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O rio Tietê é central na geografia e na história de São Paulo. Atravessa o estado de leste
a oeste, descendo das vertentes da serra do mar, desaguando na calha do Paraná. Corta
a capital, identificando-se com o seu desenvolvimento. Na passagem e no início do
século XX, quando assistimos à publicação de artigos e livros retratando o período
colonial paulista, o outrora Anhembi foi apresentado como um dos fatores
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fato não serve como descrédito às diferenças encontradas entre as obras analisadas. As
concepções sobre o papel dos rios em nossa história independem de o assunto ser as
bandeiras ou as frotas de navegação fluvial do século XVIII.
Os intelectuais, que no início do século XX, debruçaram-se sobre o bandeirantismo e as
monções, apoiaram-se em Capistrano de Abreu e Euclides da Cunha. O historiador
cearense, considerado já naquele momento, um dos fundadores da historiografia
brasileira, defendeu o movimento em direção ao sertão como temática importante para
o estudo da formação brasileira. Um assunto que mobilizou a elite paulistana, dado que
toca no avanço bandeirante, uma ação identificada como paulista. Por outro lado, ele
indicou os caminhos metodológicos para a análise dos dados históricos. Apontou a
importância do ambiente, da geografia nos rumos tomados pela história. Contudo,
devemos esclarecer que os paulistas vão partir da leitura de Capítulos de história
colonial e de Caminhos coloniais para produzir um discurso regionalista. Embora
analisemos o historiador cearense junto de seus contemporâneos, a proposta política
inserida em seus textos não deve ser reduzida ao regionalismo dos de São Paulo.
É inegável a influência que Euclides da Cunha teve sobre os intelectuais das primeiras
décadas do século XX. Em geral, encontram-se referências diretas de Os Sertões nos
trabalhos historiográficos que estudaram o bandeirantismo. No primeiro ensaio
publicado em À Margem da História, intitulado Terra sem História, sobre viagem que
fez à Amazônia, o jornalista tratou os rios como protagonistas dessa narrativa.
Infelizmente, falta espaço para um aprofundamento na análise da leitura que os
bandeirologistas fizeram dele. Mas não seria de todo leviano adiantar que buscaram
aquelas descrições e fundamentações que se adequavam as suas propostas para o Brasil,
dentro de um projeto político regionalista. Talvez, também, o tenham copiado
transformando a natureza em literatura.
Capistrano de Abreu concebia que a geografia, especialmente o relevo e a vegetação,
era a chave para o desvendamento do nexo entre a seqüência de eventos que resultaram
na formação dos limites territoriais do Brasil atual. A penetração e o devassamento do
sertão pelos bandeirantes foi o fenômeno central dessa história. Assim, o papel que
concebeu para os rios nesse enredo deve ser compreendido dentro dessa determinação
maior.
Na narrativa elaborada por Capistrano de Abreu, a serra do Mar, o planalto paulista e os
rios, particularmente o Tietê, prescreveram o movimento de penetração do sertão
protagonizado pelos paulistas. A serra do Mar, um paredão que isola o planalto da
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costa, impeliu o colono para o interior do território. Este se resumia a terras virgens,
cobertas por espessa vegetação, ocupadas esparsamente por índios ainda em estado de
barbárie, cortadas por dispersas e desconexas picadas indígenas. Nesse ambiente, os
cursos d’água serviram de caminhos para os colonos, porque ofereciam orientação,
conduziam com o movimento de suas águas, alimentavam e saciavam a sua sede.
Segundo o historiador: “Os rios foram os caminhos que seguiram de preferência”
(ABREU, 1999, p. 64). Em outra obra afirma: “Se encontravam algum rio e prestava
para a navegação, improvisavam canoas ligeiras, fáceis de varar nos saltos, aliviar nos
baixios ou conduzir à sirga. Por terra aproveitavam as trilhas dos índios; em falta delas
seguiam córregos e riachos” (ABREU, 1988(1), p.143).
O cearense, que era - não sem razão - considerado o maior historiador brasileiro, foi
seguido pelos intelectuais, apreensivos em construir uma história de São Paulo e por
meio dela fundamentar a hegemonia paulista na política republicana. Encarou-se como
premissa o papel que ele advogou para os rios nessa história. Entretanto, aqueles
intelectuais avançaram, esmiuçando o movimento de penetração no sertão e pontuando
sempre sua origem, São Paulo, e seu agente, o bandeirante. Uma vez que Capistrano de
Abreu apontava a determinância geográfica desse processo, portanto, natural, os
historiadores que o seguiram demonstram que, naturalmente, o domínio paulista estava
predestinado. Assim, podia se concluir que a soberania dos de São Paulo sobre o Brasil
afirmava-se divinamente.
Os rios definiram a direção da marcha segundo Afonso de Taunay. Levaram o
bandeirante ao devassamento do sertão. Cassiano Ricardo escreve que o sertão chamou
o homem enquanto que a montanha empurrou-o e o rio, algumas vezes, o conduziu nos
ombros para “que ele fosse saber o que o sertão queria” (RICARDO, v. 1, p.77) .
Assim os rios, como a situação geográfica de Piratininga, determinaram os rumos da
história dos paulistas. A penetração no sertão, sua invasão e apropriação estavam
definidos naturalmente. O papel dos rios foi viabilizar a história fixada pela natureza, a
posse do território. Porém, foi o descendente do colono português, o mameluco que,
com suas características raciais e psicológicas, acabou por se impor a essa história
natural e a conduzir a história do Brasil. Segundo Capistrano de Abreu, quando os
colonos venceram a natureza bruta, a mata virgem, os rios encachoeirados, as serrarias
ínvias, conduziram a história do Brasil.
Como caminhos, para a historiografia, os rios precisaram a direção - o interior, o sertão
- e a ação - o devassamento e a incorporação do sertão ao Brasil oficial. Definiram a
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marcha para o Oeste, dos paulistas e do capital. Cassiano Ricardo, escrevendo num
contexto em que se discutia o avanço para o centro Oeste, defendeu os direitos naturais
dos paulistas à fronteira que estava se abrindo, reconstruindo a trajetória bandeirante.
Definiu o Tietê como um rio imperialista estabelecendo um paralelo com os paulistas.
O bandeirante era visto como um dos alicerces de uma primeira nacionalidade
conforme Alfredo Ellis Junior (1926), o historiador que acirra mais o caráter
regionalista do discurso. Mas o rio era a via, levava o sertanista para o interior. Esse foi
o seu papel na história do Brasil, indicar o caminho para a construção da nação e
conduzir os protagonistas dessa ação.
Enfim, através da elucidação do papel dos rios na história, esses intelectuais
defenderam que o movimento dos bandeirantes, rumo ao interior do Brasil, foi
condicionado pela própria geografia das terras que eles exploraram e se apropriaram,
qualificando sua ação. Utilizaram-se dessa memória como afirmação dos seus direitos
sobre os territórios virgens ainda existentes no Brasil.
Na recuperação dessas vias naturais fixas, Capistrano de Abreu pareceu mais atento à
carta geográfica contemporânea do que ao documento histórico. Afirmou que o
percurso de algumas bandeiras deveria ser classificado não pelo ponto de onde elas
partiam, mas pelos córregos que margeavam ou navegavam, tendo função considerável
o São Francisco, o Tietê, o Paraíba e o Amazonas. Embora em momentos limitados,
percebemos seu esforço para indicar uma paisagem em movimento quando contrasta o
cenário presente e o roteiro seguido pelos sertanistas no período colonial.
Seguindo o formato apresentado pelo historiador cearense, Afonso de Taunay retratou o
percurso dos bandeirantes que atacaram as missões do Guairá: “Sairam de São Paulo
talvez em 1628 – Não se sabe o itinerário, o mais provável é seguirem o primitivo
caminho – Peabiru (índios) caminho de São Tomé (jesuítas) veredas de 2 léguas, rumo
sudoeste, que ligava São Vicente e São Paulo à margem do Paraná, cortando o
Paranapanema, o Tibagi, o Ivaí e o Pequiri” (TAUNAY, 1975, p.15). Dessa forma,
também boa parte dos historiadores procedeu. A referência aos rios é elaborada como
se tivessem um mapa contemporâneo aberto sobre a mesa, desprezando o documento
histórico que relata o acontecimento. Perdem, com essa postura metodológica,
informada por uma representação coetânea, o enredo que se encontra associado à
menção a um corpo d’água: os recorrentes ataques de alguns grupos indígenas, as
técnicas de pesca e de construção das embarcações, as diferentes paisagens ao longo
das viagens e as interferências humanas nos rios.
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e nomeados e descritos por eles nos séculos XVI, XVII e XVIII, são documentos do
passado, representações escritas que sintetizam o visualizado e o concebido. A
substituição desses testemunhos por cartas cartográficas contemporâneas, que
apresentam traçados e nomenclaturas definidos em geral no século XIX e XX,
significou desconsiderar todo o contexto mental em que aquele recurso natural foi
utilizado, assim como se constituiu metodologicamente numa falsificação dos dados.
Sérgio Buarque de Holanda dialogou com essa historiografia desde a edição de Raízes
do Brasil. Entretanto, aprofundou-se no tema das monções e do bandeirantismo a partir
da década de 40. O uso das denominações de rios navegados na época que está
retratando - o atual Miranda, sempre referido como Mbotetei, em O extremo Oeste - é
um aspecto metodológico da obra desse historiador. Por outro lado, expressou a noção
de que os rios, com os quais os historiadores trabalham, são natureza e cultura. Sérgio
Buarque recuperou o uso que era feito desses fluxos d’água, as interferências humanas
e o cotidiano que se desdobrava ao seu redor e a que ele se ligava.
O Tietê leva o colono para o interior do continente, condiciona sua marcha. Entretanto,
conforme aqueles intelectuais de princípios do século XX, para as sociedades indígenas
esse rio teve um papel diverso daquele desempenhado para os luso-brasileiros.
Excetuando-se a alusão aos Paiguá no alto Paraguai e pequenos comentários sobre a
pesca indígena, em nenhum momento há indicações ou referências feitas por essa
historiografia sobre utilização dos rios pelos índios. O Tietê, o Paranapanema e o
Paraná foram retratados como se estivessem vazios. Mesmo no caso dos índios
canoeiros, que atacavam as monções em seu trajeto para as minas de Goiás e Mato
Grosso, a ação desses, que foi recorrente no século XVIII, e sua prática num meio
fluvial, foi desprestigiada. Pelo contrário, sugeriu-se a imagem de um ato de banditismo
oportunista.
Aliás, é interessante observar que os rios afiguravam estar mais vazios que a terra no
sertão, insinuando um cotidiano indígena eminentemente terrestre. A navegação fluvial
no Brasil colônia é quase exclusiva dos bandeirantes e monçoeiros segundo aqueles
historiadores do início do século XX. A omissão sobre as técnicas de navegação e de
construção dessas canoas ligeiras, o desinteresse em seguir a história dos Paiguá, que
tanto atormentaram as monções, entre outros aspectos, induzem o leitor desses livros a
conceber que a história desses rios, com sua utilização e sua transformação humana,
principia com a chegada do europeu.
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Essas cenas, repassadas por essa historiografia que segue o historiador cearense,
sugerem que o mameluco herdou uma memória genética do índio. O instinto que lhe
capacitou a perambular pelo sertão, pelas trilhas indígenas, a reconhecer alimentos, a
pescar e a caçar. Entretanto, do europeu, o colono miscigenado recebeu também a
cultura que lhe forneceu as ferramentas para o domínio da natureza e para a navegação
dos rios, e o levou, conforme Capistrano de Abreu, a impulsionar a história do Brasil.
Retornamos a um problema que permanece em todos esses textos. O desprezo para com
a observação da ação indígena, relatada na documentação histórica, resulta na
representação do sertão como terras sem cultivo, de um meio inculto, endossando a
visão de que aquele espaço era habitado por gentes e povos inertes e imóveis,
intelectual, espiritual e materialmente.
Estabelece-se um paralelo dessa visão com sua concepção sobre o caráter estático da
natureza. O sertão era definido como um mundo sem história. O colono luso brasileiro,
ao dominar esse mundo natural – expulsar, matar e civilizar os índios, caçar e
domesticar os animais, povoar a margem dos rios, substituir as matas por estradas,
cidades e fazendas – levava à evolução. Esse discurso justificou os fins da colonização,
apesar de os meios terem sido reconhecidamente violentos. Legitimou também a
apropriação de parte do continente Sul americano pelos colonos portugueses. E ainda,
validou a expansão futura do capital paulista para além da fronteira econômica - para o
centro-Oeste.
Sérgio Buarque de Holanda, através da recuperação dos índios e de sua ação, revelou a
ocultação de uma história. Apontou essa dissimulação quando se aprofundou no estudo
das monções e dentro deste tema, na origem das técnicas de construção naval e
navegação bem como na história dos Paiguá. Discutiu as técnicas indígenas de pesca e
comparou-as à dos colonos. Mostrou que tanto índios como luso-brasileiros chegaram a
produzir obras que interferiam no fluxo dos rios e, já nos séculos iniciais da
colonização, ações processadas por eles representaram impactos destrutivos sobre
aquele meio ambiente. Metodologicamente, o historiador propôs um recorte territorial
diverso do que se fazia e se faz ainda em nossa historiografia. Avançou sobre os limites
entre a colônia portuguesa e a espanhola, exibindo a inconstância dessa linha e dos
anseios de uns e outros para perpetuá-la. Contestou aqueles que defendiam a existência
de um plano geopolítico metropolitano já no século XVII.
Não se trata aqui de um problema de percepção empírica, mas da divergência entre os
pressupostos que antecedem o estabelecimento do problema, da seleção de documentos
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Os índios foram ignorados nesse enredo. Quando muito apareceram na periferia das
narrativas caracterizados como povos bárbaros, com nível cultural ínfimo a ponto de
estabelecer-se uma correspondência entre eles e os animais. Ambos, índios e rios,
foram concebidos como entidades a-históricas por aqueles cientistas sociais.
A natureza pródiga e a determinação natural e, portanto, divina da história fazem parte
dos mitos fundadores do Brasil. A historiografia paulista do início do século, com
muito sucesso, regionalizou esse mito e afirmou a natural propensão ao domínio do país
pelos de São Paulo. Foram eles, empurrados pela Serra do Mar e carregados para o
interior pelo Tietê, que descobriram os sertões e os domesticaram. O Tietê, um rio
imperialista, fez deles expansionistas. Esse enredo serviu para eximi-los de ações
bárbaras cometidas contra os índios, assim como para afirmar seu destino e a
hegemonia nacional.
Tanto os historiadores do início do século quanto Sérgio Buarque de Holanda
polemizaram sobre a formação territorial do Brasil através da construção de imagens. A
crítica que este último intelectual fez aos outros está expressa nos cenários que
construiu, que não raro se assemelham formalmente aos dos bandeirologistas, porém
discordantes na essência das idéias que transmitem. Entretanto, aquelas descrições, cujo
conteúdo ideológico deformador da realidade foi revelado, encontram-se ainda muito
vivas em toda uma iconografia espalhada pela capital, no museu Paulista, na obra de
Brecheret em homenagem às bandeiras, em painéis fixados em vários prédios do centro
de São Paulo, assim como as descobrimos impressas em livros didáticos e em artigos e
estudos preparados por intelectuais desavisados sobre as controvérsias historiográficas.
Essas imagens, que nos remetem a um sertão inculto e a rios vazios, ganham força
quando isolamos o estudo do meio natural da pesquisa humanística, do cotidiano e das
ocorrências que se desenrolaram nesse espaço nos séculos XVI, XVII e XVIII. A
recuperação daquelas paisagens pretéritas acontece organizando-se dados constantes da
documentação histórica onde esse fato geográfico faz parte de um contexto cultural,
político e econômico. Portanto, essa conduta metodológica que separa natureza e
cultura, falseia a realidade. Sérgio Buarque de Holanda revelou o que esse
procedimento ocultou, ou seja, os povos indígenas e a dinâmica da fronteira, enfim a
história sobre a formação territorial do Brasil.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Horizonte: Itatiaia, 1988. (1)
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