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Nelson Rodrigues

Se me perguntassem qual a mais feia impos-


tura da nossa época, eu daria a seguinte e fulmi-
nante resposta: — é a cínica promoção que se faz
do jovem. Não há mais, como no passado, o con-
flito das gerações. Até os velhinhos nostálgicos, es-
pectrais, da porta da Colombo, adulam a juven-
tude. E, ainda ontem, um rapaz da PUC bate o te-
lefone para mim. Atendo e sou interpelado: — “O
senhor é contra o jovem?”.
Ao ouvir falar em “o jovem”, respondi, com
a mais singela e casta boa-fé: — “Nem conheço”.
Realmente, não conheço “o jovem”, como não co-
nheço “o artista”, como não conheço “o judeu”.
Foi a Bernard Shaw, parece, que perguntaram so-
bre a multidão. Uma pergunta idiota, mais ou me-
nos assim: — “Que é que o senhor acha da multi-
dão?”. E ele retrucou: — “Gosto ou desgosto de
quem tem uma cara só”.
Aliás, não tem nenhuma e, repito, a multidão
não tem cara. Volto ao telefonema. O rapaz não

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gostou de minha resposta: — “O senhor está so-
fismando”, resmungou. E então, eu, com urbani-
dade, paciência, comecei: — “Se estou sofismando,
vamos lá”. Perguntei-lhe pela cara, endereço e do-
micílio de “o jovem”. O rapaz zangou-se de vez.
Disse: — “O senhor é um velho!”. Eu ia respon-
der-lhe que sou realmente uma múmia, quando ele
bateu com o telefone.
E eu, numa cava depressão, vim para a má-
quina escrever estas notas. Se bem entendi, a ori-
gem do telefonema é um episódio que contei há
três ou quatro dias. Se vocês não se lembram,
conto outra vez. Foi o caso de um padre progres-
sista que resolveu — como direi? — atualizar Vir-
gem Maria e Jesus. Hoje em dia, tudo é “pra
frente”. Ama-se “pra frente”, trai-se “pra frente”,
mata-se “pra frente” etc. etc. E o padre imaginou
também um Nosso Senhor “pra frente”,
E, no primeiro sermão, saiu-se com esta: —
“Virgem Maria, a mãe do jovem Salvador”. O to-
que promocional lhe pareceu da maior eficácia. O

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papel de puro e simples “Salvador” não bastava. A
época exige a certidão de idade. E assim se insi-
nuou a imagem de um Cristo “pra frente”.
Falei do “jovem” telefonema para chegar ao
“jovem” teatro. Há, por aí, um “jovem” autor, o
Plínio Marcos, que está fazendo um sucesso ultra-
jante. No momento, não há teatro que não o es-
teja representando. É um nome obsessivo, já irres-
pirável. Com uma fecundidade de Dumas pai aca-
bará milionário, se os colegas não o liquidarem.
Disse eu que o brasileiro é um pobre ser,
crispado de humildade. Bem. Já faço uma ressalva:
— essa humildade pára no autor teatral. Portanto,
a verdade retificada é a seguinte: — somos todos
humildes, menos o autor teatral. Este não o é ja-
mais. O sujeito que, aqui, faz uma peça é capaz de
tudo. Toma-se de uma autopaixão, de um narci-
sismo homicida. Mas eu nada objetaria ao narci-
sismo ou à autopaixão. Para mim, tanto faz que um
brasileiro viva a lamber a própria imagem com un-
ção inaudita.

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O diabo é que o nosso autor quer ser o
único. Basta repassar a carreira do jovem Plínio
Marcos. (Não tão jovem porque já fez os 32.) Sua
história e sua lenda lembram as de Knut Hansum.
Também Plínio Marcos foi tudo: — baleiro, ca-
melô, palhaço, faxineiro, garçom, tudo. E acabou
no Teatro de Arena de São Paulo. Ah, vocês não
imaginam a ênfase do Teatro de Arena. Qualquer
bate-papo, lá, chama-se “laboratório”; outro bate-
papo é “seminário”. E, em cada metro quadrado,
há um autor.
Plínio Marcos passou, no Teatro de Arena,
meses, anos. Não saía de lá. Conversou mil vezes
com Augusto Boal, com Guarnieri; e com os ou-
tros. Todos o viam com os flancos abarrotados de
fecundidade. Ele faz, a bem dizer, uma peça por dia.
Pois essa abundância autoral causava, no Teatro de
Arena, o maior desgosto e nojo. Jamais Augusto
Boal ou Guarnieri foi dizer ao pobre Plínio: — “Va-
mos te montar” (a frase saiu-me horrível).
Se o não tão jovem autor ainda lá estivesse,

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continuaria virginalmente inédito. Sim, não teria
uma vírgula encenada. Até que, um dia, apanhou
um original seu e foi representá-lo num boteco. E
o público de paus-d’água, gigolôs, contrabandistas
e senhoras indignas foi muito mais generoso e so-
lidário do que o Teatro de Arena. Ali, começou a
glória.
E explodiu, por toda a parte, a presença de
Plínio Marcos. Eis o que eu queria dizer: — a as-
censão só foi possível pela surpresa. O Teatro de
Arena sabia do seu talento e preparou a resistên-
cia inexpugnável. Os outros, não. O talento do ra-
paz apanhou todo o mundo indefeso. E não foi só
a glória. Dinheiro, também. Ainda sábado o dra-
maturgo recebia, do governador da Guanabara,
um cheque de quatro mil cruzeiros novos. Por
toda a parte, os milhões o atropelam.
É demais. No momento, lavram, no Brasil,
duas indignações soberbas: — uma é o ordenado
do Chacrinha. Assim somos nós. Nenhum brasi-
leiro, vivo ou morto, está disposto a admitir que

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outro brasileiro ganhe, por mês, oitenta milhões.
A outra indignação é a presença numerosa de Plí-
nio Marcos no teatro nacional. O homem está fa-
turando em todas as bilheterias. Dirá algum espí-
rito estreita e amargamente positivo: — “É o pala-
vrão”.
Não sei, nem conheço a influência do pala-
vrão nas leis do sucesso. Admito que seja esse um
dos fatores e explico. Nunca se viu uma época
mais pornográfica do que a nossa. Aconteceu uma
com um amigo meu que considero extremamente
simbólica. O meu amigo, já quarentão, apaixonou-
se por uma menina de 21. Menina “pra frente”,
claro. Podemos imaginar a truculência das paixões
tardias. E o meu amigo ia largar família, tudo; fugi-
ria de carruagem como nos folhetins de Ponson
Du Terrail. Até que, um dia, vai-se encontrar com
a bem-amada; ela não lhe disse nem “oba”. Sem
que, nem para que, a troco de nada, recebe-o com
uma saraivada de palavrões jamais concebidos.
Meu amigo rebentou em soluços. Sentado no

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meio-fio, chorava de se ouvir no fim da rua.
A indignação contra Plínio Marcos já se orga-
niza. Vão queimá-lo. Anteontem, um crítico foi
procurar o produtor Ginaldo de Sousa: — “Você
vai levar o Plínio Marcos?”. Resposta: — “Vou”. O
crítico só faltou trepar na mesa e fazer um comí-
cio: — “Não faça isso! O Plínio Marcos já en-
cheu!”. E repetia: — “Não tem mais nada que di-
zer! Está obsoleto! Não percebe que o Plínio Mar-
cos está obsoleto?”. Por coincidência, pouco de-
pois entra lá o próprio Plínio Marcos. Começa
uma discussão com o crítico. E o autor põe-se a
berrar: — “Pois fique sabendo que não faço peça
para meia dúzia. Vou sair dos teatros para os cam-
pos de futebol. Quero representar para duzentas
mil pessoas!”. E, ao vociferar tudo isso, Plínio Mar-
cos atirava patadas como num espasmo mediú-
nico.

[O GLOBO, 24/1/1968]

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