Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
tinham se espalhado pelo Nordeste, mas a ideia era que também fosse um
mas Alagoas não entrava nesse mapa. centro de pesquisas. Isso era inspirado
Posteriormente, vim saber, que houve em outra iniciativa: Maria de Azevedo
algumas tentativas no estado, mas Brandão estava criando um centro desses
pouca gente sabia (estou falando de na Bahia, e como estávamos com aquele
1961/1962). Me chamava a atenção programa nacional de alfabetização,
que, em estados como Pernambuco e a era possível, inclusive, conseguir
Paraíba, os grandes divisores de água alguns recursos para desenvolver
da política, como aquele que opunha os isso. Estávamos investindo na direção
grandes proprietários da área canavieira de criar esse centro e se pretendia
aos grandes coronéis do sertão, estavam trabalhar nisso sistematicamente. Mas,
sendo quebrados por uma oposição entre
com o golpe, essas coisas foram brecadas.
camponeses - no sentido mais amplo, de
Essa reviravolta um pouco que fechou
trabalhadores do campo - e os grandes
os caminhos que tínhamos imaginado.
proprietários. Em Alagoas, poucos anos
Nos dois, três anos, que se seguiram,
antes (em 1957), tinha havido o “massacre
continuamos participando de pesquisas
da Assembleia Legislativa”, um tiroteio
no Rio, no Centro Latino-Americano
dentro da Câmara Estadual, em que até
de Pesquisas em Ciências Sociais e
metralhadoras foram usadas, resultando
em uma morte e em muitos gravemente na Cândido Mendes sobre temas os
feridos. Se você pegasse os jornais (de mais diversos. Foi quando surgiu
Alagoas) da época, não se falava de a possibilidade de ir para a França
liga, sindicato rural ou mobilização participar de um projeto de pesquisa no
camponesa. O problema eram essas Institut des Hautes Études d’Amérique
brigas entre grupos familiares, grupos Latine, dirigido na época por Pierre
políticos e familiares, onde a violência Monbeig, que me abriria a possibilidade
era muito presente. Isso era para mim de realizar uma pesquisa pessoal, no
um sinal de atraso. Brasil, sobre “Implicações Políticas do
Desenvolvimento do Capitalismo no
RC: Até que ponto o golpe de 1964 Campo”. O projeto maior não emplacou,
afetou seus interesses em estudar os mas surgiu a possibilidade de fazer
movimentos camponeses? o doutorado em Paris. Consegui, no
primeiro semestre de 1969, concluir
MP: O golpe afetou a trajetória da a tese – “Latifúndio e Capitalismo no
minha geração. Por exemplo, no ano que Brasil: leitura crítica de um debate” –
antecedeu o golpe, eu tinha, como projeto que, embora aprovada pelo orientador no
pessoal, voltar para Alagoas. Apesar ter mesmo ano, só viria a ser defendida no
vindo criança para cá (Rio de Janeiro), início de 1971. Estava ainda na França
meus irmãos e eu éramos muito referidos quando recebi o convite do Roberto
a Alagoas e qualquer espaço de férias Cardoso de Oliveira para trabalhar
íamos pra lá. Nesse período anterior ao no Museu Nacional. O Otávio (Velho)
golpe eu e alguns amigos, que também trabalhava com ele e foi quem sugeriu
eram posicionados à esquerda, estávamos meu nome. Acabou que estou aqui até
criando lá um centro de cultura popular, hoje.
RC: Em 1969, você inicia uma pesquisa em prolongou por cinco anos. O Sindicato de
Pernambuco, tendo como pano de fundo Carpina, na Mata Norte do estado e em
entender as mudanças na plantation cuja origem foi importante a atuação da
tradicional, em especial a questão da Igreja Católica, que me lembre, sofreu no
emergência de um campesinato no bojo mesmo período três intervenções. Tanto
desse processo de transformação. Para num quanto noutro, cada vez que eram
sua surpresa, você logo se deparou com feitas eleições, os trabalhadores que
expressivas mobilizações populares haviam participado das mobilizações
organizadas pelos sindicatos de anteriores a 64 ganhavam e as lutas
trabalhadores rurais da zona da mata eram intensificadas.
pernambucana. Como explicar a atuação
desses sindicatos nesse contexto de RC: De que maneira a emergência de um
repressão política no campo? ampesinato na zona da mata nordestina
MP: Para mim foi a grande descoberta esteve relacionada com o surgimento das
porque, naquele momento em que voltei feiras nesse espaço?
da França, parecia não haver caminho
pra tentar reverter a situação política que MP: Lendo a literatura sobre estrutura
não passasse pela luta armada. Quando agrária no Brasil, sobretudo, o debate
cheguei ao campo, para minha surpresa, “feudalismo versus capitalismo”, havia
encontrei um movimento sindical coisas recorrentes, como a descrição
atuante. A capacidade política desse da relação entre o proprietário e o
pessoal era impressionante, conseguiam trabalhador permanente. As diferenças
manter os trabalhadores reivindicando tinham a ver com o rótulo que lhe era
atribuído, onde entravam as divergências
apesar de toda a repressão. No auge
políticas. Mexendo com essa literatura,
da ditadura, deparei-me com grupos de
essa relação do senhor de engenho com o
trabalhadores na porta das Juntas do
morador me chamou a atenção. Na tese,
Trabalho, aguardando ao julgamento de
tentando fugir àquele impasse, propus
processos que abriam contra usineiros e
que tratássemos a plantation, o latifúndio
fornecedores de cana que não estavam
“como se fosse” um modo de produção
respeitando seus direitos. Ao invés de
específico. A pesquisa foi montada
ações individuais, os sindicatos usavam um pouco em cima disso: entender a
as ações plúrimas, que envolviam dezenas relação entre o senhor de engenho e o
e, às vezes, centenas de trabalhadores. morador, em que, na sua versão mais
Se as greves propriamente ditas haviam o comum, o primeiro (morador) recebia
cessado, as paralisações do trabalho na uma remuneração em dinheiro que, no
cana eram frequentes. limite, era toda absorvida pelo barracão
Essas ações tinham consequências. As do engenho, onde o morador estava
intervenções nos sindicatos eram muito permanentemente endividado. Os
frequentes. O STR de Palmares – em autores diziam: “se ele deve obediência ao
cuja criação Gregório Bezerra foi uma senhor de engenho, (o sistema) é feudal,
figura importante – sofreu, entre 1964 se recebe salário, é capitalista.” Na
e 1972, cinco intervenções do Ministério pesquisa (em Pernambuco) fui entender
do Trabalho (houve até intervenção melhor isso. Os que moravam na rua
na intervenção), sendo que a última se do engenho não tinham uma roça ou
ela era muito precária, diferentemente livrar das obrigações trabalhistas que
daqueles que tinham uma casa mais começavam a enfrentar, ela também
distante da sede (do engenho) e que refletia a dificuldade de alguns senhores
conseguiam manter seu roçado ou de um de engenho em retomar a atividade
foreiro que era mais autônomo, embora canavieira, depois de um período de crise
ambos tivessem que dar alguns dias de no mercado internacional do açúcar,
trabalho gratuito ao proprietário. Os preferindo vender os seus engenhos.
que viviam simplesmente do trabalho Como para aqueles proprietários era
na cana dependiam, para se abastecer, mais negócio, para fins de venda, retalhar
basicamente, do barracão do engenho. as suas terras, houve um pequeno espaço
Era um esquema de endividamento, para que antigos foreiros e moradores
na hora em que iam receber o salário,
comprassem pequenas áreas, onde
não tinham dinheiro suficiente para
passaram a praticar a sua própria
pagar (suas dívidas). Se a dívida era,
agricultura. Para esses novos pequenos
periodicamente, renegociada, isso ia
produtores as feiras eram o lugar
mantendo eles presos àquela fazenda,
indicado para vender a sua produção.
àquele engenho.
Do outro lado, tanto para esses novos
Eu tinha lido um trabalho do Sidney
produtores como para os camponeses do
Mintz sobre a Jamaica em que ele falava
do comércio clandestino que os escravos Agreste, a feira passara a ser o local de
faziam. Eles tinham o seu roçado e, compra por excelência daquela multidão
clandestinamente, vendiam e conseguiam de moradores expulsos dos engenhos,
algum dinheiro. Então houve trocas e agora “trabalhadores da rua”. Aliás,
surgiram pequenas feiras em cima disso. as feiras também abririam espaço
Um pouco antes, havia lido um trabalho para estes últimos como vendedores de
de um geógrafo francês, Patrick mercadorias e transportadores de carga
Callamard du Genestoux, que tinha feito etc. Dentro da pesquisa maior, dediquei-
estudos recentemente em Pernambuco, me especialmente a essa oposição feiras-
que assinalava o crescimento das feiras barracões, que se mostrou importante
na área canavieira. Até então, as feiras para a compreensão das mudanças
eram muito importantes no Agreste e no sofridas pelo mundo da plantation.
Sertão, mas não na Zona da Mata. O que
estaria havendo? RC: A partir de 1979, você passa a ver,
Todos os autores que escreviam sobre sob a ótica da teoria da reciprocidade,
a região davam destaque à expulsão as relações entre os moradores dos
dos moradores dos engenhos, que engenhos de cana-de-açúcar e os
identificavam como um processo de barracões existentes neles. Até que ponto
proletarização. Mas o que vimos, com as categorias oriundas da economia ou
uma pesquisa que procurou cobrir todo de um pensamento econômico, como a
o espectro de posições e oposições sociais noção de troca enquanto um intercâmbio
(para usar uma fórmula de Bourdieu) notadamente mercantil, por exemplo, se
é que, se a expulsão tinha a ver com a colocaram como um obstáculo para você
mecanização do trabalho nos canaviais, entender não só o papel dos barracões
que estava começando, e com uma na imobilização da mão de obra como
estratégia dos proprietários para se também outras questões de pesquisa?
RC: De que modo as ciências sociais apesar de toda a repressão não conseguiu
contribuíram para o reconhecimento desmontar essa conquista.
político dos trabalhadores do campo e de
suas organizações representativas? RC: (Francisco) Julião falava de levar a
Revolução Francesa para o campo.
MP: Olha, eu acho que eles contribuíram
mais com as ciências sociais do que as MP: Pois é, o pessoal não conseguia
ciências sociais com eles. É incrível, enxergar o alcance disso. Chegou 1964
mas foram poucos estudiosos que e essas lutas seguiram. Muita gente
perceberam o significado do Estatuto esquece que persistiram os conflitos
do Trabalhador Rural. Até hoje não se por terra e pelos direitos, apesar de
conseguiu dimensionar o que significou a toda repressão. Muitos dos conflitos,
emergência dos movimentos camponeses que até recentemente estavam de pé,
(no Brasil). A CLT não reconhecia vêm dos anos 1950. Os trabalhadores
os trabalhadores do campo. Eles não mantiveram suas reivindicações. Outros
tinham direito à sindicalização. Na foram surgindo em plena ditadura,
Constituinte de 1945, os grandes em diferentes regiões do país, com os
proprietários se bateram pela aprovação trabalhadores sendo mobilizados através
de um “Código Rural”, que deixaria nas dos sindicatos ou de outras organizações,
mãos dos proprietários a regulamentação que se multiplicariam nos anos 80, como
do trabalho nas fazendas. Felizmente, o MST e o Movimento dos Atingidos por
não foi aprovada. Mas um sub-projeto Barragens. A coisa importante é você
seu, a criação do Serviço Social Rural” conseguir enxergar o que isso significou.
(SSR), já na segunda metade dos anos Há muita gente que vê a coisa muito
50, não abriu espaço como no caso do pontualmente. Eu acho difícil imaginar
SESC, do SESI, etc. para a participação o Brasil hoje se não tivesse havido essa
dos trabalhadores rurais – quem luta, porque foi essa luta que levou
participava e encabeçava o Serviço era ao Estatuto do Trabalhador Rural, ao
“a classe rural”, representada pela CRB Estatuto da Terra e a todas as conquistas
(Confederação Rural Brasileira), o órgão posteriores.
patronal que se transformaria na CNA
(Confederação Nacional da Agricultura). RC: Na introdução que você e Marcio
Os latifundiários não reconheciam o Goldman escreveram para o livro
termo camponês e mesmo “trabalhador organizado por ambos e intitulado
rural” aparecia muito esporadicamente. Antropologia, Voto e Representação
Falavam de rurícola e de uma serie de Política, vocês dizem que um dos
outros termos. Se contava uma piada de interesses desse trabalho é “evitar as
um latifundiário pernambucano que dizia abordagens puramente negativas” da
que “na minha terra não tem camponês, política. Como conciliar o entendimento
na minha terra só tem caboclo”. Então, do que há de específico e de positivo na
essa luta para ter uma identidade política com um discurso crítico sobre a
própria e tantos direitos quanto os outros ausência da cidadania no campo?
setores de trabalhadores, por parte de
uma classe que era majoritária no país, MP: Pois é, eu acho que esse é o grande
realmente mudou o Brasil. E a ditadura, desafio, porque se criou no Brasil
uma imagem, que não é inteiramente aquela casa aderiu àquela candidatura.
inadequada, a respeito, por exemplo, Então, aquilo é um compromisso público.
do coronelismo, do clientelismo. Eu Tem que declarar abertamente em
acho que há coisas absolutamente quem está votando. A vida do lugar é
importantes e que a gente não considerou completamente transformada naquele
convincentemente. Por exemplo, o Vitor período de eleições. A frequência dos
Nunes Leal, que é umas das grandes bares muda, bar que é partido A, bar
referências, mostra uma coisa que os que é partido B. É preciso entender
antropólogos americanos foram colocar isso por dentro, perceber qual é a sua
no final dos anos cinquenta, ao pensar lógica. Outros colegas se depararam
a mediação exercida pelo coronel. Ele, com isso, com o chamado “tempo da
quando vai pensar essa mediação, chama política”, onde está em jogo, mais do
atenção que esta em jogo, em primeiro que a escolha de um candidato, uma
lugar, o próprio Estado. O peso dos espécie de redefinição dos “lados” em que
coronéis não esta tanto no poder que vem a coletividade se vê dividida. Aquele é o
de baixo, nessa patronagem, no sentido momento considerado legítimo para que
que os antropólogos davam há uns anos alguém confirme o seu pertencimento
atrás, mas sim no fato de que ele funciona ou torne publica uma mudança de lado.
como um mediador com o Estado. Ele Essa mudança, entre duas eleições,
está mostrando que o que está em jogo mesmo havendo conflitos efetivos, é uma
nessa mediação não é só a expressão do coisa que é altamente censurada.
poder do latifundiário lá (no plano local), A eleição não tem a ver apenas com
mas é também administrar os recursos a dimensão propriamente eleitoral de
que o Estado fornece a cada uma dessas eleger o candidato A ou B. Acho que
localidades, ser o intermediário. é difícil pensar em como intervir na
Eu estava lá na Contag e houve política ou mudar os costumes políticos
uma decisão do movimento sindical se a gente não consegue visualizar
de participar das eleições, lançando como isso funciona. O pessoal do PT
candidatos para as constituintes estava com dificuldade de se instalar
estadual e federal em 1986. Foram no interior do Rio Grande do Sul,
lançados candidatos em, praticamente, porque eles mantinham os comitês, os
todos os estados. Quando vieram os diretórios partidários ativos e abertos
resultados, apenas um, que já fazia todo o ano. Então, eles eram acusados
política antes, no Rio Grande do Sul, de estarem trazendo divisão para
se elegeu. Então, foi feita uma reunião dentro da comunidade. As eleições eram
enorme em Brasília com os candidatos o momento das divergências serem
e com os sindicatos aos quais estavam explicitadas e resolvidas. Fora daí,
vinculados. Para mim foi uma coisa política era vista como coisa de político.
muito marcante. Foi em cima disso que Então, eu acho que quando a gente fala
parti para esse trabalho (sobre a política) em reformas políticas é importante ver
junto com a Beatriz (Heredia), ela no Rio o que significam a eleição, as eleições
Grande do Sul e eu em Pernambuco. municipais, a mudança de partido, etc.
Ficou claro que mais importante do que Vale a pena você tentar ver como, na
o voto é a declaração antecipada de voto. prática, essas coisas se dão.
Um cartaz na porta da casa significa que