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CONTEMPORÂNEO ENSINO E PESQUISA

PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA


ANDERSON FRANCISCO DOS SANTOS

A CÂMARA CLARA – ROLAND BARTHES

Roland Barthes foi um filósofo e escritor francês que se tornou referência na aplicação do
método semiológico na análise de obras literárias. Representante do Estruturalismo e
Pós-estruturalismo francês, contribuiu imensamente para o desenvolvimento da semiótica.
Influenciado por Saussure, foi contemporâneo de pensadores como Lacan e Foucault.
Entre suas obras, destacam-se Mitologias, Fragmentos de um discurso amoroso, O grau
zero da escrita e A câmara clara, objeto do presente trabalho.
A câmara clara foi o último livro publicado por Roland Barthes antes de sua morte. Obra
da maturidade do autor, o texto foi uma encomenda para os Cahiers du cinéma que,
originalmente, deveria falar sobre cinema. Barthes, porém, recusou-se alegando que não
tinha nada a dizer sobre cinema, mas sobre fotografia. Ele redige, então, 48 fragmentos
durante um período de exatamente 48 dias, entre abril e junho de 1979. Dividido em duas
partes, simétricas quanto à quantidade de capítulos, e cotejado com diversas fotografias,
objetos de análise por parte de Barthes, o livro tem um tom ora meditativo, ora intimista
como se estivéssemos lendo um diário, o que frustra quem procura na obra um tratado ou
uma teoria sobre a fotografia. Devido à estrutura fragmentária do texto, é difícil
estabelecer uma continuidade textual linear. Barthes dá voltas, parece desviar-se às
vezes, mas se mantém fiel ao “desejo ontológico” que o questiona sobre a essência da
Fotografia, e é justamente essa fidelidade que dá unidade ao texto. Nessa busca para
responder à pergunta sobre o que a Fotografia é “em si”, diversas fotografias são
analisadas no livro, mas é uma foto de sua mãe ainda criança que se revela como o “fio
de Ariadne” capaz de salvá-lo não de um labirinto, mas da “imensa desordem dos objetos
– de todos os objetos do mundo”, onde se encontra a Fotografia. Na primeira parte,
tomamos contato com dois conceitos fundamentais na obra barthesiana: punctum e
studium. O punctum pode ser definida como uma força que, partindo da fotografia, fala
diretamente à subjetividade daquele que a observa, ferindo-o sem que o desavisado
observador saiba como ou por que. O studium, por sua vez, está ligado à cultura de uma
maneira geral. É o campo vasto do interesse descompromissado. Os conceitos estão
entrelaçados e aparecem ao longo do texto de forma fluida sem, no entanto, perder sua
consistência. É a partir do punctum, por exemplo, que Barthes faz a transição entre a
primeira e a segunda partes do livro. Através do desdobramento do conceito, o filósofo
liga-se ao referente fotografado como que a uma presença. Na segunda parte do livro, o
autor se debruça sobre uma fotografia específica: um retrato de sua mãe ainda jovem.
Barthes vive o luto da perda recente da mãe e não o renunciará em sua reflexão sobre a
Fotografia. O texto barthesiano é um exercício do olhar. Não de um olhar idealizado,
abstrato, mas com sua própria história, suas angústias e dores. Por isso não permite ao
leitor o acesse à fotografia de sua mãe. O afeto que move seu olhar não é compartilhado
por mais ninguém além dele. A ferida causada pelo punctum é uma ferida só sua.
Barthes deseja formular uma ontologia da Fotografia. Quer saber o que ela é “em si”, qual
sua essência. Mas logo parece abandonar a tarefa. O autor reconhece que seja lícito falar
de uma foto, de determinada foto, mas “improvável falar da Fotografia”. Ao tentar
classificá-la, num primeiro passo na tentativa de constituir um corpus, Barthes sente a
dificuldade em meio a certa desordem: “a Fotografia é inclassificável”, afirma ele. Tomado
por esse “desejo ontológico” com relação à Fotografia e, ao mesmo tempo, reconhecendo
certa impossibilidade de realizar essa ontologia, Barthes reconhece-se um sujeito dividido
entre duas linguagens: uma expressiva, outra crítica. De que maneira, portanto, a
Fotografia é abordada por Barthes? O próprio filósofo revela certa aversão por
abordagens sociológicas ou técnicas da Fotografia. Essas abordagens parecem não lhe
dizer nada: “constatava com desagrado que nenhum [livro sobre fotografia] me falava com
justeza das fotos que me interessam, as que me dão prazer ou emoção”. Ou ainda: “que
tinha eu a ver com as regras de composição da paisagem fotográfica, ou, no outro
extremo, com a Fotografia como rito familiar?”. Adotando como princípio heurístico sua
própria singularidade, Barthes toma a emoção como ponto de partida para sua reflexão e
se coloca ele próprio como mediador na busca pelo universal que fundamenta toda
Fotografia.
Na primeira parte do texto, Barthes relaciona a Fotografia a três práticas, que ele também
chama de emoções ou intenções. A cada uma dessas práticas ele associa um sujeito.
Dessa maneira, à primeira prática – o fazer –, Barthes nomeia como sujeito o Operatur, o
Fotógrafo. Roland Barthes não procura questionar a prática do Operatur porque, segundo
ele, esta lhe estava barrada: “não sou fotógrafo, sequer amador”. Apenas faz algumas
suposições a respeito da relação entre esse fazer e alguns aspectos técnicos e até
mesmo químico-físicos da fotografia. O filósofo tem, portanto, à sua disposição apenas
duas experiências: “a do sujeito olhado e a do sujeito que olha”. Àquele que é fotografado,
Barthes associa a prática/emoção/intenção do suportar. Ele é o “alvo”, o “referente”, uma
espécie de “pequeno simulacro, de eídolon emitido pelo objeto” a que Barthes chamará
de Spectrum da Fotografia devido a uma ligação etimológica com a palavra “espetáculo”.
O Spectrum, segundo o semiólogo francês, evoca ainda algo de terrível que ele percebe
em toda fotografia: a volta do morto. Uma vez que Barthes tem como guia a própria
consciência da comoção, ele mesmo se toma como exemplo de sujeito a ser fotografado,
um sujeito consciente de que está sendo fotografado. Por essa razão, ao colocar-se
diante da objetiva, tudo muda: “a partir do momento que me sinto olhado pela objetiva,
tudo muda: ponho-me a ‘posar’, fabrico-me instantaneamente um outro corpo,
metamorfoseio-me antecipadamente em imagem” Essa consciência anula qualquer
espontaneidade. Essa condição, além disso, é angustiante: uma imagem do sujeito
nascerá; uma imagem que não se sabe como será e que por isso gera angústia. Barthes
fala de uma microexperiência da morte. Não se é nem sujeito nem objeto. Aliás, o sujeito
se sente tornar-se objeto: “torno-me verdadeiramente espectro”. Finalmente, a figura do
“sujeito do fazer”, o Operatur, ressurge como aquele que deve lutar contra essa pequena
morte: “o fotógrafo tem que lutar muito para que a Fotografia não seja a Morte”. Diante
desse sentimento, Barthes afirma a irredutibilidade do indivíduo a qualquer imagem: “eu
não coincido jamais com minha imagem”.
A terceira prática relacionada por Roland Barthes à Fotografia é o olhar. O Spectatur, o
sujeito desta prática, somos todos nós que consumimos compulsoriamente, nas diversas
mídias onde são expostas, as numerosas e mais variadas fotografias. Essas fotografias –
sua abundância –, que estão por toda parte e passaram pelo filtro da cultura, provocam
em Barthes atração, júbilo e, ao mesmo tempo, indiferença, aversão e até mesmo
irritação. A Fotografia seria uma “arte pouco segura”, devido ao seu estado de desordem,
como seria também uma “ciência dos corpos desejáveis ou detestáveis”, uma vez que
todos nós possuímos uma variedade de “gostos, desgostos e indiferenças”. O que está
em questão aqui, para Barthes, é uma subjetividade fácil expressa por juízos como
“gosto” e “não gosto”. Ele quer escapar da superficialidade desse tipo de julgamento, mas
não abandonando sua individualidade. Essa individualidade, o filósofo francês incorpora
para estendê-la a uma “ciência do sujeito” que, independente de que nome receba,
escape a qualquer irredutibilidade. Barthes parte, então, de algo que ele afirma estar
certo: a atração que sentia por certas fotos. Vai questionar o que o anima, o que lhe
provoca o “estalo” diante de determinada fotografia.
Ao buscar uma explicação pelo seu interesse particular por determinadas fotos, Barthes
desenvolve os conceitos de studium e punctum. O studium, como já foi dito, está ligado à
cultura – que para Barthes, é um contrato entre seus criadores e consumidores –, à
consciência e remete a um interesse geral. O studium como parte da cultura, está unido,
também, às intenções do fotógrafo, revelando-as por vezes e permitindo que entremos
em harmonia com elas. É, igualmente, o resultado de um diálogo entre a foto e a cultura
do Spectatur, daquele que a observa: “é pelo studium que me interesso por muitas
fotografias, quer as receba como testemunhos políticos, quer as aprecie como bons
quadros históricos; pois é culturalmente […] que participo das figuras, dos gestos, dos
cenários, das ações”.
O segundo elemento, o punctum, é talvez o mais importante. Ele representa uma quebra
no studium, pois, diferentemente deste, não dialoga com o Spectatur: ele o transpassa,
fere. Esse é justamente o significado do termo latino: “ferida”, “picada”, “ponto”, “marca
deixada por um instrumento pontudo”. Essa agudeza do punctum (que traumatiza, fere),
porém, não deve se confundir com o que Barthes chama de “choque fotográfico”, que, por
revelar aquilo que estava oculto, proporciona uma gama de surpresas. O choque
fotográfico produz-se na raridade de uma foto, na proeza e contorções da técnica, na
oportunidade que permite o “achado”. O que caracteriza, enfim, o choque fotográfico é o
desafio: “o fotógrafo, como o acrobata, deve desafiar as leis do provável ou mesmo do
possível, […] deve desafiar [as leis] do interesse: a foto se torna surpreendente a partir do
momento em que não se sabe por que ela foi tirada”. Por poder ser nomeado é que o
choque fotográfico não se confunde com o punctum. Este é como um haiku,
“indesenvolvível”. No punctum “tudo está dado, sem provocar a vontade ou mesmo a
possibilidade de uma expansão retórica”. O punctum barthesiano escapa a qualquer
reflexão teórica. Não é uma elaboração racional ou estética É irredutível a qualquer
discurso teorista ou intencionalidade reflexiva: “Nenhuma cultura vem me ajudar a falar
desse sofrimento que vivo inteiramente na própria finitude da imagem”.
Barthes apresenta uma nova dimensão do punctum na segunda parte do livro. Ao
comparar cinema e Fotografia, ele observa que aquele possui um “poder” vedado a esta:
um campo cego onde o personagem, ao sair de cena, continua a viver. Ao contrário, fora
do enquadramento fotográfico, tudo morre. Os personagens estão fincados – como
borboletas por um entomologista – na Fotografia. O punctum, no entanto, cria (adivinha)
um campo cego onde os personagens passam a ter “toda uma vida exterior ao seu
retrato”. A nova dinâmica estabelecida pelo punctum, o campo cego que ele cria, liberta a
imagem da sua “prisão entomológica” lançando o desejo “para além daquilo que ela dá a
ver”. Barthes analisa uma fotografia de George W. Wilson, da rainha Vitória montada em
um cavalo tendo ao seu lado um auxiliar de kwilt segurando a rédea da montaria. Esse
auxiliar de kwilt é o punctum que lhe fere. Barthes prossegue: “se ele se pusesse de
súbito a voltear? O que aconteceria com a saia da rainha, ou seja, com sua majestade? O
punctum, fantasmaticamente, faz o personagem vitoriano [...] sair da fotografia, ele provê
essa foto de um campo cego”. O punctum, dessa forma, cria toda uma vida exterior ao
retrato. O punctum promove uma ligação, para além da imagem, com a “excelência
absoluta de um ser, alma e corpo intricados”. Há uma ligação entre a fotografia e o ser
fotografado: “o referente adere”, diz Barthes. Ele dirá ainda que a Fotografia traz consigo
o “retorno do morto”.
A câmara clara foi dedicada por Roland Barthes a Jean-Paul Sartre. Na verdade, a uma
obra de Sartre: O imaginário. Nessa obra, Sartre trata da imagem mental em oposição à
percepção. Apesar de não tratar diretamente da Fotografia, Sartre diz que ela é espécie
de um mesmo gênero, no qual inclui a imagem mental, a pintura e a caricatura. Nesse
ponto o importante é ressaltar que, para Sartre, a imagem – seja mental, fotográfica,
pictórica ou caricatural – é testemunha de uma ausência. Por mais perfeita que seja a
imagem, Sartre diz que, com relação a seu objeto, ela o dá como não sendo. A Fotografia,
enquanto imagem, é uma tentativa de tornar presente algo que está ausente. A
constatação de que a imagem traz consigo o peso de uma falta, é o fio que une o texto
barthesiano à obra de Sartre. Barthes, porém, vai além. Mais que uma tentativa de tornar
presente algo, ou alguém, ausente – o que se dá de forma ambígua, segundo Sartre –, a
fotografia funcionaria como elo que une de maneira concreta elementos distantes, tanto
física como temporalmente: “De um corpo real, que estava lá, partiram radiações que vêm
me atingir, a mim, que estou aqui; pouco importa a duração dessa transmissão; a foto do
ser desaparecido vem me tocar como os raios retardados de uma estrela. Uma espécie
de vínculo umbilical liga a meu olhar o corpo da coisa fotografada”.
A abordagem de Barthes provoca certo ruído para quem busca no texto uma teoria da
Fotografia, mas convida à reflexão por meio da mobilização dos afetos. A obra de Roland
Barthes é um exercício do olhar, não apenas um olhar exterior voltado para a família das
imagens, mas do olhar interior e reflexivo.

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