano, espanhol, que citaram acampamentos do MST para fazer deba-
e utilizaram, por exemplo, a denominação tes, a vários movimentos operários e da
“classe-que-vive-do-trabalho” — porque periferia na Argentina, como disse acima,

782 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 124, p. 773-799, out./dez. 2015
a movimentos populares e sindicais no -trabalho”, que teve uma importante reper-
Chile, onde fui convidado para participar cussão, sendo muito utilizada inclusive no
de uma conferência em um seminário dois próprio Serviço Social, mas que também
ou três anos atrás, e o título do seminário desencadeou polêmicas. Você poderia
era “A classe que vive do trabalho” e que falar um pouco sobre essa denominação,
era organizado por uma instituição ligada relacionando-a ao conceito de classe ope-
ao movimento operário chileno. rária e proletariado? Você mantém essa
Na Itália, no ano passado, fiz duas denominação ainda hoje? Quais seriam
videoconferências pela internet com os elementos constitutivos dessa “classe-
movimentos de juventude, de jovens -que-vive-do-trabalho”?
trabalhadores de Napoli que citavam Ricardo: Vou começar pelo núcleo central
meu livro Addio al lavoro?. Em Portugal da primeira pergunta, se eu mantenho a
fiz videoconferência com o movimento denominação: claro! Até porque é uma
Precári@s Inflexíveis, com o movimento denominação, não é um conceito novo.
do precariado composto por jovens traba- Não criei um conceito novo, é uma de-
lhadores, imigrantes etc. nominação nova. E que nasceu quando
O fato de eu ter feito conferências em eu estava lendo o livro Adeus ao proleta-
quinze ou vinte países do mundo nos últi- riado?, de André Gorz, e me deparei com
mos quinze ou vinte anos, da Argentina até uma expressão que é a “não classe dos não
a Índia, tudo isso me ajudou... Então acho trabalhadores”, um conceito que se define
que o livro teve impacto sim. Foi, dentre pela indeterminação. Esse conceito parecia
todos os meus livros, o que se expandiu profundamente equivocado. Uma “não
com mais incidência e rapidez, e para a mi- classe dos não trabalhadores” é, então, o
nha sorte no movimento operário! Porque quê? Então eu disse intuitivamente: “Não,
é óbvio que, para um intelectual marxista, é a classe-que-vive-da-venda-da-sua-
ver seu livro lido na universidade, na En- -força-de-trabalho”, só que isso ficaria
genharia de Produção, na Economia do estranho hifenizado. Foi aí que denominei
Trabalho, na Psicologia do Trabalho, na “classe-que-vive-do-trabalho”, inspirado
Enfermagem, na Medicina do Trabalho, diretamente em Marx, quando ele afirma
na Geografia do Trabalho, na Filosofia, que o proletariado compreende a classe
na Sociologia, na História, na Ciência que vive da venda da sua força de traba-
Política, no Serviço Social, na Educação lho, essa definição fundamental de classe
etc. etc. é muito bom! trabalhadora também espetacularmente
apresentada no livro do Engels, A forma-
Entrevistadoras: Em seu livro você cria ção da classe trabalhadora na Inglaterra,
a denominação “classe-que-vive-do- a qual inspirou minha coleção Mundo do

Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 124, p. 773-799, out./dez. 2015 783
Trabalho da Boitempo, que hoje tem 54 há pelo menos vinte anos), é aí que nasce
ou 55 títulos, e cujo primeiro título, se eu o debate de Hilferding, Kautsky, Lenin...
pudesse naquela época, seria, para abrir a se o Lenin não ousasse dizer “Imperia-
coleção, o livro de Engels. lismo: estágio superior do capitalismo”,
Mas voltando, como era inviável tex­ que aliás é o título de um livro espetacular
tualmente escrever a “classe-que-vive- dele. Claro que foi ousadia típica de um
-da-venda-da-sua-força-de-trabalho”, fiz marxista daquela densidade procurar o que
a síntese: “classe-que-vive-do-trabalho”, há de novo do capitalismo, que não pode
uma tentativa de, primeiro, responder ao ser apreendido na época de Marx.
Gorz pela determinação, e não pela inde- Se alguém quer entender o que é o
terminação e, segundo, era uma denomi- capitalismo financeiro hoje, tem que pelo
nação nova. E alguém pode perguntar por menos começar a leitura por esse livro,
que criar uma denominação nova? Eu res- pois ele é uma síntese que só a qualidade
ponderia que criar uma denominação nova da obra leninista poderia fazer. Lenin,
ocorre porque parece razoável, plausível. como intelectual, desde antes havia de-
Quantas denominações novas de monstrado seu alto valor. Basta lembrar
conceitos originários de Marx foram os estudos sobre o capitalismo e a questão
criadas? Gramsci, quando criou “classes agrária na Rússia e nos EUA. Valeria dizer
subalternas”, poderia ser objetado por um que no período que vai de 1914 e 1917, nos
ortodoxo, mais vulgar, que diria: “Por que períodos de exílio de Lenin, ele leu toda a
Gramsci criou essa denominação, se já tem obra de Hegel. E os comentários que faz
‘classe trabalhadora’?” É porque “classe nas laterais dos livros de Hegel são tão
subalterna” para Gramsci é mais amplo intensos que foram publicados em um vo-
que “classe trabalhadora”, ou seja, “classes lume expressivo chamado Cadernos filo-
subalternas” compreendem um conjunto sóficos. Lenin era um militante intelectual
de classes e agrupamentos sociais que são que lia os clássicos, literatura, economia
subalternos, dominados. política, filosofia... e deu densidade pro-
O Lenin, quando incorporou decisiva- funda ao conceito de imperialismo.
mente ao universo marxista o conceito de Por certo, não estou me comparando
imperialismo — que não existe no Marx, a elaborações de tanta envergadura, mas
quando Marx fala em imperialismo ele estou citando dois exemplos especiais de
está falando no Império francês, porque um marxista antidogmático, o de Gramsci
não existia o imperialismo como fenôme- e o de Lenin.
no internacional, que nasce na virada do Como marxista, não tenho nenhum
século XIX e mais precisamente no início receio de tentar uma denominação nova.
do século XX (e aí Marx já estava morto O que é, então, a “classe-que-vive-do-

784 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 124, p. 773-799, out./dez. 2015
-trabalho”? É a classe trabalhadora hoje. doutor, sou livre-docente, já fiz doutorado
E o que a classe trabalhadora hoje tem de na universidade lá não sei onde...”.
diferente em relação à classe trabalhadora Além disso, há um marxismo vulgar,
ontem? Ela é mais heterogênea. No século que tende a entender que proletário para
XVIII, XIX, o setor de serviços não era Marx é só o industrial.
abrangente, não era grande, então não E aí há aqui uma questão importante.
havia uma classe trabalhadora de serviços, O Marx é, em si e por si, o grande autor
senão em espaços limitadíssimos. da modernidade, do capitalismo, e o gran-
Já hoje, as trabalhadoras do telemarke- de autor anticapitalista que fez a análise
ting, que foram objetos de um belo estudo ontológica mais magistral, materialista e
da Claudia Mazzei — diga-se de passagem dialética. Em seu tempo, a classe operária
uma excelente pesquisa, uma das primei- industrial era o polo mais forte. A classe
ras e mais originais do nosso debate aqui operária, ou o proletariado agrícola, era
—, os trabalhadores e as trabalhadoras menos expressiva porque o que especifica-
do telemarketing, dos call centers — va o capitalismo pleno, como Marx dizia,
mais trabalhadoras, porque mais de 70% era a indústria. E a classe operária do setor
dessa força de trabalho é feminina —, já de serviços era praticamente inexistente. A
compõem mais de 1,5 milhão, 1,6 milhão “classe média” no tempo do Marx era outra
de trabalhadoras. Constituem o novo pro- coisa. Não é por acaso que Marx e Engels
letariado em serviços! Têm tempo médio durante muito tempo usavam o termo
de operação! Têm controle, metas, têm “classe média” para designar a burguesia!
tudo o mais... Marx dizia em O capital, na sua últi-
Então, “classe-que-vive-do-trabalho” ma página, que existiam três classes no
é uma denominação ampla! Claro que — capitalismo de seu tempo: a aristocracia,
para avançar aqui, porque isso é impor- a classe média e o proletariado. A classe
tante —, para mim, classe trabalhadora média não era a nossa classe média, era
é sinônimo de proletariado, porque o a burguesia industrial. Em vários textos,
proletariado não é só o operário industrial, Marx chama muito a atenção para a pe-
mas também o agrícola e o de serviços. Só quena burguesia e também para as outras
que a noção de proletariado muitas vezes classes ou camadas médias.
é usada para se referir ao proletariado Muito bem, a minha noção de pro-
industrial. letariado é ampla. Então eu diria que “a
Se você for a uma assembleia de classe-que-vive-do-trabalho” compreende
professores e disser “Eu sou proletário!”, o proletariado industrial, o proletariado
há professores que irão sair enfurecidos. agrícola e o proletariado de serviços em
Vão dizer: “Proletário eu não sou, eu sou um sentido mais amplo.

Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 124, p. 773-799, out./dez. 2015 785
Será correto considerar que a classe consumo, e consumo também é produção
trabalhadora do século XXI é idêntica à porque existe produção, distribuição,
do XVIII? Não! Tem muitos traços de circulação e consumo. Então o processo
continuidade, como a intensa exploração, de produção é um processo abrangente, e
mas não existia trabalho de telemarketing, Marx vai dizer no volume III de O capital
não tinha indústria hoteleira como hoje. Se que os trabalhadores não criam mais-valia,
formos ao supermercado hoje, um grande mas a burguesia comercial se apropria de
hipermercado, vamos ver um proletariado parte da mais-valia gerada na indústria,
que trabalha em ritmo intenso. venderá os produtos oriundos da indústria
Em Riqueza e miséria do trabalho III, e, ao vender, o comércio, que não cria
que acabamos de lançar, há uma ótima pes- mais-valia, porém se apropria da mais-valia
quisa sobre os trabalhadores da Wallmart industrial. Perfeito. Então, grosso modo, o
do Brasil... Há uma pesquisa, no volume burguês comercial não extrai mais-valia do
II, do Pietro Basso, nosso colega italia- trabalhador do comércio, porém o “explo-
no, que fala da “wallmartização”, termo ra” para que este tenha uma remuneração
criado a partir das condições de trabalho que não diminua o lucro que o burguês
no Wallmart, que é superexplorado, é comercial obtém a partir da mais-valia que
hiperexplorado, tem toda uma massa de ele puxou da indústria... Mas no volume II
proletários terceirizados hoje... E eu quis de O capital Marx vai dizer, ao tratar da
tratar desse modo abrangente. circulação, que em situações excepcionais
Então, para mim, a classe trabalhadora — por exemplo, na produção de produtos
(usando uma bela expressão que Florestan perecíveis, que carecem de um tipo de
Fernandes utilizava com frequência), a armazenamento especial —, o armazena-
classe trabalhadora é um “conjunto com- mento e os transportes tornam-se vitais para
pósito e heterogêneo” de trabalhadores e esses produtos, e que por isso, esses ramos
trabalhadoras que atuam na indústria, na — armazenamento, transporte — podem
agricultura, nos serviços, na agroindústria gerar mais-valia. E ele vai falar também
etc. Não havia agroindústria na época na indústria de telecomunicações, porque
de Marx, nem serviços industriais, nem o capital é produção e também circulação.
indústrias de serviços, e hoje tem tudo O tempo de produção do capital inclui
isso! Agora, Marx é tão genial que dizia a produção propriamente dita e também a
no volume I de O capital que a mais-valia circulação. Quanto mais se reduz o tempo
é criada na produção... Nisso não paira de circulação do capital e das mercadorias,
dúvida, a de que é na produção que se quanto mais próximo de zero, maior será
cria a mais-valia. Mas se a mais-valia é o lucro e também a mais-valia gerada
criada na produção, a produção também é na produção. Como o tempo de rotação

786 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 124, p. 773-799, out./dez. 2015
é igual ao de produção mais tempo de usa macacão. Gosto muito de um trabalho
circulação, Marx dirá no volume II de como o de Harry Braverman, Trabalho e
O capital algo assim: Quanto mais são capital monopolista. Acho o trabalho dele
ideais as metamorfoses da circulação do mais rico em criatividade, nesse ponto, do
capital — isto é, quanto mais se torna o que outros que restringem o proletariado
tempo de circulação igual a zero, ou mais ao estritamente manual.
aproximada de zero —, mais funciona E me alinho muito mais a essa ten-
o capital, tanto maiores se tornam sua tativa de compreender quem é a classe
produtividade e produção de mais-valia. trabalhadora — não é o que quero que a
Então, o desafio que temos de explorar, classe trabalhadora seja, mas sim partir
a hipótese em que estou trabalhando hoje é de uma perspectiva ontológica: quem
que há um amplo proletariado de serviços é realmente a classe trabalhadora hoje?
que não existia no século XIX e que hoje, Quem hoje vende sua força de trabalho
ou cria diretamente mais-valia ou, se não em troca de salário? E, para mim, último
cria, é vital para a redução do tempo de ponto, a “classe-que-vive-do-trabalho”,
circulação ao mínimo possível. Ao fazê-lo, ou seja, a classe trabalhadora em sentido
permite que a redução do tempo de circu- amplo inclui tanto o trabalho produtivo
lação aumente a mais-valia apropriada. — no sentido capitalista do termo, que
E este é o desenho — o proletariado é gera mais-valia — quanto o trabalho im-
hoje mais amplo — que tem que incluir o produtivo, que não gera mais-valia, mas é
proletariado da produção industrial, agrí- imprescindível para a produção capitalista.
cola e de serviços. Marx é muito claro, no Em meu entendimento, ambos com-
volume III, quando afirma que os trabalha- preendem a classe trabalhadora e mais:
dores comerciários vivem a mesma con- a “classe-que-vive-do-trabalho” inclui o
dição dos trabalhadores industriais, com exército industrial de reserva. Porque tem
uma diferença: o trabalhador comercial gente que acha que se é desempregado não
não gera mais-valia, o industrial sim, mas é classe trabalhadora. Mas me parece claro
nunca foi dito por Marx que o trabalhador que para Marx o exército industrial de reser-
comercial não fazia parte do proletariado, va é parte intrínseca da classe trabalhadora.
até porque ele vende sua força de trabalho A classe trabalhadora que está no de-
em troca de salário. Esse é o conceito semprego, que é estrutural, no sentido da
ampliado de classe-que-vive-do-trabalho. lógica destrutiva do capital, compreende o
Que ele tem incomodado o marxismo mais que Marx com muita qualidade delimitou
tradicional, isso não me surpreende, pois os distintos elementos que compreendem
há muitos marxistas que acham que classe o exército industrial de reserva, que hoje
trabalhadora é só o operário industrial que podemos chamar de “exército de reserva”.

Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 124, p. 773-799, out./dez. 2015 787
Como entendo a indústria no sentido Nem sociólogo. Marx faz é teoria social
que expus há pouco, vocês nunca irão fundada na crítica da economia políti-
encontrar no meu texto a expressão “socie- ca. Essa é a sua contribuição decisiva,
dade pós-industrial”, termo que considero verdadeiramente revolucionária, para as
um grande erro. Aliás, meu livro Adeus ao ciências humanas.
trabalho? é uma crítica clara aos teóricos
da “sociedade pós-industrial”. Não se trata Entrevistadoras: Na crítica aos críticos da
de uma sociedade pós-industrial, mas de centralidade do trabalho, você retoma a
uma sociedade na qual a indústria extrapo- discussão feita por Marx quando ele dis-
lou, uma vez que há indústria de serviços, tingue conceitualmente trabalho abstrato
agroindústria, serviços industriais etc. E e trabalho concreto. Poderia indicar por
o capital totaliza esses setores que são que essa distinção é fundamental para a
mercadorizados. sua crítica? Ela ainda é atual?
Assim, a classe trabalhadora é explora- Ricardo: Sim, é atual. Porque se eu digo,
da na agricultura, na indústria ou nos ser- assim, “Pelo fim do trabalho!”, tenho
viços, bem como nas suas interconexões. que perguntar qual trabalho tenho que
É óbvio que o conceito de classe nos leva eliminar... Sou favorável ao fim do tra-
também a um conceito decisivo, que é o balho assalariado? Plenamente. Aliás, eu
debate da consciência, quer dizer, classe assinaria sempre um manifesto contra o
não pode ser definida nem no sentido trabalho assalariado. Afinal, nós lutamos
estritamente econômico, nem no sentido por uma associação livre dos trabalhado-
estritamente político, mas Marx criou uma res e trabalhadoras. Marx nunca disse que
ciência nova que é a economia política. Ela o socialismo seria a plenitude do trabalho
é, segundo Marx, totalizante: contempla a assalariado. Ele diz que o socialismo, o
ideologia, a política e a economia em suas mundo emancipado e o comunismo se-
complexas inter-relações. riam uma esfera superior de sociabilidade,
Claro que entender as classes nos sem o trabalho assalariado. O trabalho
obriga a pensar a esfera da consciência, seria autônomo, livre e autodeterminado;
da subjetividade, da política, dos valo- não seria um trabalho heterodeterminado
res. Contudo só podemos compreender como o trabalho assalariado, mas um tra-
isso plenamente partindo, no meu modo balho autodeterminado fora das amarras
de conceber, de uma leitura fundada na do assalariamento. Quando os autores
economia política de Marx. E atenção: dizem “fim do trabalho!”, estão dizendo
economia política não é só análise eco- que são contra o trabalho assalariado? Se
nômica, não é só análise política. Marx for isso, estou de acordo. Mas foi possível,
não é economista nem cientista político. em algum momento da história humana

788 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 124, p. 773-799, out./dez. 2015
(desde o primeiro homem e da primeira distinção, a crítica à chamada sociedade
mulher se diferenciando do primata), exis- do trabalho perde toda a sua dimensão
tir algum tipo de sociedade sem trabalho, ontológica fundamental.
sem atividade vital? Então veja. Se eu Como posso equiparar, então, leite
digo que é possível uma sociedade sem com vinho, com carro, com computador,
trabalho, tenho que perguntar quem é que com i-pad, com bicicletas, com carros
vai fazer o trabalho para que possamos etc.? Só fazendo a equivalência entre elas,
sobreviver. São os escravos? Quem seria? reduzindo todos os trabalhos concretos
Quando Marx diz que existe o trabalho ao dispêndio médio de energia física e
concreto e o trabalho abstrato — mas intelectual, que me faz abstrair a sua condi-
atenção, nada de ler ao modo weberiano. ção concreta de produzir carros, relógios,
Não há “tipo” de trabalho concreto e bicicletas, tecidos, vestidos, restando sua
“tipo” de trabalho abstrato, nada disso! dimensão abstrata, dispêndio de energia
Marx não trabalha com tipologias. Quem física e intelectual para produzir valores
fala em tipologia é Weber. Marx trabalha de troca. Então, o trabalho abstrato é, em
com categorias que são formas de ser e de si e por si, existente durante e estritamente
existir, e toda a categoria é para ele sem- enquanto dominar a lógica do capital.
pre concreta. Se ela não existe, é um não Então, quando os críticos dizem “pelo
ser. Quando ele diz o trabalho concreto fim do trabalho abstrato”, sou inteiramente
é aquela dimensão humana do trabalho a favor, só que é preciso demolir o capital
desde o primeiro homem e mulher que para que isso possa ocorrer. Quando dizem
trabalharam até hoje, está indicando algo “pelo fim do trabalho em geral”, pergunto:
decisivo e socialmente ineliminável, está qual trabalho? O que cria coisas úteis?
definindo o trabalho concreto, que cria E quem vai produzir nossos alimentos,
coisas socialmente úteis. nossas pinturas, nossas músicas, ou limpar
Mas como o capitalismo converte nossas casas ou lavar nossas roupas? Então
todos os trabalhadores em criadores de essa questão é decisiva. Acho que esse é o
mercadorias, geradores portanto de valor ponto mais forte do meu livro, o que não é
de troca, isso só ocorre porque existe uma um mérito meu, mas de Marx. Quem não
exploração da “mais-valia”. O trabalho parte dessa disjuntiva, dessa duplicidade
abstrato é para Marx o dispêndio de ener- que é una, a de que trabalho tem uma
gia física e intelectual média, socialmente dimensão concreta e outra abstrata, perde
determinada, para a criação de mercado- a capacidade de apreender a dimensão
rias. Portanto, o trabalho abstrato é uma essencial do debate. Habermas abandona
dimensão intrínseca ao capitalismo e seu essa disjuntiva, Claus Offe também a
trabalho assalariado. Se não fizermos essa abandona, Dominique Meda não adota

Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 124, p. 773-799, out./dez. 2015 789
nem parte dela, Jeremy Rifkin também. Ricardo: Esta é uma questão muito impor-
O único autor que não abandona essa tante e daria um debate longo. Deixemos
disjuntiva, dentre os críticos do trabalho, de lado aqui por ora o debate alienação
é Robert Kurz. Por isto ele é de outra en- versus estranhamento, pois este é um
vergadura, está em outro patamar. Robert debate dificílimo e que divide até lukacsia-
Kurz diz fundamentalmente o seguinte, nos. Para ser muito breve, a alienação do
sem querer reduzir um autor que me trabalho implica que os sujeitos transfiram
inspirou muito (tenho enorme admiração no ato laborativo algo da sua subjetividade
por sua obra e, ao mesmo tempo, a mais na objetividade criada; e quando essa coisa
aguda polêmica na diferença, mas uma criada, o produto que resulta do trabalho,
polêmica viva): todo trabalho é tripalium, é uma mercadoria, trata-se de uma merca-
é opressão. Quando não é tripalium, isto é, doria estranha, constituindo-se não só em
quando é uma produção social útil, Kurz a alienação, mas também em estranhamento.
denomina como atividade, e não trabalho. Então, quando essa alienação não é nega-
Quando é atividade, é positiva. Quando é tiva, mas é um ato criação do trabalho, de
trabalho, é negativo. Não concordo com uma subjetividade que se objetiva em um
Kurz quando ele faz essa distinção na obra bem criado, que não é mercadoria, essa
de Marx. Quando Marx diz que trabalho alienação não seria estranhamento.
é atividade vital, não afirma que trabalho O que tento mostrar nesse livro, nos
é uma coisa e atividade é outra. O que me trabalhos posteriores como Os sentidos do
causa mais polêmica é atribuir essa leitura trabalho e O caracol e sua concha é que
como sendo a de Marx. Estou procurando no capitalismo do século XX, sob vigência
sugerir que para a minha leitura de O capi- do taylorismo e do fordismo, a alienação
tal, essa distinção marxiana entre trabalho e o estranhamento são marcados por um
abstrato e concreto é decisiva, e Marx traço mais acentuadamente despótico. Sob
desmonstra isso no volume 1 de O capital. o império da acumulação flexível e em
particular do toyotismo, a alienação e o es-
Entrevistadoras: Ainda nessa direção re- tranhamento mantêm o sentido despótico,
flexiva que está fazendo brilhantemente, por suposto, mas esse sentido despótico
você também mostra no seu livro Adeus é amplificado por uma interiorização e
ao trabalho? a maneira pela qual as meta- reificação mais profunda. Posso explicar
morfoses do mundo do trabalho acarretam isso de modo muito didático: Ford dizia
novas manifestações do fenômeno social “os operários da Ford”. A Toyota nunca
da alienação e do estranhamento. Quais dirá “os operários da Toyota”, mas sim
são essas novas manifestações hoje? São “os colaboradores”. O capitalismo recente,
diferentes de vinte anos atrás? ao criar o “­colaborador”, quer interiorizar

790 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 124, p. 773-799, out./dez. 2015
mais profundamente a reificação na sub- mentos, das reificações, cujos elementos
jetividade do trabalho, que ele é parte de fundamentais se mantêm. Para mim, as
uma objetividade — a empresa — na qual teses fundamentais dos manuscritos de
é “colaborador”, e não opositor, e essa 1844, acrescidos do capítulo magistral do
fundamentalmente é a distinção principal. fetichismo da mercadoria (volume I de O
Lukács dá pistas ricas na Ontologia do ser capital), enfeixam o tema da alienação,
social, em que seu capítulo que trata do es- do estranhamento e da fetichização de
tranhamento, por alguns traduzidos como Marx. Já, desde o Lukács de História e
alienação, vai dizer que os estranhamentos consciência de classe, adensado na sua
anteriores, a era da mercadoria e do capi- Ontologia do ser social, encontramos
tal, tinham formas mais “inocentes”, en- um rico tratamento do problema do estra-
quanto os estranhamentos e as alienações nhamento e da alienação que temos que
a partir do mundo espectral da mercadoria compreender no mundo contemporâneo.
se tornam mais profundos, mais reificados.
Muito bem, o que estou sugerindo é que o Entrevistadoras: No seu livro você faz
capitalismo é o mesmo nos seus elementos uma argumentação original sobre a crise
essenciais, mas as formas de dominação dos sindicatos. Decorridos vinte anos,
podem ser mais despóticas ou mais sutis; você ainda considera atual sua crítica sobre
as duas formas sempre estão presentes. a crise do sindicalismo?
Taylor desprezava a subjetividade operá- Ricardo: Sim, porque considero funda-
ria. Bastava, em sua odiosa expressão, que mentalmente o seguinte: o sindicalismo do
o operário fosse um “gorila amestrado”. século XIX era o sindicalismo de ofício da
Ohno, o inspirador do toyotismo, vai dizer era manufatureira. No século XX veio a
que o operário tem um savoir fair, um sa- grande indústria taylorista e fordista, que
ber fazer, que tem que ser apropriado pelo se tornaram de massa, e com ela o sindica-
capital. Inclusive, no Adeus ao trabalho?, to de ofício teve também que se tornar um
tenho uma síntese em que acho que fui sindicalismo de massa. Do século XX ao
feliz: eu disse que a vontade do capital é XXI houve uma mudança profunda, a de
fazer com que todo operário torne-se um que a grande indústria taylorista e fordista
“déspota de si próprio”. Quando isso ocor- tem sido gradativamente substituída pela
re, ele não precisa mais do contramestre, indústria flexível e liofilizada, uma indús-
pois ele mesmo controla seu sistema de tria “enxuta”, altamente potencializada
metas, controla sua qualidade. A figura pelo maquinário informacional e digital,
do inspetor de qualidade desapareceu de tal modo que os sindicatos têm que
da fábrica. Então, é preciso entender as pensar que essa indústria é menos vertical
formas contemporâneas dos estranha- e mais horizontal porque pela terceirização

Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 124, p. 773-799, out./dez. 2015 791
você vai esparramando horizontalmente. partidos políticos, como esses problemas
Então é preciso compreender quem é essa se equacionam nos dias de hoje?
atual classe trabalhadora, que é mais mas-
Ricardo: Esta questão é complicada. Vou
culina em alguns setores, mais feminina dar a pista, que está embrionária no Adeus
em outros setores, mais ou menos jovem, ao trabalho?, e que venho trabalhando em
mais ou menos negra, imigrante etc. Veja: meus textos posteriores. Eu diria que, pri-
estamos na iminência da aprovação ou meiro, a nova morfologia do trabalho nos
contestação do PL n. 4.330. Caso o PL obriga a pensar numa nova morfologia da
permita a terceirização total do Brasil, os representação da classe trabalhadora, ou
sindicatos vão se defrontar com um pro- seja, qual sindicato devemos ter no século
blema crucial que até hoje não encontrou XXI? Quais os partidos que queremos e
uma alternativa, de como representar os podemos esperar ter algum sentido neste
terceirizados. Isso está apresentado no século? Então a revolução do, no e pelo
Adeus ao trabalho?, que o sindicalismo trabalho é vital, mas temos para isto que
deve ser um sindicalismo de classe, que compreender primeiro quem é a classe
contemple a dimensão de classe, gênero, trabalhadora hoje, a sua morfologia, enfim,
geração, etnia, questões decisivas do mun- quem é a “classe-que-vive-do-trabalho”?
do do trabalho, e se não compreendermos Segundo, no século XX os partidos
essas questões, os sindicatos responderão foram por excelência os organismos cen-
cada vez mais no âmbito de um neocorpo- trais da revolução; os sindicatos desde o
rativismo societal. Por exemplo, na Petro- século XIX são por excelência os órgãos
bras, hoje, 70% dela ou mais é composta de defesa do trabalho contra a intensa
de terceirizados, e ainda não tivemos a exploração do capital. Então era mais ou
aprovação do projeto de lei que será, caso menos consensual entre os marxistas que
aprovado, a devastação do trabalho. Então a classe trabalhadora deve ter sindicatos e
considero essa tese — o desenho da crise partidos. E no século XXI? Quem disser
do sindicalismo — também atual. com certeza absoluta que só os sindicatos
e partidos são importantes não está en-
Entrevistadoras: Em suas obras, entre elas tendendo direito o que está acontecendo.
o livro Adeus ao trabalho?, o professor de- Ainda considero que os sindicatos são
fende a possibilidade de superação real da vitais, mas quais sindicatos? Temos uma
ordem burguesa por meio da superação do/ ferramenta muito enferrujada; ou a gente
no/pelo trabalho. No entanto, os desafios elimina a ferrugem dela e a torna uma
são imensos. Frente à situação atual, des- ferramenta do século XXI, ou ela pode se
favorável das instâncias representativas, tornar tão enferrujada que não funciona-
entre as quais os movimentos sociais e rá mais ou funcionará mal. Quanto aos

792 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 124, p. 773-799, out./dez. 2015
partidos, bastaria dizer que qualquer que dos perderam o sentido na história. Eles
seja o nosso entendimento sobre o marxis- perderam o sentido na história nas duas
mo, o Partido Operário Social-Democrata principais modalidades que conhecemos
Alemão — que vai de Kautsky a Rosa no século XX — ou como partido social-
Luxemburgo — foi um partido poderoso -democrata institucional, ou como partido
no sentido do pensamento e das ideias. O comunista de vanguarda e frequentemente
Partido Operário Social-Democrata Russo, não sintonizado com a luta popular — e
que tinha Lenin, Trotski, Bukharin, entre quero fazer aqui um parênteses: penso
tantos outros intelectuais militantes, já é que a tese leniniana do partido comunista
parte da história. E faço agora uma pro- de vanguarda foi uma resposta decisiva
vocação: e no século XXI? Tem algum à realidade russa czarista, pois numa
partido comunista no Ocidente que se realidade autocrática de repressão brutal
aproxime do passado? só possibilitava um partido ultrassecreto
Em vários países do mundo os partidos e ultraclandestino, portanto um partido de
comunistas acabaram. No caso brasileiro, poucos e de vanguarda. Já no mundo con-
lembramos que o Partido Comunista Brasi- temporâneo, em que não temos de modo
leiro chegou a ser praticamente encerrado, predominante governos czaristas como na
mas ressurgiu posteriormente. O grande Rússia, ou do fascismo italiano, ou do na-
Partido Comunista Italiano, que chegou a zismo alemão, evidentemente temos que
ser o mais importante do Ocidente, o par- pensar em uma nova formatação política
tido do Gramsci, não existe mais na Itália. para os partidos. Então não estou descar-
Há o Partito Democratico della Sinistra, o tando os partidos. Não creio que, enquanto
PDS, hoje DS, que é uma espécie de par- vigorar o capitalismo, a classe trabalha-
tido democrata como o norte-americano, dora possa abrir mão dos sindicatos e
não tem mais nada de esquerda. dos partidos. Então temos de repensar, e
Então os partidos têm de se repensar é nessa direção que vejo a emancipação
profundamente se quiserem sobreviver do, no e pelo trabalho, compreendendo a
com força e vitalidade no século XXI, nova morfologia do trabalho, as novas for-
muito além de sua esfera institucional que mas de representação, buscando entender
vigora há décadas. Nos debates que havia quais são as questões vitais hoje. Temos
na Primeira Internacional, Marx, em sua que pensar, por exemplo, por que ganham
polêmica com os anarcossindicalistas, força os movimentos sociais da periferia,
com os anarquistas, com os socialistas radicais, como o MST, especialmente nos
utópicos, dizia que o desafio dos marxis- anos 1990, ou o MTST hoje.
tas naquela época era criar um partido Lukács tem uma passagem da Onto-
político distinto. Não acho que os parti- logia do ser social que diz — lembro de

Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 124, p. 773-799, out./dez. 2015 793
memória — que, em nossa vida cotidiana, luvelmente relacionada com a emanci-
temos inúmeras questões secundárias, às pação do gênero humano. O marxismo
vezes até mesmo irrelevantes. Mas nas tradicional dizia que era preciso primeiro
situações revolucionárias ou nos momen- emancipar a classe trabalhadora e que as
tos que as antecedem, algumas questões mulheres estariam também emancipadas.
cruciais se condensam e são assimiladas E todo homem e toda mulher sabem que
pelo conjunto da população trabalhadora: você pode acabar com as classes e pode
liberdade, igualdade e fraternidade foram perfeitamente continuar com a opressão
questões vitais da Revolução Francesa. masculina, porque essa tem uma dimensão
Pão, paz e terra foram questões cruciais de classe e a outra transcende a classe, é
da Revolução Russa. Veja, não era a pro- herança da sociedade patriarcal.
priedade coletiva dos meios de produção. Assim, retornando a questão ambien-
Eram pão, terra e paz! Pão por causa da tal, quem faz melhor a preservação da
fome, terra porque a terra era concentrada, água que os indígenas do período pré-
e paz porque eram os filhos dos pobres -hispânico aqui? Então temos questões
que morriam nas fileiras da guerra. Os vitais, e um bom passo para sairmos dessa
filhos dos ricos nunca vão às fileiras; são enrascada hoje é procurar saber quais são
os pobres que veem seus filhos morrer, as questões cruciais do nosso tempo, e
enquanto os filhos dos ricos vão viajar, pensá-las não em termos abstratos, mas
fogem, burlam, não servem o exército, a partir da concretude que elas têm. Se
fazem o que for preciso para não morrer fizermos isso, já será um bom começo,
nas tropas. pois estaremos fazendo a crítica às raízes
Quais são então as questões vitais de nossas mazelas. Eu diria que os movi-
hoje? Eu indicaria: o trabalho — que é mentos sociais têm ido mais nessa direção
vital —; a questão ambiental, que também que os sindicatos e os partidos, ao tocar
é vital, já que estamos em uma sociedade nessas questões vitais. O que deu força
profundamente destrutiva. Carecemos de para o MST, com todas as dificuldades
uma mudança ambiental que substitua a que eles têm hoje, partiu de uma coisa
energia fóssil, que transforme nossa pro- muito vital: a terra não é mercadoria, não
dução industrial etc. Há cidades chinesas é um bem privado, deve ser um bem para
hoje onde o ar é irrespirável porque houve a produção coletiva, uma vez que traz
um boom industrial enorme. Então exis- alimento vital para a sobrevivência das
tem áreas em que, para respirar, estamos famílias dos trabalhadores e trabalhadoras
no limite. rurais. E por uma questão muito concreta e
A questão da emancipação do gênero objetiva, o MST tornou-se um movimento
feminino também é vital e está indisso- popular vital. Já o MTST tem tido uma

794 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 124, p. 773-799, out./dez. 2015
importância vital no Brasil hoje. Porque duração e frequentemente se distanciam da
o desenho da cidade brasileira — que base, os movimentos sociais podem contar
o Mike Davis defineu muito bem como com a força da base, mas nem sempre
“Planeta Favela” — é a de um mundo têm longevidade porque determinadas
favelizado, onde as populações pobres questões podem se exaurir ou se extinguir.
estão sendo expulsas cada vez mais para Então, se perguntarem para mim “Qual é
as periferias das periferias, enquanto os o mais importante, o partido, o sindicato,
centros e os bairros nobres se convertem ou o movimento social?”, eu responderia:
em condomínios de luxo cercados, uma o mais importante é aquele que enfrenta
variante dos “cercamentos” no século as questões mais radicalmente, que toca
XXI. Alguns movimentos sociais têm tido em nossas raízes.
a capacidade de perceber as questões con-
cretas. Claro que aí resulta um problema, Entrevistadoras: No seu livro Adeus ao
o de como perceber que essas questões trabalho? você tinha uma tese que é a da
concretas permitem também uma com- centralidade do trabalho. Hoje, após vinte
preensão mais totalizante. Eu diria que a anos, no atual contexto da intensificação
força dos movimentos sociais é perceber da precarização, do PL n. 4.330, sua tese
essas questões vitais. É muito positivo ver se mantém?
as mulheres do MST chamando a atenção, Ricardo: Sim, inclusive esta é uma triste
nas fazendas de agronegócios, em relação confirmação de minha tese, mais uma. Eu
à produção dos transgênicos, ou ainda dos dizia lá que a lógica do capital financeiro
agrotóxicos, que nossa alimentação está não elimina o trabalho, mas supõe um
cheia de pesticidas, que supostamente trabalho corroído, sem direitos, flexível e
comemos verde para ficar mais saudá- disponível para o capital para ser usado e
veis. Contudo, o resultado prático é que jogado fora como uma seringa. Isto está no
estamos sendo candidatos a um câncer, Adeus ao trabalho?. Onde as lutas sociais,
porque as diversas substâncias químicas sindicais e de classe são mais ousadas, a
malignas decorrem de uma agricultura terceirização é menor. Onde a resistência
que é commodity que acaba envenenando sindical for mais incisiva — mesmo que
a população. Posso ainda acrescentar as não seja uma resistência sindical anti-
batalhas importantes do MST e MTST na capitalista, mas uma resistência sindical
luta contra a terceirização. forte, como na Alemanha, na França —,
Os movimentos sociais, entretanto, en- a terceirização é menor, quando compa-
frentam uma dificuldade adicional — têm rada ao desmonte sindical que houve na
que lutar contra um problema constante. Inglaterra e nos Estados Unidos, onde se
Enquanto os partidos em geral têm longa permitiu que o capital fosse mais agressivo.

Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 124, p. 773-799, out./dez. 2015 795
O PL n. 4.330 tem um efeito de regressão a sua publicação, espero que o PL n. 4.330
à escravidão, ainda que uma escravidão possa ser cabalmente derrotado na votação
“moderna”, porque ela permite — ao do Senado. Mas atenção: não por conci-
eliminar a disjuntiva entre “atividade- liação com os senadores, o Parlamento
-meio e atividade-fim” — que as empresas brasileiro hoje nunca foi tão conservador.
possam contratar, negociando diretamente Rebeliões, greves e manifestações são
com outras empresas de terceirização, o imprescindíveis para derrotá-lo. Então a
fornecimento de “escravos modernos”. tese de Adeus ao trabalho? se confirma,
Aí é o reino da burla completa! Dizer que só que eu dizia sempre que a precarização
os direitos estão contemplados é piada. estrutural do trabalho é uma tendência
Sabe por quê? Porque primeiro os direitos intrínseca da lógica destrutiva do capital
são burlados no Brasil; segundo porque na era da financeirização, mas existem as
para um terceirizado entrar na justiça ele lutas sociais do trabalho que são capazes
deve ter seu advogado trabalhista ou do de resistir e também transformar o mundo.
sindicato, e ele não os tem; terceiro, ele Mas essa é uma luta contra a totalida-
não tem tempo de parar de trabalhar para de do capital — uma expressão que é de
ir até a Justiça do Trabalho, esperar dez, Marx e retomada por Mészáros —, que é
quinze anos, pois quando ele entra na a luta da totalidade do capital social versus
Justiça do Trabalho e vai denunciar uma a totalidade do trabalho social. Esse é o
empresa, essa empresa já fechou e foi embate, essa é a luta de classes do nosso
aberta com outro nome; quarto, terceiri- tempo. Como o mundo produtivo hoje é
zação é o reino da rotatividade, e onde e realizado por meio das cadeias globais
quando a rotatividade é mais intensa, é produtivas do valor, uma luta da Foxconn
muito mais difícil a organização sindical; na China, uma luta dos trabalhadores da
quinto, na terceirização, o trabalhador Índia, uma luta dos trabalhadores do fast-
ou trabalhadora trabalha mais tempo e -food ou da Wallmart dos Estados Unidos,
recebe em média 25% a menos, em ní- uma luta dos metalúrgicos da General
veis de exploração mais agudos. Homens Motors ou da Mercedes-Benz no Brasil,
trabalhadores explorados, terceirizados, uma luta dos trabalhadores bancários aqui
mulheres trabalhadoras que só por serem ou acolá, uma luta dos petroleiros, pode
mulheres são ainda mais exploradas que ter impacto, ser vitoriosa ou derrotada em
os homens. Portanto, não vejo outras si- função do apoio ou não apoio que tiver no
militudes senão com a escravidão, ainda cenário internacional. Como o capital se
que “moderna”. Espero que haja levantes mundializou, é imprescindível que as lutas
sociais contra isso. Entre a data de nossa sociais do trabalho também se mundiali-
entrevista hoje, que é 25 de abril de 2015, e zem cada vez mais.

796 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 124, p. 773-799, out./dez. 2015
Entrevistadoras: Frente a essa realidade lutas sociais de novo tipo, que se somam
que você nos traz, é possível vislumbrar às antigas e decisivas lutas, caracteriza-
alguma saída para a classe trabalhadora, das por manifestações, greves, passeatas,
exatamente pensando nessa dimensão em rebeliões e revoluções.
que você demonstrou deprecarização, Por exemplo, um fenômeno visível de
intensificação do trabalho, terceirizações, todos esses movimentos que citei aqui é
quarteirizações, uma vez que não demos que a praça pública tem sido o principal
adeus ao trabalho? espaço da luta. As rebeliões de junho de
Ricardo: Caso eu pense nos anos de 2008 2013, o que elas sinalizaram? Sinalizaram
para cá, nos últimos sete anos, tivemos que há uma vida real — nas ruas e praças
rebeliões no Oriente Médio e Norte da públicas — e há uma institucionalidade —
África contra as autocracias dominantes, composta de parlamentos, governos etc., à
mas que eram contra também a miséria, margem de tudo o que ocorre na vida real.
o sofrimento e a ausência de trabalho. Na Há um fosso entre esses dois movimentos.
Tunísia, por exemplo, onde aconteceu a Então, junho de 2013 mostrou um
primeira revolta dentre todos esses países pouco da rebelião dos estudantes e jovens
árabes, ela foi dirigida por uma central trabalhadores precarizados aqui no Brasil:
sindical. O tema do trabalho nunca este- o jovem estudante que precisa trabalhar
ve fora. Ele pode não ser o principal em para poder pagar sua faculdade privada, ou
alguns casos, mas sempre esteve presente. o jovem trabalhador que tem de trabalhar
A Occupy WallStreet, nos Estados Unidos, para poder estudar e melhorar na vida, já
anos atrás, quando uma parte da popula- percebeu que paga para estudar, estuda, e
ção assalariada norte-americana — seja não melhora no trabalho; que trabalha que
operária industrial, assalariada média, nem um louco e não melhora com o ensino
serviços etc. — vai às ruas e diz “1% leva superior, porque o ensino superior que ele
o bolo e 99% fazem o bolo e não ficam cursa é privado, é de Fies; e em um dado
nem com o farelo”, e esse é um problema momento o transporte coletivo que ele usa
do capital financeiro que concentra a é ruim, a saúde pública é ruim, a educação
riqueza nas mãos de poucos proprietários pública não existe, então ele se rebela.
milionários, está sendo colocado um dedo 2013 sinalizou isso, e nenhuma questão
na ferida. Quando nos dirigimos à rebelião que levou ao transbordamento de 2013 foi
dos “Precári@s, Precári@s e Inflexíveis” sequer minimamente enfrentada, quer pelo
em Portugal, quando você vê o levante governo Dilma, quer pelo Parlamento.
da juventude espanhola quatro anos atrás, Assim, entramos numa era de novos
quando vimos as rebeliões espetaculares levantes que não conhecemos bem. Por-
no Chile, são muitas lutas sociais. Mas são tanto, devemos estudá-los. O século XXI é

Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 124, p. 773-799, out./dez. 2015 797
um laboratório de lutas sociais. Talvez eu precarizar o trabalho do jovem, amanhã os
possa sintetizar esse período com a seguin- mais velhos também serão precarizados.
te frase: estamos em uma era de rebeliões Dessa forma, juntaram-se trabalhadores
que, entretanto, ainda não se converteu e juventude na construção de uma greve
em uma era de revoluções. Sem falar no muito importante na França. O que a
acirramento das contrarrevoluções. juventude sinalizava? Que ela tem uma
Claro que em 2013 tivemos lutas es- potencialidade emancipadora enorme.
petaculares no Brasil, mas hoje estamos Hoje você tem uma massa de traba-
em um momento mais difícil, e talvez lhadores pós-graduados na Europa que
o PL n. 4.330 seja vital porque ele toca está trabalhando nos hotéis, nos call
em um ponto central que é a devastação centers, nos restaurantes, porque eles não
do trabalho, a lei da selva, o retorno à têm empregos como engenheiros, como
escravidão do trabalho. É evidente que advogados, como administradores, como
não estou dizendo que vamos voltar ao economistas, como professores. Simples-
trabalho escravo do século XV, e sim que mente não têm. Essa juventude tem um
se trata do trabalho escravo restaurado nos traço emblemático dado pela devastação
moldes do século XXI. Por ser inaceitável, que a tem atingido. A juventude pode en-
pode ser que o projeto de lei permita uma contrar pontos de inspiração fundamentais
retomada de nossas lutas sociais, porque em um autor genial do século XIX cujo
toca em uma questão vital: a destruição do ideal de emancipação não se confundia
trabalho dotado de direitos. nem com a tragédia do “socialismo real”,
nem com a tragédia da social-democracia.
Entrevistadoras: E, por fim, qual mensa- O pensamento emancipatório de Marx é,
gem você deixaria para essa juventude por certo, um ponto de partida, e será um
trabalhadora, sendo que é nela que incide bom casamento se essa juventude puder se
as maiores consequências das metamorfo- reencontrar com esse ideal emancipatório.
ses do mundo do trabalho? Como o capital é destrutivo na sua lógica,
Ricardo: Esses levantes que estamos mas não possui nenhuma possibilidade de
vendo, todos eles, têm forte traço da trazer um nível mínimo de humanização,
juventude, pensando no caso espanhol, é decisivo ampliar os focos de rebelião,
no chileno, no brasileiro etc. Houve uma de rebeldia e mesmo de revolução. O
greve importante, se bem me lembro, em desafio do século XXI é saber como os
2005 na França, contra o contrato do pri- movimentos de rebeldia podem converter-
meiro emprego que consistia em precarizar -se em movimentos de revolução. E por
o jovem em seu primeiro emprego. Os certo será uma revolução, caso viermos a
trabalhadores da ativa perceberam que se vê-la no século XXI, muito diferente das

798 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 124, p. 773-799, out./dez. 2015
que vimos no século XX. E nós temos de da classe trabalhadora feminina, a cara da
ter abertura para o entendimento disso. classe trabalhadora de nossa juventude,
E qual é a pista para pensar isto? Iniciar e é aí onde se encontra o polo decisivo
pela observação dos movimentos sociais, que pode virar a América Latina. E como
dos sindicatos, das ruas, dos partidos, da a América Latina tem sido nas últimas
classe trabalhadora, dos homens e das décadas um dos espaços vitais de resistên-
mulheres, dos trabalhadores terceirizados cia, e a Ásia outro, creio que os grandes
e da juventude. Enfim, brancos, negros e laboratórios de luta pelo socialismo hoje
índios, jovens, mulheres, ambientalistas passam pela América Latina e o mundo
de esquerda... asiático.
Não podemos esquecer que são os Em um contexto de crise profunda
índios, por exemplo, que sabiam extrair a europeia e norte-americana, ninguém pode
borracha, extrair o alimento sem destruir prever o que poderá acontecer amanhã.
a floresta. Então, o socialismo do século E o livro Adeus ao trabalho? traz uma
XXI será também tributário das comuni- mensagem para essa juventude: construir
dades indígenas e da nossa cultura negra. uma vida dotada de sentido dentro e fora
Portanto, o socialismo latino-americano, do trabalho, o que repõe e recoloca o tema
se isso um dia vier a ocorrer — natural- do socialismo no século XXI.
mente é por isso que lutamos —, ele terá
a cara da classe trabalhadora, e a cara da
classe trabalhadora é também a cara da Recebido em 22/5/2015
classe trabalhadora indígena, e é também ■

a cara da classe trabalhadora negra, a cara Aprovado em 28/7/2015

Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 124, p. 773-799, out./dez. 2015 799

Você também pode gostar