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RODRIGUES, Nelson Grande Dor Não Se Assoa PDF
RODRIGUES, Nelson Grande Dor Não Se Assoa PDF
A GRANDE DOR
NÃO SE ASSOA
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A grande dor não se assoa. Eis uma verdade eterna. Não se assoa.
Falei, no capítulo anterior, da senhora do Lemos ou, como era mais
conhecido, “Lemos Bexiga”. Com frenética e acrobática agilidade, deu um
pulo impossível e caiu montada, solidamente montada, no caixão. Mas não
é bem isso que eu queria dizer. O que eu queria dizer é que, da morte do
Lemos até o fim do velório, ela não usou lenço uma única e escassa vez. Há
também um pranto nasal. E a coriza da viuvez muito chorada costuma ser
inestancável. Pois bem. E quando algum imprudente queria oferecer-lhe um
lenço, a viúva tinha repelões selvagens. Parecia-lhe que o simples fato de
assoar-se seria uma desfeita ao marido morto.
Mas coisa curiosa e, ao mesmo tempo, confrangedora. Ao descrever
essa viuvez acrobática que pula num caixão, e o cavalga, dou-me conta de
que, sem o querer, estou apresentando uma dor caricatural. De mais a mais,
para exasperar o impacto humorístico, a senhora do Lemos era uma gorda.
(As vizinhas da minha infância eram fatalmente gordas.) Eis o que me
pergunto, com justo pânico: — não estarei fazendo um involuntário
deboche?
Nem tanto, nem tanto e pelo contrário. Acaba de me ocorrer uma
verdade realmente patética: — a grande dor não só não se assoa, como é
humorística. O meu amigo Hugo Cota dos Santos dá-me, a propósito, um
testemunho altamente válido. Durante muitos anos, foi ele — e não sei se
ainda o é — cirurgião do Pronto-Socorro. Um cirurgião do Pronto-Socorro
vê tudo e faz tudo. A toda hora, chegava um crioulão de barriga estourada.
Por vezes, o nosso Hugo fazia milagres deslavados. Assim aprendeu que a
verdadeira dor tem de ser humorística. O Hugo viu coisas assim: —
chegava um acidentado. Era um rapaz, ou uma menina, ou a noiva de não
sei quem, ou a mãe de Fulano. A vítima está na mesa. Não há, a bem dizer,
um osso intato. Tudo é fratura. Os vasos explodem. O sangue esguicha. No
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