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Juventudes e cidades no videoclipe:


o corpo como foco

Denise Oliveira Siqueira


Pós-doutorada em Sociologia (Université Paris-Descartes)
Professora de Pós-graduação em Comunicação (UERJ)
E-mail: denisedacosta@ig.com.br

Introdução
Resumo: O artigo estuda a representação de jovens urbanos
na mídia através de imagens veiculadas em videoclipes brasi-
leiros e franceses dos anos 2000. Nesses clipes destinados a um As grandes cidades, suas praças públicas
público jovem as danças, esportes e outras diversas manifes- e monumentos constituem espaços onde se
tações corporais urbanas constituem elementos significativos.
Partindo dessa constatação, o objetivo do trabalho é obser-
exprimem e se confrontam múltiplas cultu-
var nos filmes musicais curtos a maneira pela qual os corpos ras contemporâneas. Espelho de uma época,
são mostrados, assim como são afetados pelas cidades. Desse elas acolhem a arte urbana e suas desobedi-
modo, busca-se estudar a maneira pela qual a sociedade - via
meios de comunicação - representa as culturas jovens urbanas. ências ou resistências; são habitadas por pes-
Palavras-chave: juventude, videoclipe, corpo, cidade. soas que portam no próprio corpo ou carre-
Juventudes y ciudades en el video: el cuerpo como foco gam consigo aparatos tecnológicos os mais
Resumen: El documento analiza la representación de la juven- recentes, mas também por pessoas social-
tud urbana en los medios de comunicación masiva a través de
imágenes transmitidas por videoclips franceses y brasileños de
mente excluídas. A metrópole contemporâ-
la década de 2000. En estos clips para un público joven danzas, nea é um carrefour, cruzamento de contradi-
eventos deportivos y otras varias manifestaciones corporales ções, idéias e de corpos, de jovens e adultos,
son elementos significativos. Con base en esas constataciones,
el objetivo del estudio es observar en las películas musicales de conservadores e de vanguardas políticas,
cortas la forma como los cuerpos se muestran y también como econômicas e artísticas. E apesar de todos os
son afectados por las ciudades. Con eso, se propone, estudiar
la forma por la cual la sociedad - a través de los medios de co- ideais de descentralização que as redes infor-
municación - piensa y representa las culturas jóvenes urbanas. máticas permitem, a cidade ainda concen-
Palavras clave: juventud, videoclip, cuerpo, ciudad.
tra os fatos e eventos que marcam a mídia,
Youth and cities in the videoclip: the body as the focus que constroem imaginários e estimulam o
Abstract: This paper studies the representation of urban youth consumo. A cidade é o “centro do mundo”
through media images broadcast in French and Brazilian mu-
sic videos of the 2000s. In these clips for a young audience, na medida em que estabelece com seus ha-
dances, sports events and other various bodily urban elements bitantes relações de socialidade, de interesse,
are significant. Based on this, the study’s goal is to observe in
the short musical films the way the bodies are shown, and also de expectativa, de mobilidade social e econô-
how they are affected by the cities. The paper seeks, thus, to mica e de conflitos.
study the way the society - via media - thinks and represents
the urban youth culture.
O espaço urbano representa, assim, uma
Keywords: youth, video-clip, body, city. espécie de cena onde diferentes grupos jovens

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constroem os mais diversos sentidos. Espaço anos 2000 veiculados respectivamente pela
de diferença, de conflito, de divisão e de re- televisão brasileira e pela TV francesa ou em
pressão, a cidade é também lugar de ricas ma- sites dedicados aos públicos francês (em que
nifestações de transgressão que explodem em o idioma é francês) e brasileiro (em que o
idioma é o português)1. É importante ressal-
tar que o estilo musical não foi uma preo-
A confluência de cupação para a seleção da mostra de clipes.
diferenças faz da cidade Embora reconhecendo a importância e o pa-
o espaço por excelência pel da canção dentro do videoclipe, de fato,
neste estudo considera-se a música como
da complexidade.
apenas um dos elementos desses filmes cur-
Nela coexistem tos – sendo parte do objetivo focar a atenção
estruturas históricas no corpo e em suas expressões.
e sociais divergentes Finalmente, o trabalho se fundou em uma
metodologia qualitativa e em uma perspecti-
va transdisciplinar para relacionar um obje-
to de estudo da comunicação às referências
danças, músicas, práticas corporais e estéti- teóricas da estética, da sociologia do cotidia-
cas como o parkour, o hip hop, o funk carioca. no e da antropologia urbana.
Como escreveu Oliveira (2007:70), através
das intervenções urbanas, os jovens recriam
Um olhar sobre a cidade
sua relação com a metrópole. Em outra pers-
pectiva, tais práticas tanto reúnem quanto As grandes cidades são lugares comple-
excluem : elas dão forma às “neotribos” ur- xos, de contrastes, desiguais. Assim, ao mes-
banas, criam formas de socialidade juvenis, mo tempo em que abrigam a pluralidade,
reforçam identidades (Maffesoli, 2000). são local também de intolerância; conservam
A partir dessas ideias, este trabalho pro- trabalhos e peças em museus, mas abrigam
põe uma discussão sobre um formato mi- a efêmera arte urbana; exibem e anunciam
diático privilegiado para observar os jovens construções pós-modernas “inteligentes” e
na cidade, seus movimentos dançados e a “ecológicas”, mas mantêm prédios seculares
maneira pela qual eles são representados: os (nem sempre bem conservados) e habitações
videoclipes. Uma grande parte dessas produ-
insalubres.
ções – tanto as brasileiras quanto as francesas
A confluência de diferenças faz da cida-
- tem por cenário ambientes urbanos ou faz
de o espaço por excelência da complexidade.
referência à temáticas ligadas ao espaço urba-
Nela coexistem estruturas históricas e sociais
no e aos dramas vividos na cidade. O objeti-
divergentes. As cidades são lugares de con-
vo deste trabalho é, então, analisar os jovens e
suas representações em uma pequena amos- traste, ou como escreveu Simmel (2007), de
tra escolhida de clipes brasileiros e franceses cenas do teatro social, com suas máscaras e
– ressaltando o papel do corpo nesse contex- papéis. Assim, segundo o sociólogo, compa-
to imagético. Também é objetivo comparar rados àqueles da cidade pequena, os encon-
nos videoclipes a maneira como as cidades tros entre indivíduos são, na cidade grande,
afetam os corpos a fim de compreender a raros e breves; desse modo, na metrópole, os
maneira pela qual as sociedades pensam e re- indivíduos seriam levados a dar de si uma
presentam as culturas jovens urbanas. outra imagem, condensada, enquanto em ci-
Para tal, em termos metodológicos, ob-
1
Este artigo é parte da pesquisa desenvolvida na Université
servamos cerca de cem clipes brasileiros e Paris-Descartes, durante o pós-doutorado em sociologia, com
cem clipes franceses produzidos a partir dos apoio da Capes.

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dades menores, onde as reuniões seriam fre- Virilio nos lembra disso quando escreve que
quentes e longas, teríamos da personalida- “se, apesar das promessas dos arquitetos pós-
de do outro uma imagem muito mais clara modernos, a cidade encontra-se privada de
(Simmel, 2007:37). portas a partir de agora, é porque há muito
Em um contexto pós-moderno, esses en- os limites urbanos deram origem a uma infi-
contros breves, efêmeros constituiriam uma nidade de aberturas, rupturas e fechamentos,
parte significativa da socialidade (Maffesoli, certamente menos aparentes que os da Anti-
2000). É possível identificá-los em fenômenos guidade, mas igualmente práticos, constran-
como os flash mobs ou os apéros géants orga- gedores e segregativos” (1993:12).
nizados em espaços públicos de diversas cida- Se os limites não são mais somente geo-
des francesas na primavera de 2010 por meio gráficos, eles nos fazem refletir que a cidade
de redes sociais on-line como o Facebook. também pode estar nos corpos, na mídia,
Como lugar privilegiado da produção nos imaginários. Assim, a cidade é física à
material e simbólica, a cidade reflete a plu- medida em que compreende espaços e dis-
ralidade da produção de sentidos. Essa plu- tâncias; ela é sociológica na medida em que
ralidade não “cabe” em sua totalidade nos compreende as relações sociais; é cultural
meios de comunicação massiva. Os meios de porque construída e reconstruída por pesso-
comunicação tentam representá-la, na reali- as inseridas em culturas e ainda, poderíamos
dade selecionam alguns sentidos entre uma dizer, é psicológica porque aproxima pessoas
variedade quase infinita de significações pre- conhecidas e desconhecidas, o estranho, es-
sentes no espaço urbano. Dessa forma, a mí- trangeiro com todos os receios que ele pro-
dia oferece um ponto de vista, uma leitura voca. A cidade é uma idéia.
– geralmente limitada ou “recortada”/edita- Dessa maneira, a cidade é física, socioló-
da para ser mais técnica - da cidade, de seus gica, cultural, psicológica como um corpo.
atores, de seus valores e suas referências. E ela afeta os corpos: o tempo nos meios de
Seja em Paris ou no Rio de Janeiro, os transporte cansa as pessoas; as grandes dis-
meios de comunicação e seus diversos pro- tâncias as obriga a grandes deslocamentos e
dutos mostram parcialmente, reconstruin- a ficar mais tempo fora de casa o que supõe
do-as, as mudanças da cidade e as relações uma adaptação dos horários de alimentação,
entre seus habitantes e seus papéis sociais. A de repouso, de higiene pessoal. Os “pode-
proliferação de novas linguagens gestuais e res públicos”, os Estados reconhecem essas
corporais – sob a forma de danças urbanas adaptações exigidas de seus cidadãos e, por
executadas por jovens e retransmitidas por vezes, tomam atitudes a respeito. Reconhe-
canais de televisão gratuitos ou pagos, pela cendo essa questão e buscando ordenar e ra-
Internet e pelos celulares – é um signo da cionalizar as ações dos “usuários” do espaço
maneira pela qual a cidade se constitui como urbano, a Mairie de Paris, por exemplo, ins-
lugar de diferenças. talou banheiros públicos gratuitos por toda
Desse modo, cidade e comunicação man- a capital francesa para atender a habitantes e
tém uma relação dinâmica e se transformam a turistas. No mesmo sentido, a Prefeitura do
mutualmente. É a ideia de que os meios re- Rio de Janeiro, instalou em alguns (poucos)
fletem a cidade, constróem imagens e ima- pontos da cidade vaporizadores conhecidos
ginários sobre as cidades, em um certo sen- como “cuca fresca” para refrescar as pessoas
tido, alargam os limites do urbano. Assim, nos dias mais quentes. Aos mesmo tempo,
o urbano também estaria na mídia, no pla- ambas as prefeituras instalam grades, pro-
no do simbólico, das representações. Nessa teções para evitar que moradores de rua se
perspectiva, os limites da cidade não seriam fixem em espaços públicos.
mais somente geográficos, físicos, concretos. Esses exemplos mostram que os cidadãos

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se disciplinam ou disciplinam seus corpos rias em quadrinhos destinadas aos diferentes


para viver nas cidades, mas que a cidade, por públicos e na Internet, encontram-se vários
sua vez, também se molda por seus habitan- tipos e categorias de corpos que contam mi-
tes. Cidades, então, não são somente locais tos - narrativas conhecidas há muito, mas
de mercado, de comércio, trocas monetárias, sempre em transformação -, encontram-se
de arquiteturas e planejamentos urbanos; modelos, encontram-se elementos corporais
são espaço de culturas, espaços onde a cultu- que ajudam a identificar rapidamente quem
ra se exprime em corpos. A cidade se espraia é o personagem mostrado.
para além de suas construções. Então, como Os videoclipes que estudamos, destina-
perguntou Virilio, “Onde começa portanto a dos a um público jovem e consumidor, cons-
cidade sem portas? Provavelmente nos espí- trutor e reprodutor de identidades, contém
ritos...” (1993:15). o que Janotti Jr (2006) chamou de “a música
popular massiva” e destacam o corpo, a dan-
O corpo-cidade
ça, os movimentos radicais e espetaculares.
Como a cidade, o corpo é um espaço de Entre as manifestações corporais que apa-
cultura, um lugar de diferenciação, de sepa- recem nos videoclipes, encontram-se o pa-
ração, mas também de aproximação com o rkour, o hip hop, o funk carioca, o basquete
outro. Segundo Marcel Mauss (1985), ele se e o “foot de rue” – formas contemporâneas
constitui tanto pelas técnicas corporais como de interação/comunicação entre os jovens no
pela expressão da subjetividade. Assim como meio urbano. Tais formas supõem técnicas
os adornos, as roupas, os acessórios, a maquia- corporais, treinamentos, práticas, mas tam-
gem e tudo o que se pode vestir, o corpo pode bém, um conjunto de regras estabelecidas
igualmente estar na moda, reproduzir modelos pelo grupo social, pelos participantes.
desejados ou se diferenciar de normas social- Assim, mesmo que busquem expressar
mente reconhecidas, recusando os modelos. transgressão, na medida em que revelam o
Assim, lugar ao mesmo tempo de disci- domínio de todas essas técnicas e das “re-
plina e de transgressão, o corpo constitui o gras do jogo”, os corpos jovens em exibição
suporte de diferentes linguagens não-verbais de manifestações corporais se mostram, em
e é um elemento importante na construção certo sentido, corpos dóceis, objetos sociais
da identidade do homem urbano contempo- – como conceituou Michel Foucault (1989).
râneo. Como observou Oliveira, em trabalho Eles precisam se exercitar, se disciplinar, cor-
de pesquisa sobre jovens em São Paulo, “a rer risco físico para fazer o parkour, para sal-
moda e o corpo, especialmente nas culturas tar de skate ou para dançar o break com vir-
juvenis, apresentam-se como peças-chave tuosismo. Cabe aqui o sentido apresentado
nas construções identitárias” (2007:77). por Foucault para o corpo docilizado, aquele
Logo, apresentam-se como elementos para a que se encontra “en position d’instrument
construção da alteridade (o distinguir-se de ou d’intermédiaire” (1975:16) para um ou-
outros) e do pertencimento (o assemelhar- tro fim; um corpo que se manipula, se mo-
se a outros) a um grupo, a um estilo. Distin- dela, que obedece, responde, se torna hábil
guir-se e assemelhar-se corporalmente, em ou multiplica sua força (1975). Esses corpos
termos de gestos codificados e de indumen- exercitados, tatuados, marcados seriam, nes-
tária passa a ser fundamental. sa concepção, corpos dóceis porque social-
Em um universo de cultura de massa, os mente construídos para cumprir algumas
corpos são largamente explorados justamen- finalidades, corpos úteis, embora sua fina-
te porque representam, indicam visualmente lidade aqui seja integrar-se e identificar-se
pertencimentos, alteridades, origens, aspira- com um grupo e não tornar-se produtivo do
ções. Na publicidade, no cinema, nas histó- ponto de vista econômico.

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Retomando o clipe e pensando sobre os clipe hoje se tornou portátil, logo, um supor-
artistas que na tela representam corpos de te expressivo singular com uma nova dinâ-
jovens urbanos, pode-se também pensar que mica de circulação. E mais: o clipe tem uma
esses “atores” seriam como uma espécie de duração curta: cerca de três minutos – o que
corpo dócil. Tais artistas/trabalhadores re- é compatível com a velocidade da vida urba-
criam, representam nos filmes musicados os na contemporânea, com um público de aten-
corpos dos jovens do espaço público urbano ção desdobrada em muitos outros estímulos
– docilizam, disciplinam, treinam seus cor- urbanos.
pos para representar.

Nos videoclipes O clipe hoje


Nesse contexto de cidades e corpos com- se tornou portátil,
plexos que se afetam mutualmente, os meios logo, um suporte
de comunicação de massa, através de sua expressivo singular
produção simbólica, se tornam uma das com uma nova
esferas que confere um reconhecimento às dinâmica de
“novas” manifestações corporais urbanas. circulação
Vários veículos e formatos de mídia voltados
para a juventude se apropriam dessas ma-
nifestações culturais criativas e as transfor-
mam, deslocando-as de seu contexto crítico A “evolução” dos clipes os aproximou de
ou transgressor original. Tornam-se inter- equipamentos e recursos digitais. A Internet
mediários plenos de intenção entre a dança, continua um meio de promoção para gru-
os esportes, as condutas de risco e um públi- pos comerciais, mas também abriu espaço
co sentado diante da tela da televisão ou do para a possibilidade de difusão da produção
computador. de “anônimos” acessíveis em sites como You-
Assim sendo, a representação dos jovens, Tube, Dailymotion e MySpace. Desse modo,
de seus corpos e de suas danças pelos meios os sites podem também fornecer espaço para
de comunicação não resume totalmente ou a criação não-comercial de fãs e amadores.
fielmente os sentidos dos quais a cidade é A tecnologia mais acessível permite a cada
produtora - mas pode dar uma ideia de como um produzir sua própria versão dos clipes,
alguns jovens e suas questões são vistos. conhecida em inglês como spoof. Os espaços
Nos videoclipes, filmes curtos, híbridos para comentários permitem acompanhar a
de música e imagem, veiculados em princí- repercussão do conteúdo “postado”.
pio para divulgar uma canção ou um grupo, No formato comercial – aquele da “espiral
as imagens se enquadram em diversos crité- repetitiva que caracteriza as programações
rios: estéticos, comerciais, de moda, artísti- das rádios e das TVs especializadas em vide-
cos. Há uma espécie de negociação entre os oclipes” (Janotti Jr, 2006:36) – assim como
diversos discursos até o produto final: o cli- nos formatos alternativos, os clipes apresen-
pe pronto para ser visto pela televisão, pelo tam música, dança e corpos exprimindo uma
computador, pelo celular, pelos computado- época, diferentes valores, visões de mundo e
res portáteis ou ainda pelas tablettes tactiles traços de identidade. Na maior parte desses
web como Ipad. filmes curtos o personagem principal é a ju-
Essa característica flexível do clipe faz ventude – em diferentes representações.
dele um formato interessante: do cinema à Isso dito, tomando como perspectiva o
televisão, da TV à Internet e aos aparelhos corpo em movimento coreografado, reitera-
portáteis do tipo Ipod, Ipad, smartphones. O mos que consideramos a música como um

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dos elementos dos videoclipes e não o único nita, da natureza, do Sol, de um céu azul e
ou o principal. Como lembra Sibony (1995), de um corpo feminino que dança (n)essa
o corpo nunca nos deixou, ele sempre esteve bela paisagem. Esse Rio de Janeiro sonhado
presente em todos os lugares – embora pos- é coerente, em termos de representação, com
samos acrescentar que mesmo assim, às ve- um corpo feliz, que sorri afetado por esse en-
zes é preciso procurar por ele, colocado que torno, por um samba bossa contemporâneo.
é em segundo plano. Se essa alegria, esse amor dos quais tratam a
canção, fossem cantados e dançados no Cen-
tro de negócios da cidade, o resultado seria
diferente. Do mesmo modo, se fossem can-
As técnicas corporais tados e dançados em um bairro pobre, não-
permitem utilizar urbanizado, em uma favela, a leitura seria
diferentemente um diferente.
espaço criado para Nessa perspectiva, esse clipe mostra, de
um determinado fim, um certo modo, uma maneira pela qual a ci-
ou seja, recriar o uso dade ou o forte imaginário sobre ela afetam
inicial daquele espaço um corpo representado em um meio de co-
municação. O Rio de Janeiro aqui é aquele da
“cidade-maravilhosa, cheia de encantos mil”
e não o dos problemas sociais, da violência
Os movimentos corporais apresentados urbana, do bonde de Santa Teresa que tomba
nos clipes estudados aparecem como eventos e mata moradores e turistas. O corpo femini-
culturais urbanos contemporâneos, imagens no que dança essa parte da cidade, o faz com
de um universo plural e complexo no qual prazer. O clipe não precisa de uma história,
as abordagens estéticas revelam diversas con-
de uma narrativa para contar a alegria femi-
cepções ou “modos de vida” que exprimem
nina cantada.
as diferenças de sensibilidade e de perten-
Se a natureza e a beleza da paisagem po-
cimento (Simmel, 2007). A análise desses
dem aparecer em um clipe musical repre-
movimentos como reflexo da organização
sentando uma cidade, o concreto, os prédios
social permite situar a juventude na cultura
altos e vigiados que fazem parte dos espaços
de massa revelando suas estruturas, valores,
urbanos, também podem fazê-lo. Assim, a
hierarquias e relações de gênero.
ideia de um corpo afetado pela cidade pode
Uma seleção de clipes brasileiros e fran-
ceses nos permite observar os corpos jovens ser observada também no clipe francês Virer
em sua relação com as cidades nas quais são le monde à l’envers, do grupo Les respectables.
mostrados. Paris assim como o Rio de Janeiro, Nesse filme o que é mostrado é uma cidade de
é frequentemente o cenário de narrativas ou concreto, dura, com grandes edifícios e uma
colagens de imagens construídas nos clipes. polícia presente que regula o uso dos espaços.
As representações das cidades, assim como as A técnica do parkour usada por um grupo de
dos jovens nos clipes, são inúmeras – muito jovens para se locomover nessa cidade aqui
embora algumas sejam bastantes recorrentes. representa a transgressão e o risco em forma
Neste texto não exploramos todo esse poten- de movimento. Tal parkour, nascido de um
cial por ser necessário um recorte, mas apre- princípio urbano e militar, não poderia ser
sentamos um olhar sobre quatro clipes – dois executado na praia ou em uma paisagem de
brasileiros e dois franceses - que se mostraram floresta e de montanha. É a cidade que permi-
“bons para pensar” a juventude na cidade. te e faz possíveis tais movimentos.
No clipe Num corpo só, da cantora Ma- Na história mostrada, o parkour serve para
ria Rita, vemos imagens de uma cidade bo- provocar o vigilante, para deixar um convite

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para a menina bonita, para ir à festa e, final- No primeiro exemplo francês a cidade
mente, para fugir da polícia que reprime a festa. também é espaço de concreto para praticar
Desse modo, nota-se que o espaço cons- o parkour. Em um segundo exemplo, Paris
truído afeta o movimento feito. A observação aparece no clipe da canção Superficiel, do
mais interessante aqui é que as sociedades, grupo Enhancer. Agora a ironia, talvez uma
as culturas, constroem o espaço das cidades crítica, predomina no olhar sobre um grupo
e, posteriormente, as cidades vão provocar de jovens que se diverte, que exalta o “estar
uma adaptação dos movimentos humanos, junto”, o hedonismo durante a rotina do fim
das técnicas corporais: afinal, caminhar em de semana.
calçadas de concreto é diferente de caminhar Nesse filme curto, rapazes e moças são
na areia da praia ou na terra batida. Mas, de mostrados reunidos por gênero durante o
todo modo, sempre haverá alguns espaços dia, quando se preparam para a noite de festa
para trangredir as regras que o urbanismo e e para os encontros com o sexo oposto. Os
seus técnicos ou especialistas vão impor. corpos são mostrados em relação com o con-
As técnicas corporais permitem utilizar sumo, o hedonismo, a festa, a dança, o álcool,
diferentemente um espaço criado para um a droga e, enfim, o sexo. Ao final, a amnésia
determinado fim, ou seja, recriar o uso ini- provocada pela mistura permite recomeçar
cial daquele espaço. No clipe O jogo virou, tudo no fim de semana seguinte. Os afetos, os
do grupo brasileiro Strike, a temática explo- riscos, as dores são esquecidos, então pode-
rada é a liberdade, o estar-junto, em grupo se recomeçar do zero. É a cidade, com seus
masculino, no espaço urbano. Os corpos em enormes edifícios de habitações sociais (as ci-
cena são mostrados em imagens ligadas ao tés), as ruas e seus comércios, as boates notur-
skate, ao grafitti e a um gestual codificado. nas que permitem esse ambiente de eferves-
A cidade é mais uma vez o Rio de Janeiro, cência, de busca intensa de prazeres durante
em lugares pouco turísticos, espaços coti- a pausa semanal. O fim de semana é, nesse
dianos e cheios de concreto - Praça Mauá, contexto, tempo de excesso, de transgressão.
Praça XV, Zona Portuária, Catumbi, Aterro
do Flamengo. Nesses lugares não é possível Considerações finais
dançar a bossa como ela foi dançada no pri- Os videoclipes “falam” de sociedades re-
meiro clipe citado. Não há natureza, cená- ais, reapresentadas pelos meios de comuni-
rio idílico, mas o concreto, o desafio urba- cação e suas mediações. Enquanto analistas,
no, masculino. nosso exercício é interpretar, buscar compre-
Observa-se, então que enquanto o clipe ender essas sociedades recriadas nos clipes e
de Maria Rita mostra um Rio - paisagem seus jovens. Assim fazendo, estamos, em cer-
natural, o clipe do Strike mostra um Rio – ta medida, buscando entender a sociedade
cidade de concreto. Nesse clipe, como no pri- “fora do clipe”.
meiro citado, não há uma história contada. Dessa forma, como a cidade aparece nos
Aqui há imagens cortadas, tomadas notur- corpos jovens masculinos e femininos repre-
nas e diurnas de lugares que não fazem parte sentados nos videoclipes? Que marcas a ci-
da maior parte dos circuitos turísticos, mas dade deixaria nos corpos desses jovens? No
que podem ser identificados. Como no clipe clipe de Num corpo só, o corpo da cantora é
francês, observa-se um universo jovem urba- marcado por uma cidade maravilhosamente
no masculino. Não há espaço para moças no imaginada, sem contradições, sem miséria.
filme, dando margem a pensar que onde há São movimentos de uma dança feliz, femi-
concreto, noite, skate, um gestual específico nina que mesmo que fosse exibida sem a
e codificado, não há espaço para o feminino. canção, apresentaria uma cidade-paisagem
Essa é uma representação da cidade-homem. “natural” e exuberante.

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Como contraste, o clipe francês Virer le bém são construídos a partir desses contatos
monde à l’envers mostra uma cidade em sua e dessas influências múltiplas que se cruzam
arquitetura de concreto, com sistemas de vi- nas cidades.
gilância e polícia. Ali, a movimentação tem Contudo, tais corpos jovens apresentados
que ser a da técnica militar do parkour – para nos clipes não se tornam urbanos apenas
saltar muros e escalar paredes, passar por por serem apresentados em espaços de cida-
cima de carros e escapar do controle. Uma de. Eles podem ser identificados dessa for-
movimentação transgressora para fugir da ma porque foram treinados, se exercitaram
vigilância constante. Corpos masculinos, ou adotaram posturas e técnicas corporais
aprendidas com determinados grupos so-
fortes e exercitados compõem a cena.
ciais urbanos – aquilo que Maffesoli (2000)
Nessa perspectiva, se entendemos o vide-
chamaria de “neotribos urbanas”. Nesses
oclipe como um evento midiático, expressão
grupos sociais os jovens reafirmam papéis,
de um certo caráter urbano, constatamos transgridem normas, disciplinam-se em re-
que ele reflete algumas marcas das cidades, lação a outras regras, usam seus corpos para
influências que se desenvolvem e circulam. exprimir tudo isso e, enfim, constroem suas
Os corpos jovens que aparecem nos clipes, identidades enquanto grupo urbano.
os movimentos e danças que adotam tam- (artigo recebido set.2011/ aprovado fev.2012)

Referências

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Líbero – São Paulo – v. 15, n. 29, p. 51-58, jun. de 2012


Denise Oliveira Siqueira – Juventudes e cidades no videoclipe: o corpo como foco

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