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Nelson Rodrigues

A GRANDE DOR
NÃO SE ASSOA
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A grande dor não se assoa. Eis uma verdade eterna. Não se assoa.
Falei, no capítulo anterior, da senhora do Lemos ou, como era mais
conhecido, “Lemos Bexiga”. Com frenética e acrobática agilidade, deu um
pulo impossível e caiu montada, solidamente montada, no caixão. Mas não
é bem isso que eu queria dizer. O que eu queria dizer é que, da morte do
Lemos até o fim do velório, ela não usou lenço uma única e escassa vez. Há
também um pranto nasal. E a coriza da viuvez muito chorada costuma ser
inestancável. Pois bem. E quando algum imprudente queria oferecer-lhe um
lenço, a viúva tinha repelões selvagens. Parecia-lhe que o simples fato de
assoar-se seria uma desfeita ao marido morto.
Mas coisa curiosa e, ao mesmo tempo, confrangedora. Ao descrever
essa viuvez acrobática que pula num caixão, e o cavalga, dou-me conta de
que, sem o querer, estou apresentando uma dor caricatural. De mais a mais,
para exasperar o impacto humorístico, a senhora do Lemos era uma gorda.
(As vizinhas da minha infância eram fatalmente gordas.) Eis o que me
pergunto, com justo pânico: — não estarei fazendo um involuntário
deboche?
Nem tanto, nem tanto e pelo contrário. Acaba de me ocorrer uma
verdade realmente patética: — a grande dor não só não se assoa, como é
humorística. O meu amigo Hugo Cota dos Santos dá-me, a propósito, um
testemunho altamente válido. Durante muitos anos, foi ele — e não sei se
ainda o é — cirurgião do Pronto-Socorro. Um cirurgião do Pronto-Socorro
vê tudo e faz tudo. A toda hora, chegava um crioulão de barriga estourada.
Por vezes, o nosso Hugo fazia milagres deslavados. Assim aprendeu que a
verdadeira dor tem de ser humorística. O Hugo viu coisas assim: —
chegava um acidentado. Era um rapaz, ou uma menina, ou a noiva de não
sei quem, ou a mãe de Fulano. A vítima está na mesa. Não há, a bem dizer,
um osso intato. Tudo é fratura. Os vasos explodem. O sangue esguicha. No
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corredor, amontoam-se os parentes, os vizinhos, amigos, o diabo. Até que o


cirurgião pára. Ali, nem milagre. E agora é dar a notícia à família, que
espera do lado de fora.
Nem é preciso dizer. De repente, todos sabem. Sabem antes da
notícia. Morreu, morreu e pronto. O dr. Hugo viu a mesma cena duzentas
vezes. As grandes dores se parecem e têm o mesmo repertório de gemidos,
uivos, caras, gestos, fúrias e blasfêmias. O meu amigo conta a morte de um
menino atropelado. Uns vinte parentes no corredor. Quando o dr. Hugo
apareceu, vê esta coisa: — mãe, tias, irmãos, cunhadas, dançavam,
simplesmente dançavam. E, então, o médico descobriu tudo. A grande dor
— a dor sem consolo terreno — dança mambo. Era exatamente mambo. As
pessoas pulavam, chocalhavam, tinham espasmos de mambo.
Portanto, a senhora do “Lemos Bexiga” estava humoristicamente
certa quando repudiava os lenços e quando montava, fisicamente, no
caixão.
Bem. Agora vou tratar da carta do Otto e de suas relações com a
velhíssima dor humana. Antes, porém, quero referir um outro episódio que
me marcou para o resto da vida. Foi quando verifiquei o seguinte: — o ser
humano, tal como o imaginamos, não existe. Imaginem vocês que, há
quatro ou cinco anos, fazia eu diariamente, na televisão, um programa
assim chamado: — A Figura do Dia. A “figura” tanto podia ser uma pessoa
como um fato. E, certa vez, “a figura do dia” foi um noivo que acabava de
ser assassinado na Argentina. O telegrama dava conta de tudo e chegava ao
requinte da minúcia hedionda. “Bom assunto, bom assunto”, pensei eu.
Diante das câmaras e dos refletores, e falando para umas seiscentas
mil pessoas, contei tudo. Vamos ao fato. Certa família de lá celebrou, com
um jantar, o noivado da filha única. Sentou-se o noivo, ao lado da menina,
numa mesa patriarcal. Presentes o pai da moça, a mãe, os irmãos e só.
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Pratos na mesa, talheres. E nada de comida. Dez minutos, quinze, vinte. E,


então, ergue-se o dono da casa. Diz: — “Não há comida. Portanto, um de
nós será servido”. Os presentes riram; mas a fome era uma realidade. Tudo
aconteceu numa progressão fulminante. Veio alguém por trás do noivo e
deu-lhe uma cacetada de pôr abaixo um edifício. O rapaz morreu na hora,
sem um suspiro. Estava morto. E, então, toda a família, inclusive a noiva,
caiu sobre o corpo. Em quarenta minutos, o rapaz foi devorado. Nem os
sapatos sobreviveram. Era o horror indubitável, inédito, jamais concebido
por Edgar Allan/Poe. E, no entanto, vejam vocês: — eu contava a história
e, já no meio, começou o riso. Quando a vítima levou a cacetada, o estúdio
foi varrido por uma gargalhada universal. Riam o câmara, o contra-regra, o
acendedor de refletores, o faxineiro, todo o pessoal da técnica. Isso na
própria estação. Lá fora, nem se fala. Seiscentos mil telespectadores
esganiçavam a própria gargalhada. Nunca se riu tanto numa cidade.
Tudo por quê? Era o horror e, ao mesmo tempo, não havia horror
nenhum. E, de repente, eu próprio achava engraçadíssimo o horror.
Lembro-me da cena final que descrevi, sem lhe tirar um miserável detalhe:
— a noiva, atracada ao calçado da vítima, chupando-lhe os cordões dos
sapatos como aspargos. Conheço uma senhora que ouviu o referido
programa. Não há em toda a sua família um único caso de asma. Pois ela
apanhou asma de tanto rir nessa noite.
Volto, finalmente, à carta do Otto. Não queria que o meu amigo
desse, sobre o Guimarães Rosa, um testemunho de admirador. As
admirações são pérfidas e, via de regra, escondem o nosso ressentimento e
a nossa impotência. O Otto devia esquecer o grande homem. O morto é o
contínuo, o profundo contínuo, o contínuo total. Não, não. O morto é o
“Lemos Bexiga”, e como tal deve ser amado e chorado.
Mas, em toda a sua carta, o Guimarães Rosa é apenas o grande
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homem. O ficcionista está solene, hierático, como um mordomo de filme. E


realmente o Otto o admira, sem realmente chorá-lo. Na véspera de partir
para Lisboa, ele trancou-se no banheiro do Hélio Pellegrino. E, lá, num
espasmo total de solidão, chorou como nunca. Na frente do Hélio ele
dançou mambo de dor. E não se assoou. Aí é que está: — até a última
lágrima, não aceitou nenhum lenço.
Li toda a carta e a reli. A admiração lá estava, perfeita, irretocável.
Mas repito: — em nenhum momento, o Guimarães Rosa foi, para o Otto,
um doce e irremediável “Lemos Bexiga”. Guardei no envelope a carta com
toda a sua deliciosa afetação do sotaque lisboeta. E, então, comecei a
pensar em Lili. Sim, Lili, a paixão de tantos.
[O GLOBO, 11/12/1967]

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