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Entrevista De acordo com Pierre Bourdieu, “uma


das razões importantes de se querer
com Moacir Palmeira
entender o mundo é ter interesse político
no mundo”. A obra de Moacir Palmeira
Os trabalhadores rurais, as ciências parece ser animada por um desejo
sociais e a política profundo de que o universo dos direitos
se amplie no país. Não é à toa que seus
textos apontam para uma “antropologia
da cidadania” feita a partir da perspectiva
Ricardo Luiz Cruz (UFMA)1 dos trabalhadores do campo, ou seja, que
leva em conta as estruturas sociais e
simbólicas que dão sentido às suas ações.
O antropólogo Moacir Palmeira, Se, como também afirma Bourdieu, o
professor titular do Museu Nacional – interesse político do intelectual deve
UFRJ, vem não apenas acompanhando envolver a transformação de problemas
de perto as transformações ocorridas científicos em problemas políticos – e
no espaço rural brasileiro, ao longo dos não o contrário -, talvez o que Moacir
últimos cinquenta anos, como também Palmeira esteja igualmente nos propondo
sinalizando para diferentes gerações de é levar para o debate público uma
pesquisadores uma série de questões atenção redobrada em relação ao modo
a respeito dessas mudanças. Esta como as pessoas se tornam cidadãos,
entrevista é mais uma prova da acuidade como é o caso dos conflitos, desencontros,
do seu olhar etnográfico e da perspicácia tensões e incompreensões em torno da
da sua visão analítica frente à irrupção do incorporação dos trabalhadores do campo
novo na sociedade. Sua preocupação com no universo dos direitos. Os cientistas
as dimensões estruturais e estruturantes sociais teriam um papel crucial em
das transformações sociais se coaduna ajudar a tornar inteligíveis os dilemas
com seu interesse pelas representações da extensão da cidadania no país.
e ações dos agentes. Não é sem razão
que a vida política, nas suas variadas Ricardo Cruz: Você cursou sociologia,
formas de expressão e como um lugar na PUC-RJ, ao longo da primeira metade
privilegiado para se observar a relação da década de 1960. Foi na graduação
entre o que é da ordem da estrutura e que teve início seu interesse em
o que é da ordem do evento ou do novo, estudar os movimentos camponeses que
ocupe um lugar central nas suas reflexões adentravam na cena política nacional?
e questionamentos. Sua percepção de que
os cientistas sociais ainda não se deram Moacir Palmeira: O meu interesse
conta o suficiente do significado histórico (em estudar os movimentos camponeses)
da emergência dos trabalhadores rurais vinha de antes da graduação, mas foi,
como sujeitos de direito ou cidadãos no efetivamente, logo no primeiro ano da
Brasil deve ser vista como um alerta graduação que esse interesse ganhou
de alguém que vivenciou a história e mais força. Eu tenho uma trajetória
as histórias por trás das lutas dessas acadêmica que soa esquisita hoje. Nessa
pessoas para serem reconhecidas dessa época, não tínhamos ainda esse esquema
maneira. de mestrado e doutorado no Brasil,

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tinha o doutorado à francesa, era aquele pessoas de diferentes trajetórias se


período das cátedras nas universidades. juntaram em defesa da legalidade.
Então, alguém, aqui ou ali, depois (da Começamos a discutir sistematicamente
graduação) fazia o doutorado, aquele as questões políticas. Mencionei, logo (de
concurso muito cheio de parafernálias. início), a coisa da Bahia porque no exame
Não era uma coisa muito incorporada à que fizemos para entrar, eles deram uma
vida acadêmica, como se tornou daí para lista de artigos e tínhamos que escolher
frente. Quando entrei na PUC, a questão dois. Um dos artigos que escolhi era sobre
dos camponeses já era uma preocupação, a reforma agrária. Depois, tivemos que
eu acompanhava com muito interesse a fazer um trabalho na metade do curso.
movimentação das Ligas Camponesas. Fiz sobre as Ligas Camponesas. Você vai
Do primeiro para o segundo ano da achar estranho, mas como estávamos
faculdade, um professor nosso, aqui do estudando o funcionalismo, o trabalho
Rio, Geraldo Semenzato, foi chamado, era uma tentativa de análise funcional
pelo professor Thales de Azevedo, da das Ligas. Depois, lá na Bahia mesmo,
Bahia, para trabalhar lá no Instituto de entre um semestre e outro, tivemos
Ciências Sociais que ele acabara de criar. a oportunidade de participar de uma
A ideia do Instituto era ser um centro pesquisa de campo. Eram 11 estudos
de pós-graduação e pesquisa. Estavam de campo em 9 Estados que o Comitê
querendo fazer uma das primeiras Interamericano de Desenvolvimento
tentativas de mestrado no Brasil. Parece Agrícola estava fazendo sobre posse e
que eles tentaram uma primeira seleção uso da terra no Brasil. Na Bahia, foram
e não deu certo. Resolveram abrir, duas as áreas estudadas. Luiz Antonio
então, para pessoas que ainda estavam Machado e eu, orientados por Maria
cursando a graduação. de Azevedo Brandão, ficamos, um mês,
Aqui do Rio de Janeiro se morando num povoado de camponeses,
candidataram: o Sérgio Lemos, o Otávio na área litorânea de Camaçari, enquanto
Velho, o Luiz Antônio Machado da Silva Sergio Lemos acompanhou Semenzato
e eu. Passamos os quatro, mas o Otávio, na área do cacau – Itabuna foi o outro
por problemas de família, resolveu ficar polo de estudo. Então, foi mais uma
no Rio. Machado, Sergio e eu fomos para experiência na área rural. No primeiro
a Bahia em agosto de 1962 – em julho ano da sociologia, já tínhamos feito, seis
tinha sido a seleção. Ficamos um ano meses depois de entrarmos no curso, uma
em Salvador, estudando no Instituto pesquisa sobre remigração no Nordeste.
de Ciências Sociais. Era um esquema Ficamos um mês percorrendo o interior
de tempo integral: entrávamos às sete, de Alagoas, entrevistando pessoas
oito horas da manhã e saíamos às seis que tinham migrado para o Sudeste, e
da tarde. Almoçávamos por lá. Os cursos retornando ao lugar de origem.
eram, geralmente, pela manhã e à tarde Então, fomos acumulando pesquisas
tínhamos palestras. Tinha também o no campo. Isso, de algum modo, se
trabalho, supervisionado, na biblioteca. encontrava com as nossas preocupações
Foi tudo extremamente importante. Não políticas. Essa turma, lá na PUC, foi
quer dizer que a PUC não tenha sido. marcante porque – com o Sergio Lemos
O primeiro ano de PUC foi fantástico. puxando – levantou a ideia de que uma
Naquele episódio da renúncia do Jânio, escola de sociologia não era para formar

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– como estava um pouco na origem noite, na casa deles. Fazíamos também,


do Instituto de Estudos Econômicos, é claro, seminários só nossos (os alunos).
Políticos e Sociais – uma elite política. Foi realmente uma intensidade de estudo
Muita gente, por exemplo, ia para lá e militância política muito grande.
para depois fazer o Itamaraty ou seguir Bom, para voltar a sua pergunta:
outros caminhos. Insistimos muito, naquela época, havia uma preocupação
nossa turma teve uma briga muito muito ampla com o mundo rural, que
grande na escola, logo que entrou, porque ainda concentrava boa parte da população
defendíamos a profissionalização, sem brasileira, e a questão da terra no Brasil,
abrir mão dos posicionamentos políticos. especialmente no Nordeste, onde as ligas
Muitos professores ajudaram. Não é por camponesas se espalhavam, estava na
acaso que boa parte da turma seguiu ordem do dia. Assim, antes mesmo de
carreira como sociólogos, antropólogos e entrar para a PUC, eu já havia lido um
cientistas políticos. Foi muito por aí que bocado sobre isso. A escolha da Sociologia
entramos na política estudantil. estava muito ligada à ideia de entender
Na época, nos articulamos com o melhor essas coisas.
pessoal da Faculdade de Filosofia da
Universidade do Brasil (hoje, UFRJ) e RC: Sua pesquisa, realizada durante a
promovemos um seminário que também graduação, sobre a questão do banditismo
nos jogou mais dentro da política porque político no interior de Alagoas, tinha
a PUC vetou a presença de alguns dos como pano de fundo, segundo você
convidados. Um deles, por exemplo, disse numa entrevista, entender a
foi vetado por ser ateu, então foi uma inexistência das Ligas Camponesas
verdadeira rebelião. Esse período nesse estado, na medida em que elas
realmente foi muito quente. Era um estavam presentes em outros estados
período em que a esquerda católica do Nordeste. Até que ponto havia, de
estava começando a se implantar e sua parte, uma expectativa de que as
alguns padres, nesse primeiro momento, formas “tradicionais” de mobilização
tiveram um papel importante. Mas nos política no campo estavam fadadas a
articulamos também outros setores serem suplantadas, mais cedo ou mais
estudantis e conhecemos, dentro da tarde, por formas “modernas” como os
própria PUC, um período de lutas sindicatos de trabalhadores rurais, por
políticas muito intensas. Dentro da exemplo?
Engenharia havia um grupo de direita
chegado a ações violentas. Numa ocasião, MP: Exatamente, a coisa era essa. Acabei
invadiram um seminário que estávamos indo estudar o banditismo político
fazendo lá (na PUC). Quando veio o porque eu tinha feito um trabalho
golpe – eu não estava no Rio, estava na intermediário, durante meu curso na
Bahia – a primeira providência deles Bahia, sobre as Ligas Camponesas e
foi quebrar o nosso diretório acadêmico. nisso eu fui me situando, lendo mais
Esse era um pouco o clima. Ao mesmo sobre o assunto. Havia alguns trabalhos
tempo em que participávamos dessas escritos em jornais; artigos e entrevistas
lutas políticas, tínhamos um grupo de de (Francisco) Julião, coisas assim.
trabalho. Professores, como o Cândido Era um momento em que as Ligas já
Mendes, faziam seminários conosco, à não estavam apenas em Pernambuco,

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tinham se espalhado pelo Nordeste, mas a ideia era que também fosse um
mas Alagoas não entrava nesse mapa. centro de pesquisas. Isso era inspirado
Posteriormente, vim saber, que houve em outra iniciativa: Maria de Azevedo
algumas tentativas no estado, mas Brandão estava criando um centro desses
pouca gente sabia (estou falando de na Bahia, e como estávamos com aquele
1961/1962). Me chamava a atenção programa nacional de alfabetização,
que, em estados como Pernambuco e a era possível, inclusive, conseguir
Paraíba, os grandes divisores de água alguns recursos para desenvolver
da política, como aquele que opunha os isso. Estávamos investindo na direção
grandes proprietários da área canavieira de criar esse centro e se pretendia
aos grandes coronéis do sertão, estavam trabalhar nisso sistematicamente. Mas,
sendo quebrados por uma oposição entre
com o golpe, essas coisas foram brecadas.
camponeses - no sentido mais amplo, de
Essa reviravolta um pouco que fechou
trabalhadores do campo - e os grandes
os caminhos que tínhamos imaginado.
proprietários. Em Alagoas, poucos anos
Nos dois, três anos, que se seguiram,
antes (em 1957), tinha havido o “massacre
continuamos participando de pesquisas
da Assembleia Legislativa”, um tiroteio
no Rio, no Centro Latino-Americano
dentro da Câmara Estadual, em que até
de Pesquisas em Ciências Sociais e
metralhadoras foram usadas, resultando
em uma morte e em muitos gravemente na Cândido Mendes sobre temas os
feridos. Se você pegasse os jornais (de mais diversos. Foi quando surgiu
Alagoas) da época, não se falava de a possibilidade de ir para a França
liga, sindicato rural ou mobilização participar de um projeto de pesquisa no
camponesa. O problema eram essas Institut des Hautes Études d’Amérique
brigas entre grupos familiares, grupos Latine, dirigido na época por Pierre
políticos e familiares, onde a violência Monbeig, que me abriria a possibilidade
era muito presente. Isso era para mim de realizar uma pesquisa pessoal, no
um sinal de atraso. Brasil, sobre “Implicações Políticas do
Desenvolvimento do Capitalismo no
RC: Até que ponto o golpe de 1964 Campo”. O projeto maior não emplacou,
afetou seus interesses em estudar os mas surgiu a possibilidade de fazer
movimentos camponeses? o doutorado em Paris. Consegui, no
primeiro semestre de 1969, concluir
MP: O golpe afetou a trajetória da a tese – “Latifúndio e Capitalismo no
minha geração. Por exemplo, no ano que Brasil: leitura crítica de um debate” –
antecedeu o golpe, eu tinha, como projeto que, embora aprovada pelo orientador no
pessoal, voltar para Alagoas. Apesar ter mesmo ano, só viria a ser defendida no
vindo criança para cá (Rio de Janeiro), início de 1971. Estava ainda na França
meus irmãos e eu éramos muito referidos quando recebi o convite do Roberto
a Alagoas e qualquer espaço de férias Cardoso de Oliveira para trabalhar
íamos pra lá. Nesse período anterior ao no Museu Nacional. O Otávio (Velho)
golpe eu e alguns amigos, que também trabalhava com ele e foi quem sugeriu
eram posicionados à esquerda, estávamos meu nome. Acabou que estou aqui até
criando lá um centro de cultura popular, hoje.

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RC: Em 1969, você inicia uma pesquisa em prolongou por cinco anos. O Sindicato de
Pernambuco, tendo como pano de fundo Carpina, na Mata Norte do estado e em
entender as mudanças na plantation cuja origem foi importante a atuação da
tradicional, em especial a questão da Igreja Católica, que me lembre, sofreu no
emergência de um campesinato no bojo mesmo período três intervenções. Tanto
desse processo de transformação. Para num quanto noutro, cada vez que eram
sua surpresa, você logo se deparou com feitas eleições, os trabalhadores que
expressivas mobilizações populares haviam participado das mobilizações
organizadas pelos sindicatos de anteriores a 64 ganhavam e as lutas
trabalhadores rurais da zona da mata eram intensificadas.
pernambucana. Como explicar a atuação
desses sindicatos nesse contexto de RC: De que maneira a emergência de um
repressão política no campo? ampesinato na zona da mata nordestina
MP: Para mim foi a grande descoberta esteve relacionada com o surgimento das
porque, naquele momento em que voltei feiras nesse espaço?
da França, parecia não haver caminho
pra tentar reverter a situação política que MP: Lendo a literatura sobre estrutura
não passasse pela luta armada. Quando agrária no Brasil, sobretudo, o debate
cheguei ao campo, para minha surpresa, “feudalismo versus capitalismo”, havia
encontrei um movimento sindical coisas recorrentes, como a descrição
atuante. A capacidade política desse da relação entre o proprietário e o
pessoal era impressionante, conseguiam trabalhador permanente. As diferenças
manter os trabalhadores reivindicando tinham a ver com o rótulo que lhe era
atribuído, onde entravam as divergências
apesar de toda a repressão. No auge
políticas. Mexendo com essa literatura,
da ditadura, deparei-me com grupos de
essa relação do senhor de engenho com o
trabalhadores na porta das Juntas do
morador me chamou a atenção. Na tese,
Trabalho, aguardando ao julgamento de
tentando fugir àquele impasse, propus
processos que abriam contra usineiros e
que tratássemos a plantation, o latifúndio
fornecedores de cana que não estavam
“como se fosse” um modo de produção
respeitando seus direitos. Ao invés de
específico. A pesquisa foi montada
ações individuais, os sindicatos usavam um pouco em cima disso: entender a
as ações plúrimas, que envolviam dezenas relação entre o senhor de engenho e o
e, às vezes, centenas de trabalhadores. morador, em que, na sua versão mais
Se as greves propriamente ditas haviam o comum, o primeiro (morador) recebia
cessado, as paralisações do trabalho na uma remuneração em dinheiro que, no
cana eram frequentes. limite, era toda absorvida pelo barracão
Essas ações tinham consequências. As do engenho, onde o morador estava
intervenções nos sindicatos eram muito permanentemente endividado. Os
frequentes. O STR de Palmares – em autores diziam: “se ele deve obediência ao
cuja criação Gregório Bezerra foi uma senhor de engenho, (o sistema) é feudal,
figura importante – sofreu, entre 1964 se recebe salário, é capitalista.” Na
e 1972, cinco intervenções do Ministério pesquisa (em Pernambuco) fui entender
do Trabalho (houve até intervenção melhor isso. Os que moravam na rua
na intervenção), sendo que a última se do engenho não tinham uma roça ou

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ela era muito precária, diferentemente livrar das obrigações trabalhistas que
daqueles que tinham uma casa mais começavam a enfrentar, ela também
distante da sede (do engenho) e que refletia a dificuldade de alguns senhores
conseguiam manter seu roçado ou de um de engenho em retomar a atividade
foreiro que era mais autônomo, embora canavieira, depois de um período de crise
ambos tivessem que dar alguns dias de no mercado internacional do açúcar,
trabalho gratuito ao proprietário. Os preferindo vender os seus engenhos.
que viviam simplesmente do trabalho Como para aqueles proprietários era
na cana dependiam, para se abastecer, mais negócio, para fins de venda, retalhar
basicamente, do barracão do engenho. as suas terras, houve um pequeno espaço
Era um esquema de endividamento, para que antigos foreiros e moradores
na hora em que iam receber o salário,
comprassem pequenas áreas, onde
não tinham dinheiro suficiente para
passaram a praticar a sua própria
pagar (suas dívidas). Se a dívida era,
agricultura. Para esses novos pequenos
periodicamente, renegociada, isso ia
produtores as feiras eram o lugar
mantendo eles presos àquela fazenda,
indicado para vender a sua produção.
àquele engenho.
Do outro lado, tanto para esses novos
Eu tinha lido um trabalho do Sidney
produtores como para os camponeses do
Mintz sobre a Jamaica em que ele falava
do comércio clandestino que os escravos Agreste, a feira passara a ser o local de
faziam. Eles tinham o seu roçado e, compra por excelência daquela multidão
clandestinamente, vendiam e conseguiam de moradores expulsos dos engenhos,
algum dinheiro. Então houve trocas e agora “trabalhadores da rua”. Aliás,
surgiram pequenas feiras em cima disso. as feiras também abririam espaço
Um pouco antes, havia lido um trabalho para estes últimos como vendedores de
de um geógrafo francês, Patrick mercadorias e transportadores de carga
Callamard du Genestoux, que tinha feito etc. Dentro da pesquisa maior, dediquei-
estudos recentemente em Pernambuco, me especialmente a essa oposição feiras-
que assinalava o crescimento das feiras barracões, que se mostrou importante
na área canavieira. Até então, as feiras para a compreensão das mudanças
eram muito importantes no Agreste e no sofridas pelo mundo da plantation.
Sertão, mas não na Zona da Mata. O que
estaria havendo? RC: A partir de 1979, você passa a ver,
Todos os autores que escreviam sobre sob a ótica da teoria da reciprocidade,
a região davam destaque à expulsão as relações entre os moradores dos
dos moradores dos engenhos, que engenhos de cana-de-açúcar e os
identificavam como um processo de barracões existentes neles. Até que ponto
proletarização. Mas o que vimos, com as categorias oriundas da economia ou
uma pesquisa que procurou cobrir todo de um pensamento econômico, como a
o espectro de posições e oposições sociais noção de troca enquanto um intercâmbio
(para usar uma fórmula de Bourdieu) notadamente mercantil, por exemplo, se
é que, se a expulsão tinha a ver com a colocaram como um obstáculo para você
mecanização do trabalho nos canaviais, entender não só o papel dos barracões
que estava começando, e com uma na imobilização da mão de obra como
estratégia dos proprietários para se também outras questões de pesquisa?

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MP: Primeiro não sei se a gente poderia desentendimentos entre os barraqueiros


dizer que a troca é uma categoria e os senhores de engenho, nas situações
econômica. Quando (Marcel) Mauss em que o próprio senhor de engenho era
está falando da troca, ele não está barraqueiro ou tinha um barraqueiro
pensando numa operação econômica. que era um morador dele. O (Manuel)
Num trabalho como o do (Marshal) Diegues chamava atenção que vários
Sahlins, ele está colocando a troca como engenhos tinham, ao invés da capela,
um conceito muito mais universal, sem o quarto dos santos, uma peça da casa
que isso implique, necessariamente, onde havia um oratório. As missas eram
na configuração de uma economia, no dentro dele. Isso seria uma maneira de
submeter o agente da igreja, que vai
sentido em que se passou a ser dado ao
celebrar ali alguma coisa, à autoridade
termo na vigência do sistema capitalista.
do senhor de engenho. A questão dos
RC: Você está falando de obrigações
senhores de engenhos era articular essas
sociais também...
várias frentes.
MP: Isso. Essa era a minha preocupação,
RC: Pode-se dizer que os trabalhadores
não reduzir esse tipo de troca, esse tipo
rurais brasileiros se reconhecem e são
de dívida contraída no barracão ao que
reconhecidos, cada vez mais, como
seria uma relação mercantil. Me parecia
cidadãos ou sujeito de direitos?
que a relação de morada seria capaz de
dar conta da troca que se estabelecia
MP: Você chegou a ver um CD que a
com o barraqueiro, dessa relação da
Renata (de Castro Menezes) e o Edmundo
casa grande com a casa do morador,
(Pereira) fizeram com as músicas do
com a família, o controle que se tinha
movimento sindical?
do morador. Mas, mexendo com outras
coisas, e ao reler o “Engenho de Açúcar
RC: Não.
no Nordeste”, do Manuel Diegues, vi o
quanto ele tinha ido longe naquele livro,
MP: Esses cânticos de luta são músicas
uma coisa simples, mas muito direta. Ele
que eles cantavam nas reuniões. Tem
tinha acrescentado o barracão àquele
uma que é realmente emocionante. Foram
esquema do Gilberto Freyre, que incluía
dois dirigentes que fizeram. Começa com
a casa grande, a senzala e a capela. Aí
a frase: “a liberdade é uma coisa tão bela”,
foi me dando um estalo. Tanto Gilberto
e segue por aí. Nas pesquisas que fizemos
Freyre quanto Diegues falam de choques
na área canavieira de Pernambuco,
entre o senhor de engenho e o pároco. Eu
não foi necessário perguntar por essas
já tinha encontrado ao longo da pesquisa,
coisas. Os próprios trabalhadores
disputas entre o senhor de engenho e
dividiam o tempo em “antes e depois dos
o barraqueiro. Pareceu-me, então, que
direitos”. Na entrada dos anos 2000,
cada uma dessas frentes tinha uma lógica
numa pesquisa sobre assentamentos de
própria. O barracão não funciona nos
reforma agrária em diferentes regiões
termos da lógica da morada, mesmo que
do país, ao lado de críticas à situação
essa seja a lógica dominante. O trabalho
dos assentamentos, havia muitos pontos
do senhor de engenho é o de articular
positivos destacados, o mais frequente
essas varias frentes e isso, inclusive,
dos quais era “agora somos livres”.
vai se mostrar, com mais nitidez, nos

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RC: De que modo as ciências sociais apesar de toda a repressão não conseguiu
contribuíram para o reconhecimento desmontar essa conquista.
político dos trabalhadores do campo e de
suas organizações representativas? RC: (Francisco) Julião falava de levar a
Revolução Francesa para o campo.
MP: Olha, eu acho que eles contribuíram
mais com as ciências sociais do que as MP: Pois é, o pessoal não conseguia
ciências sociais com eles. É incrível, enxergar o alcance disso. Chegou 1964
mas foram poucos estudiosos que e essas lutas seguiram. Muita gente
perceberam o significado do Estatuto esquece que persistiram os conflitos
do Trabalhador Rural. Até hoje não se por terra e pelos direitos, apesar de
conseguiu dimensionar o que significou a toda repressão. Muitos dos conflitos,
emergência dos movimentos camponeses que até recentemente estavam de pé,
(no Brasil). A CLT não reconhecia vêm dos anos 1950. Os trabalhadores
os trabalhadores do campo. Eles não mantiveram suas reivindicações. Outros
tinham direito à sindicalização. Na foram surgindo em plena ditadura,
Constituinte de 1945, os grandes em diferentes regiões do país, com os
proprietários se bateram pela aprovação trabalhadores sendo mobilizados através
de um “Código Rural”, que deixaria nas dos sindicatos ou de outras organizações,
mãos dos proprietários a regulamentação que se multiplicariam nos anos 80, como
do trabalho nas fazendas. Felizmente, o MST e o Movimento dos Atingidos por
não foi aprovada. Mas um sub-projeto Barragens. A coisa importante é você
seu, a criação do Serviço Social Rural” conseguir enxergar o que isso significou.
(SSR), já na segunda metade dos anos Há muita gente que vê a coisa muito
50, não abriu espaço como no caso do pontualmente. Eu acho difícil imaginar
SESC, do SESI, etc. para a participação o Brasil hoje se não tivesse havido essa
dos trabalhadores rurais – quem luta, porque foi essa luta que levou
participava e encabeçava o Serviço era ao Estatuto do Trabalhador Rural, ao
“a classe rural”, representada pela CRB Estatuto da Terra e a todas as conquistas
(Confederação Rural Brasileira), o órgão posteriores.
patronal que se transformaria na CNA
(Confederação Nacional da Agricultura). RC: Na introdução que você e Marcio
Os latifundiários não reconheciam o Goldman escreveram para o livro
termo camponês e mesmo “trabalhador organizado por ambos e intitulado
rural” aparecia muito esporadicamente. Antropologia, Voto e Representação
Falavam de rurícola e de uma serie de Política, vocês dizem que um dos
outros termos. Se contava uma piada de interesses desse trabalho é “evitar as
um latifundiário pernambucano que dizia abordagens puramente negativas” da
que “na minha terra não tem camponês, política. Como conciliar o entendimento
na minha terra só tem caboclo”. Então, do que há de específico e de positivo na
essa luta para ter uma identidade política com um discurso crítico sobre a
própria e tantos direitos quanto os outros ausência da cidadania no campo?
setores de trabalhadores, por parte de
uma classe que era majoritária no país, MP: Pois é, eu acho que esse é o grande
realmente mudou o Brasil. E a ditadura, desafio, porque se criou no Brasil

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uma imagem, que não é inteiramente aquela casa aderiu àquela candidatura.
inadequada, a respeito, por exemplo, Então, aquilo é um compromisso público.
do coronelismo, do clientelismo. Eu Tem que declarar abertamente em
acho que há coisas absolutamente quem está votando. A vida do lugar é
importantes e que a gente não considerou completamente transformada naquele
convincentemente. Por exemplo, o Vitor período de eleições. A frequência dos
Nunes Leal, que é umas das grandes bares muda, bar que é partido A, bar
referências, mostra uma coisa que os que é partido B. É preciso entender
antropólogos americanos foram colocar isso por dentro, perceber qual é a sua
no final dos anos cinquenta, ao pensar lógica. Outros colegas se depararam
a mediação exercida pelo coronel. Ele, com isso, com o chamado “tempo da
quando vai pensar essa mediação, chama política”, onde está em jogo, mais do
atenção que esta em jogo, em primeiro que a escolha de um candidato, uma
lugar, o próprio Estado. O peso dos espécie de redefinição dos “lados” em que
coronéis não esta tanto no poder que vem a coletividade se vê dividida. Aquele é o
de baixo, nessa patronagem, no sentido momento considerado legítimo para que
que os antropólogos davam há uns anos alguém confirme o seu pertencimento
atrás, mas sim no fato de que ele funciona ou torne publica uma mudança de lado.
como um mediador com o Estado. Ele Essa mudança, entre duas eleições,
está mostrando que o que está em jogo mesmo havendo conflitos efetivos, é uma
nessa mediação não é só a expressão do coisa que é altamente censurada.
poder do latifundiário lá (no plano local), A eleição não tem a ver apenas com
mas é também administrar os recursos a dimensão propriamente eleitoral de
que o Estado fornece a cada uma dessas eleger o candidato A ou B. Acho que
localidades, ser o intermediário. é difícil pensar em como intervir na
Eu estava lá na Contag e houve política ou mudar os costumes políticos
uma decisão do movimento sindical se a gente não consegue visualizar
de participar das eleições, lançando como isso funciona. O pessoal do PT
candidatos para as constituintes estava com dificuldade de se instalar
estadual e federal em 1986. Foram no interior do Rio Grande do Sul,
lançados candidatos em, praticamente, porque eles mantinham os comitês, os
todos os estados. Quando vieram os diretórios partidários ativos e abertos
resultados, apenas um, que já fazia todo o ano. Então, eles eram acusados
política antes, no Rio Grande do Sul, de estarem trazendo divisão para
se elegeu. Então, foi feita uma reunião dentro da comunidade. As eleições eram
enorme em Brasília com os candidatos o momento das divergências serem
e com os sindicatos aos quais estavam explicitadas e resolvidas. Fora daí,
vinculados. Para mim foi uma coisa política era vista como coisa de político.
muito marcante. Foi em cima disso que Então, eu acho que quando a gente fala
parti para esse trabalho (sobre a política) em reformas políticas é importante ver
junto com a Beatriz (Heredia), ela no Rio o que significam a eleição, as eleições
Grande do Sul e eu em Pernambuco. municipais, a mudança de partido, etc.
Ficou claro que mais importante do que Vale a pena você tentar ver como, na
o voto é a declaração antecipada de voto. prática, essas coisas se dão.
Um cartaz na porta da casa significa que

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RC: Em que medida a dicotomia entre nas formulações da própria população.


o “rural” e o “urbano” serviu como Tentar pensar relacionalmente essas
um instrumento heurístico para suas coisas é extremamente importante.
pesquisas e até que ponto essa dicotomia Quer dizer, significa também que essa
se colocou ou passou a se colocar como oposição também tem sentido para essas
um obstáculo epistemológico? populações. É uma oposição que você
encontra presente no Brasil, a julgar
MP: - Olha, essa história do rural e por vários estudos feitos aqui, e em
urbano, acho que é uma pergunta muito muitos lugares no mundo também está
consistente, porque isso demorou muito a presente. Essas fronteiras entre rural e
ser abordado de uma maneira produtiva. urbano são construídas socialmente e o
Sempre me chocou, por exemplo, a leitura próprio Estado tenta regulá-las.
que se fazia do (Robert) Redfield, com a
história do continuum folk - urbano. Num NOTAS
primeiro momento, ele pensou numa
coisa quase linear, do mais ao menos 1Bolsistade pós-doutorado do Programa
folk, do menos ao mais urbano; depois ele de Pós-Graduação em Ciências Sociais
diversifica isso em várias dimensões de da Universidade Federal do Maranhão
um modelo abstrato. Então, cada aldeia (PPGCSoc/UFMA).
daquelas, cada aglomeração daquelas
que ele fosse estudar, ele poderia pontuar
com relação a tal elemento, se estaria
mais próximo do que seria urbano, e
foi tentando trabalhar por aí, o que na
época já era um avanço. Mas depois, já
no início dos anos 50, com aquele (livro
intitulado) O Mundo Primitivo e Suas
Transformações, ele dá uma quebrada
em tudo isso que ele tinha dito antes
e vai chamar a atenção que a coisa
crucial é a relação campo-cidade. Não
há camponês sem cidade. Ele vai pensar
camponeses por oposição à cidade, em
termos relacionais.
Para nossos estudos foi uma coisa
realmente decisiva pensar a relação
entre campo e cidade. É só uma indicação.
Evidentemente, em cada situação
concreta, essa relação se coloca de um
modo diverso. Por exemplo, você vai para
uma cidade lá nos cafundós do Judas, lá no
sertão do Pernambuco ou da Paraíba, sei
lá onde, o pessoal quando vai se referir a
quem não mora na cidade diz que está na
roça, no campo. Essa contraposição está

Revista de Extensão e Estudos Rurais | REVER , Viçosa, v. 4, n. 1, p. 1-10, jan./jun. 2015

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