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AGRADECIMENTOS
Prefácio
A relação médico-paciente
Este livro trata do encontro daquele que cuida com aquele que precisa ser cuidado.
A narração deste encontro trilha um caminho complexo no qual se observam ciência, tecnologia,
razão e, sobretudo, humanidade. É um convite a uma experiência com sabor e sabedoria, abordando
sem aridez ou amargura as relações que se estabelecem no delicado trabalho de aprender a cuidar.
A temática dessa relação é discutida por especialistas em áreas de conhecimento que compõem o
exercício profissional, como a ética, a bioética e o direito, de maneira que a compreensão dos
pilares que devem nortear o aprendizado da medicina seja facilitada.
Experimentamos tempos de intensa produção científica em decorrência de pesquisas com células,
cromossomos e moléculas, com o intuito de que alguns dos muitos mistérios do ser humano sejam
mais bem compreendidos. Abriu-se uma fronteira imensa de oportunidades para o diagnóstico,
tratamento e recuperação de pessoas.
Já dizia, em 1934, Milton Carneiro, professor da Universidade Federal do Paraná, ao proferir o
Discurso do Bugre como médico homenageado com o título de paraninfo:
Que tem sido o homem em sua caminhada pelo mundo? Tem sido escritor, engenheiro,
carpinteiro, jornalista, médico, porém tem se esquecido de ser a mais elementar de todas as
profissões: a de homem simples e humanamente homem.
Esta é uma obra que trata de relacionamento e preenche um espaço instrumental na formação de
pessoas que pretendem se tornar médicos. Alavanca a reflexão sobre o comportamento diante do
sofrimento, a possibilidade de perdas, a vulnerabilidade imposta pela doença.
O convívio com o “outro” e suas necessidades, receios e frustrações requerem estudo, preparo e
pesquisa, assim como treinamento e repetição. O contato com pessoas e com o mundo que as cerca
fará parte do dia do aprendiz.
A forma como o médico se comporta tem impacto direto sobre a pessoa atendida. Este é um dos
elementos que confere à profissão o cunho de moralidade que deve acompanhar os passos de quem a
exerce.
Neste livro, estão reunidos textos de pessoas habilitadas a discorrer sobre o tema, de modo a
permitir uma leitura sensível e real sobre a relação médico-paciente. Fica o convite a embarcar em
uma viagem estimulante que não acaba no último capítulo, mas nos instiga a continuar procurando o
aprimoramento pessoal.
Cumprimento o professor Alexandre Alessi pela autoria e organização, bem como felicito a todos
os autores dos 21 capítulos que fazem parte desta obra que nos acrescenta e enriquece como pessoas,
médicos e professores.
Miguel Ibrahim Abboud Hanna Sobrinho
Professor Assistente do Departamento de Clínica Médica. Mestre em Cardiologia pela UFPR. Chefe do Departamento de Clínica
Médica da UFPR.
“Ouça o que o paciente diz, ele lhe contará o diagnóstico.”
William Osler ( 1849-1919)
Cabe ao professor apresentar aos alunos que o conhecimento médico duplica a cada 2 anos.
Numa projeção para daqui a 10 anos, é provável que isso ocorra a cada 90 dias.
É preciso mostrar aos estudantes que a área tecnológica de terapia celular, de genética,
de exames de imagem, de equipamentos híbridos capazes de fornecer informações
funcionais e anatômicas ao mesmo tempo e da tecnologia de informação aplicada à
Medicina são as ferramentas que permitem aumentar a longevidade da população e tratar
um maior número de doenças. Porém, o aspecto humanístico da atuação médica não deve
ser esquecido. As novas tecnologias, aliadas à visão ampla do paciente, de uma abordagem
biopsicossocial, fazem sempre relembrar que a Medicina é uma atividade profissional que
está entre a arte e a ciência. Os pacientes esperam atenção, respeito, conhecimento e
empatia dos seus médicos!
Finalizo este capítulo retomando o juramento de Hipócrates, que é lido e repetido por
todos os formandos de Medicina. É utilizado geralmente apenas uma única vez e ao final
do curso, sem mesmo os alunos terem a chance de absorver seu real significado e
aplicabilidade na prática diária profissional:
Juramento de Hipócrates
Prometo que, ao exercer a arte de curar, mostrar-me-ei sempre fiel aos preceitos da
honestidade, da caridade e da ciência. Penetrando no interior dos lares, meus olhos serão
cegos, minha língua calará os segredos que me forem revelados, os quais eu terei como
preceito de honra. Nunca me servirei da profissão para corromper os costumes e
favorecer o crime. Se eu cumprir este juramento com fidelidade, goze eu, para sempre, a
minha vida e a minha arte de boa reputação entre os homens. Se o infringir ou dele me
afastar, suceda-me o contrário.
Referências bibliográficas
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Alexandre Alessi
Professor Adjunto de Clínica Médica da UFPR. Mestre e Doutor em Cardiologia. Research Fellow em Hipertensão Arterial pela
Baylor College of Medicine, Houston (EUA). Coordenador da Disciplina de Semiologia Médica I e II do Curso de Medicina da
UFPR.
Introdução
Apenas o conhecimento teórico não é suficiente para um bom profissional. É preciso ser capaz de
comunicar-se bem com os pacientes, com os colegas e com a equipe. [22] [23]
Um dos momentos estruturais da relação médica é a comunicação, isto é, o conjunto de principais
recursos técnicos a que o médico deve apelar: o olhar, a palavra e o silêncio, o contato manual e a
relação instrumental. Para comunicar-se com seu paciente, o médico olha para ele, fala com ele e o
escuta, utiliza as mãos e emprega os mais diversos instrumentos exploratórios e terapêuticos. [14]
A palavra “paciente” foi escolhida por ser historicamente a mais comum e aceita entre os
profissionais [11], mas com a concepção de um ser ativo e não passivo, como a palavra pode
subentender. O termo “paciente” foi preferido a outros que vêm sendo utilizados, como “usuário” ou
“cliente”, porque estes podem trazer a noção de consumidor de serviços, e o que se quer aqui é fazer
referência ao sujeito da relação. [14]
Os médicos, em geral, têm uma relativa incapacidade para compreender os aspectos psicológicos
do ser humano. Acostumados a ouvir e palpar, tendem a não acreditar em nada que não possa ser
tocado ou percebido pelos órgãos sensoriais [3]. Entretanto, os grandes médicos de todos os tempos
foram observadores perspicazes das emoções humanas.
Sabe-se que os benefícios da prática médica não estão ligados somente às capacidades técnicas do
médico, mas também que a própria palavra do médico exerce um resultado terapêutico importante. [3]
Michel Balint, psicanalista inglês que analisou um grupo de médicos de Atenção Primária
discutindo suas relações médico-paciente por um longo tempo nas décadas de 1950 e 1960, buscou
realizar o que chamou de um estudo da farmacologia da “droga” mais usada em medicina: a
substância “médico”. Como, evidentemente, a substância “médico” encontra-se muito longe de uma
padronização, cada aplicação dela tem seus próprios efeitos colaterais. Ele buscou estudar por que a
droga “médico”, mesmo com o aparente cuidado com que é receitada, não produz os efeitos
desejados, quais são as causas desse envolvimento involuntário e como evitá-lo. [3]
O panorama atual observado em relação à comunicação clínica é de que, apesar do aumento de
tecnologia, há uma insatisfação grande por parte dos pacientes e dos médicos, que se mostram
frustrados em relação a sua profissão. [27]
A partir dessa insatisfação dos pacientes, muitos pesquisadores se aprofundaram no tema para
tentar entender melhor essa problemática. As pesquisas com revisão de processo por erro médico
verificaram que o principal motivo (71%) da abertura de processos e reclamações deve-se a
conflitos na comunicação entre médicos e pacientes e não a problemas de competência clínica, sendo
esses conflitos os efeitos de uma má relação. [23] [30]
Foi realizado um estudo de coorte de 2004 a 2008, com 229 alunos do primeiro ano do curso
médico, em que ao final de cada ano os alunos respondiam a um questionário de empatia, que
produzia um escore. O estudo mostrou que houve significativo declínio entre 73% dos estudantes nos
escores de empatia entre o ano 0 e o ano 3. Ou seja, houve declínio na maioria, mas não em todos os
casos. As mulheres tiveram escores consistentemente mais altos em todos os anos e houve maior
declínio entre os homens. Tiveram escores mais altos os alunos que buscavam especialidades
orientadas para pessoas (medicina de família, clínica médica, pediatria, gineco-obstetrícia), em
comparação com especialidades orientadas para tecnologia (anestesiologia, patologia, radiologia,
cirurgia, ortopedia cirúrgica). Além disso, os que iniciaram com baixos escores perderam mais
empatia comparados aos que começaram com escores mais altos.
A hipótese para a queda da empatia, apresentada no estudo, é a falsa ideia de que empatia não tem
importância no treinamento para a prática médica. A educação médica atual promove um
distanciamento das emoções do médico. A distância afetiva e a neutralidade clínica são enfatizadas
por um foco na ciência médica e entendidas como uma negligência da arte do cuidado médico, o que
leva à interpretação de evitar envolvimento interpessoal no cuidado do paciente. [19]
Sabe-se que os modelos e métodos convencionais e a educação médica tradicional não vêm
preparando adequadamente os acadêmicos para os desafios diários da vida profissional. [27] Em
geral, a formação social do médico é defeituosa. Em muitos países, essa educação não suscita de
maneira suficiente a moral cooperativa do indivíduo. E, por outro lado, as faculdades de Medicina
são com frequência cegas ou míopes diante dos diversos problemas que hoje interferem na relação
médico-paciente. [14]
As deficiências encontradas nos estudos brasileiros que analisam a forma de conduzir consultas
médicas são semelhantes às encontradas na literatura internacional. Os estudos indicam que os alunos
são pouco capacitados para obtenção de dados sociais e psicológicos nas entrevistas médicas. [25] [2]
A partir da década de 1990, iniciou-se a elaboração de consensos e diretrizes para o ensino das
chamadas habilidades de comunicação nas escolas médicas, que incluem também as interações entre
colegas e outros profissionais envolvidos no cuidado. [33] [26]
Atualmente, considera-se que essas habilidades não são complementares nem opcionais, mas sim o
centro de uma prática efetiva no cuidado em saúde. [12] A habilidade de comunicação é muito mais
complexa do que habilidades procedimentais e deve ser ensinada com o mesmo rigor de uma
habilidade clínica. Envolve trabalhar nossos próprios sentimentos e os dos outros, um aspecto
geralmente evitado no ensino de áreas técnicas e cognitivas. [22]
Merhy e Franco chamam essa tecnologia do conhecimento das relações de tecnologia leve ou
tecnologia leve-dura, que seria a produção das relações entre dois sujeitos, em contraposição à
tecnologia-dura, baseada em equipamentos. [28]
Vários estudos concluíram que há correlações positivas entre satisfação do paciente e alguns
aspectos do comportamento do médico, tais como: fornecer mais informações, expressar sentimentos
afetuosos e cortesia, utilizar o humor, escutar mais, facilitar a comunicação do paciente, abordar
preocupações e expressar apoio, confirmar e mostrar entendimento e preocupação. [30] Um
profissional que não utiliza esses recursos na sua prática dificilmente será capaz de realizar uma
abordagem integral.
Outros estudos demonstraram também que os profissionais que apresentam uma atuação centrada no
paciente em vez da enfermidade apresentavam resultados de saúde mais positivos em comparação
aos modelos tradicionais de abordagem. Nesse caso, os pacientes apresentavam diminuição da
utilização dos serviços de saúde, aumento de satisfação, menos queixas por má prática, melhora da
aderência aos tratamentos, redução de preocupações, melhora da saúde mental, redução de sintomas
e melhora da recuperação de problemas recorrentes. [35]
O clínico é como um instrumento musical que deve ser constantemente afinado para que faça boa
música. [15]
Evidências
Se o médico permite que o paciente faça perguntas, aumenta a captação de informação entendida.
Descobrir e entender as expectativas e dar apoio ao paciente aumentam a satisfação dele e o
benefício terapêutico, com melhora das taxas de adesão. [30]
A abordagem das preocupações do paciente influencia fortemente o resultado da consulta. Em um
estudo em que foram analisadas 716 consultas que envolviam a queixa de dor de garganta, observou-
se que os pacientes que melhoraram mais rapidamente foram aqueles que tiveram suas preocupações
mais bem abordadas pelos médicos. [24]
Consultas centradas nos pacientes estão associadas com maior satisfação, aderência, redução de
sintomas e melhora do status psicológico. [35]
As evidências mostram que não basta ter o contato com o conhecimento, é preciso praticar. Saber o
que se deve fazer não é o mesmo que saber fazer e manter a prática.
Além dos benefícios para os pacientes, foram verificados benefícios também para o profissional.
Profissionais que se comunicam bem obtêm informações com mais facilidade e qualidade, o que leva
a um diagnóstico mais preciso (especialmente em relação a problemas com um elemento
psicológico), têm pacientes que manejam melhor seus medicamentos, obtêm melhores resultados de
tratamento, são mais seguros, cometem menos erros clínicos e recebem menos queixas por má
prática. Por tudo isso, e por apresentarem melhores relações de trabalho em equipe, há aumento de
satisfação no trabalho, diminuição do estresse e isso está relacionado à prevenção da síndrome de
Burnout, que é a chamada estafa do profissional. [34] [22]
Fases do encontro clínico
Vamos analisar estratégias práticas consideradas importantes, relacionadas às fases da entrevista
clínica (KURTZ et. al., 2005; SILVERMAN, 1996; CLERIES, 2006; VON FRAGSTEIN et. al.,
2008), que se relacionam com a melhora da comunicação clínica: [22] [32] [11] [40]
Lembre-se da Lei do eco emocional: você receberá de seus pacientes o que der a eles na
consulta. Se der sorrisos, receberá sorrisos; se der hostilidade, receberá hostilidade. [9]
É importante que nos primeiros minutos a pessoa atendida perceba que a atenção do médico está
toda voltada para ela e não para papéis ou para o computador. Isso fará com que a pessoa se sinta
mais confiante para falar sobre suas preocupações.
O bom médico seria aquele que é acolhedor, que faz com que as pessoas sintam-se cômodas, à
vontade, além de ter capacidade de observação comparativa e imaginação, bem como boa disposição
constante para a prática do benefício. [14]
Para isso, é preciso saber escutar, não interromper assim que o paciente começa a falar, como é o
comum. Pesquisas mostram que 65% dos pacientes são interrompidos pelos médicos, em média,
depois de 15 a 20 segundos de explicação do problema, e quando o paciente não é interrompido para
de falar em torno de dois minutos e aumenta a probabilidade de expor os seus medos e preocupações.
[6] O valor simbólico do primeiro minuto da entrevista está fora de qualquer dúvida: supõe
reconhecer o paciente como centro do ato clínico, e não papéis ou a tela do computador. [9]
A primeira pergunta de abertura da entrevista poderia ser mais focada, como “Qual o motivo da
consulta hoje?”, que tende a direcionar o paciente diretamente ao motivo da consulta. Perguntas
muito gerais (“Como está?”) podem levar ao paciente a divagar por temas que não são os motivos de
consulta. [9]
É preciso evitar interromper o paciente, principalmente após a primeira pergunta. Se não for
interrompido, aumenta a probabilidade de que ele conte tudo de que necessitamos saber e consiga
falar os reais motivos de consulta. Evitando interromper, provavelmente o médico precisará fazer
menos perguntas depois. Isso significa ter baixa reatividade, que se relaciona com o tempo que o
médico leva para interromper o paciente.
Após a exposição dos motivos de consulta, fazer a chamada prevenção de demandas aditivas, ou
seja, perguntar “Algo mais?”, “Mais algum motivo de consulta?”, para esgotar todas as demandas
já nessa fase. [9]
A prevenção de demandas aditivas diminui a chance do “sinal da maçaneta”, que ocorre quando ao
final da consulta o paciente vem com mais motivos. Mesmo que o paciente exponha muitas demandas,
é melhor saber no início, pois iria falar de qualquer modo, e assim o médico pode ainda priorizar
com o paciente quais motivos vai abordar e planejar a melhor condução da consulta.
Segundo o Calgary-Cambridge Guide Communication Process Skills [32], os médicos devem
buscar a identificação dos problemas de saúde prioritários para aquela consulta, abordar a agenda
do paciente, termo que surge inicialmente no trabalho de Byrne e Long em 1976.
Abordar a agenda do paciente significa o resultado da busca em descobrir quais são as queixas,
preocupações, sentimentos e expectativas associadas do sujeito que busca um atendimento. [30]
A agenda idealmente deve ser acordada entre o médico e o paciente antes do início da exploração
dos problemas, pois a identificação precoce da agenda do paciente influencia o resultado final da
consulta. [32] [22] Assim, identificar e entender os motivos para o paciente procurar o médico deveria
ser a primeira tarefa de toda consulta. [30]
Nem sempre o que o paciente declara como motivo da consulta é aquilo que realmente deseja
consultar. Estudos mostram que o primeiro problema relatado não necessariamente é o mais
preocupante para essa pessoa ou o motivo pelo qual realmente deseja consultar. [32] [22[ [9] Assim, é
preciso abordar o que Barsky denominou de: [4]
Agenda oculta: motivos de consulta importantes, mas que o paciente tem dificuldade de falar, por
motivos de ansiedade ou medo. Nessa fase, é também importante diferenciar o que são demandas
e o que são queixas do paciente.
Diferença entre queixa e demanda: é a expectativa de que o profissional possa ou não
apresentar uma solução. Demanda é o que se espera que seja solucionado pelo médico, como
pedido de algo que lhe pode ser dado, e a queixa seria mais uma lamentação de um processo de
envelhecimento, ou indisposições crônicas de impossível resolução. [9]
Observação: não superestime uma “má” entrada de um paciente. A entrevista é muito flexível. Pode
ser que no final o paciente se despeça de você muito agradecido.
Silêncio funcional: momentos de silêncio completo na consulta, com uma atitude de interesse e
escuta ativa pelo médico. É importante principalmente em momentos de grande tensão emocional
(exemplo: choro), para permitir que o paciente elabore suas emoções. [9]
1. conhecer a doença;
2. saber quem é a pessoa que está doente;
3. saber por que o remédio atua curando a enfermidade.
Isso significa ir além do processo patológico simplesmente, o chamado disease, e procurar entender
a sensação de vivência individual do sofrimento, o illness, contextualizado no seu universo familiar,
cultural e social. [34] Perguntas como “Quais são suas preocupações?” são estratégias eficazes para
abordar os medos do paciente.
Deve-se procurar entender qual o impacto que os sintomas estão causando na vida do paciente.
Conhecer a opinião do paciente sobre o que lhe está ocorrendo.
A abordagem da “Medicina centrada na pessoa”, como foi traduzida no Brasil, surgiu em 1982 a
partir de Levenstein, médico sul-africano, ao ser questionado por uma estudante de Medicina sobre
um padrão na sua técnica de relação médico-paciente, que era tão diferente da adotada no hospital.
Gravou 1000 consultas próprias, buscando perceber quais intervenções eram efetivas e não efetivas.
Percebeu que, quando ouvia os medos e expectativas dos pacientes, tinha intervenções mais efetivas.
A partir de então, procurou-se desenvolver um método que pudesse ser praticado pelos médicos. A
partir de pesquisas, o método teve a validade aprovada, com posterior refinamento. [34]
Nessa fase, deve-se aproveitar ainda para avaliar riscos, para identificação precoce de doenças e
redução de complicações, se adequado. [35] Mas cuidar para não acabar priorizando a agenda do
médico (problemas para o médico), em vez da agenda do paciente (problemas para o paciente).
É importante ficar atento às dicas verbais e não verbais, observando a comunicação não verbal e
paralinguagem, ou observar as “pistas” que os pacientes nos dão de que estão com dificuldade de
falar sobre determinado tema que precisa ser aprofundado.
Enquanto coleta as informações, é importante fazer um registro atento delas, demonstrando que,
enquanto registra o que é dito, está prestando atenção no paciente.
4. Fase de finalização
Nessa fase é importante avaliar a aceitação do plano terapêutico, por exemplo, com a pergunta “Pode
ser?”. Estudos mostram que, quando as orientações dadas e a participação no planejamento
terapêutico se relacionam positivamente com os resultados da consulta e quando a aderência ao
tratamento é acordada, e não imposta, há melhores resultados imediatos. [30] Além disso, foi
observado que a aderência ao tratamento aumenta quando o médico compartilha com os pacientes
assuntos relacionados ao plano terapêutico.
As pesquisas mostram que os pacientes querem participar das decisões sobre seu tratamento e
preferem médicos que os ouvem com atenção, fazem perguntas de fácil entendimento e verificam a
compreensão do paciente sobre a proposta terapêutica. [35] [31]
5. A construção da relação
É importante observar aspectos de transferência e contratransferência. Será que o paciente lembra
alguém familiar ao médico? Ou será que o paciente pode estar vendo no médico alguém familiar? É
sempre importante refletir sobre isso, pois pode influenciar no relacionamento médico-paciente, pois
tendemos a agir de maneira diferente quando isso ocorre, privilegiando o paciente ou deixando de
abordar aspectos para uma pessoa que não nos mobiliza. Por exemplo, se a paciente lembra a avó do
médico, e ele gosta muito da avó, tenderá a tratar melhor essa paciente. Por outro lado, se ele tem um
pai autoritário, com quem tem problemas de relacionamento, provavelmente terá mais dificuldades
de lidar com pacientes com esse perfil.
No processo de desenvolvimento da relação médico-paciente, é preciso também observar o
equilíbrio de poder que está inerente na consulta.
A confiança é o valor máximo e essencial na construção de uma relação. A confiança se ganha
sobretudo oferecendo um espaço para a escuta, o cuidado e a cordialidade, mas também
demonstrando competência técnica. [37]
2. A escuta ativa
É preciso saber escutar, em vez de interromper o paciente assim que começa a falar. Quem pergunta
obtém respostas, mas apenas respostas. [3] Quem deixa falar obtém histórias.
Nos primeiros minutos da entrevista, principalmente se deixarmos o paciente falar, surgirão
diamantes em estado bruto que talvez não voltem a aflorar. [9]
Muitas vezes “escutar dói”, como aborda Borrell em seu livro sobre estratégias práticas para a
entrevista clínica. Por isso, é preciso que cada profissional perceba quando isso ocorre,
reconhecendo seus sentimentos, e aprofunde o conhecimento sobre suas próprias zonas de
irritabilidade nas relações interpessoais, reconhecendo o que Freud chamou de transferência e
contratransferência (conforme comentado anteriormente). É importante também nesse processo de
escuta o que é definido como distância terapêutica, que consiste em não reagir de maneira imediata,
ou seja, dar a si mesmo a oportunidade de pensar com maior clareza. [9]
A reatividade do entrevistador se refere ao tempo que ele demora em intervir depois da fala do
paciente. Deve-se evitar a alta reatividade, que ocorre quando o médico frequentemente interrompe o
paciente antes de ele terminar de falar. Isso demonstra uma dificuldade de escuta e ansiedade do
médico. [9]
É importante ouvir sem preconceitos, cuidar com “rótulos” que colocamos rapidamente ao ver a
pessoa. Além disso, nessa fase é importante a contenção emocional, que é saber escutar sem sentir
que somos obrigados a “ter soluções para tudo”. [9]
3. Estilo emocional
É importante analisarmos como é nosso estilo emocional nas consultas. [9]
Estilo emocional reativo: quando se reage de maneira similar ao estímulo recebido. São
aqueles que se deixam levar pelas emoções dos pacientes e praticam o “olho por olho”,
“pagar na mesma moeda” e respondem à hostilidade com hostilidade, às demonstrações de
desafeto com desafeto, etc.
Estilo emocional proativo: quando se busca reconduzir a entrevista para uma resolução de
problemas, sem se deixar arrastar pelas emoções negativas recebidas. Por exemplo, com um
paciente hostil: “vamos ver como podemos ajudá-lo”, enquanto sorri com cordialidade.
A autopercepção do profissional
A busca por observar a si mesmo nas consultas traz uma prática reflexiva com muitos benefícios para
o médico, como:
Consciência do valor terapêutico da relação com o paciente.
Melhor compreensão dos processos de transferência e contratransferência.
Identificação e entendimento de situações que nos irritam. Aquele que não conhece suas
zonas de irritabilidade está à mercê de suas emoções negativas. [9]
Melhor uso terapêutico da relação médico-paciente.
O uso de pacientes simulados tem demonstrado ser muito útil na prática das habilidades de
comunicação. Entretanto, o uso de gravação em vídeo com feedback representa o padrão-ouro no
ensino de comunicação. [22]
Conclusão
A formação médica tem papel essencial nesse processo de mudança na relação médico-paciente. O
desafio é que todas as escolas médicas tenham um programa curricular de comunicação médico-
paciente, com um ensino sistematizado teórico-prático, com oportunidade de treinamento com
pacientes simulados e videogravação, bem como flexibilidade para adaptar-se às necessidades de
cada estudante. [13]
É preciso cuidar para não focar apenas na abordagem instrumental. O profissional não deve estar
mais interessado nas técnicas que deve realizar e enfermidades do que nas pessoas, que não são
apenas “portadoras de doenças”. [9]
Deve-se buscar a construção de um ambiente de ensino e de trabalho com relacionamentos
dialógicos e reflexivos com o professor e com a equipe. Também há que ter sensibilidade para
relacionar-se de maneira interdisciplinar e resistir às pressões laborais que podem induzir à
indiferença e ao distanciamento humano e afetivo. Tarefas complexas, mas de grande potencial para a
melhoria das relações na prática médica. [13]
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[40] VON FRAGSTEIN, M.; SILVERMAN, J.; CUSHING, A.; QUILLIGAN, S.; SALISBURY, H.; WISKIN, C. UK consensus
statement on the content of communication curricula in undergraduate medical education. Medical Education. v. 42, p. 1100-1107,
2008.
Marcela Dohms
Médica de Família e Comunidade. Mestre em Saúde Coletiva. Coordenadora do Programa de Residência em Medicina de Família e
Comunidade da Secretaria Municipal de Saúde de Curitiba/Feaes. Professora Substituta no curso de Medicina, no Departamento de
Saúde Comunitária da UFPR. Professora no módulo de Habilidades Médicas do curso de Medicina das Faculdades Pequeno Príncipe.
Coordenadora do GT de Comunicação e Saúde da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC).
A doença é o lado sombrio da vida, uma espécie de cidadania mais onerosa. Todas as pessoas
vivas tem dupla cidadania, uma no reino da saúde e outra no reino da doença.
Susan Sontag [1]
Para o cirurgião e fisiologista francês René Leriche (1879-1955), “a saúde é a vida no silêncio dos
órgãos”. [2] Essa frase, muito citada, pode nos ser útil como ponto de partida para a discussão sobre
as transformações emocionais que são praticamente obrigatórias por ocasião do adoecer. Cada
médico deverá, no entanto, verificar, na sua prática, a veracidade e a relevância dos conceitos aqui
expostos. Caberá a cada um retirá-los completamente da teoria e elevá-los a conhecimento integrado
à sua visão de mundo.
Rompido então o dito “silêncio dos órgãos”, ocorrerá um “barulho dos órgãos”. A palavra barulho
nos serve muito bem, pois nos dirige a algo que é sensorialmente percebido, que é exterior, que
chega de fora, que não vem, portanto, de dentro do sujeito.
O primeiro conceito que abordarmos é o de que a doença é quase sempre tomada psicologicamente
pelo doente como uma coisa que não foi produzida por ele e que não lhe pertence. O corpo que
adoece não é bem o seu corpo, ele não o reconhece assim, doente, como exatamente o seu corpo, e
deseja que o médico lhe restitua o seu corpo saudável. Vêm daí expressões como “recuperar a
saúde”, como se ela fosse uma coisa perdida a ser encontrada, ou “relacionar-se com a doença”,
como se ela fosse uma pessoa nova em sua vida. O corpo doente, que lhe foi imposto, ativa uma série
de movimentos emocionais que estão muito menos estimulados durante os tempos de saúde. O
sujeito, ao adoecer, invariavelmente se altera e se transforma. Essas transformações esmiuçaremos a
seguir.
Cada uma das personalidades humanas terá seu modo particular de lidar com o desgosto da doença,
mas é igualmente verdade que há muito em comum entre nós. Embora haja muitos modelos de
apreensão da personalidade, é indiscutível que o trabalho de Sigmund Freud no século XIX foi capaz
de introduzir definitivamente algumas palavras no vocabulário ocidental. Frise-se apenas que de
modo algum foi Freud o primeiro observador competente da personalidade, como mostra com
facilidade o esforço científico, artístico, literário e filosófico da humanidade desde a Pré-História.
Freud era um neurologista vienense que buscou investigar as contradições do comportamento
humano dentro da estrutura científica de sua época e criou um modelo teórico para pensar a razão
pela qual há tanta distância entre o que seria lógico fazer e o que fazemos, como ocultamos nossas
intenções menos defensáveis e como o oculto transpira incontrolavelmente e torna-se visível a olhos
treinados ou meramente curiosos. Para verificar essas últimas afirmações sugiro uma conversa
atenta, sincera e criativa com qualquer tabagista convicto que você conheça. Embora não nos
interesse aqui, Freud seguiu adiante se perguntando também como se produz a doença mental, qual o
sentido de seus sintomas e como se pode dialogar com ela de modo diferente do da conversa
convencional.
Abordaremos neste capítulo as noções freudianas [3] sobre:
o consciente e o inconsciente, para o exame das ideias que nos habitam e governam.
Algumas delas se manifestam abertamente e muitas mais são imperceptíveis ou apenas
fracamente perceptíveis aos que se interessam pelo indireto e sutil em nossas atitudes. A
emergência de ideias inconscientes é particularmente intensa quando há sofrimento.
id, ego e superego, para o exame de distintas áreas de relacionamento com o que há dentro
de nós originalmente, com o que nos foi incorporado por meio dos afetos da vida infantil e
na área de relacionamento com o mundo exterior, ou seja, com a realidade no conceito
convencional.
negação, dependência, intelectualização e as reações onipotentes e narcísicas que
constituem alguns dos mecanismos de defesa contra a dor psíquica e também, note bem,
mecanismos de adaptação à condição temporária ou permanente de doente. Esses
mecanismos oscilam com mais ou menos força na vida mental, mas certamente com mais
força em períodos de angústia.
HEIMANN, P.; ISAACS, S.; RIVIERE, J. Os progressos da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.
Sandra Lunedo
Professora voluntária do módulo Relação Médico-Paciente da disciplina de Semiologia Médica do curso de Medicina da UFPR. Mestre
em Clínica Cirúrgica pela UFPR. Especialista em Otorrinolaringologia e Cirurgia Craniofacial.
Introdução
A Bioética surgiu nos Estados Unidos na década de 1970, como uma reação a uma série de
transformações sociais que ocorreram naqueles anos. No Brasil, ela chegou mais tardiamente, na
metade nos anos 1980, estimulada sobretudo pela preocupação ética com as pesquisas com seres
humanos. Aqui a sua inserção no currículo médico também ocorreu depois, integrando-se e algumas
vezes até substituindo a própria Deontologia Médica na grade curricular. Além disso, assumiu uma
grande importância dentro das principais sociedades médicas de especialidades e nos Conselhos de
Medicina, devido ao fato de que ela se envolve, ao mesmo tempo, com os dilemas individuais dos
profissionais de saúde diante das situações polêmicas que ocorrem à beira do leito, bem como com
as complexas decisões sociais enfrentadas em conjunto com legisladores e cidadãos.
Assim, neste capítulo serão abordados os aspectos históricos e conceituais, suas aplicações em
saúde pública e as bases da bioética clínica dentro do contexto do relacionamento médico-paciente.
Contexto histórico
O que contribuiu mais ativamente para o surgimento da Bioética no mundo foram os abusos que
ocorreram nas pesquisas envolvendo seres humanos. Progressos médicos importantes e que geraram
controvérsias estiveram ligados também a isso, tais como: hemodiálise (Comitê de Seattle decidia
quem faria diálise e quem estaria condenado à morte), transplantes de órgãos (criação do conceito de
morte encefálica por um comitê na Universidade de Harvard), diagnóstico pré-natal (possibilidade
de escolha de embriões e da interrupção da gestação), unidades de terapia intensiva
(instrumentalização da morte), desenvolvimento dos ventiladores artificiais (prolongamento
indefinido da vida) e a pílula anticoncepcional (dissociação da atividade sexual da função
reprodutiva). Esta última, inclusive, foi fundamental para que se criasse uma mudança da ética
profissional com forte influência religiosa e paternalista para a Bioética predominantemente de
influência laica e com uma valorização muito mais forte da autonomia.
A encíclica Humanae vitae, do Papa Paulo VI, provocou por parte de alguns filósofos um
movimento contrário à ética com fundamentação ou inspiração religiosa. Além disso, os Estados
Unidos, na década de 1970, conviviam com intensas discussões sobre os direitos civis dos negros, a
legalização do aborto e também com o crescimento do feminismo e de doutrinas individualistas.
Questionavam-se as instituições tradicionais como a família, as religiões, o exército e as escolas.
Esse clima de revolução cultural, associado ao despertar da biotecnologia, acabou gerando novos
dilemas morais, sem uma solução imediata que fosse universalmente aceita. Assim, os modelos
existentes na Ética Clínica e na Deontologia não correspondiam à velocidade das transformações
impostas para a sociedade.
A este difícil despertar somaram-se os inúmeros abusos que ocorreram no campo das pesquisas
com seres humanos mesmo após a Segunda Guerra Mundial e do Código de Nuremberg. Na
Willowbrook State School, uma escola para crianças com graves deficiências mentais, entre 1956 e
1970, cerca de 800 crianças foram inoculadas com cepas do vírus da hepatite. O objetivo era estudar
uma forma de profilaxia mais efetiva contra a hepatite. Aos pais era colocado um termo de
consentimento onde constava que se não estivessem de acordo com a pesquisa seus filhos não mais
seriam admitidos naquela escola. Em 1964, num outro estudo, no Jewish Chronic Disease Hospital,
foram injetadas células tumorais em 25 idosos, sem prévio consentimento, com o objetivo de analisar
o desenvolvimento dessas células fora dos organismos que a geraram.
Um terceiro estudo, no estado do Alabama, foi o Tuskegee Syphilis Study. Entre os anos de 1932 e
1972, 600 trabalhadores braçais negros foram submetidos a um estudo organizado pelo U.S. Public
Health Service, cujo objetivo era determinar os efeitos do curso natural da sífilis não tratada. Um
grupo de 399 homens não foi tratado nem informado sobre a natureza da sua doença. Outros 201, não
portadores da doença, participaram do estudo como grupo controle. Durante aproximadamente 40
anos, esses pacientes foram privados de qualquer tratamento. Nos anos 1940 a penicilina já estava
disponível, ainda assim o desenho do estudo permaneceu inalterado. Ele só foi interrompido em
1973, após o jornal New York Times chamar a atenção da opinião pública para o grave desvio moral
e desrespeito à dignidade humana com que ele estava sendo conduzido. Formou-se uma comissão do
governo dos Estados Unidos, através de determinação do Department of Health, Education and
Welfare, que estabeleceu que, a partir desse acontecimento, a sociedade não mais poderia permitir
que o equilíbrio entre o direito individual e o progresso científico fosse determinado unicamente pela
comunidade científica.
Segundo Zygmunt Bauman [1], vivemos novos problemas, desconhecidos em gerações passadas,
assim como novas formas que tomaram os velhos problemas. É o que ele chama de modernidade
líquida, tempos em que as pessoas não são estimuladas a se lançar na busca dos ideais morais ou
mesmo de cultivá-los. Tempos, segundo ele, de individualismo e de busca da boa vida, limitados
apenas pela exigência de tolerância. Contudo, a tolerância, quando casada com o individualismo,
pode gerar a indiferença. Evitar esta armadilha moral é o grande desafio para a formação do caráter
profissional do médico e da relação médico-paciente.
Conceito
O termo Bioética foi empregado pela primeira vez no início dos anos 1970, por Van Rensselaer
Potter [2], um bioquímico envolvido na pesquisa do câncer, na Universidade de Wiscosin. Para ele,
seria necessário desenvolver um novo campo da Ética, que pudesse se direcionar para a defesa do
ser humano, da sua sobrevivência e para uma melhora na sua qualidade de vida. A proposta para a
formação de uma disciplina tinha como objetivo fundamental criar uma ponte entre duas culturas que
estavam sem se comunicar – a ciência e as humanidades. Desse diálogo, segundo Potter, sairia um
futuro melhor para a espécie humana.
A Bioética começou com a ética médica, sobretudo aquela de inspiração protestante, mas expandiu-
se e envolve atualmente as pesquisas e as ciências da vida. Ela se caracteriza mais pelo seu objeto
de estudo do que por uma metodologia específica. Peter Singer, ao ser questionado sobre a definição
de Bioética em um programa televisivo chamado Real Time, respondeu: “Bioética é a busca da ética
nas ciências biológicas”. Entretanto, o conceito que mais se aproximou do ideal de que a Bioética se
propõe foi o elaborado por Reich, em 1995, em sua Encyclopedia of Bioethics: “Estudo sistemático
das dimensões morais – incluindo a visão moral, as decisões, a conduta e as linhas que guiam – das
ciências da vida e da saúde, com o emprego de uma variedade de metodologias éticas e uma
impostação interdisciplinar”.
Especificamente no âmbito médico, a Bioética deve ser considerada como um instrumento para a
tomada de decisões, que tem na multidisciplinariedade a sua característica mais importante. Isso é o
que a diferencia da Ética Médica clássica, tradicionalmente marcada por uma ênfase no
relacionamento médico-paciente. Essa abordagem deontológica, apesar de necessária, mostrou não
ser suficiente para abraçar as situações emergentes que surgiram nas últimas décadas na área médica.
Sendo assim, os domínios da Ética Médica e da Deontologia hoje interagem intimamente com a
Bioética para resolução de conflitos na pesquisa clínica, na saúde pública e na prática clínica.
Saúde pública
Os sistemas de saúde norte-americano, assim como de outros países e também o brasileiro, estão
em meio a uma verdadeira guerra entre os planos de saúde e seguradoras, os hospitais, o governo e
os médicos. Daniel Callahan [3] fez severas críticas aos rumos da medicina. Para ele, um dos
principais problemas é que a medicina impõe a si mesma, hoje, horizontes ilimitados de atuação.
Essa falta de limites e o expansionismo desordenado (mesmo fora do âmbito saúde-doença) acabam
elevando os custos dos tratamentos médicos, que nem sempre se traduzem em melhoria para a saúde
da maioria das pessoas. Para Callahan, a regra do liberalismo aplicada à saúde pode ser formulada
nos seguintes termos: se uma nova tecnologia é desejada por um sujeito, ele deve ter acesso a ela, a
menos que existam provas de efeitos adversos que o inviabilizem.
As enhancement technologies são tecnologias biomédicas não voltadas ao tratamento de doenças,
mas à melhoria de funções fisiológicas: a cirurgia estética, os medicamentos para tratar fobias
sociais, déficit de atenção e desempenho sexual. Muitas dessas drogas foram desenvolvidas a partir
de considerações mercadológicas, com base em pesquisas de mercado mesmo. Uma das
consequências desse modelo pode ser vista nos Estados Unidos, que gastam anualmente mais de 2
trilhões de dólares com a saúde, o que representa o valor aproximado da economia chinesa e é quase
a soma do que gastam todos os outros países do globo juntos. Isso representa aproximadamente 16%
do PIB norte-americano e a projeção é ultrapassar 20% nos próximos anos. Mesmo assim, existem
mais de 46 milhões de norte-americanos completamente desassistidos, tanto que um dos pontos mais
criticados da gestão do presidente Barack Obama é exatamente a reforma na saúde dos Estados
Unidos, algo que será ainda mais complexo para ser concluído em meio a uma crise econômica
mundial.
O sistema brasileiro, com menos recursos e dificuldade maior ainda de acesso à prevenção e aos
cuidados, falta de planejamento de longo prazo, gera desigualdades ainda maiores e dilemas que são
próprios à nossa realidade. O programa do governo da presidente Dilma Roussef, intitulado “Mais
Médicos”, foi severamente criticado pelas entidades médicas e os seus efeitos positivos e negativos
de curto e médio prazo são ainda difíceis de prever.
Bioética clínica
Albert Jonsen [4], professor emérito de Ética Médica na Universidade de Washington, criou um
método para auxiliar na resolução de dilemas éticos na clínica. Tem como base quatro elementos
fundamentais: indicações médicas, preferências dos pacientes, qualidade de vida e aspectos
contextuais. Esse método tem como ponto favorável o fato de que permite um raciocínio bioético
compartilhado e de fácil compreensão entre os profissionais de saúde.
1. Indicações Médicas
É a relação entre a fisiopatologia e as intervenções diagnósticas e terapêuticas que estão indicadas
para resolver apropriadamente cada caso específico. Refere-se à aplicação do conhecimento
científico e da medicina a partir de evidências em relação ao paciente individualizado. São quesitos
importantes e com implicações bioéticas:
O fato de ser agudo ou crônico, por exemplo, muda completamente o contexto, pois em situações
emergenciais e agudas a decisão passa habitualmente por um único profissional, e nem sempre o
paciente está em condições de exercer a sua autonomia de maneira plena. Na condição crônica,
podem ser realizadas consultorias em bioética clínica ou atuação de juntas médicas, bem como o
paciente e seu responsável legal participam ativamente do processo de decisão.
3. Qualidade de vida
Além de salvaguardar a vida dos pacientes, outro grande objetivo das intervenções médicas é
restabelecer, manter ou melhorar a qualidade de vida deles. Critérios relevantes nesse sentido:
4. Aspectos contextuais
Os cuidados com os pacientes são influenciados, positivamente ou negativamente, pelo contexto
pessoal, familiar, psicológico, emocional, religioso, educacional, financeiro, legal, institucional,
científico e social.
Alguns pontos importantes emergem nessa forma de metodologia. O primeiro é que não se deve
realizar nenhuma análise bioética de problemas clínicos sem que se tenha conhecimento suficiente
das evidências científicas existentes. O desconhecimento dessas evidências invalida qualquer
conclusão a posteriori. O método Albert Jonsen melhora a compreensão dos conflitos, protege a
autonomia dos pacientes e a integra nas decisões médicas. Por outro lado, apesar de trazer à tona
essas situações e organizá-las sistematicamente, não as resolve em todos os casos. Os conflitos
podem ocorrer entre cada um dos pontos cardeais que foram citados. A tomada de decisão algumas
vezes é tão complexa que se faz necessário o apoio técnico através de consultoria de profissional
com competência bioética na resolução de problemas ou mesmo de um comitê de ética/bioética
hospitalar.
Conclusões
O médico deve ter, além da competência científica, a humildade de reconhecer o seu papel e seus
limites: cuidar, mais do que curar. Esta é a virtude mais importante que pode ser cultivada com o
auxílio da Bioética.
A excelência moral, na perspectiva da Bioética, só será possível de ser atingida através da criação
do hábito ou disposição permanente para agir em conformidade com o bem e a preocupação com o
próximo. O ser humano não nasce virtuoso, e a busca da excelência profissional passa pela
excelência pessoal.
A medicina moderna, nesse sentido, infelizmente está perdendo o sentido do profissionalismo,
quebrando o seu contrato social. Excesso de mercantilização, conflitos de interesse e limites na
autonomia profissional. Muitos dos dilemas enfrentados pelos médicos necessitam de um
aprofundamento bioético. A ausência de formação humanística repercute em parte nas causas de um
declínio anunciado na saúde pública. A Bioética é um elemento de transformação para o futuro, não
apenas da medicina, mas da sociedade. Mas, para isso, é preciso atravessar a ponte de Potter.
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BRODY, H. The future of bioethics. New York: Oxford University Press, 2009.
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[3] CALLAHAN, D. La Medicina impossibile: le utopie e gli errore della medicina moderna. Milão: Baldini & Castoldi, 1999.
HERLZLINGER, R. Valor para o paciente: o remédio para o sistema de saúde. Porto Alegre: Bookman, 2011.
JONSEN, A. R. The birth of bioethics. New York: Oxford University Press, 1998.
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PELLEGRINO E. D.; THOMASMA, D. C. The virtues in medical practice. New York: Oxford University Press, 1993.
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SGRECCIA, E. Personalist bioethics: foundations and applications. Philadelphia: The National Catholic Bioethics Center, 2012.
Cícero Urban
Cirurgião oncológico e Mastologista. Professor de Bioética e Metodologia Científica no curso de Medicina e na Pós-Graduação da
Universidade Positivo. Mestre e Doutor em Clínica Cirúrgica pela UFPR. Chefe do Departamento de Cirurgia do Hospital Nossa
Senhora das Graças em Curitiba.
A relação médico-paciente é a peça fundamental de qualquer atendimento médico. O sucesso
terapêutico de uma consulta – domiciliar, ambulatorial ou em enfermaria – depende não apenas das
medicações que foram prescritas, mas principalmente do vínculo de confiança estabelecido entre o
profissional e o paciente assistido. Daí decorre o fato de a relação médico-paciente estar
intrinsecamente ligada à Semiologia Médica. Dessa forma, ao aprender a Semiologia, o estudante de
medicina deverá compreender, estudar e praticar a adequada relação com os seus pacientes e suas
famílias [1].
No contexto histórico, a relação médico-paciente sofreu inúmeras mudanças ao longo do tempo.
Inicialmente, ela era primorosa, solene e ocupava o ponto central da cena. Havia grande
pessoalidade nas relações entre a população e o médico, que muitas vezes era o responsável por
cuidar de várias gerações de uma mesma família. Nesse momento, o exame clínico era a única
ferramenta a ser utilizada para diagnósticos, de maneira que o contato entre o profissional e a pessoa
que buscava auxílio possuía grande proximidade física e emocional. Com o estabelecimento da
medicina científica e dos modelos hospitalocêntricos, essa relação tornou-se impessoal, sendo
resgatada nos últimos anos como a essência necessária para uma assistência bem-sucedida ao
paciente [2].
A primeira importante lição a ser compreendida pelo estudante de medicina durante o aprendizado
da Semiologia Médica é que, no contexto do atendimento ao paciente, o acadêmico exerce o papel de
verdadeiro médico na concepção do doente. No ato da assistência médica em um ambiente
acadêmico, ainda que deva ser realizado sempre sob preceptoria, é ao estudante entrevistador que o
paciente irá expor suas queixas, sua história, seus sentimentos e seus pudores. A exposição não é
apenas por meio dos relatos subjetivos durante a anamnese, mas também através do desnudamento no
momento do exame físico. Portanto, sempre que nos referirmos à importância e ao papel da relação
médico-paciente no contexto de um atendimento, esse conceito pode e deve ser extrapolado à
situação da relação estudante-paciente.
CASO 1
Estudantes de medicina iniciando o aprendizado da Semiologia Médica ficam receosos de entrarem
nas enfermarias do hospital-escola, com muito medo de abordarem os pacientes, sentindo-se
culpados pelo “incômodo” que causam às pessoas. Os acadêmicos de medicina relatam que não
podem fazer nada para ajudar os pacientes. Apenas incomodam, fazem perguntas demais
(anamnese) e não dão nada em troca.
É óbvio pensar que a boa relação médico-paciente é algo especial, que passa a ser construída na
medida em que o estudante vivencia experiências no contato com o doente. Não se aprende a
estabelecer um bom vínculo do dia para a noite. Pelo contrário, essa relação é desenvolvida ao longo
de anos, e mesmo os bons médicos, reconhecidos pela exímia relação médico-paciente e com alto
índice de sucesso terapêutico por longo período de experiência, podem encarar situações em que é
difícil o estabelecimento de bom vínculo com o doente. No entanto, é importante que o estudante
saiba que existem bases teóricas de estudo da relação médico-paciente que podem auxiliá-lo nas
vivências cotidianas. Vale ressaltar que o estudo dessa relação tão especial é de extrema importância
para a formação de um bom médico. Da mesma forma que se faz importante conhecer os fundamentos
orgânicos das doenças, é o bom vínculo com o paciente que possibilita um exame clínico completo,
com as informações necessárias para o reconhecimento da epidemiologia, etiologia, fisiopatologia,
diagnóstico e tratamento das mais diversas doenças. Saber escutar e enxergar o paciente permite a
percepção da fenomenologia do doente, envolvendo seus comportamentos, atitudes verbais e não
verbais, preconceitos, expressões faciais, entre outros, o que contribui de maneira preponderante
para o aprofundamento da relação médico-paciente e para a realização de um diagnóstico
multidirecional nem sempre com predominância orgânica.
Atitudes positivas do estudante, percebidas pelo paciente, abrem caminho para que ambos se
coloquem mais à vontade, com informações mais completas, com maior segurança e adesão. É o
aparato para o desenvolvimento de uma relação terapêutica.
Entre as diversas teorias já estabelecidas sobre esse tema, certamente foi a teorização feita por
Michael Balint – a teoria balintiana – a de maior importância no contexto da relação médico-
paciente.
Balint, médico psicanalista nascido em Budapeste em 1896, foi o responsável pela revolucionária
mudança de paradigma da relação médico-paciente. A metodologia utilizada por Balint para o
aprofundamento no estudo do tema foram reuniões de médicos clínicos gerais na Clínica Tavistok,
em Londres. Balint chamou de “seminários” os grupos de discussão em que eram expostos casos
clínicos considerados angustiantes e de difícil condução. Durante as trocas de experiências entre os
médicos, Balint percebeu aspectos semelhantes nas atitudes relatadas e utilizava seus conhecimentos
em psicanálise para analisar os aspectos envolvidos nos mecanismos de transferência e
contratransferência estabelecidos nos casos [2].
No livro O médico, seu paciente e a doença [5], Balint descreveu as categorias que fundamentaram
sua teoria: “o médico como droga”, a “organização da doença”, a “oferta da doença”, o “conluio do
anonimato” e a “função apostólica”. As categorias balintianas são instrumentos capazes de serem
utilizados no processo de ensino-aprendizagem dos preceitos envolvidos na relação médico-paciente
e podem auxiliar o estudante na compreensão desse universo que envolve o doente e o profissional.
Elas proporcionam uma atuação mais segura pelo discente em um ambiente complexo, cheio de
inseguranças e novidades, em um meio que envolve não apenas descobertas sobre o íntimo do
paciente, mas também aspectos até então desconhecidos sobre si mesmo.
CASO 2
O estudante acaba de realizar a anamnese e o exame físico. Durante o encontro clínico, escutou
histórias da vida da paciente, como sua relação difícil com seu filho usuário de drogas. Ao
terminar sua tarefa e despedir-se da paciente, esta lhe dirigiu a palavra:
“Doutor, obrigada por ter vindo conversar comigo. Só de lhe falar sobre meu sofrimento eu
melhorei! A dor da cabeça está quase passando... venha sempre que puder para me fazer uma
visita!”
O médico como droga é a categoria fundamental da teoria balintiana. Um dos tópicos de discussão
de Balint com os médicos nos seminários foi o de substâncias que habitualmente são prescritas pelos
clínicos gerais. Balint notou que a droga mais frequentemente utilizada na prática clínica era o
próprio médico, ou seja, que não importava o frasco ou cartela de remédios receitados, mas o modo
que o médico os oferecia ao paciente [5]. Assim, a discussão revelou que o profissional, ao
prescrever um medicamento, coloca na receita muito de si e da relação instituída com o paciente, de
forma a ampliar, ou não, o efeito do remédio por ele receitado [2]. A função “droga” do médico
interfere no tratamento e na adesão do paciente às orientações propostas, resultando na melhora do
paciente ou em sua piora, a depender do vínculo estabelecido no momento do atendimento [2] [5].
Assim como os médicos, os estudantes de medicina também têm “função droga” e precisam saber
como utilizá-la. A cada encontro clínico o acadêmico pode, através da relação estabelecida com seu
paciente, ajudá-lo a sentir-se melhor ou deixá-lo mais angustiado, ansioso ou preocupado. Saber
dosar-se de maneira correta depende do aprendizado teórico-prático da relação médico-paciente e
sem dúvida é durante o treinamento da Semiologia Médica o melhor momento para esse aprendizado
tão especial.
As duas categorias seguintes dizem respeito ao paciente e correlacionam-se entre si. Trata-se da
organização da doença e da oferta da doença. Balint pôde observar que a consulta médica é um
ambiente propício para o desabafo das angústias, anseios e carências dos pacientes, que estão
cercados pelos aspectos psicossociais em que estão inseridos [5]. Ao se consultar, o paciente leva ao
médico queixas somáticas, que são organizadas ao longo do tempo para propiciar a busca por auxílio
(vide o exemplo do caso 2).
Evidentemente que algumas pessoas submetidas a situações de muito estresse podem buscar o
médico ofertando queixas vagas ainda não tão bem organizadas. Com frequência o paciente busca
atendimento médico inicialmente com uma doença “não organizada”, muitas vezes mal
compreendida, até que consiga “organizá-la” em sinais e sintomas coerentes. Vale ressaltar que a
organização da doença e a oferta das queixas ao médico não é um processo consciente, sendo, pois,
da ordem do inconsciente de cada pessoa. Isso equivale dizer que de maneira alguma essas
categorias balintianas apontam para uma situação de mentira ou de simulação.
Após organizar a enfermidade, o paciente a oferece ao médico, que pode aceitá-la ou recusá-la.
Nesse contexto, talvez o principal efeito adverso do médico na sua função “droga” seja o modo com
que ele reage em relação às ofertas do paciente [5]. Assim, percebe-se que a oferta da doença é uma
consequência de sua organização realizada a partir do meio social. É importante ressaltar que em
nosso meio cultural o termo “organização” costuma ser concebido como algo positivo. No entanto, a
organização da doença como categoria balintiana não configura algo bom para o paciente, pois o
leva ao adoecimento na medida em que torna de difícil modificação ou desmistificação a
enfermidade por ele elaborada, organizada.
O conluio do anonimato diz respeito a uma situação cada vez mais frequente e temida vivenciada
no mundo atual [2]. Diante de casos difíceis de serem conduzidos, o médico encaminha o paciente a
diversos especialistas diferentes, sem que as condutas e tratamentos sejam harmonizados e
complementados. Essa atitude resulta em uma falta de “dono” do paciente, um médico que reúna
todas as opiniões e sugestões terapêuticas em um único projeto terapêutico e que leve em conta as
possíveis interações medicamentosas existentes. Em casos de conluio do anonimato, nenhum dos
profissionais envolvidos assume, de fato, a responsabilidade pelo paciente, dessa forma o sucesso ou
insucesso do tratamento não pode ser atribuído a nenhum deles [5].
A quinta categoria trata-se da função apostólica. Essa última categoria consiste em opiniões,
conselhos e orientações médicas que carregam consigo a personalidade e a cultura do médico. O
profissional desconsidera as concepções e a realidade do paciente, impondo a ele aquilo que pensa
ser o correto, o que não é seu papel. A função apostólica envolve características históricas de que as
opiniões e conselhos do médico são corretos e inquestionáveis, além de indicar a necessidade que o
médico tem de provar a todos que é um profissional bondoso e bem intencionado em ajudar, ainda
que envolva orientações baseadas no senso comum. Os acadêmicos de medicina em aprendizado da
Semiologia muitas vezes incorrem no erro de praticar a função apostólica por não saberem o que
fazer diante de pacientes que choram ou se queixam de situações trágicas. Cabe aos estudantes
buscarem a tranquilidade de uma escuta atenciosa e não a pressa de falar palavras vagas e muitas
vezes não verdadeiras, como por exemplo dizer a um paciente terminal que ele vai ficar curado de
sua doença.
Outro ponto importante a ser colocado para a compreensão do estudante de medicina é que deve
sempre estar atento à sua própria saúde física e mental. O acadêmico é um profissional de saúde
cronicamente exposto a situações estressoras não apenas em relação às demandas do paciente e do
curso de Medicina, mas também no que diz respeito a relações interpessoais com os membros da
equipe multiprofissional, os professores e colegas [6] [7]. Esse contexto pode resultar em uma
síndrome psicológica descrita no final do século XX, a chamada síndrome de Burnout. A síndrome
reúne os sinais e sintomas relacionados à tríade de despersonalização, exaustão emocional e
diminuição da realização pessoal. As manifestações são orgânicas e psíquicas e incluem cansaço,
desmotivação, irritabilidade, frieza na relação com as pessoas e frustração profissional com falta de
perspectivas para o futuro. A síndrome de Burnout provoca repercussões não apenas no meio
profissional, mas também no convívio do estudante com os familiares, amigos, namorado(a),
acarretando um desajuste completo dos meios social e profissional em que está inserido. Dessa
forma, é importante o desenvolvimento de mecanismos de defesa adequados no intuito de lidar com
os diversos fatores de risco a que o estudante está exposto no cotidiano, objetivando prevenir o
desenvolvimento da Burnout e as manifestações a ela relacionadas [6] [7].
Nesse contexto, o conceito de coping faz-se importante, na medida em que atua como fator de
proteção à síndrome de Burnout. Consiste no conjunto de estratégias utilizadas para que o indivíduo
consiga adaptar-se às situações estressoras. Uma das formas mais conhecidas de coping é a
utilização da comunicação interpessoal objetivando compartilhar com outras pessoas as situações e
sentimentos angustiantes vivenciados pelo profissional durante experiências adversas. Atividades
físicas e de lazer também configuram importantes possibilidades de atuação como mecanismos de
defesa a fatores estressores, atuando como coping [6][7]. Ainda, os chamados Grupos Balint, com
essência semelhante aos seminários de discussão realizados por Michael Balint na Clínica Tavistok,
em Londres, são realizados de maneira curricular e extracurricular em diversas universidades no
Brasil e no mundo, configurando mais uma alternativa de coping para os profissionais de saúde.
Finalmente, é necessário que o estudante de medicina compreenda que se encontra em processo de
aprendizagem. O paciente é capaz de notar quando está diante de um profissional sincero, sendo de
suma importância que o acadêmico reconheça suas limitações e esteja sempre sob preceptoria, para
que possa ter suas dúvidas esclarecidas. Termos como “não sei”, “precisamos estudar melhor”, “vou
perguntar ao professor” são nobres, e ao contrário do que pensa o estudante podem contribuir para
que o paciente não se sinta enganado e tenha uma transferência positiva.
Além disso, o acadêmico irá se deparar com situações de pacientes e/ou acompanhantes hostis, que
deixarão claro não desejarem ser atendidos por estudantes. É um direito que deve ser respeitado, e o
estudante não deve se sentir desencorajado. Pelo contrário, deve encarar esse tipo de adversidade
como uma insegurança inerente a determinados pacientes, talvez um desafio a ser vencido durante sua
trajetória profissional como acadêmico/residente/médico.
Referências bibliográficas
[7] BALDASSIN, S. Atendimento psicológico aos estudantes de medicina (técnica e ética). 1. ed. São Paulo: EDIPRO, 2012.
[5] BALINT, M. O médico, seu paciente e a doença. São Paulo: Atheneu, 2005.
[2] BRANCO, R. F. G. R. (Org.). A relação com o paciente: teoria, ensino e prática. 1. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan,
2003.
[6] GUIMARÃES, K. B. S. (Org.). Saúde mental do médico e do estudante de medicina. 1. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo,
2007.
[3] KAHN, M. Freud básico: pensamentos psicanalíticos para o século XXI. 1. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
[1] PORTO, C. C. (Org.). Semiologia médica. 6. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2010.
[4] SALINSKY, J; SACKIN, P. Médicos com emoções: identificar e evitar comportamentos defensivos na consulta. 1. ed. Lisboa:
Fundação Grünenthal, 2004.
Adesão ao tratamento
Podemos definir adesão ou aderência como a utilização dos medicamentos prescritos ou outros
procedimentos em pelo menos 80% de seu total, observando horários, doses, tempo de tratamento.
Representa a etapa final do que se sugere, como uso racional de medicamentos. [2]
Uma definição mais ampla considera aderência como uma conduta do paciente em termos de tomar
medicamentos, seguir as dietas e executar mudanças de estilo de vida coincidindo com a prescrição
clínica, ou seja, aderência não é um problema do paciente ou causado exclusivamente pelos
pacientes. [3]
Aderir ao tratamento significa aceitar a terapêutica proposta e segui-la adequadamente. A adesão à
terapêutica tem sido considerada fundamental para a resolubilidade de um tratamento ou para a
redução do número de hospitalizações.
De acordo com Leite e Vasconcellos, as razões de não adesão ao tratamento medicamentoso são: o
acesso econômico aos medicamentos, o número muito alto de medicações prescritas e o esquema
terapêutico, mesmo quando o medicamento é fornecido gratuitamente, os efeitos colaterais e a
ausência de sintomas em algumas fases da doença. [2]
A análise de quatro décadas de pesquisa sobre a adesão, os seus determinantes e intervenções, bem
como o conhecimento acumulado ao longo dos anos sobre a prevalência da não adesão levaram o
adherence project [10] da OMS (2003) a emitir um conjunto de mensagens ou recomendações com
relevância para a prática dos cuidados de saúde no âmbito das doenças crônicas e que traduzem o
“estado da arte”, no que se refere ao conhecimento e intervenção relativos à adesão ao regime
terapêutico:
Alguns pacientes não aderem ao tratamento porque se recusam a aceitar que possuem a doença.
Apesar da importância de aderir, em muitos casos os pacientes não o fazem. Segundo a OMS, “não
há como negar que pacientes têm dificuldade em seguir o tratamento recomendado. A baixa adesão
ao tratamento de doenças crônicas é um problema mundial de magnitude impressionante. A adesão ao
tratamento de longo prazo em países desenvolvidos é em torno de 50%. Em países em
desenvolvimento as taxas são ainda menores”. Além disso, muitos pacientes interrompem o
tratamento de longo prazo de sua doença à medida que ela é controlada. No entanto, essa atitude pode
representar risco à saúde, como o retorno dos sintomas, o aparecimento de complicações e, em
alguns casos, o surgimento de resistência ao medicamento. Segundo a OMS, “melhorar a adesão ao
tratamento pode ser o melhor investimento para gerenciar as condições crônicas de maneira efetiva”.
Um estudo conclui, por exemplo, que a maior adesão ao tratamento da asma entre idosos acarretou
em uma redução anual de 20% nas internações hospitalares entre esse público.
Os benefícios da adesão se estendem aos pacientes, às famílias, aos sistemas de saúde e à
economia dos países. O paciente passa a ter a sua condição controlada, podendo, na maioria das
vezes, manter uma vida normal e economicamente ativa. A família pode se dedicar a outras
atividades e deixar de lado seu papel de cuidadora. O sistema de saúde economiza com a redução de
internações emergenciais e intervenções cirúrgicas, e a economia ganha com o aumento da
produtividade. [5]
O tema é relevante para a prática clínica do médico de família e comunidade, pois se observa que
mais de 85% dos pacientes podem ser não aderentes em algum momento do curso de sua doença. [6]
Semi Haurani
Especialista em Medicina Interna e Cardiologia. Mestre em Cardiologia. Coordenador do Programa de Internato no Departamento de
Clínica Médica da UFPR.
É rotina na vida de um médico frequentar uma UTI, mesmo não sendo sua especialidade. Atender a
pacientes internados, visitar pacientes, familiares e amigos faz com que você, atento, entenda a
dinâmica que envolve esse setor. A vida e a morte em constante confronto. Mal sabia eu que logo
estaria em uma UTI.
Fazemos da vida como se estivéssemos em um trem em alta velocidade, moderno, perfeito, envolto
em altas tecnologias, a paisagem passando pela janela em estonteante rapidez, sem que atentemos
para os detalhes, as cores, os contornos e a vida que corre lá fora. Estamos muito mais voltados para
nossas próprias coisas, para nossa própria viagem, focados em nós mesmos, em atingirmos objetivos
pré-traçados, alguns sem lógica alguma, numa correria sem muito sentido.
Parece que tudo isso nós já sabemos, porém negamos. Acreditamos que temos que fazer tudo, sem
tréguas e pronto. O estresse tornou-se nossa dependência. Sem ele tudo parece não ter muito sentido.
“O que conta é a adrenalina”. E a vida segue. Num dia pacato, sereno e tranquilo, num repente, como
se parado instantaneamente por uma força descomunal, o trem estanca.
O tempo parece parar. Não há barulho algum, nem choro, nem desespero, mas sim uma indescritível
sensação de que algo de muito grave está em evolução. Um leve desconforto gástrico, azia talvez?
Sim, nada mais sério. Mas e as gotículas de suor na testa em um dia de frio? Talvez o esforço de
brincar com o neto? Talvez. As perguntas são muitas e as respostas, difíceis.
E o crescente aperto no peito, indescritível, soturno, quieto, opressivo, amedrontador. A lembrança
que assoma à mente é a descrição do meu professor de cardiologia, que relatava o momento de
enfarto como num dia de céu azul e limpo. Um raio cai sobre seu peito, rasga-o e uma poderosa mão
de aço o aperta sem piedade. A imagem que assume a consciência é a de um elefante sentando em
meu peito, e penso: “Que merda, estou enfartando!” Eu não sabia que o trem veloz que me levava
transportava também um elefante. Eu nem tinha percebido o circo...
O que fazer? Como agir?
Volta a dúvida que tenta esconder a verdade. Não deve ser nada. O raio caiu mesmo. É tudo.
A opressão no peito é contínua, o suor aumenta, respirar só superficialmente, o suspiro não alivia,
nem tampouco a tosse... Que falta nos faz o oxigênio!
Então, a certeza assume o espetáculo. Está deflagrada a guerra entre Tanatos (a morte) e Eros (a
vida). Medo? Não há tempo para sentir! O seu psiquismo muda radicalmente, as percepções são um
tanto confusas, irreais, contrastando com a realidade. Um sentimento estranho de solidão. É você e
seu corpo. Nada mais. Nesse momento impera a absoluta incerteza. Uma esquisita sensação de que a
luta é somente sua, solitária e é quem vai determinar as ações seguintes. De maneira fria e calculista
vem o apelo: “Filho, leve-me ao hospital que estou infartando.”
Ele não duvida. A fotografia devia estar assustadora. A negação funciona, não para mim, mas para a
família. Ninguém aceita um pedido desses, facilmente. Mas, pelo que viram, o crispar das mãos, a
sudorese e a mudança da cor e a súplica, começa a corrida. Agora pela vida. Tanatos e Eros estão
empatados. No carro, ora suplicando pressa, ora pedindo cautela, tudo parece muito distante. O
pensamento, tentando driblar a dor, também acelera. Tenho dúvidas. Muitas. Um pensamento
ridículo: “Pô, não posso morrer, pois nem me despedi da família, meu!”
Como o tempo é relativo. O que pareceu uma eternidade na realidade foram alguns minutos até
chegar ao hospital. A rapidez do atendimento, desde a chegada à emergência até a mão quente e
tranquilizadora de um membro da equipe de atendimento já é a primeira “medicação”. A primeira
avaliação ainda na cadeira de rodas confirmou: é infarto! Nesse momento, o que poderia ser meu
erro de avaliação teve sua confirmação oficial. É inacreditável que, mesmo sendo médico, a
expectativa era de não ouvir este diagnóstico. O que nos matam é a racionalização e a negação. A
recusa de nosso psiquismo em aceitar a verdade. Novamente a sensação ambivalente. É como a
“briga”, mas agora tenho ajuda. Serão dois contra Tanatos. Incontinenti, peço ajuda aos céus.
“Nossa Senhora da Luz! Fica aqui comigo. Não me abandone AGORA, estende teu manto, abriga-
me!”, rezei, no meio da dor. Interessante esse momento. O sentimento de que a sua crença em um
poder superior descortina a você uma força que até então não tinha sido percebida. É irreal estar
deitado, olhando as luzes acima de você tal qual tantas vezes assistimos nos filmes. Aquilo não era
filme! Era verdade, e o artista principal era eu.
A entrada da equipe médica, a precisão da movimentação da enfermagem ao meu redor, os
procedimentos, e um agradecimento pela rapidez da chegada e uma súplica, “arranca de mim esta
dor”. Tal qual uma orquestra afinada, o espetáculo se desenrolando à minha volta, trouxe-me o alívio
da dor maior. Assistir a todo o procedimento, vendo nervosos cateteres buscando a lesão, numa
contemplação estranha é, no mínimo, surreal. Meu coração sendo invadido e eu nem aí! Nem penso,
observo. Não há medo, é tudo muito rápido, o mundo fora de você não tem muita importância. O
importante é cada segundo que se passa dentro da sala e dentro de meu peito. Penso, estou negando?
Estou dissociando, isso não é comigo. Entendo melhor, na prática, o que são mecanismos de defesa
psicológicos. Aquele órgão pulsante no monitor será mesmo o meu? Sim, desaba a realidade sobre
mim. É o meu coração. Novas preces. Que aconteça o melhor! Aí, as palavras esperadas: “OK,
terminamos, correu tudo bem!”
Que calma absurda. Dá para acreditar no que aconteceu? Comigo? Médico é imune ao sofrimento
de estar doente? Não, não é. Por alguns segundos fico sozinho na sala. Aí então penso: e a minha
família, como estará? Já sabem o que aconteceu? Então pela primeira vez eu chorei. Não por mim,
mas por eles. Tempo para minha mente sair em disparada. E agora? Como? E eu me assusto! Correr,
não quero mais! Eros acaba de marcar um gol. Porém, o segundo tempo está para começar. E você
mergulha em um verdadeiro turbilhão de emoções. Tenho mil coisas a fazer! Segura, peão. O elefante
acabou de sair de seu peito. Não se esqueça de que ele deixou a sua marca. Sua vida agora muda?
Seu status muda? Sua rotina muda? Seus medos mudam? Sou resgatado pela realidade novamente. O
convite para passar para a maca e irmos à UTI. Palavra que nunca assustou, passa a ser assustadora.
Lembranças das vezes em que acompanhamos pacientes e familiares a esse local de luta pela vida.
Eu lá. Nunca tinha imaginado. Ou sabia, talvez, que um dia...
Agora, com uma calma estranha, inicia-se a ida ao “centro”. Deitado, atento aos movimentos da
maca, as luzes passando sobre mim, tal qual em muitos filmes. Penso, que importante essa dança das
luzes sobre mim. Corredores, elevadores... Lembro-me de William Hurt no filme “Um golpe do
destino”. A mudança de status! Sim, de médico à condição de paciente. Diferente, para não dizer
estranho. Nada mal! Vamos aprender algumas lições, certamente. E elas começam imediatamente.
Tubos, conexões, fios, monitores, aparelhos, picadas, apertões, tudo acontecendo como se numa nave
espacial. Sinto-me um astronauta.
Que viagem! Penso muito. Em tudo que deixei para trás. Minha esposa, meus filhos e meus netos. Já
estou com saudades. Não tenho nenhuma possibilidade de ouvi-los. À enfermagem uma chantagem:
“Meu reino por um celular, senão serve meu notebook.” Nada. Tudo gentilmente negado por um
grupo de jovens enfermeiros e auxiliares, incrivelmente afetivos, humanizados, conscientes do local
em que trabalham. Meu elo de contato com o exterior, neste momento “sem conexão”. E aí, a rotina
diária, repetitiva, enfadonha. Olhar para o teto e pensar. Pensar e pensar. Lembro-me da música: “Vá
pensamento...”, é Verdi? Não tenho certeza. Mas o que importa? Pensar é um ato de bravura, mesmo
porque tudo que você planeja não vai acontecer. Pelo menos, enquanto durar meu isolamento. O
relógio na parede segue seu ritmo. Mas eu duvido que as pilhas sejam novas. Devem estar fracas. O
tempo não passa! Quero que corra! Não, não! Devagar, creio que aprendi a lição. Será que acredito
mesmo, ou estou tentando ser bonzinho? Bem, o tempo dirá. Esperemos. Aí, palavras mágicas. Aliás,
onde estou é pleno de palavras mágicas!
Visita! Deus, como esperei este momento. A família entra. Que situação! Que estranho. Há menos
de um dia tudo era diferente! Agora, uma sensação jamais experimentada. O calor do beijo, das
mãos, aquece a alma. Não há lamentos, nem queixumes. Somente a aceitação passiva da realidade
dos fatos. O agradecimento conjunto à ajuda dos céus. Novamente a ela, Maria, a Boa Mãe! Algumas
diretrizes são dadas, comandos. Indispensáveis. Avisar pacientes, amigos no local de trabalho. A
mesa de trabalho entulhada de documentos para serem processados, lidos, encaminhados. Nada
disso! Para tudo. O alvo sou eu, minha recuperação.
Relógio desgraçado, só corre na hora das visitas. Acabam rápido demais! Quero mais tempo!
Sossega, leão! Não aprendeu a lição? E o relógio volta ao seu enervante ritmo lento. As horas agora
passam a ser contadas de forma diferente. Quanto tempo falta para novas visitas? E assim passam os
dias.
Se pensamento tivesse peso, certamente eu ganharia uma fortuna vendendo-os. Promessas internas,
resoluções, intenções, ideias novas, outras requentadas, partes de um novo começar.
E a massacrante rotina continua. E aquele trem? O que foi feito dele? Dane-se. Não quero nem
saber. O que imagino agora é um carro de boi. É este que me conduzirá daqui para frente. Ops... Será
mesmo? Mentira, estou fazendo média, comigo e com a família. Terei outro ritmo. Não do veloz trem,
mas um que permita que eu permaneça vivo, que é o que realmente conta!
Com essas reflexões em pleno andamento e já habituado ao espaço onde estou confinado, ouço
novas palavras mágicas. “Sai hoje da UTI, vai para o quarto e amanhã... casa!”. Poucas pessoas já
experimentaram esta sensação. Ir para casa, voltar ao seu espaço, aos ruídos, aos cheiros que eu
conheço. Penso: “Arre, escapei desta! Obrigado, Senhor.”
A saída do hospital é outro grande momento. Um ato tão banal, mas ao mesmo tempo tão
emblemático. Quem está saindo é alguém muito diferente de quem entrou. Levo na bagagem tudo
aquilo que vivenciei, que pensei, que orei e que chorei. Essa lição não é para ser esquecida.
E não será! O tempo confirmará.
E o elefante? Ah! Este jamais poderá ser perdido de vista. Dependendo de mim, no meu peito ele
não senta mais!
Retornar à vida normal é uma nova experiência. Enxergamos o mundo de outra maneira.
O modelo de vida anterior a tudo isso é revisto. Restabelece-se a autoconfiança. Na reconsulta, após
alguns dias, nova experiência. Após o exame físico, avaliação dos exames laboratoriais, de uma
maneira empática, serena e assertiva, o cardiologista confirma outro diagnóstico: obstrução arterial
grave. Opções: tratamento clínico ou cirúrgico. Opto com muita angústia pelo procedimento
invasivo. Intensas emoções ressurgem com os medos e ansiedades, já velhos conhecidos. A postura
do cardiologista, empática e serena, decidida em seus movimentos, foi decisiva para enfrentar esse
momento crucial. Ter confiança no médico é absolutamente decisivo para o enfrentamento.
A partir daí, a verdadeira experiência de ser paciente. Chegar ao hospital para os procedimentos
burocráticos é embaraçoso. Constrangedor para quem sempre esteve do outro lado da recepção. A
entrada no quarto em companhia da família gera uma estranha sensação de solidão, incerteza,
parecendo algo irreal e absurdo. Muitas dúvidas, perguntas que necessitam de respostas imediatas,
mas não as tenho. A enfermeira transmite as orientações iniciais sobre quais procedimentos serão
executados. Troco de roupa, visto o pijama e me torno paciente. Estar doente implica em
insegurança, impotência, sentimentos de perda, insights que nos remetem à infância. Tudo é
problemático e incerto.
A partir desse momento até o dia da alta, um novo mundo abriu-se à minha frente. Começa com a
tricotomia. Ato banal da enfermagem que se transforma no primeiro momento de outros
absolutamente constrangedores que serão vividos. Ficar nu, em pé, no meio do quarto. Estar despido
a princípio é embaraçoso e absolutamente desconfortável. A partir de então, mesmo tendo pudores,
você se habitua a estar nessa situação nas várias ocasiões de invasão à sua privacidade. Sendo
assim, para qualquer um, mesmo doente, estar despido pode significar desconforto e embaraço. É a
atitude profissional e empática que torna possível a superação dessa experiência.
Enfim, assim é e assim será. A chegada do técnico para coleta de sangue representará, a partir daí,
mais sofrimento. Dores desconhecidas, até então, farão parte da rotina durante o internamento. Coleta
de sangue arterial, anticoagulantes, angina, levam-me de imediato à UTI. Sedado, não participo das
ações pré-cirúrgicas. Acordo cinco dias depois, sobrevivente de um tamponamento cardíaco,
experiência de sair do corpo e coma. Nenhuma lembrança, nenhum medo, apenas o despertar confuso
e desorientado no tempo e no espaço. A família em torno é uma linda e tranquilizadora visão.
Desde a academia, raramente os jovens médicos aprendem a importância do trabalho conjunto com
a equipe de enfermeiros, auxiliares, técnicos, etc. Considerados como “concorrentes” no atendimento
ao paciente, deixam de merecer o devido respeito. A convivência maior durante todo o tempo de
internamento é com essas pessoas. Profissionais responsáveis, éticos, afetuosos, pacientes, mantendo
as rotinas e o funcionamento deste espaço o menos traumático possível ao doente, que vê o
enfermeiro como o seu depositário de medos, ansiedades, dúvidas, receios. Toda a gama de
sentimentos é repartida com o enfermeiro. O médico, por sua rotina diária, necessitando visitar os
pacientes sob sua responsabilidade, não pode arcar também com um contato mais prolongado com o
paciente. As visitas tendem a ser técnicas e objetivas, não dando ao paciente tempo suficiente para
atender seu sofrimento emocional.
A perspectiva que o paciente tem da movimentação na UTI faz com que sua atenção esteja focada
em todos os detalhes do que se passa a sua volta. Fica-se hipervigilante. Cada ruído, passos,
movimentos em torno, pessoas murmurando parecem ameaçadores. Entende-se então a dimensão
exata da responsabilidade dos funcionários desse setor. Atender às solicitações incessantes dos
pacientes exige empatia, serenidade e profissionalismo. A rapidez de ação em situações de
emergência lembra o pit stop em uma corrida. Quando você ocupa o leito, um sentimento muito
especial toma conta de você. Estar ali junto com outros pacientes, com os quais você não se
relaciona e que não conhece, desperta um sentimento de que estamos juntos numa “corrente” em prol
da sobrevivência.
A mudança de status é significativa. De profissional que cura agora você se transformou em alguém
a ser cuidado. Suas percepções tornam-se muito mais acuradas. É perfeitamente possível identificar
as modificações psicológicas que estão acontecendo. A visão a partir do leito com outros pacientes
sofrendo tira do médico a possibilidade de sair de onde está para ajudar o outro. É frustrante. Essa
experiência vivida mais as lições tiradas de todos os momentos resultam em uma alteração drástica
da forma como você passa a ver a sua vida e a própria medicina. A paciente que estava no box ao
lado do meu, senhora idosa, em coma há várias semanas. Não conhecia nada sobre ela, nem mesmo
sua voz ou cor dos seus olhos. Quando soube que ela tinha falecido senti como se tivesse perdido
alguém muito querido. A falta sentida me fez chorar. Senti-me por alguns dias em luto. Muito a
refletir sobre esse sentimento!
Porém, não podemos negar que estar numa UTI implica também em muito “trabalho” para o
paciente aguentar o correr das horas de um dia. Por exemplo: a alvorada festiva (perder o bom humor
nestas circunstâncias piora o sofrimento). A alvorada começa bem cedo com eletrocardiograma,
radiografia, às vezes tomografia, coleta de material, picada da glicemia, troca de veias, gotejamento
endovenoso, medicamento via oral, nebulização, banho no leito, de cadeira depois no chuveiro,
curativos, fisioterapia respiratória, monitoramento cardiorrespiratório, visita do médico e, em algum
intervalo, café da manhã.
No período da tarde é esperar o tempo passar: a paciência, o pensar em tudo, o pensar em nada,
orar, as reflexões, o planejar do estar sozinho, a espera pela família, nada alivia as tensões desse
período do dia. Atrelado a um leito em decúbito dorsal, praticamente sem se movimentar grande
parte do dia, alternando com o sentar na poltrona é outra experiência dolorosa. Você sente saudades
do que seja uma verdadeira poltrona.
É estudando o que é vocação que se entende o que é ser enfermeiro nos momentos da hora dos
banhos, dos curativos, do controle do gotejamento de soros, do atentar para os dados vitais e do
participar dos momentos críticos para o paciente que é a sua higienização depois de idas ao
banheiro. A higiene da área genital e perineal são igualmente desconfortáveis. A exposição de sua
intimidade gera ansiedade e desconforto. Em momento algum essa atividade da enfermagem é aceita
naturalmente.
Os primeiros banhos no leito são vividos de maneira estressante: a exposição de sua nudez e a
autoestima baixa são constrangedoras. Adapta-se a isso com certa facilidade. Mas, na etapa seguinte,
o que já foi superado em termos de banhos recrudesce no banho na cadeira. Experiência muito
estranha. Mas, finalmente quando se vai ao banho no chuveiro, tudo é deixado para trás.
Não podemos esquecer que a parceria com a enfermagem é que possibilita a transmissão de
informações decisivas percebidas durante o plantão às quais o médico jamais teria acesso que não
pelo diálogo paciente com os enfermeiros.
Nenhum funcionário em contato com o paciente é dispensável. Nutricionista, fisioterapeuta,
higienizadora estão fazendo parte dos “invisíveis”, aquelas pessoas nas quais prestamos pouca ou
nenhuma atenção. Foi com uma higienizadora que aprendi muita coisa sobre a doença, sobre o
sofrimento e sobre a sua responsabilidade na evitação das infecções hospitalares. Também nela
identifica-se a forma humanística com a qual desenvolve seu trabalho.
Estar internado com dores, angústias, incertezas dá a sensação de desgoverno total de sua vida.
Mesmo a autoestima e a autoimagem tão cultivadas durante a vida nessa fase tendem a desesperá-lo.
Nenhuma frase de efeito, nenhum estímulo é maior do que você redescobrir a fé. Orações passam a
ser sua tábua de salvação. Saber que oram por você fortalece seu espírito e lança-o à luta com muito
mais confiança. Acreditar que você não está sozinho e que um Poder Superior, conforme cada um o
concebe, é um verdadeiro bálsamo. Ter fé nesses momentos, além da sensação quase física da
presença deste Poder, embala você em expectativas de um bom fim, seja ele qual for, além de ocupar
sua mente e seu coração, aliviando-os da constante tensão das incertezas, descortinando à sua frente a
esperança. O entendimento da fragilidade da vida, da imperiosa necessidade de lutar por ela em um
ambiente em que a morte ronda a todos tem que ter por parte de nós, médicos, a compreensão de que
as crenças do paciente fazem parte de seu arsenal de sobrevivência. Falar sobre fé e a importância
das orações não fragiliza nem expõe o médico, mas sim o humaniza. Saber que médico professa
alguma fé e assim se declara permitindo um diálogo dá a sensação de que ele está mais perto de você
e é capaz de entendê-lo melhor.
Entre todas as emoções sentidas, a relação de você, médico, com os colegas é a mais emblemática.
Estar na posição de paciente exige, sem exageros, uma nova reprogramação psicológica. O que
sempre foi lado a lado com um colega passa a ser “do outro lado da mesa”. Não é fácil assumir o
papel de paciente. A fragilidade vivida intensamente pelo paciente faz com que mínimos gestos
passem a ter uma importância fundamental. Por exemplo: um cumprimento, identificar-se para o
paciente, demonstrar interesse não só em relação às queixas ou ao estado clínico, mas também em
relação ao seu quadro emocional. Ser empático, colocando-se na posição do paciente, possibilita aos
profissionais entenderem que aquele atendimento tão rotineiro é para ele uma nova experiência
perturbadora, mesmo que ele já tenha tido outros tratamentos anteriormente. Toda situação nova gera
ansiedade.
Receber as explicações de como estão seus exames, suas imagens, as explicações sobre quais serão
os passos a serem seguidos gera muitas expectativas. Fazer perguntas, dirimir dúvidas é feito de
modo mais cauteloso. A terminologia usada não é a da minha especialidade. Nesse momento
consolida-se a relação de confiança do paciente com seu médico.
A prévia já havia acontecido quando da escolha do profissional para o qual, sem querer ser
dramático, você se entrega literalmente. Você entrega nas mãos do cirurgião sua vida, seu coração. A
rotina diária não permite ao médico, qualquer que seja sua especialidade, perceber o quanto de
sagrado existe na relação médico-paciente. Ser médico não é para qualquer um. Temos que atender
ao chamamento (nossos componentes emocionais, racionais, irracionais, idealizações, espirituais e
outros), que é a nossa verdadeira vocação.
Para um médico psiquiatra, “estar paciente” é uma grande oportunidade de entender melhor como
funciona essa relação. A busca incessante nos contatos pessoais é a compreensão e a interpretação
do que é dito e principalmente do que não é dito. É fácil perceber, creio que mesmo para um leigo, a
quantidade e a intensidade das emoções que estão permeando uma relação. Identificam-se claramente
as dificuldades de outros médicos no relacionar-se com o colega doente. É muitas vezes embaraçoso
estarmos diante de um colega que necessita de seus cuidados. Entre os médicos mais jovens esse
comportamento é percebido muito mais facilmente.
Fato que merece também alguma consideração é a comunicação da alta. Nós, médicos, não temos a
percepção clara da importância do momento em que é comunicada a alta. Essa palavra mobiliza uma
torrente de sentimentos. Por mais paradoxal que possa parecer, abandonar esse local protegido, com
atenção permanente, pela volta para casa, gera medo. Abre-se um questionário angustiante. Estarei
seguro em casa? Serão os atendentes capazes de identificar alguma ocorrência clínica tardia? Estará
o médico disponível para uma consulta, mesmo que pelo telefone?
Finalizo com algumas reflexões. A experiência vivida “do outro lado”, pessoalmente ou como
profissional e professor, será levada até o fim de minha vida. Descubro como paciente que parece
haver outra medicina além daquela que praticamos. Fica muito claro o quanto precisamos, numa era
altamente tecnicista da medicina, resgatar o que parece não ser tão importante nos dias de hoje, que é
a relação médico-paciente. Precisamos resgatar o nosso papel de sacerdotes, interessados,
empáticos, humanos. Humanização não é resolução, lei ou norma a ser seguida. Não se aprende
humanização em palestras, seminários. Humanização é atitude. É o reconhecimento piedoso da
importância e da responsabilidade de merecermos a confiança inabalável de uma pessoa em busca de
nosso socorro.
Enfim, passar por tudo o que passamos no decorrer de nossas vidas exige que aprendamos algumas
lições. Eu aprendi muito. Sou outra pessoa e outro profissional. Pratico outra medicina.
Dagoberto Hungria Requião
Médico especialista em Psiquiatria. Professor de Psiquiatria da Escola de Medicina da PUCPR. Assessor da Pró-Reitoria Comunitária
da PUCRPR na implantação do Programa de Qualidade de Vida. Diretor da CIPAE – Consultoria e implantação de programas de
prevenção de drogas e desordens emocionais em empresas e escolas. Ex-presidente da ABEAD (Associação Brasileira de Estudos
sobre Álcool e Outras Drogas), atual membro de seu Conselho Consultivo.
No final da década de 1980, então Coordenador do curso de Medicina da UFPR, observei na
interação com alunos, professores e egressos uma insatisfação generalizada com o currículo do curso
de Medicina da UFPR, tanto interna quanto externamente à Universidade.
Na época, numa reunião entre Ângelo Luiz Tesser, Sergio Zuñeda Serafini, Roseli Boerngen
Lacerda e demais membros do colegiado do curso de Medicina, além de outros professores
interessados em modificar aquela realidade, solicitamos a orientação da Pró-reitora de Graduação,
pedagoga Maria Amélia Sabagg Zainko.
Foi elaborada uma pesquisa com alunos, professores e egressos e confirmou-se a enorme rejeição
ao currículo da época, que era constituído por mais de 80 disciplinas ofertadas de maneira
desintegrada, intensamente teórica e superespecializada.
Após discussões com os componentes do colegiado do curso foi proposta a realização de uma
pesquisa-ação, tendo sido convidados grandes expoentes das mais diferentes concepções
curriculares para proferir palestras a professores e alunos acerca das diversas concepções
curriculares.
As palestras foram gravadas e transcritas para todos os professores e alunos, para que tomassem
ciência das várias concepções e optassem pela proposta de reforma curricular que melhor atendesse
à opinião da maioria dos participantes do projeto da reforma curricular. Foi elaborado um
questionário para ser respondido pelos alunos, professores e egressos.
A análise das respostas ao questionário produziram princípios norteadores para a reestruturação do
currículo, princípios estes que passaram a balizar as discussões com as diversas áreas da formação,
disciplinas e departamentos.
A produção e discussão desses princípios tiveram um duplo significado, pois se constituíram em um
instante privilegiado de avaliação diagnóstica do curso e da própria perspectiva de trabalho.
Objetivamente, na ótica dos docentes e discentes foi importante como guia das reflexões diretamente
ligadas ao curso e, concretamente, no próprio Grupo Gestor da Pesquisa, pelas respostas à constante
necessidade de análise, problematização e sistematização da diversidade de elementos que se
incorporavam à proposta de intervenção curricular. Foi um profundo e rico debate pedagógico, em
que as concepções de médico e de seu processo de formação se evidenciaram.
Tanto os momentos de concordância quanto os de recusa – acerca da proposta – constituíram-se na
instância de explicitação de uma situação contraditória, que é própria da natureza e da especificidade
de uma comunidade educativa.
O Grupo Gestor da Reforma Curricular apresentou sugestões para atender a demanda referida e
elaborou um conjunto de princípios filosóficos, dos quais se identificavam predominantemente:
Morbidade e Mortalidade
Tipos de identificação (Empatia, Transferência, Contratransferência e Desumanização)
Responsabilidade
As manifestações do inconsciente
Importância dos fatores biopsicossociais.
Após a incorporação do professor Jaime Bieler, foi iniciada a discussão sobre a escolha da
profissão médica e escrevemos um texto sobre esse assunto.
A escolha de uma carreira é um processo que ocorre durante certo período de tempo, e a decisão
implica na conscientização da necessidade de decidir, isto é, de coletar informações, identificar
opções e depois entrar em ação para implementar a escolha desejada.
Ela resulta de uma sequência regular ou irregular de modificações da pessoa e do sistema de
imagens com que se julga a si mesmo e aos outros. Há certos períodos previsíveis na vida, nos quais
um indivíduo provavelmente se envolve num processo de decisão. Algumas pessoas decidem antes
de passar por esse processo, enquanto outros postergam a decisão, ou ainda ficam numa indecisão
crônica.
Em relação à escolha da profissão médica, os alunos de medicina, neste momento particular de suas
vidas (acadêmica e pessoal) estão iniciando o ciclo clínico, ou seja, o contato direto com pessoas,
doentes. A cadeira de Propedêutica Médica tem a responsabilidade e a função de prepará-los para
esses momentos extremamente delicados e difíceis. O aprendizado se faz através do contato com
pessoas biologicamente comprometidas, sendo impossível que não apresentem dúvidas, insegurança,
medo e angústia, portanto comprometidas emocionalmente de maneira intensa. Esse encontro gerará
uma sobrecarga emocional no médico (estudante), porque o que expõe o paciente também nos expõe.
Não me surpreende que se me dedicar unicamente a analisar hemogramas ou interpretar achados
radiológicos, além de distante será muito mais fácil e menos comprometedor.
Os alunos naturalmente devem estar pensando que estamos diante de um paradoxo: queremos ser
médicos para estar junto daquele que sofre e necessita de ajuda, mas “arrumamos” maneiras de ficar
à distância.
O contato direto entre o médico e o seu paciente (relação médico-paciente) é construído
integralmente sobre esse paradoxo. E, como decorrência natural desse fato, os professores
constataram que em todos os semestres os alunos apresentavam uma dificuldade importante durante
as experiências iniciais no atendimento aos pacientes. A ausência de um texto objetivo e prático
sobre o assunto gerava muita dúvida, produzindo angústia, pois à medida que dúvidas não eram
esclarecidas a insegurança naturalmente aumentava.
Quando se observa o currículo médico da Universidade Federal do Paraná e de quase todas as
demais universidades, infelizmente há um predomínio acentuado da informação em detrimento da
formação, não havendo praticamente um espaço apropriado para a discussão dos fatos que são
relevantes para a profissão médica no momento em que um paciente e médico estão em uma consulta.
Para diminuir essa dificuldade elaboramos textos que mostravam a experiência dos autores acerca
dos mistérios que envolvem a relação médico-paciente, com o objetivo de que os alunos
vivenciassem essa relação de uma maneira menos desgastante, para que se informassem acerca de
assuntos que geram indagações, dúvidas e incertezas. Os temas passaram a ser discutidos em grupos
sobre a formação médica com a supervisão dos professores, com a intenção de melhorar o
conhecimento daquilo que será utilizado durante toda a sua vida profissional.
Didaticamente, apresentamos a divisão em fatores inconscientes e conscientes na escolha da
profissão médica. [2] [3]
Relacionamos em ordem decrescente as principais motivações conscientes:
1. Compreender
2. Ver
3. Prestígio do saber
4. Desejo de contato
5. Prestígio social
6. Aliviar os que sofrem
7. Atração pelo dinheiro
8. Necessidade de tornar-se útil
9. Atração pela responsabilidade
10. Atração pela necessidade de aprovação
11. Profissão liberal
É claro que existem os fatores individuais, fruto de acontecimentos, relações e situações especiais,
dentro da natureza circunstancial de cada um, e que determinarão as escolhas de vida e futura
atividade profissional.
Listamos, também, as motivações inconscientes:
1 Necessidade de algum tipo de aprovação
2 Negação de dependência
3 Procura do exercício de onipotência
4 Defesa contra as doenças
5 Defesa contra o sofrimento
6 Defesa, através do mecanismo de negação, diante da morte
Em seguida, passamos a fazer uma pesquisa sobre as razões da escolha da profissão médica pelos
alunos do curso de Medicina da UFPR e estes são exemplos dos relatos que eles fizeram:
Muitas respostas tinham a ver com vocação. O vocábulo “vocação” vem do latim vocatio. É a
tendência, propensão ou inclinação para qualquer ofício, profissão, índole, talento, disposição
natural do espírito, escolha, eleição, chamamento, predestinação.
O termo “vocação” se origina da união de vox (voz) e core (coração) – e significa evocar a voz do
coração. O sentido original da palavra é, portanto teológico, pois tem sido o chamamento pelo qual
Deus destina um ser humano a uma função determinada.
“Vontade de Deus“
“Acho que fui escolhido...”
“Desejo de poder”
“Ter poder sobre os seres humanos.”
“Auto-defesa”
“Buscar a imortalidade.”
“Saber curar para não ficar doente, não morrer.”
“Ter poder sobre os seres humanos.”
“Desejo de evitar a própria morte.”
“Buscar a imortalidade.”
“Saber curar para não ficar doente, não morrer.”
JEAMMET, P.; RAYNAUD, D. M.; CONSOLIS, S. Psicologia médica. Rio de Janeiro: Messon, 1982.
KRAKOWSKI A. J. Stress and the practice of medicine. Psychotherapy and Psychosomatics, v. 42, p. 143-147, 1984.
ROSA NETO, Nilton Salles; MORI, Bruno Iochio; CERCI, Mario Sérgio Julio. Como escrever o relatório de um paciente. Curitiba:
Editora da UFPR, 2003.
Enquanto os outros dois modelos se assemelham à relação de um adulto com uma criança – o de
atividade-passividade à de uma mãe com um bebê e o de direção-cooperação o de um adulto
responsável com uma criança –, o modelo de participação mútua e recíproca é o de uma relação
adulto-adulto.
O método clínico
Além de fragilizar o diagnóstico, a insuficiência do modelo biomédico afeta a RMP em mais um
aspecto – o método clínico, que é a forma que os médicos usam para abordar o seu paciente.
O método clínico foi aperfeiçoado na mesma época em que a correlação entre sintomas e anatomia
patológica teve seu grande impulso no século XIX. Nessa época, ficou clara a necessidade de que a
história clínica contivesse a identificação, a queixa principal, a história mórbida atual, a história
mórbida pregressa, etc.
Decorre disso o fato de que a abordagem em geral aprendida atualmente pelos médicos visa à
descoberta de sintomas que possam ser conferidos com achados anatomopatológicos. Há, portanto,
uma seleção dos sintomas: em certo grau, somente interessam esses achados, enquanto os outros são
irrelevantes.
Embora o método clínico vigente há tantos anos tenha um valor inestimável para a atividade
médica, é possível que essa seja uma explicação para o fato de os médicos interromperem os
pacientes que estão explicando sua queixa, o que se constitui em uma grande barreira à comunicação
entre as duas partes.
O fluxo da entrevista
A dificuldade do médico de ouvir o paciente é provavelmente causada por vários fatores, mas um
dos expostos aqui merece pesquisa a respeito. Além de interromper o paciente precocemente na sua
explicação do motivo da consulta, o médico não segue o fluxo de ideias do paciente, esclarecendo o
que ele diz, quando ele diz. Por exemplo:
– Quando começaram seus sintomas?
– Desde o início do ano.
– Você atribui o início somente neste ano a alguma coisa?
É diferente de:
– Quando começaram seus sintomas?
– Desde o início do ano.
– Como é a sua dor?
No segundo caso, a pista sobre o início ficou no ar e seguiu-se o fluxo de prioridades do médico. A
prioridade do médico é definir se o doente tem uma doença ou não e, se tem, o prognóstico dessa
doença é o resultado de uma abstração mental da prioridade “O que o paciente tem, seja ou não uma
doença, e qual o prognóstico disso”.
Implementar mudanças
O Consenso de Toronto já em 1991 fazia recomendações que vêm ao encontro das questões
colocadas até aqui:
Os médicos devem inicialmente encorajar seus pacientes a discutirem suas preocupações
principais sem interromperem prematuramente o seu discurso.
Os médicos devem também se esforçar para desvendar as percepções dos pacientes sobre suas
doenças e os sentimentos e expectativas associados a elas.
Dados suficientes se acumularam para provar que os problemas na comunicação entre
médicos e pacientes são extremamente comuns e afetam de forma adversa o manejo do
paciente. Repetidamente se tem demonstrado que as habilidades clínicas necessárias para
melhorar estes problemas podem ser ensinadas e que os benefícios subsequentes para a
prática médica são demonstráveis, realizáveis rotineiramente e duráveis... Se o conhecimento
atual for implementado na prática clínica e as prioridades para a pesquisa forem abordadas,
poderá haver melhora concreta na relação médico-paciente.
(Tradução do autor)
Mais de duas décadas depois é certamente angustiante observar que não parece ter havido qualquer
progresso. Entretanto, o problema pode ser olhado sob nova luz ao estudarmos as evidências
recentes sobre o assunto da implantação de melhorias.
A partir do bombástico relatório To err is human: building a safer health system [13], de 1999, do
Institute of Medicine dos Estados Unidos, um grande esforço de pesquisa foi desencadeado em todo
o mundo a respeito da segurança e qualidade no atendimento médico. Um dos assuntos centrais
dessas pesquisas foram os motivos pelos quais alguns conhecimentos bem estabelecidos pela ciência
não são incorporados à prática clínica disseminadamente.
Tome-se um exemplo semelhante ao que é estudado neste capítulo: o do uso de beta-bloqueadores
em pacientes que tiveram infarto agudo do miocárdio. Um estudo publicado no ano 2000 mostrou que
a porcentagem de pacientes que tiveram prescrição desses medicamentos nos hospitais americanos
foi de 36% em hospitais não envolvidos em ensino médico, 40% em hospitais-escola menores e 49%
em grandes hospitais-escola. [14] Ao mesmo tempo foi determinado que forte evidência do benefício
desses agentes estava disponível na literatura desde 1984.
Esses dois problemas – o da melhoria da RMP e o do uso do beta-bloqueador no infarto do
miocárdio – têm em comum o fato de que a dificuldade não está em estabelecer evidências sobre a
melhor maneira de lidar com uma questão, mas em como implantar o que as evidências apontam na
prática dos médicos.
Uma maneira de abordar esses problemas seria fazer hipóteses sobre as possíveis causas da
resistência existente à implantação do conhecimento existente. No caso dos problemas descritos para
a RMP é possível que os médicos não consigam implantar as mudanças por vários motivos, entre os
quais:
O aumento de tempo necessário para investigar queixas adicionais às que já são vistas pode
ser uma barreira à aceitação por médicos já sobrecarregados no seu tempo com o paciente.
A insegurança dos médicos quanto ao seu preparo para abordar problemas psicológicos,
familiares ou sociais pode impedi-los de perguntar sobre queixas que possam levar a esses
problemas.
A inexistência de um ganho econômico previsto ao se efetuar as mudanças dificulta a
realização da grande carga de trabalho necessária para programá-las e torná-las realidade.
Para cada uma dessas hipóteses, pesquisas poderiam ser feitas para determinar o quanto elas
contribuem proporcionalmente, formando assim um maior conhecimento do problema. Entretanto, os
problemas podem ser heterogêneos em lugares diferentes, complicando ainda mais a sua avaliação.
Como alternativa, surgiram – ou foram adaptadas de outras áreas para as questões específicas do
atendimento médico – as metodologias para a implantação de melhorias. Algumas dessas
metodologias são usadas hoje para abordar os problemas de implantação de medidas baseadas em
evidências científicas em ambientes de trabalho: o Model for improvement, propagado pelo IHI
(Institute for Healthcare Improvement), o Six Sigma’s DMAIC e o 7-Step Problem-Solving Method
são exemplos.
O que essas metodologias propõem é que hipóteses sobre as causas da não implantação das
melhorias como as que estão descritas acima sejam usadas para formular ações locais de melhoria,
levando-se em conta as peculiaridades de cada serviço. Além disso, o efeito das ações implantadas
precisa ser medido de maneira que se possa verificar se as medidas são efetivas e adotar outras, se
necessário, até que um alvo preestabelecido seja atingido.
Foi por meio desse tipo de metodologia que se chegou ao que hoje chamamos de feixes de medidas
– tradução mais usada para o termo inglês bundles –, conceito recente de que certas melhorias só são
atingidas quando se implanta um conjunto de ações como um pacote completo. A falta de qualquer
das medidas do pacote costuma frustrar os esforços.
Essas abordagens têm conseguido resultados antes considerados impossíveis, como trazer a zero a
incidência de pneumonias associadas à ventilação-mecânica ou a de sepse relacionada a cateter em
certos hospitais por longos períodos.
Conclusão
Sumarizando, o consultório é o local onde a relação médico-paciente mais exige perícia por parte do
médico, por ser uma relação de participação mútua e recíproca, exigindo grandes habilidades de
comunicação para o sucesso da relação. Além disso, as queixas apresentadas em consultório com
grande frequência não se encaixam em explicações fisiopatológicas, expondo o médico a
dificuldades adicionais na RMP.
Diante dessas dificuldades, o desempenho dos médicos, historicamente deficiente, não tem obtido
sucesso em atingir melhorias significativas. Entretanto resultados promissores em outras áreas da
medicina, de dificuldade comparável, lançam esperança de se encontrarem as soluções adequadas.
Conta-se que Jean-Martin Charcot, um dos maiores médicos-cientistas do século XIX, saía de seu
consultório numa noite fria em Paris. Contava com um guarda-chuva e galochas para enfrentar a neve,
quando uma rica carruagem parou a seu lado e seu ocupante lhe disse: “entra aqui, professor, que eu
o levo até a sua casa.” Mais aquecido dentro da carruagem, o professor descobriu que seu benfeitor,
Pierre, era o jovem que anteriormente lidava com os cadáveres usados para o ensino na Faculdade
de Medicina e que sua fortuna vinha de seu trabalho como médico na periferia da cidade. Intrigado,
perguntou a ele como poderia alguém que nem era médico ganhar mais que um detentor de títulos de
doutor honoris causa pelas maiores universidades do planeta. Como resposta, o jovem mostrou a
ponte sobre o rio Sena e disse: “Quantas pessoas o senhor acha que passam sobre aquela ponte por
dia?” “Milhares”, ele respondeu. “E quantas delas o senhor acha que têm capacidade para distinguir
entre mim e o senhor?”
Esta historieta sugere que, além da competência técnica, a relação médico-paciente também é
necessária para o sucesso médico. Convenientemente ela ocorre com um dos representantes da época
em que surgiu o método clínico atual e, portanto, que possa servir para lembrar que há possibilidade
da prática médica mudar de paradigma e evoluir também nesse aspecto, à semelhança do que tem
evoluído em muitos outros campos.
Referências bibliográficas
[14] ALLISON, J. J.; KIEFE, C. I.; WEISSMAN, N. W.; PERSON, S. D.; ROUSCULP, M.; CANTO, J. G. et al. Relationship of
hospital teaching status with quality of care and mortality for medicare patients with acute MI. JAMA, v. 284, n. 10, pp. 1256-62, set.
2000.
[9]BLACKLOCK, S. M. The symptom of chest pain in family practice. J Fam Pract, v. 4, n. 3, pp. 429-33, mar. 1977.
CAPRARA, A.; RODRIGUES, J. A relação assimétrica médico-paciente: repensando o vínculo terapêutico. Ciênc. saúde colet., v. 9,
n. 1, pp. 139-46, 2004. Disponível em: <http://www.scielosp.org/pdf/csc/v9n1/19831.pdf>. Acesso em: 4 abr. 2013.
[4] GILES, J. Special report internet encyclopedias go head to head. Nature, n. 438, pp. 900-1, dec. 2005. Disponível em:
<http://www.nature.com/nature/journal/v438/n7070/full/438900a.html>. Acesso em: 6 jun. 2013.
[5] GROOPMAN, J. Como os médicos pensam. Rio de Janeiro: Agir, 2008.
[6] HALL, E. T. Beyond culture. New York: Anchor Press/Doubleday, 1977.
[11] HEADACHE Study Group of the University of Western Ontario. Predictors of outcome in headache patients presenting to family
physicians: a one year prospective study. Headache, v. 26, n. 6, pp. 285-94, jun. 1986.
[7] INNIS, H. A. The bias of communication. Toronto: University of Toronto Press, 1951.
[13] KOHN, L. T.; CORRIGAN, J. M.; DONALDSON, M. S. To err is human: buildind a safer health system. Washington, D. C.:
Institute of Medicine; 2000. R729.8.T6.
[8] KUHN, T. S. The structure of scientific revolutions. Chicago: University of Chicago Press, 1967.
[12] MCWHINNEY, I. R. Manual de medicina familiar. Lisboa: Inforsalus, 1994.
[1] SIMPSON, M.; BUCKMAN, R.; STEWART, M.; MAGUIRE, P.; LIPKIN, M.; NOVACK, D. et al. Doctor-patient
communication: the Toronto consensus statement. BMJ, n. 303, pp. 1385-7, nov. 1991. Disponível em
<http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1671610/pdf/bmj00155-0047.pdf>. Acesso em: 21 abr. 2013.
[3] THOMAS, S. S.; HOLLENDER, M. H. A contribution to the philosophy of medicine: the basic models of the doctor-patient
relationship. Arch Intern Med, n. 97, pp. 585-92, 1956.
[1] WASSON, J. H.; SOX, H. C.; SOX, C. H. The diagnosis of abdominal pain in ambulatory male patients. Med Decis Making, v. 1,
n. 3, pp. 215-24, 1981.
Bruno Spadoni
Residência de Clínica Médica pela UFPR. Médico internista no Hospital Marcelino Champagnat (PUCPR). Médico do Tribunal de
Contas do Paraná.
Maurício Laroca
Médico do Hospital de Clínicas da UFPR. Residência de Clínica Médica pela UFPR. Médico do Tribunal de Contas do Paraná.
Introdução e conceito
A prática médica mudou e permanece em constante mudança (de fato, com velocidade cada vez
maior) nos últimos anos. Ao considerar a relevância e as dificuldades do ato médico (seja pela
consulta em si, pela realização de exames de alta tecnologia, diversos procedimentos ou cirurgias),
nota-se que a relação médico-paciente constitui o universo de trabalho da Medicina e envolve regras
e compromissos, limitações, erros e acertos de ambas as partes.
Até algumas décadas atrás, a relação médico-paciente (RMP) seguia um modelo paternalista no
qual se esperava do paciente obediência, confiança e gratidão; e do médico se ansiava autoridade e
cumprimento dos seus deveres profissionais. A busca pela valorização do envolvimento entre o
médico e o paciente trouxe também para a superfície o debate sobre a importância do humanismo
nessa relação. [1]
Pode-se conceituar, de modo bastante pessoal, a RMP como uma parceria entre o médico e o
paciente que visa à personalização da assistência médica, a humanização do atendimento, o direito à
informação e o consentimento informado do paciente em relação a atitudes diagnósticas e
terapêuticas.
A RMP pode ser entendida, portanto, como interação. Este último termo pode ser percebido como
uma “relação profissional de saúde-cliente”. O termo cliente, em vez de paciente (este, preferido
pelos autores deste capítulo), pode ser empregado num sentido mais dirigido ao contexto
institucional, assim como para caracterizar a visão do paciente como sujeito ativo e coparticipante
do encontro terapêutico. Além disso, muitas vezes o cliente (aqui no sentido daquele que busca a
ajuda) não é propriamente o paciente (no sentido de quem necessita de tratamento), podendo ser o
seu responsável imediato, como nos casos de consultas pediátricas, geriátricas, de emergência, etc.
[3]
A atitude principal é realizar uma boa anamnese (do grego anamnesis, significa “recordação”), que
consiste na história clínica do paciente, ou seja, é o conjunto de informações obtidas pelo médico por
meio de entrevista previamente esquematizada.
1. Lembrar-se de que, como qualquer outro ser humano, o médico tem virtudes e defeitos,
observando que o trabalho médico é uma atividade naturalmente desgastante.
2. Considerar cada médico principalmente por suas qualidades, lembrando que em todas as
áreas existem bons e maus profissionais. Ter claro que o julgamento de toda a classe
médica por conta de um mau médico não faz sentido.
3. Não exigir o impossível do médico, que só pode oferecer o que a ciência e a Medicina
desenvolveram. Da mesma forma, jamais culpar o médico pela doença.
4. Respeitar a autonomia profissional e os limites de atuação do médico. Ele não pode ser
responsabilizado, por exemplo, por todas as falhas dos serviços de saúde, muitas vezes
sucateado por seus gestores. Nesse sentido, é direito do paciente denunciar e reivindicar
para que o Estado cumpra sua obrigação. Existem órgãos competentes para isso, como os
Conselhos de Saúde e o Ministério Público, além da direção dos próprios serviços. Não
exigir dos médicos exames e medicamentos desnecessários, lembrando que o sucesso do
tratamento está muito mais na relação de confiança que se pode estabelecer com o médico.
5. Seguir as prescrições médicas (recomendações, dosagens, horários, etc.) e evitar a
automedicação.
6. Ter consciência dos seus direitos.
Suplemento
NOVAS ESTRATÉGIAS PARA ENSINO NAS ENFERMARIAS - SUGESTÕES
PARA O INTERNISTA
Gibran Avelino Frandoloso
Mudanças no ambiente de aprendizado clínico ocorridas nos últimos anos nos Estado Unidos, mas
também em nossos hospitais brasileiros, têm motivado tentativas de mudanças no processo de ensino
médico nas enfermarias. Além das mudanças estruturais ora observadas, o grupo de médicos
atualmente em treinamento nos hospitais, conhecida como Geração Y, possui diferentes afinidades
com o ensino, mormente representadas por maior uso de tecnologia, aprendizado interativo e em
grupos. Um processo mnemônico para essas novas estratégias propostas para ensino nas enfermarias
(FUTURE) será apresentada na sequência. Essa estratégia tem por objetivo melhorar ou facilitar o
aprendizado em todos os momentos de ensino ou assistência a pacientes nas enfermarias. Nesse novo
contexto a figura do Médico Hospitalar (Hospitalista) tem papel importante, senão fundamental, no
ensino médico.
Uma das estratégias descritas acima para motivar o ensino nesse novo momento é utilizar modelos
diferentes de ensino. Um desses modelos, focado especialmente na participação do Médico Internista
(Hospitalista) no ensino nas enfermarias é denominado com o acrônimo inglês FUTURE, sendo assim
explicado:
F = Flipping the Wards. Consiste em orientar palestras, indicar leituras e materiais para
estudo individual e solicitar “tarefas de casa”, encorajando o uso de trabalho em grupo para
discussão interativa.
Exemplos: enviar artigos por e-mail depois das visitas e discutir no dia seguinte.
Compartilhar artigos por meio da “nuvem” (ex.: Dropbox). Utilizar chats para discussão de
temas fora do período letivo.
U = Using Documentation to Teach. Consiste em usar um chat ou blog para educação e
estruturas modelo para documentação, com uso destas para ensino.
Exemplos: documentar seu processo de raciocínio diagnóstico ou terapêutico nas notas de
visita (escritas em prontuários de papel ou eletrônicos). Usar os prontuários para prover
reavaliações da documentação dos casos e melhorar a comunicação.
T = Technology-Enabled Teaching. Consiste em utilizar a tecnologia (aparelhos e
aplicativos) para melhorar o ensino à beira do leito e propiciar discussões interativas.
Exemplos: usar aplicativos de smartphones e tablets para esclarecer ou lembrar pontos em
discussão (ex.: usar calculadoras de prognóstico).
U = Using Guerrila Teaching Tactics. Consiste em explorar o ambiente das enfermarias
(suas características e complexidades) para facilitar ensino de pontos didáticos.
Exemplo: ensinar a partir do que é visto e feito diariamente nas enfermarias (ex.: discussão
sobre remoção de cateteres de Foley; higiene de mãos; indicações para isolamento de
contato; reconciliação medicamentosa). Checklists e medidas de qualidade incorporados às
visitas.
R = Rainy Day Teaching. Consiste em separar pontos importantes a serem ensinados para
dias com menos tarefas assistenciais (“rainy days”).
Exemplo: não discutir assuntos relevantes em pós-plantões ou períodos com alta necessidade
de assistência. Designar outros membros da equipe para buscar informações sobre os
tópicos discutidos e retornar para discussão no dia seguinte.
E = Embedding Teaching Moments into Rouds. Consiste em criar a expectativa de
aprendizado em cada visita médica nas enfermarias.
Exemplos: voltar a focar a visita médica na avaliação de pacientes, com ênfase em revisão
de história, exame físico. Discutir diariamente os exames complementares, explorar um
eletrocardiograma ou discutir uma questão pontual (por exemplo: uma questão do MKSAP –
Medical Knowledge Self-Assesment Program).
Outros modelos que permitem rever o ensino nas enfermarias podem ser utilizados e até
estimulados a partir da realidade brasileira, mas certamente devem ser mais dinâmicos e fugir das
aulas expositivas como estrutura básica.
Resgatar a Semiologia Médica, com ênfase na excelência da história clínica, do exame físico e no
uso racional e competente da tecnologia são, além de necessidades desse processo de ensino,
responsabilidade social médica, em face de um sistema que despersonaliza o paciente e coloca
ênfase excessiva no uso de tecnologias, muitas vezes sem a base lógica que sustenta sua utilização.
Educar essa geração e as próximas nesse ambiente em constante mudança exige de nós, médicos e
professores, adaptações rápidas e vontade de desafiar nossa tendência a manter o modelo atual ou
aquele ao qual estejamos mais adaptados.
Adaptado de: MARTIN, S. K.; FARNAN, J. M.; ARORA, V. M. New strategies for hospitalists to overcome challenges in
teaching on today’s wards. Department of Medicine, University of Chicago, Chicago, Illinois. J Hosp Med. 12 jun. 2013.
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[7] BUCKMAN, R. How to breake bad news: a guide for health care Pprofessionals. Baltimore: Johns Hopkins University Press,
1992.
[10]
CÓDIGO de ética médica: Resolução CFM nº. 1931, de 17 de setembro de 2009 / Conselho Federal de Medicina. – Brasília:
Conselho Federal de Medicina, 2010. 98 p.
[6] CONSELHO Regional de Medicina do Estado de São Paulo [Cremesp]. Guia da Relação Médico-paciente. Disponível em:
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[4] FAUCI, A. S.; BRAUNWALD, E.; KASPER, D. L;, HAUSER, S. L.; LONGO, D. L.; JAMESON, J. L. et al. Harrison’s
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[8] SILVA, Carlos Maximiliano Gaspar Carvalho Heil et al. Relação médico-paciente em oncologia: medos, angústias e habilidades
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[3] SOAR FILHO, E. J. A interação médico-cliente. Rev. Assoc. Med. Bras., v. 44, n. 1, pp. 35-42, 1998.
Maurício de Carvalho
Professor Adjunto de Clínica Médica da Universidade Federal do Paraná. Vice-chefe do Departamento de Clínica Médica da UFPR.
Professor Titular de Nefrologia da PUCPR. Research Fellow em Nefrolitíase pela Universidade de Chicago (EUA).
Introdução
A relação do médico com o paciente na emergência carrega muitas expectativas. Cabe ao
profissional conhecer as influências do ambiente, do quadro clínico, da equipe e da estrutura para
obter os melhores resultados na abordagem com os pacientes. Diferentemente de um médico que
atende em seu consultório, a situação no ambiente de emergência é mais desafiadora, uma vez que o
médico não foi escolhido e, sim, imposto.
O encontro com o desconhecido num ambiente hostil demanda que o profissional compreenda as
prioridades do paciente. Entre as mais frequentes estão: saber o que ele tem, obter alívio de um
sofrimento ou esclarecer dúvidas sobre a necessidade de um procedimento invasivo para
diagnóstico.
Por sua vez, o paciente atendido numa situação de doença aguda desejaria encontrar um médico
conhecido e de confiança naquele momento. Embora saiba que nem sempre será possível, deverá
confiar em um profissional que muitas vezes nunca viu antes.
Com esses desafios, temos de estar preparados e conhecer os aspectos que influenciam na relação
médico-paciente na emergência é de extrema utilidade.
O cenário
1. Ambiente de pronto-socorro
A realidade de estar num ambiente hostil e de aparente caos em alguns momentos exige atitudes
proativas. A estrutura hospitalar e a equipe de enfermagem podem facilitar ou prejudicar a atuação
do médico, uma vez que nesses ambientes a agilidade e a condição técnica da estrutura serão
decisivas para o desempenho do médico diante dos quadros agudos de pacientes no pronto-socorro.
O médico é um dos componentes da equipe de emergência e deve estar ciente de que a qualidade da
relação médica dependerá também das ações de outros membros da equipe. Portanto, se as ações não
ocorrerem de maneira adequada, irão refletir na relação com o paciente. Esse aspecto deve ser
motivo de uma atenção especial que o médico da emergência precisa controlar e saber como
prevenir.
Criança com 9 meses de idade estava irritada e não se alimentara bem durante o dia. Em casa
eliminou fezes escuras e mal cheirosas, diferentemente do habitual. Com essa história, foi avaliada
por um pediatra que liberou a criança dizendo que não seria nada preocupante. Após algumas horas
em casa a criança estava grunhindo e levando as pernas até o peito. Chegando a outro hospital foi
constatada uma obstrução intestinal.
O primeiro pediatra havia feito uma avaliação apressada e achou que as informações dadas pelos
pais não eram confiáveis, uma vez que eram pais de primeiro filho. Reconhecer padrões na
pediatria começa pelo comportamento da criança, algo que todo pediatra deve treinar, uma vez que
as informações não são transmitidas diretamente pelo paciente e sim pelos pais. Ou seja, crianças
que estão sorrindo e brincando enquanto seus pais contam de uma forma exagerada aquilo que é
normal faz com que o pediatra fique mais tranquilo, e o contrário também é verdadeiro.
A precisão da percepção é maior quanto mais tempo o médico dedicar-se a ouvir a história dos
pacientes. Para evitar tais armadilhas, concentre-se em cada paciente e aprenda a conhecer o seu
limite de trabalho, especialmente perto do final dos turnos de plantão.
O paciente
As principais expectativas dos pacientes quando vão a serviços de emergência devem ser conhecidas
pelos médicos, dessa forma poderemos ser mais assertivos na nossa abordagem, característica que
na emergência é fundamental e distingue os profissionais que melhor se sairão no contato com os
pacientes.
As perguntas abaixo devem ser respondidas pelos médicos quando atendem um paciente na
emergência, mesmo que elas não sejam expressas por eles. Alguém com deficiências de comunicação
ou cognição pode ter dificuldades até mesmo de torná-las conscientes, mas, se o médico apresentar
as respostas, certamente serão entendidas pela mensagem que passarão.
No livro A nova consulta, de David Pendleton, são propostos os itens a seguir como sendo os
principais questionamentos dos pacientes:
Devemos saber que todos os pacientes têm tais questionamentos, mas nem sempre estão claros, uma
vez que todos sofrem influências de elementos que englobam questões físicas, psicológicas e sociais
que interagem entre si. Esses fatores afetam a relação médico-paciente, logo o médico que ignora tais
elementos não será bem sucedido.
As questões acima, influenciadas pelas crenças sobre saúde, explicam a origem das expectativas.
Sabendo disso, podemos alinhar nossas ferramentas para melhorar a relação médico-paciente. A
satisfação do paciente nessa relação é diretamente proporcional ao fato de o médico:
O filho de uma senhora de 88 anos liga para o médico da família informando que ela está com
sudorese, dor torácica, e a pressão aferida em casa está muito alta. O médico de família,
preocupado com as informações, orienta o filho a levar sua mãe imediatamente ao serviço de
emergência mais próximo, e que após ser atendida peça ao plantonista para se comunicar com ele.
Após a paciente ter sido atendida, o filho pede ao plantonista para entrar em contato com o médico
da família, que poderá lhe informar tudo sobre a condição médica da paciente.
O plantonista evita fazer este contato, afirmando que não tem tempo e que fará exames na paciente a
fim de descobrir o que está acontecendo. Com isso, o filho se sente inseguro e contrariado.
A atitude do médico da emergência quebrou a relação de confiança entre a família e ele, pois nesse
caso um pedido do filho para que recebesse as informações do médico da família e que conhecia a
saúde da paciente foi visto como não querer ouvir algo importante e que poderia afetar o
diagnóstico e a conduta.
A consulta
Os médicos aprendem sobre doenças e técnicas para diagnosticá-las e tratá-las, porém, quando vão
lidar com as pessoas, precisam treinar outras habilidades as quais nem sempre se sentem à vontade
de desenvolver.
A comunicação é uma dessas ferramentas que devemos exercitar à exaustão, pois ela será percebida
desde o momento do primeiro contato visual, em que a forma de se vestir, a expressão facial e a
postura física do médico transmitirão informações que irão atuar como facilitadores ou não.
A anamnese na emergência, muitas vezes objetiva e dirigida devido à necessidade de obtenção de
informações de forma rápida, não deve ser confundida como fria e distante, aliás, deve ser
acolhedora, objetiva e direta sem perder a cumplicidade que o momento de se relacionar com o
paciente exige. Nesse momento, é importante que o médico se torne o mais livre possível de prévios
julgamentos. Para conseguir essa interação, o médico deve demonstrar interesse e preocupação com
o sofrimento que aflige o paciente.
O exame físico, também motivo muitas vezes de constrangimento, deve ser sucinto e obedecer a
princípios do respeito à privacidade. Fornecerá informações que ajudarão a construir, além de
hipóteses diagnósticas, formas subjetivas de percepção de zelo e cumplicidade para com o paciente.
O toque do médico parece primitivo e incerto quando comparado ao que podemos descobrir com as
maravilhas da tecnologia. No entanto, a ausência desse toque interfere de maneira negativa nas
relações com os pacientes.
Todas as etapas acima estarão construindo uma relação médico-paciente eficaz ou não, por isso
cada uma tem um papel importante no diagnóstico e no tratamento dos pacientes. Mesmo que o
médico não consiga estabelecer um diagnóstico exato, elas ajudarão a não causar danos e passarão
uma mensagem de cuidado, questão fundamental na relação com o paciente.
O livro O médico, seu paciente e a doença marcou o início de uma mudança de paradigma no
atendimento médico, porque foi nele que Balint descreveu o seu conceito de médico como droga, ou
seja, o médico é como um medicamento, que será consumido através das palavras, mensagens não
pronunciadas e contatos físicos, produzindo efeitos com ou sem reações adversas.
A aplicação desses processos seguindo as etapas apontadas anteriormente resultarão em
diagnósticos e condutas compartilhadas com os pacientes ou familiares e que poderão ser aceitas ou
não dependendo da percepção deles.
Num dia de plantão agitado na emergência de um hospital geral, o plantonista inicia o atendimento
do seu sexto paciente do turno. A queixa era febre, tosse, dor torácica ventilatória dependente. A
primeira hipótese diagnóstica foi de pneumonia. Sem proceder ao exame físico completo, o médico
solicitou um raio X, para adiantar o atendimento. Após o resultado do raio X ter vindo normal, o
plantonista procedeu ao exame físico mais detalhado e verificou que a dor era na verdade em
região lombar direita, com sinal de Giordano, ou seja, a dor e a febre se deviam a uma pielonefrite
em um paciente com tosse.
O fato de ter pulado a etapa do exame físico interferiu na acurácia diagnóstica, mas além disso
serviu para reduzir a confiança do paciente e impactou de maneira decisiva a relação médico-
paciente.
Hipócrates é responsável pelo sustentáculo ético da relação médico-paciente e recomenda ao
médico fazer o bem ao paciente e evitar o dano: Primum Nom Nocere.
O médico
Paracelso (1490-1541) afirma: “O caráter do médico pode atuar mais poderosamente sobre o
enfermo do que todas as drogas empregadas.”
Os médicos em muitas questões não são neutros e, assim como os pacientes, têm suas visões que
influenciam nas consultas.
As habilidades e experiências, sejam técnicas ou pessoais, influenciam o comportamento e a
relação médico-paciente.
No livro A nova consulta, David Pindleton cita Roter e colaboradores (1997) pela identificação de
quatro estilos entre médicos que atuam nos Estados Unidos:
Diante de tais influências e estilos, devemos sem dúvida escolher a mutualidade, e para isso temos
de desenvolver algumas ferramentas.
A assertividade melhora a comunicação ética entre as pessoas, porque transmite a impressão de
autorrespeito e respeito pelos outros. O diálogo assertivo é direto porque faz economia de palavras,
não permitindo rodeios, justificativas e desculpas.
O profissional deve influenciar o paciente e conseguir que ele faça o que se espera dele: repousar,
seguir uma dieta ou tomar a medicação prescrita, etc. Um médico assertivo consegue influenciar
através da atenção e negociação, oferecendo ao paciente a opção pela cooperação. Não oferece
retaliações e estimula a comunicação de mão dupla.
A comunicação tem de atender as necessidades dos médicos, para que possam extrair as
informações dos pacientes de maneira adequada e fazer com que eles entendam o que está
acontecendo através de uma linguagem customizada.
O médico não pode dialogar da mesma maneira em todas as consultas. De acordo com a faixa
etária, grau de instrução ou outras características, deve adaptar a linguagem.
As mudanças da medicina, do acesso à informação, das relações humanas, das novas mídias e do
mercado de saúde influenciam as relações entre médicos e pacientes. Num ambiente tão desafiador
como o dos serviços de emergências, a sensibilidade e o preparo técnico do profissional farão com
que esses encontros de desconhecidos que ocorrem todos os dias em milhões de oportunidades
possam resultar em ganhos para cada um dos lados.
Referências bibliográficas
GROOPMANN, Jerome E. Como os médicos pensam. Rio de Janeiro: Agir, 2008.
MARTINS, Vera. Seja assertivo: como ser direto, objetivo e fazer o que tem de ser feito; como construir relacionamentos saudáveis
usando a assertividade. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.
PENDLETON, David. A nova consulta: desenvolvendo a comunicação entre médico e paciente. Porto Alegre: Artmed, 2011.
PINHEIRO, Raimundo. Escolha e abandono de médicos: o poder do cliente. Salvador: Ed. Raimundo Pinheiro Consultoria, 2002.
SANDERS, Lisa. Todo paciente tem uma história para contar: mistérios médicos e arte do diagnóstico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2010.
Com base nesses quatro princípios, na UTI há uma situação peculiar: muitas vezes o doente está
incapaz de compreender e decidir sobre o que quer e não quer receber como tratamento. [3] Ele é um
sujeito vulnerável e precisa que alguém defenda seus interesses. Nessa hora, o médico Intensivista
deve tomar as rédeas da situação e assumir a responsabilidade baseada em conhecimento técnico,
colaboração com o médico assistente e interação com a família do doente.
A discussão de casos clínicos que demonstram os conflitos na prática diária de muitos médicos
intensivistas ajuda a entender melhor a aplicação dos princípios de bioética.
JBM, masculino, branco, 33 anos, casado, comerciante, católico, sempre conversava com a esposa
a respeito de seu desejo de ser doador de órgãos.
BM viajou com a esposa na semana de Páscoa e sofreu uma colisão na estrada com outro carro. Ele
e ela sofreram vários traumatismos de crânio, tórax e abdome. Foram atendidos pelo Serviço de
Emergência pré-hospitalar e encaminhados à UTI. Dra. NCY informou que JBM estava em coma
profundo, com múltiplas hemorragias intracranianas diagnosticadas com tomografia de crânio,
dependente de ventilação mecânica invasiva. Sua esposa estava na mesma situação. Após 36 horas
de UTI, constatou-se que JBM não apresentava reflexos de tronco cerebral ao exame físico. Dra.
NCY suspeitava de morte encefálica (ME).
O diagnóstico de ME foi conduzido conforme a resolução 1480 de 1997 do Conselho Federal de
Medicina: pré-requisitos clínicos confirmados, feitos 2 exames neurológicos, feitos 2 testes de
apneia e 1 exame complementar. [6] Toda a família, pai, mãe, 2 irmãos, 4 tios, 2 tias, 8 primos
foram informados e acompanharam cada passo do diagnóstico que se confirmou 8 horas após ter
sido feita a suspeita. Foi um desespero total. No momento que houve a confirmação de ME com o
último exame feito, a mãe ainda não acreditava que aquilo estava acontecendo na sua família.
Aquele menino que ela carregou em seu ventre por 9 meses, amamentou, cuidou ao ter rubéola e
caxumba, levou na escola em dias de sol e dias de chuva, viu formar-se em administração, viu
casar-se, agora morreu antes dela? Isso é antinatural! Será que não haveria um milagre? Já tinha
ouvido falar que muitos doentes em coma acordam após anos. E se esse era o caso de seu filho?
Será que todos os exames foram feitos e estavam corretos? Afinal, pode haver algum erro.
Todas as explicações foram novamente reforçadas pela Dra. NCY: JBM sofreu um trauma
craniencefálico muito grave, tinha coma profundo e múltiplas hemorragias intracranianas. Apesar
de ter recebido todo o tratamento disponível com cirurgia, medicações múltiplas, ventilação
mecânica invasiva, seu cérebro parou de funcionar. O cérebro é como o maestro de todo
organismo. O maestro para, e aos poucos todos os outros órgãos, desgovernados sem liderança,
param progressivamente. Esta morte cerebral foi confirmada com vários exames conforme a
legislação brasileira. Não havia nada mais a fazer por JBM. Mas havia o que fazer por outros
doentes que estavam morrendo e ainda tinham uma esperança. Outros doentes que estavam na fila
de transplantes de fígado, rins, pâncreas, córneas, coração, pulmão. Se a família aceitasse, poderia
haver doação de órgãos. JBM poderia salvar 8 vidas! Dra. NCY se colocou à disposição para
esclarecer dúvidas!
A mãe não queria outras 8 vidas! Queria somente a vida de JBM! Queria seu filho novamente! Ela
acreditava em um milagre! Seu filho querido seria devolvido a ela, pois acabava de fazer uma
promessa a Nossa Senhora Aparecida! Ela iria a pé a Aparecida e levaria uma vela da altura de
JBM. Nossa Senhora sempre atendeu suas preces!
Novamente, Dra. NCY reforçou que não havia mais esperanças. Era uma questão de tempo para a
parada cardíaca. Ela pediu que a família se reunisse, pensasse na possibilidade de doação e
voltasse com uma resposta: DOAR ou NÃO DOAR. Ela aguardaria e respeitaria qualquer uma das
decisões.
O pai e um dos irmãos voltaram 24 horas após. Perguntaram como estava JBM, se realmente não
havia esperanças de vida, se no caso de não aceitarem a doação, o que ocorreria. Dra. NCY
novamente explicou o que é morte encefálica, que não há esperanças porque morte é morte, que no
caso de não haver doação tudo que JBM estava recebendo seria retirado porque o suporte
avançado de vida estava simplesmente mantendo órgãos para uma futura doação. Eles agradeceram
e pediram mais um tempo para conversar com a mãe, que ainda não aceitava o fato da morte do
filho. Os demais familiares já tinham entendido e queriam a doação. Dra. NCY combinou uma nova
conversa para o próximo dia, à tarde.
Desta vez, voltaram os pais, os irmãos e 2 tios. Pediram novos esclarecimentos sobre o diagnóstico
de morte encefálica e sobre como procede a doação de órgãos. Pediram esclarecimentos sobre
quais órgãos doar, caso eles aceitassem. Novamente, Dra. NCY esclareceu todas as dúvidas e
colocou-se à disposição. Ao final, a própria mãe posicionou-se e aceitou a doação. Ela assinou o
termo de consentimento de doação de órgãos e todos expressaram seu pesar pela morte do ente
querido e, ao mesmo tempo, seu consolo e alegria de poder proporcionar uma nova vida a 8 outras
pessoas. JBM viveria ainda em 8 outras pessoas.
MLR, feminina, branca, 62 anos, do lar, viúva, procedente de Fortaleza, vem visitar a filha em
Curitiba em junho de 2013 e apresenta crise de asma brônquica grave. A filha a leva para o pronto-
atendimento de um hospital e lá é indicada internação na UTI.
MLR é internada e começa a receber todas as medicações necessárias. O médico plantonista, Dr.
MO, vem conversar com a filha. Pergunta se MLR já toma alguma medicação. A filha diz que não
sabe. Ele agradece e diz que ainda não sabe o que ela tem exatamente, mas que vai fazer todos os
exames necessários e cuidar dela bem. Que a filha volte nos horários de visita e saberá sempre
como a mãe está.
No dia seguinte, na hora da visita, a filha entrou, falou com a mãe, que estava melhor para respirar.
A mãe disse que estava sendo bem tratada pela equipe e que todos eram muito gentis. Nenhum
médico veio dar informações. Ao indagar à enfermeira, ela responde que o médico de hoje está
ocupado em um procedimento de emergência e no período da tarde outro plantonista fala com ela.
À tarde, novamente não recebeu informações médicas. A mãe pediu para ter paciência, pois os
médicos conversavam com ela e estava a par de tudo que acontecia. A filha voltou noutro dia de
manhã e recebeu a mesma resposta: o médico está em um procedimento de emergência e não pode
vir dar informações. Nesse mesmo instante, decidiu transferir a mãe da UTI para o quarto e pediu
alta sem conversar com a mãe. Mesmo assim, nenhum médico veio falar com ela e após 2 horas a
mãe estava no quarto esperando o médico assistente para continuar o tratamento.
Falta de vínculo entre médico e familiar, apesar de haver vínculo entre a equipe médica e a
paciente.
Dúvidas se há tratamento adequado.
Dúvidas da evolução do caso.
Familiar expõe doente a diversos riscos com a alta a pedido.
e transtornos mentais podem vir à tona. Uma boa comunicação é a fonte para o estabelecimento de um
melhor cuidado ao paciente.
A comunicação na pediatria é uma ferramenta essencial para um diagnóstico preciso e para o
desenvolvimento de um plano de tratamento bem sucedido. No caso de notícias que possam gerar
estresse, uma comunicação habilidosa permite à família uma melhor adaptação a um novo desafio em
relação à saúde da criança. Essa habilidade pode requerer um comportamento que inclui sentimentos
de reflexão, com demonstração de respeito, preocupação e compaixão, frequentemente por meio de
uma linguagem não-verbal, como gestos, postura e contato ocular. [1] [5]
Por outro lado, a falta de habilidade e delicadeza na comunicação gera angústias, rejeição e
comprometer a evolução da criança e de sua família, podendo até levar a situações médico-legais.
Nos Estados Unidos, estima-se que 35 a 70% dos processos médicos resultem de uma má
comunicação, falha em entender as perspectivas do paciente e da família ou falha em incorporar ou
perguntar sobre os valores das duas partes em relação ao tratamento proposto. [1] [5]
Existem dois tipos de necessidades do paciente e da família a serem sanados durante uma entrevista
médica: cognitivas (que dizem respeito à necessidade de conhecer e compreender) e afetivas (que
dizem respeito à necessidade de se sentir conhecido e compreendido). A satisfação dos pais com a
atenção à saúde de seu filho é substancialmente influenciada pelas habilidades interpessoais do
profissional, principalmente em situações em que os pais e a família se encontram muito ansiosos. [6]
[7]
Apesar de a comunicação ser essencial para o bom cuidado à saúde, pouco se ensina sobre a
construção dessa habilidade tanto nos currículos universitários médicos quanto nas residências e
serviços pediátricos. [1] O estudante de medicina ou o residente de pediatria acaba assumindo
posturas diante de pacientes e famílias com base na observação dos comportamentos diários de
profissionais da saúde, tanto bons como ruins. Às vezes, a coleta de um dado “difícil” na anamnese é
mais premiada pelos professores do que o papel psicossocial, existencial e as necessidades e
preocupações interpessoais do paciente e sua família.
No início, a comunicação é aprendida por tentativas e erros. Porém, cada vez mais estudos vêm
demonstrando que ela pode ser ensinada e aprendida. [8] [9] [10] [11] Dependendo da realidade a ser
aplicada, existem relatos na literatura de preceptores não médicos, desde psicólogos infantis a
terapeutas especializados na vida infantil, que podem ajudar os estudantes e até mesmo os
professores a desenvolver essas habilidades. [12] Utilizar materiais de vídeo gravados em
combinação com feedback individualizado em grupos pequenos teve um maior impacto na melhora
do comportamento da comunicação, segundo um estudo da Universidade de Cambridge. [9] O estudo
também recomendou que o entusiasmo sobre o ensino dessas habilidades depende também de um
programa de desenvolvimento da equipe de ensino, bem como de instalações cedidas pelos cursos
médicos ou governamentais.
2. Cuidado centrado na família
Cada vez mais vem se falando a respeito de entrevistas ou visitas à beira do leito centradas na
família. Apesar de ser um conceito antigo surgido nos anos 1960, a ideia de um cuidado de saúde
centrado na família na pediatria tomou mais força após o Children’s Hospital de Cincinnati
descrever sua experiência de mudar a forma abordada nas visitas médicas hospitalares, a fim de
estabelecer esse novo padrão. [1]
Esse conceito prevê que uma decisão sobre a saúde da criança deva ser uma decisão centrada na
sua família. [9] A criação de um plano médico em conjunto com a criança e sua família permite uma
maior satisfação e aderência ao tratamento. A maioria dos pais quer estar envolvida nas decisões
sobre como um assunto de saúde será contado ao seu filho. Para que isso aconteça da melhor
maneira, o pediatra deve conhecer a relação familiar prévia, valores culturais, as necessidades da
criança, bem como seu desejo em participar de seu plano de cuidados.
Três preocupações iniciais surgem quando se aborda o cuidado médico centrado na família: o
ensino, o tempo e a confidencialidade. O estudante de medicina ou residente de pediatria pode
pensar que o ensino ficaria em segundo plano, uma vez que o foco passa a ser a família. Observando
diretamente seu preceptor e participando ativamente dessa relação, provou-se que esse novo estilo
de ensinar permite uma qualidade até maior da educação. [9] Não há dúvidas de que visitas centradas
na família tomam mais tempo e que poderiam ser um empecilho para a agenda de um médico. O
mesmo estudo de Cincinnati demonstrou um aumento de aproximadamente 20% nesse tempo, porém
acreditou-se na melhora da eficiência do profissional, salvando tempo de discussões futuras no
restante do dia. [9] A confidencialidade de quem participa da visita deve ser reforçada, e a busca
pela privacidade da criança e familiar, principalmente através de espaço físico, deve ser constante,
independentemente da realidade do local.
Os princípios do Cuidado Centrado na Família requerem colaboração dos pacientes, familiares,
médicos, enfermeiras e outros envolvidos no cuidado à saúde, bem como àqueles envolvidos na
educação desses profissionais. [11] São eles:
Consideração final
Apesar das dificuldades que a consulta e a visita pediátrica oferecem, os médicos envolvidos com a
pediatria devem ser capazes de modificar atitudes, de abrandar sofrimentos físicos, psíquicos e
afetivos, de promover a saúde em todos os seus inúmeros aspectos. A habilidade em indicar
caminhos a serem seguidos pode levar a algo que está ao alcance de todos: a felicidade. Sim,
felicidade, pois, se perguntarmos aos pais o que mais querem para seus filhos, com certeza a resposta
mais frequente e honesta será: “que sejam felizes”.
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A consulta geriátrica
Sem deixar de lado a semiologia tradicional (anamnese e exame físico), a estrutura de uma consulta
médica geriátrica apresenta algumas características próprias, como a aplicação da Avaliação
Geriátrica Ampla (AGA). A AGA corresponde a um conjunto de instrumentos destinados à avaliação
e ao seguimento clínico dos pacientes idosos, que, por características intrínsecas ao processo do
envelhecimento e sua susceptibilidade e vulnerabilidade para múltiplas condições médicas, de
caráter biológico, psicológico e/ou social, necessitam de uma avaliação médica mais abrangente. A
AGA é composta de vários instrumentos de avaliação, muitos já validados no Brasil, com farta
literatura científica que comprova não somente sensibilidade e especificidade nesses rastreios, mas
principalmente redução do risco de desfechos indesejados na saúde global de uma pessoa idosa.
Embora a Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia tenha elaborado um protocolo de AGA
reconhecido como o modelo oficial recomendado por essa entidade, os diferentes serviços de
geriatria muitas vezes desenvolvem protocolos próprios, com algumas variações na escolha dos
instrumentos, para melhor atender às suas circunstâncias de trabalho. Apesar dessas variantes, a
AGA inclui ferramentas para avaliação cognitiva (como o mini-exame do estado mental, o teste do
desenho do relógio e outros), avaliação nutricional (como a mini-avaliação nutricional e
determinados parâmetros do exame físico), avaliação do humor (escala de depressão geriátrica),
avaliação de equilíbrio, marcha e risco de quedas (get up and go test e outros), avaliação funcional
(escalas de Katz, Lawton, medida de independência funcional), triagem de déficits sensoriais (cartão
de Snellen, teste do sussurro) e avaliação socioambiental.
Adicionalmente, outras informações de grande relevância para a atenção à saúde do idoso devem
ser coletadas rotineiramente em cada consulta, como a situação vacinal e, de modo muito especial, os
medicamentos em uso. Pacientes idosos são os principais usuários de medicamentos, e grande parte
das queixas relatadas em consultas geriátricas relaciona-se com os efeitos de fármacos em uso, pois
os idosos são também o grupo mais exposto e vulnerável a interações medicamentosas e efeitos
colaterais de drogas. Idosos ambulatoriais utilizam, em média, 3 a 4 medicamentos diferentes
diariamente e muitas vezes também possuem hábitos como automedicação, utilização de chás, ervas e
outros fitoterápicos, vitaminas e drogas homeopáticas, mas podem não reconhecer como
medicamentos os produtos utilizados nesses tratamentos, além de frequentemente omiti-los nas
anamneses. O mesmo se dá com medicamentos de uso esporádico e outras formas farmacêuticas,
como analgésicos, anti-inflamatórios, laxantes, pomadas e colírios.
Nesse contexto, uma estratégia frequentemente adotada em consultas geriátricas para identificar os
medicamentos empregados pelos idosos consiste em solicitar que tragam no retorno a “caixa” ou a
“sacola” de medicamentos. Não raramente, isso leva a descobertas desconcertantes, como a
manutenção do uso de fármacos já suspensos, o consumo de medicamentos fora do prazo de validade,
o uso cumulativo da mesma droga com nomes comerciais diferentes, a prática de automedicação, etc.
Considerações finais
A relação médico-paciente é um dos fundamentos que torna a medicina, simultaneamente, ciência e
arte, e tem como ferramenta principal a comunicação clara e honesta, e como pressuposto
fundamental a confiança. Essa confiança é a garantia que permite ao idoso confiar ao médico sua
intimidade, revelar suas preocupações e encontrar no geriatra um apoio seguro em seu quotidiano e
também por ocasião da tomada de decisões difíceis próprias dessa fase de sua vida.
Na geriatria, a relação médico-paciente frequentemente estende-se aos familiares e cuidadores do
paciente idoso, que precisam não somente compartilhar da relação do confiança em relação ao
médico, como também devem ser alvos de especial atenção de sua parte, pelo elevado risco de
síndrome do estresse do cuidador.
O atendimento a idosos sob as perspectivas da terminalidade e da opção pelos cuidados paliativos
deve levar ao aprofundamento da relação médico-paciente, na qual o cuidado técnico deve
combinar-se com a atenção humana às diversas necessidades do paciente moribundo.
Referências bibliográficas
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Atitudes do cirurgião
Uma comunicação adequada deve ser estabelecida. Os objetivos de uma boa comunicação são criar
um bom relacionamento interpessoal, facilitar o intercâmbio de informações e incluir o paciente nas
tomadas de decisões sobre o seu tratamento. Assim, o cirurgião deve permitir que o paciente
expresse seus sintomas, sentimentos e expectativas em relação ao tratamento, com as próprias
palavras. O tempo de uma consulta é menos crítico do que a percepção do paciente de que está
realmente sendo ouvido apropriadamente. Ele deve se sentir ouvido e possuir liberdade para fazer
questionamentos e expressar as suas preocupações. [2] Os principais tópicos a serem seguidos
durante a consulta médica estão demonstrados na Tabela 1.
Consentimento informado
O consentimento informado é um documento necessário ao atual exercício da medicina, como um
direito do paciente e um dever moral e legal do médico, pois, sendo o paciente dono de seu próprio
interesse, para decidir se prefere manter-se no estado de saúde em que se apresenta ou submeter-se a
um tratamento que não é isento de riscos, deve ser devidamente esclarecido pelo profissional que o
atende.
O consentimento informado representa uma manifestação expressa da autonomia da vontade do
paciente, ou seja, é recomendável que seja por escrito para evitar maiores discussões sobre se o
consentimento foi fornecido e se foi de modo suficiente ou não. O cirurgião deve explicar para cada
paciente ou seu representante legal as implicações de um tratamento cirúrgico, e se assegurar de que
o paciente entendeu e que teve oportunidade de ter qualquer o questionamento respondido. Mesmo
que o consentimento informado seja um formulário impresso, o cirurgião deve rever com o paciente
os termos do consentimento e documentar no prontuário médico os termos do consentimento.
Basicamente, o consentimento informado deve possuir as informações apresentadas na Tabela 2.
Diagnóstico da patologia
Importante destacar que o paciente legalmente capaz tem o direito de recusar tratamento, mesmo que
essa recusa possa resultar em deficiência permanente ou até mesmo em óbito. O paciente tem o
direito de participar no seu plano de tratamento e é responsabilidade do médico assistente assegurar
que o paciente entendeu a respeito de sua doença, para que tome, então, suas decisões. O
consentimento informado, portanto, é uma garantia de que o paciente foi informado para depois tomar
a decisão que julgar correta.
Para proteger um cirurgião de processos legais, é importante documentar o processo de
comunicação feito com o paciente. Um bom prontuário médico do consultório com a descrição das
orientações dadas ao paciente e um consentimento informando padrão específico para uma cirurgia
são documentos importantes em um processo ético, além de demonstrar que realmente houve uma
conversa entre médico e paciente sobre o tema.
Outro fator importante, ao obter o consentimento informado, é que o cirurgião não deve exagerar
nos benefícios potenciais da cirurgia proposta nem fazer promessas e garantias. Duas testemunhas
capazes e maiores de idade também devem assinar o termo de consentimento.
Para pacientes menores de idade, os pais ou os tutores legais devem participar do consentimento
informado e fornecer assinatura em procedimentos eletivos. Quando pacientes são mentalmente
incapacitados ou os pais ou representantes legais de menores de idade se recusam a fazer um
tratamento, o cirurgião pode requerer assistência jurídica.
Atualmente, algumas sociedades cirúrgicas, como o Colégio Brasileiro de Cirurgia Digestiva,
disponibilizam manuais de esclarecimento de várias doenças, para as quais existem termos de
consentimento apropriados.
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Roberto Ratzke
Professor Assistente do Departamento de Medicina Forense e Psiquiatria da UFPR. Mestre em Psiquiatria pela FMUSP. Diretor Clínico
da Clínica Heidelberg.
Osmar Ratzke
Professor Adjunto do Departamento de Medicina Forense e Psiquiatria. Diretor Geral da Clínica Heidelberg.
Introdução
Em 1998, Valentim Gentil Filho, Professor Titular de Psiquiatria da USP, proferiu uma palestra aos
novos residentes de psiquiatria cujo tema era a “identidade do psiquiatra”. À sua própria indagação
“Os psiquiatras são especialistas em quê?”, o professor respondeu: na “relação médico-paciente”. [1]
A relação médico-paciente é fundamental em qualquer especialidade médica, especialmente em
uma especialidade em que os doentes não aceitam ou percebem que estão doentes. Os portadores de
transtornos mentais por vezes são trazidos contra sua própria vontade, por familiares, ou, atualmente,
são até mesmo internados por determinação do poder judicial, como, por exemplo, nas internações
compulsórias. A relação médico-paciente tem um papel fundamental na psiquiatria, que é o de servir
como uma psicoterapia no sentido amplo do termo, que engloba toda relação humana com o
propósito de mudança terapêutica. Em psicoterapias, a qualidade da relação muitas vezes tem maior
impacto na mudança do comportamento do paciente que a técnica utilizada. [2]
Os aspectos característicos na relação médico-paciente em psiquiatria levam a uma relação entre
dois seres humanos especialmente difícil e complexa, pois envolvem aspectos psicológicos,
culturais, sociais, que não podem ser ignorados, além do modelo biomédico tradicional. Em
atendimento primário, relações médico-paciente pouco eficazes muitas vezes têm como pano de
fundo os transtornos mentais. [3] Em serviços de psiquiatria, aspectos psicossociais, relacionados à
pessoa e não necessariamente a aspectos biomédicos podem ocupar o maior tempo da consulta. [4]
Acolhimento inicial
Este primeiro passo se constitui em um importante alicerce para que a relação médico-paciente se
concretize adequadamente. Deve ser dado propiciando-se um local seguro para a consulta. Para isso,
é importante que a paciente perceba uma relação de respeito desde a acolhida inicial pela secretária
ou enfermeira. Um consultório bem montado, com o conforto mínimo e condições de discrição e
confidencialidade são fatores importantíssimos.
A postura do ginecologista ao cumprimentar a paciente e tratá-la pelo nome poderá demonstrar,
logo de início, que se trata de um profissional receptivo e digno de confiança. Durante a consulta a
paciente deve sentir-se acolhida, protegida de interferências externas e sem a presença de ruídos ou
fatores que venham a causar distrações, para que possa revelar as suas queixas sem interrupções e
sem receio de que possa estar sendo ouvida em outros ambientes.
A anamnese deve transcorrer da maneira mais livre e espontânea possível, sendo os dados
registrados em ordem fixa apenas na anotação médica, evitando-se imprimir à sua obtenção o caráter
de depoimento engessado na sequência das perguntas. Como veremos a seguir, trata-se de colher
dados dos aspectos mais variados, porque a vida íntima da paciente será revelada, merecendo,
portanto, uma postura cuidadosa e técnica do ginecologista.
Anamnese
A história clínica em ginecologia, sabidamente, deve compreender vários itens que lhe impõem um
fluxo de informações a ser seguido atentamente. Partindo-se de uma saudação inicial que reflita a
disponibilidade do médico para ouvir a paciente e de uma pergunta aberta que permita a elaboração
da queixa principal e história mórbida atual, diretamente relacionadas ao motivo do atendimento,
seguem-se itens que vão explorar detalhes da vida reprodutiva, do instante hormonal em que vive a
paciente, da sua sexualidade, da compreensão de fenômenos fisiológicos do seu trato genital e das
inter-relações com órgãos que se avizinham à pelve feminina.
Itens específicos são produzidos no sentido de compor a visão geral do organismo feminino e com
isso interpretam-se adequadamente as respostas, separando o que pode ser fisiológico de um lado e o
que for patológico de outro. Com esse objetivo, serão analisados alguns itens que devem compor a
história clínica da paciente sob o ponto de vista das implicações diretamente envolvidas na relação
médico-paciente.
Antecedentes mamários: diante do temor das doenças das mamas com as quais as mulheres
hoje convivem, qualquer alteração, qualquer sintoma, automaticamente, gera a procura de
uma consulta imediata, tornando-se essencial a pronta disponibilidade do ginecologista em
atendê-la e tranquilizá-la. Dessa forma, mesmo ciente de que dificilmente alguma queixa
mamária passaria despercebida por uma paciente, deve-se ressaltar a importância da atenção
especial aos sintomas mamários, incentivando o auto-exame. Durante a consulta, o
autoexame deverá ser demonstrado de modo didático. Outro dado especial se refere aos
detalhes da amamentação, ao incentivo e ao preparo para a adesão incondicional e por
tempo prolongado da amamentação materna exclusiva. Os temores da paciente e os aspectos
relacionados à autoestima naquela que apresente alterações morfológicas importantes das
mamas devem ser explorados e orientados, pois podem ser causadores de alterações na
sexualidade, inicialmente não verbalizados pela paciente.
Antecedentes sexuais: detalhes da vida sexual devem ser inquiridos com especial cuidado,
pois se trata de um momento em que a vida íntima da paciente é revelada e, portanto, uma
postura cautelosa e respeitosa deve ser adotada. As disfunções sexuais podem ser
negligenciadas se o ginecologista não procurar dar espaço para que a paciente verbalize as
queixas que podem ser o verdadeiro e único motivo da consulta. É importante, nesse
momento, trazer à compreensão que dados da vida sexual, como dor ou sangramento, não
podem passar despercebidos, pois podem ser importantes indícios de patologias específicas
hormonais ou tumorais. Antecedentes de doenças de transmissão sexual, o conhecimento das
principais doenças, os meios de transmissão e prevenção serão indagados, corrigindo-se
eventuais erros de entendimento e estimulando os cuidados e a orientação para, diante de
sinais de alerta, buscar o atendimento adequado. É o momento de revelarem-se hábitos e
gêneros, as relações hetero e homossexuais, estabelecendo-se um diálogo ao mesmo tempo
compreensivo e técnico, totalmente isento de indício de qualquer juízo de valor do médico
assistente.
Anticoncepção: as suas variadas formas implicarão diretamente em sintomas cíclicos ou
acíclicos, assim como na adequação da vida sexual. Trata-se, igualmente, de expor de
maneira clara a importância de a paciente estar atenta à melhor forma de se precaver da
gravidez se não for o seu desejo. A presença desse item obrigatório na anamnese é um bom
exemplo do caráter educativo do qual se reveste a relação médico-paciente em ginecologia.
Em especial, no atendimento de adolescentes, durante a consulta, devem ser expostos
abertamente os métodos anticoncepcionais. Uma explanação didática simples poderá ser a
porta aberta para que essa adolescente se sinta à vontade e retorne para solicitar a
prescrição de um método contraceptivo antes ou logo no início de sua vida sexual.
Leucorreia: esse item revela a necessidade de explorarem-se dados da fisiologia feminina
para que suas alterações possam ser precocemente percebidas. É preciso entender o grau de
percepção da mulher às suas secreções fisiológicas, o muco vaginal e o muco cervical, que
podem se constituir, mesmo quando fisiológicos e adequados, em uma queixa importante de
desconforto ou não adaptação à vida sexual. Da mesma forma, deve-se destacar a
importância da perfeita caracterização pela paciente para que alterações patológicas sejam
percebidas e reveladas de imediato.
Queixas referentes a outros órgãos e aparelhos: ressaltam-se os sintomas pertinentes aos
órgãos vizinhos, em especial dos aparelhos gastrointestinal e urinário. Sintomas específicos,
mesmo não sendo relacionados a patologias desses órgãos, mas sim a condições
fisiológicas, podem causar repercussões com grande desconforto na região pélvica feminina.
Nesse quesito, duas possibilidades devem ser consideradas: primeira, os sintomas refletirem
doenças dos aparelhos vizinhos e, portanto, a anamnese cuidadosa revelará que a verdadeira
causa da alteração motivadora da consulta não é de origem ginecológica; segunda, se o
relato for negligenciado, pode-se deixar escapar a possibilidade de intervir em aspectos
fisiológicos do aparelho urinário e gastrointestinal, que se corrigidos levarão a paciente a
um maior conforto e adequação.
Condições e hábitos de vida: dados gerais do dia a dia da paciente, do seu trabalho ou
estudo, atividades físicas, aspectos nutricionais, tabagismo, ingesta de bebidas alcoólicas,
uso de drogas ou outras substâncias de uso contínuo irão compor o perfil psicossocial da
paciente. Esses dados revestem-se de grande importância e devem ser exaustivamente
inquiridos. Exemplificando, o tabagismo aumenta o risco de fenômenos trombo-embólicos
quando associado a medicações hormonais que são frequentes na vida da mulher, como os
anticoncepcionais orais ou terapias de reposição hormonal na menopausa. Da mesma forma,
o incentivo constante à prática de atividade física irá em muito beneficiar a paciente, tanto
para o seu preparo para a gravidez e para a recuperação pós-parto como para adequação ao
climatério e pós-climatério, enfim, para uma vida sempre saudável. Temas estéticos podem
ocupar espaço nesse momento, pois têm reflexo importante na adesão a certos tratamentos e
implicação direta na sexualidade da mulher. Esse é o momento da anamnese, em que o
ginecologista reafirma a sua condição de participante ativo nos cuidados à mulher, impondo
o seu caráter de promotor da saúde em todos os momentos de vida. Essa interação fortalece
a relação médico-paciente, tornando-a duradoura e refletindo traços de confiança e amizade.
Reflexo desse envolvimento é a continuidade do atendimento ao longo dos anos que se faz
entre o mesmo médico e a mesma paciente. Com frequência, o ginecologista detentor de uma
relação médica consistente encontra-se agraciado com a possibilidade de acompanhar a
mesma paciente desde a adolescência, nas suas gravidezes, na maturidade e no período de
climatério.
O exame ginecológico
O exame ginecológico será realizado após a cuidadosa anamnese, na qual o ginecologista deve ter
estabelecido um grau de confiança com a paciente e criado nela a inequívoca percepção do respeito
que irá nortear todo o procedimento. Nesse momento, é essencial ter instalações adequadas e
protegidas para a paciente se preparar para o exame e ao mesmo tempo sentir-se segura em todos os
seus passos. A presença de uma auxiliar é fundamental, e deve ficar posicionada lateralmente à
paciente e manter com o médico examinador um diálogo estritamente profissional. Todas as etapas
do exame serão realizadas de modo a expor o mínimo possível a paciente, respeitando-se a sua
intimidade, porém sem descuidar da semiologia ginecológica completa.
Na eventualidade de solicitação da presença da mãe ou marido na sala de exames, deve-se
obedecer à vontade expressa da paciente. Caso assim ela o deseje, o acompanhante será colocado
preferencialmente à cabeceira da paciente, obedecendo à determinação do médico assistente, que, ao
mesmo tempo em que atende o desejo da paciente, estabelecerá de maneira nítida os limites por ele
permitidos para a presença na sala.
Ao dialogar com a paciente após o exame, todas as instruções deverão ser dirigidas a ela de
maneira não excessivamente técnica e, caso haja acompanhante, a ele será conferido apenas o papel
de ouvinte secundário. Nesse momento, independentemente da causa motivadora da consulta, a
revisão dos dados referentes à saúde geral, reprodutiva e prevenção de câncer ginecológico devem
ser revistos e acentuados enfaticamente.
A finalização do atendimento
Como demonstrado, a consulta ginecológica é ampla, sendo mais bem caracterizada como um
momento destinado à saúde da mulher. O motivo dessa consulta é variado: orientação relativa a
fenômenos fisiológicos do ciclo menstrual; fenômenos hormonais em diferentes fases da vida, como
da puberdade ao climatério; procura de controle dos ciclos menstruais e fertilidade; prevenção dos
cânceres ginecológicos; ou simplesmente com o motivo de acompanhamento da saúde, intensificando
a relação médico-paciente ano após ano na vida da mulher.
Na atualidade, em plena era digital, o ginecologista pode utilizar-se de meios que permitam
esclarecimentos complementares à paciente e com isso obter maior aderência às suas
recomendações. A disponibilidade de ser contatado por mensagens via telefone celular ou via
internet deve ser incentivada. Muitas vezes, questões simples como o que fazer com o esquecimento
da tomada de uma pílula, o modo de utilizar determinado medicamento, a orientação quanto a um
inesperado atraso menstrual, a percepção de uma menstruação com um fluxo pouco maior, cólicas
mais intensas ou um novo sintoma no período pré-menstrual podem ser esclarecidas de imediato,
tranquilizando a paciente e orientando-a até que possa receber, se necessário, atendimento médico
complementar. Existe uma tendência maior para o uso de mensagem via internet pela possibilidade
de inclusão de informações mais detalhadas, além da segurança de que essas mensagens somente
serão acessadas, por meio de senha, pelo interlocutor. Essa forma de comunicação pode ser
oferecida à paciente e, para ser efetivada, deve-se assegurar da anuência dela, bem como
disponibilidade e confidencialidade na troca de informações.
Por último, ressalta-se a crescente participação dos ginecologistas na atenção primária à saúde,
atuando, com destaque, na prevenção e promoção da saúde. Além do caráter habitual da consulta
para a pesquisa de processos patológicos, os aspectos educativos e preventivos constituem-se em um
importante elo na promoção da saúde da mulher, seja qual for a etapa de vida em que se encontre no
momento da realização da consulta ginecológica.
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Estudos clínicos
Com o objetivo de aprimoramento do conhecimento médico, um estudo clínico é realizado em
voluntários humanos obedecendo a todos os preceitos de ética em Pesquisa Médica, regida por
princípios da ética e respeito ao ser humano. Além disso, possui uma regulamentação específica e de
abrangência universal.
Há dois tipos de estudos clínicos: os ensaios clínicos e estudos observacionais. O ensaio clínico ou
de intervenção compara uma nova terapêutica ou procedimento com uma já usual, ou ainda com
placebos, que não contêm princípios ativos. Esses ensaios clínicos são realizados com base em um
protocolo específico, e seguem uma normatização científica contendo um racional do estudo,
objetivos, critérios de seleção e não seleção dos pacientes, procedimentos a serem adotados, plano
de acompanhamento, estatística e todas as especificações pertinentes à segurança do paciente.
Os estudos observacionais avaliam os resultados em um determinado grupo de pacientes após
receberem intervenção medicamentosa ou dispositiva terapêutica, como parte da rotina médica, não
sendo atribuídas intervenções específicas.
1. Fases dos Estudos Clínicos
O desenvolvimento das novas medicações começa geralmente em ensaios pré-clínicos em animais,
para demonstrar a eficácia, antes de ser testado em seres humanos. O desenvolvimento de uma nova
droga e a sua utilização na prática médica demoram muitos anos e passam por várias fases, a saber:
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Como não poderia deixar de ser, a medicina gera direitos e deveres para ambas as partes na
relação médico-paciente. O médico tem autonomia e liberdade para exercer a sua profissão. A
autonomia está definida no Princípio Fundamental VII:
VII – O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços
que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações
de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa
trazer danos à saúde do paciente.
O médico não precisa atender a todos, pois não é obrigado a atender a quem não deseje ou em
situações que contrariem a sua consciência. O melhor exemplo de situação contrária aos ditames da
consciência do profissional é o aborto legal [4], em que a paciente tem direito de fazê-lo, porém o
médico contrário ao aborto não tem a obrigação de executá-lo.
Porém, essa não é uma autonomia plena, pois se limita em prol do paciente em três situações:
quando não houver outro médico; nos casos de urgência ou de emergência, pois caracteriza omissão
de socorro; e nas situações que, mesmo tendo mais de um médico, a atuação de determinado
profissional, se não se der, poderá trazer danos ao paciente, como na situação em que, na presença de
vários médicos e somente um neurocirurgião, este não pode se recusar a drenar um hematoma
extradural em expansão.
Além da autonomia, o médico também tem liberdade no atendimento ao paciente, que está definida
no Princípio Fundamental VII do CEM:
VIII – O médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto, renunciar à sua
liberdade profissional, nem permitir quaisquer restrições ou imposições que possam
prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho.
Essa liberdade não pode ser renunciada pelo médico e serve para que as Instituições com quem o
médico se relaciona (hospitais, planos de saúde, sociedades de classe, etc.) não limitem a sua
atuação em prol do paciente para o cumprimento de normas burocráticas ou financeiras.
Então, são direitos fundamentais do médico a liberdade e a autonomia, porém jamais o médico pode
esquecer que quem se trata é o paciente, que tem o direito de decidir sobre a sua pessoa e seu bem-
estar. Isso é definido no Princípio Fundamental XXI:
XXI – No processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus ditames de
consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de seus pacientes, relativas
aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao
caso e cientificamente reconhecidas.
Entretanto, no respeito à decisão do paciente, o médico não precisa e não deve infringir os ditames
de sua consciência, a legislação vigente e a ciência médica. Também deve evitar a obstinação
terapêutica nos casos de doentes terminais, como prescreve o Princípio Fundamental XXII do CEM:
XXII – Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de
procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua
atenção todos os cuidados paliativos apropriados.
O Código de Ética Médica de 2009 trouxe em relação ao seu antecessor de 1988 a perda da
punibilidade por infrações aos Princípios Fundamentais, fazendo com que esses princípios sejam
reproduzidos novamente nos artigos das secções de Direitos do Médico e de Deontologia do Código.
Isso é visto nos Direitos do Médico II, VIII e IX.
É direito do médico:
II – Indicar o procedimento adequado ao paciente, observadas as práticas cientificamente
reconhecidas e respeitada a legislação vigente.
VIII – Decidir, em qualquer circunstância, levando em consideração sua experiência e
capacidade profissional, o tempo a ser dedicado ao paciente, evitando que o acúmulo de
encargos ou de consultas venha a prejudicá-lo.
IX – Recusar-se a realizar atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos
ditames de sua consciência.
A parte deontológica do CEM é composta de 118 artigos, divididos em 11 capítulos, sendo o
Capítulo V dedicado exclusivamente à relação médico-paciente. Todos os 118 artigos iniciam com
norma impositiva: “É vedado ao médico”, seguida do texto dessa vedação em cada artigo.
No Capítulo III, que aborda a responsabilidade profissional, o artigo segundo diz:
Art. 2º É vedado ao médico: Delegar a outros profissionais atos ou atribuições exclusivos da
profissão médica.
A vedação é para a proteção do paciente, para que pessoas não capacitadas e habilitadas pudessem
atuar, por delegação do médico, atos exclusivos da profissão. Porém, isso foi profundamente
alterado pela Lei do Ato Médico [9], que retirou da profissão de médico vários atos exclusivos, a
começar pela exclusividade de fazer diagnóstico e propor tratamento.
A medicina gera uma obrigação de meio, em que o médico coloca todo o seu conhecimento e a sua
técnica a serviço no paciente, não se comprometendo com o resultado alcançado [10]. Porém, essa
obrigação de meio não é entendida por corrente majoritária do Judiciário Brasileiro no que se refere
à cirurgia plástica estética, que entende gerar uma obrigação de resultado, em que o médico se
compromete com o resultado obtido pelo procedimento.
O médico é sempre responsável pelos seus atos no atendimento ao paciente, mesmo quando o
paciente autoriza o tratamento ou que estejam atuando diversos médicos no caso. Também, o médico
não deve assumir responsabilidade por ato que não praticou. Isso é definido nos artigos 3º, 4º e 5º do
CEM, que dizem ser vedado ao médico:
Art. 3º Deixar de assumir responsabilidade sobre procedimento médico que indicou ou do qual
participou, mesmo quando vários médicos tenham assistido o paciente.
Art. 4º Deixar de assumir a responsabilidade de qualquer ato profissional que tenha praticado
ou indicado, ainda que solicitado ou consentido pelo paciente ou por seu representante legal.
Art. 5º Assumir responsabilidade por ato médico que não praticou ou do qual não participou.
Os insucessos de tratamento podem acontecer e fazem parte do exercício da medicina. Algumas
vezes são decorrentes da quebra de responsabilidade de Instituições (por exemplo, falta de um
material cirúrgico) ou mesmo do próprio paciente (por exemplo, não seguir o tratamento prescrito),
mas para fazer essa alegação o médico tem que ter a devida comprovação de acordo com o artigo 6º
do CEM:
Art. 6º Atribuir seus insucessos a terceiros e a circunstâncias ocasionais, exceto nos casos em
que isso possa ser devidamente comprovado.
A omissão de socorro a uma pessoa em necessidade é crime [4] e é mais grave quando cometida por
um médico, que por sua profissão tem o conhecimento da gravidade que isso pode trazer para o
paciente. O médico pode evitar essa lamentável situação com a observância dos artigos 7º, 8º e 33
do CEM, que diz ser vedado ao médico:
Art. 7º Deixar de atender em setores de urgência e emergência, quando for de sua obrigação
fazê-lo, expondo a risco a vida de pacientes, mesmo respaldado por decisão majoritária da
categoria.
Art. 8º Afastar-se de suas atividades profissionais, mesmo temporariamente, sem deixar outro
médico encarregado do atendimento de seus pacientes internados ou em estado grave.
Art. 33 Deixar de atender paciente que procure seus cuidados profissionais em casos de
urgência ou emergência, quando não haja outro médico ou serviço médico em condições de
fazê-lo.
O Capítulo IV do CEM aborda os Direitos Humanos e três de seus artigos são altamente
relevantes na relação médico-paciente, a começar pelo artigo 23, que diz ser vedado ao
médico:
Art. 23. Tratar o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua dignidade ou
discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto.
Obviamente que esse artigo se aplica a todos, médicos e não médicos nas relações interpessoais,
pois é uma questão de educação pessoal e um dever expresso na Constituição Federal.
Em todas as situações, por mais difícil que seja para o médico, este deve sempre garantir ao
paciente o direito da decisão final sobre o seu tratamento, pois é ele que necessita do tratamento e a
ele que está voltada toda a atenção do médico, em respeito aos artigos 24 e 22 do CEM, que afirmam
ser vedado ao médico:
Art. 24. Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua
pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo.
Art. 22. Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após
esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte.
Se a decisão final do tratamento é do paciente, cabe ao médico o respeitar o artigo 31 do
CEM, que abre o Capítulo V que aborda a relação do médico com pacientes e familiares:
Art. 31. É vedado ao médico: Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal
de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em
caso de iminente risco de morte.
As limitações dessa decisão se fazem quando há risco iminente de morte, quando o médico tem
obrigação de atuar em prol da vida do paciente; ou quando a decisão do paciente vai de encontro dos
ditames da consciência do médico ou contra os postulados da ciência médica. Nessas situações, o
médico deve esclarecer sua posição, solicitando ao paciente que procure atendimento em outro
serviço de saúde que concorde com as suas decisões.
Mesmo na função de docente, o médico deve obter o devido consentimento do paciente, como se vê
no artigo 110 do CEM:
Art. 110. É vedado ao médico: Praticar a Medicina, no exercício da docência, sem o
consentimento do paciente ou de seu representante legal, sem zelar por sua dignidade e
privacidade ou discriminando aqueles que negarem o consentimento solicitado.
Cabe ao médico utilizar de todos os meios de diagnóstico e tratamento em prol do paciente,
evitando, porém, a obstinação terapêutica, nos casos de doente terminal, sem, contudo, jamais
praticar qualquer ato que possa caracterizar eutanásia, mesmo a pedido do paciente ou de seus
familiares. Isto é visto nos artigos 32 e 41 do CEM:
Art. 32. É vedado ao médico: Deixar de usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e
tratamento, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente.
Art. 41. É vedado ao médico: Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu
representante legal.
Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os
cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou
obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua
impossibilidade, a de seu representante legal.
Na maioria das vezes, o primeiro contato do médico com o paciente se dá em uma consulta médica,
na qual o médico deve respeitar o pudor do paciente e, preferencialmente, deve sempre estar
acompanhado por uma funcionária sua durante o exame físico. Somente após a anamnese e o exame
físico é que o medico pode prescrever o tratamento do paciente, em respeito aos artigos 37 e 38 do
CEM:
Art. 37. É vedado ao médico: Prescrever tratamento ou outros procedimentos sem exame direto
do paciente, salvo em casos de urgência ou emergência e impossibilidade comprovada de
realizá-lo, devendo, nesse caso, fazê-lo imediatamente após cessar o impedimento.
Art. 38. É vedado ao médico: Desrespeitar o pudor de qualquer pessoa sob seus cuidados
profissionais.
Ao terminar a consulta, o médico deverá informar o diagnóstico e prognóstico ao paciente, ou
conforme diz o artigo 43 do CEM, ao seu representante legal:
Art. 34. É vedado ao médico: Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os
riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar
dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal.
O médico não deve, em hipótese alguma, exagerar na gravidade da doença do paciente, pois isso
não é correto no bom relacionamento com o paciente. Deve procurar utilizar, dentro das condutas
possíveis e efetivas para o caso, a mais simples, evitando complicar o tratamento, em respeito ao
artigo 35 do CEM:
Art. 35. É vedado ao médico: Exagerar a gravidade do diagnóstico ou do prognóstico,
complicar a terapêutica ou exceder-se no número de visitas, consultas ou quaisquer outros
procedimentos médicos.
Também a relação médico-paciente não deve trazer ao médico quaisquer outras vantagens além do
justo honorário profissional, com diz o artigo 40 do CEM:
Art. 40. É vedado ao médico: Aproveitar-se de situações decorrentes da relação médico-
paciente para obter vantagem física, emocional, financeira ou de qualquer outra natureza.
Dentro do direito de escolha do paciente, este pode pedir uma segunda opinião para qualquer outro
profissional, bem como mudar de médico para a continuidade de seu tratamento, cabendo ao médico
respeitar os preceitos do artigo 39 do CEM:
Art. 39 É vedado ao médico: Opor-se à realização de junta médica ou segunda opinião
solicitada pelo paciente ou por seu representante legal.
O médico, como cidadão, tem suas convicções pessoais, entretanto elas não devem influenciar em
relação às escolhas do paciente, servindo como exemplo o enunciado do artigo 42 do CEM:
Art. 42. É vedado ao médico: Desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre
método contraceptivo, devendo sempre esclarecê-lo sobre indicação, segurança,
reversibilidade e risco de cada método.
O sigilo profissional também é um dos pilares do relacionamento médico-paciente, e o CEM tem o
Capítulo IX dedicado ao tema. É fundamental o respeito aos artigos 73, 74 e 75 do CEM:
Art. 73. É vedado ao médico: Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício
de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do
paciente.
Parágrafo único. Permanece essa proibição: a) mesmo que o fato seja de conhecimento
público ou o paciente tenha falecido; b) quando de seu depoimento como testemunha. Nessa
hipótese, o médico comparecerá perante a autoridade e declarará seu impedimento; c) na
investigação de suspeita de crime, o médico estará impedido de revelar segredo que possa
expor o paciente a processo penal.
Art. 74. É vedado ao médico: Revelar sigilo profissional relacionado a paciente menor de
idade, inclusive a seus pais ou representantes legais, desde que o menor tenha capacidade de
discernimento, salvo quando a não revelação possa acarretar dano ao paciente.
Art. 75. É vedado ao médico: Fazer referência a casos clínicos identificáveis, exibir pacientes
ou seus retratos em anúncios profissionais ou na divulgação de assuntos médicos, em meios de
comunicação em geral, mesmo com autorização do paciente.
As hipóteses de quebra do sigilo estão albergadas no artigo 73. É clara a possibilidade da quebra
quando há desejo do paciente para isso. Como exemplos de dever legal estão as doenças de
notificação compulsória e de motivo justo está o uso do prontuário médico na defesa do médico
processado pelo paciente, lembrando que, se o processo for fora da esfera do Conselho de Medicina,
é recomendável ao médico que solicite o sigilo de justiça no processo.
O Código de Ética Médica prevê a situação em que o médico pode abandonar o paciente que esteja
aos seus cuidados, pelo princípio da autonomia, respeitando-se ao artigo 36:
Art. 36. É vedado ao médico: Abandonar paciente sob seus cuidados.
§1° Ocorrendo fatos que, a seu critério, prejudiquem o bom relacionamento com o paciente ou
o pleno desempenho profissional, o médico tem o direito de renunciar ao atendimento, desde
que comunique previamente ao paciente ou a seu representante legal, assegurando-se da
continuidade dos cuidados e fornecendo todas as informações necessárias ao médico que lhe
suceder.
§2° Salvo por motivo justo, comunicado ao paciente ou aos seus familiares, o médico não
abandonará o paciente por ser este portador de moléstia crônica ou incurável e continuará a
assisti-lo ainda que para cuidados paliativos.
Ocorrendo a necessidade de abandonar ao tratamento do paciente, o médico deve registrar o motivo
no prontuário do paciente e informar ao diretor médico da instituição o ocorrido. Nessa situação,
estando o paciente internado, o médico continuará seu atendimento até que um médico substituto
assuma o tratamento do paciente, sempre solicitando a interferência do diretor médico na solução da
substituição.
Uma situação que pode levar ao desgaste do relacionamento entre o médico e o paciente é a questão
dos honorários profissionais. O Direito Médico X do CEM define claramente a questão de que o
médico tem direito aos seus honorários:
X – É direito do médico: Estabelecer seus honorários de forma justa e digna
Os honorários devem ser previamente estabelecidos e jamais devem ser indevidos, como as
situações que caracterizariam infração aos artigos 65 e 66 do CEM, que vedam ao médico:
Art. 65. Cobrar honorários de paciente assistido em instituição que se destina à prestação de
serviços públicos, ou receber remuneração de paciente como complemento de salário ou de
honorários.
Art. 66. Praticar dupla cobrança por ato médico realizado.
Parágrafo único. A complementação de honorários em serviço privado pode ser cobrada
quando prevista em contrato.
No que se refere à visão legal da relação médico-paciente, importante é o enfoque sobre as normas
que regem essas relações e o seu conteúdo dividido entre direitos e obrigações dos médicos e
pacientes.
Todas as relações da vida civil devem ser tratadas pelas leis do direito privado, salvo quando há o
envolvimento de Estado, quando o enfoque legal transmuta-se para o direito público. Aqui se
apresenta, de maneira geral, as principais questões jurídicas que envolvem o atendimento médico.
Os direitos do cidadão médico e do cidadão paciente estão de certo modo abrangidos pelas leis
comuns que estabelecem regras gerais, ao contrário das disposições éticas do Conselho Federal de
Medicina, que são direcionadas tão somente para os profissionais médicos.
Não constitui tarefa fácil enquadrar o exercício da medicina dentro de uma ou outra forma jurídica.
O Conselho Federal de Medicina define que a relação médico-paciente não se caracteriza como uma
relação de consumo [1]. Entretanto, a corrente majoritária do judiciário nacional há muito tempo
coloca o exercício da medicina como uma prestação de serviço.
A medicina é uma profissão bastante específica, que tem por base uma ciência, e por mais avançada
que esteja não tem o controle sobre os resultados que determinado ato pode alcançar. Como ciência
pode, dentro de seu estudo, orientar condutas tidas como corretas e é dentro destes parâmetros que se
entende lícito o seu exercício.
De outro lado está o tomador ou destinatário do serviço, chamado paciente, que espera que o
profissional exerça a sua profissão observando rigorosamente e da melhor maneira os protocolos da
ciência médica. E não é dada ao profissional a faculdade de obedecer ou não aos preceitos da
ciência médica. A exceção existe nos casos de pesquisa, que merece atenção importante, para a qual
a bioética e a legislação definem seus limites e, quando envolvido paciente, sua aceitação livre e
absoluta.
A prestação de serviço tem por base a colocação por parte de alguém, seja pessoa física seja
jurídica, de algum trabalho mecânico e/ou mental, normalmente sob pagamento de alguma quantia,
para algum interessado, tomador, que o solicite [11].
Em regra, a prestação de serviços é chamada de contrato bilateral, pois aquele que se coloca à
disposição para a realização de um trabalho o faz por vontade livre e aquele que busca este trabalho
também o faz de maneira voluntária, ainda que por necessidade [11].
Então, o paciente e sua família procuram determinado profissional ou casa de saúde para buscar um
diagnóstico, orientação e tratamento. A instituição pode ser pública ou privada, com pagamento por
convênio ou particular, de modo que se estabelece esse vínculo entre a pessoa que quer ou necessita
atendimento e o médico que o presta profissionalmente.
A medicina é ciência e tem relevante função social e humanitária, mas sob o enfoque das atividades
não deixa de ser um trabalho realizado mediante remuneração, tal qual a definição do Código Civil
Brasileiro no seu artigo 594, que trata da prestação de serviços, e mesmo quando as partes não
assinam contrato a relação é contratual em razão da vontade de ambas as partes na realização desse
atendimento.
A considerar o trabalho médico como prestação de serviço, uma segunda questão, um pouco mais
complexa, se apresenta: essa prestação de serviços constitui relação de consumo?
Neste momento, a visão médica se confronta com a visão jurídica, pois se de um lado o Código de
Ética Médica é expresso em afirmar que a “atuação profissional do médico não caracteriza relação
de consumo”, de outro, na regra geral do Código de Defesa do Consumidor [5], é estabelecido como
consumidor o destinatário final do serviço e como fornecedor toda pessoa física ou jurídica que
desenvolve atividade de prestação de serviço conforme a leitura do Art. 3º. Logo adiante, no
parágrafo 2º do citado artigo, define-se prestação de serviço como “qualquer atividade fornecida no
mercado de consumo, mediante remuneração”, salvo as de natureza trabalhista.
Entrar nessa discussão não constitui objetivo deste artigo, de modo que analisaremos apenas o
aspecto prático, ou seja, saber se incidem ou não as regras do CDC nas relações médico-pacientes.
O CEM e o CDC são antagônicos, de modo que é preciso analisar inicialmente nesse conflito a
hierarquia das normas e nesse primeiro aspecto confronta-se uma norma administrativa com uma Lei
de onde se extrai que o que vale é o CDC: esse entendimento é pacífico no Superior Tribunal de
Justiça (STJ). Portanto, a discussão sobre a natureza jurídica da relação médico-paciente atualmente
é apenas filosófica, pois no campo prático se considera uma relação abrangida pelo CDC.
Conduzida por essa Lei, na relação médico-paciente existem obrigações do médico e obrigações do
paciente, em contrapartida direitos de ambos também. O CDC estabelece como direitos dos
consumidores pacientes a proteção da vida, saúde e segurança, direitos que são estabelecidos como
de todos os cidadãos pela Constituição Federal de 1988; direito à integral informação sobre o
atendimento prestado, seja ele diagnóstico e prognóstico de sua situação, assegurada sua liberdade
de escolha; direito à informação adequada sobre suas obrigações enquanto paciente, como sobre os
hábitos a desenvolver e a cessar, os medicamentos que deverá tomar, seus efeitos esperados, as
eventuais contra-indicações e efeitos colaterais, bem como o modo de ingestão; direito de saber,
quando possível, os custos do serviço prestado no caso em que o paciente ou sua família arque com
as despesas do atendimento; direito a não ser vítima de qualquer método que se aproveite da relação
médico-paciente para vender ou fornecer serviços que não sejam necessários; direito à reparação
dos danos efetivamente causados. Em contrapartida, tem o médico direito ao recebimento do valor
adequado pelo seu atendimento, bem como recusar-se a prestar o serviço quando a recusa não vier a
causar prejuízo iminente do paciente.
Ainda que se aplique a lei consumerista, para algumas questões no que se refere às obrigações
indenizatórias específicas, forma de aplicação de prescrição ou alguma outra lacuna do CDC
poderão ser utilizadas regras gerais do Código Civil.
Em relação às obrigações de indenizar, o CDC traz o conteúdo mais importante sobre a
responsabilidade civil dos médicos em seu art. 14, §4º, quando estabelece que o dever de indenizar
dos profissionais liberais deverá ser apurado mediante verificação de culpa.
Isso quer dizer que somente poderá ser considerado incorreto e passível de alguma reparação o
atendimento em que ficar demonstrada a existência de negligência, imprudência ou imperícia, que é
aquele atendimento médico que deveria ter sido conduzido de outra forma sob o enfoque da boa
técnica médica.
Se o médico conduziu o tratamento de acordo com os preceitos médicos atuais, não se obriga para
com aquele resultado almejado, e se não houver cura ou acontecer outro fato que constitua risco do
tratamento, isso não poderá ser considerado como descumprimento de sua obrigação. Se de um lado
o paciente, ou alguém por ele, se obriga a pagar, o médico por sua vez se obriga a maior diligência
dentro do que se entende como a conduta (ou uma das) esperada para o caso em medicina. Há uma
construção dos julgados no sentido de que as cirurgias plásticas fugiriam a essa regra. Este
entendimento, apesar de majoritário, não está livre de críticas, posto que se o cirurgião trabalhou
dentro da estrita técnica médica e o resultado depende de inúmeros outros fatores, não haveria por
que se punir o profissional que agiu corretamente. O argumento de que a cirurgia era desnecessária e
que assim o cirurgião plástico estaria obrigado pelo risco pode ser debelado pelo fato de o paciente,
ciente dos riscos, aceitá-lo.
A característica mais marcante dessa definição é processual, e o CDC permite, no caso de haver
verossimilhança ou hipossuficiência do consumidor, a inversão do ônus da prova, fato que transfere a
prova da higidez do ato médico ao próprio profissional. Desse modo, o profissional, além de exercer
uma medicina correta, ainda deverá estar preparado para provar e explicar as suas condutas médicas,
quando assim solicitado. [12]
De outro lado, há a obrigação do paciente, ou do plano de saúde ou do Estado, em efetuar o
pagamento desses honorários médicos, no caso do paciente particular o valor combinado, no caso
dos planos e SUS o valor estabelecido e aceito pelo médico.
No que se refere à obrigação de pagamento, uma questão tem surgido quando o atendimento se dá
em caráter emergencial, quando o paciente não está em condições de aceitar ou não os elementos do
contrato e quando a necessidade retira por completo a possibilidade de negociação e aceitação das
condições impostas pelo prestador. Nesses casos, a justiça tem se posicionado no sentido de que por
ser necessário e urgente é dispensável a aceitação do paciente, mas, em razão disso, não é dado ao
médico o direito de aproveitar-se dessa situação para cobrar valores abusivos, ou submeter o
paciente a procedimentos desnecessários, sob pena de se incorrer no vício de estado de necessidade.
No ponto de vista constitucional, verifica-se que entre os direitos principais à vida e à saúde, estes
se ligam diretamente com os objetivos da medicina. Entretanto, alguns direitos influenciam estes
primeiros, pois há o direito à liberdade e religião, fazendo com que muitas vezes as escolhas feitas
pelo paciente não agradem e mesmo dificultem a atuação do médico. [13] No rigor da lei, essas
liberdades somente esbarram no direito à vida, tido como absoluto, mas podem efetivamente adentrar
ao campo dos riscos graves, como o clássico exemplo do paciente que não aceita receber sangue. [14]
A relação médico-paciente deve pautar-se na confiança, que é garantida legalmente quando a
legislação põe a salvo as informações do paciente obtidas pelo médico, não apenas de sua saúde,
mas de seus hábitos e de qualquer fato ou pensamento exposto durante uma consulta médica. Violar
esse dever de sigilo, além de infração ética também constitui infração penal [15], e quando gerar
algum dano é passível de indenização. [16]
Também cabe ao médico a guarda dos registros feitos em prontuário de seu consultório, salvo
quando esses prontuários forem arquivados em instituição hospitalar. A guarda é inerente à relação
médico-paciente, pois com esse registro pode o profissional saber a qualquer momento sobre o
atendimento prestado, pode o paciente solicitar o documento numa necessidade médica futura. O
registro faz parte do próprio serviço médico. Uma dúvida frequente aparece acerca dos prazos pelo
qual o prontuário deve ser guardado. No aspecto legal, encontra-se no Estatuto das Crianças e
Adolescentes [6] em seu art. 10, inciso I, a determinação para que hospitais e estabelecimentos
públicos ou privados de atenção à saúde da gestante mantenham arquivados os prontuários por 18
anos. Tal determinação é específica, não havendo lei que estabeleça prazo para a guarda de
prontuários de atendimentos outros.
Em que pese a ausência legislativa, o CFM no art 8º da Resolução CFM nº 1.821/07 [17]
estabeleceu que o tempo de guarda mínimo é de 20 anos para arquivos em papel. Também no que
tange à possibilidade de existência de ação judicial em relação a este atendimento, o CDC estabelece
como prazo de prescrição 5 anos, que a princípio poderia balizar o tempo de guarda, entretanto
ocorre que o posicionamento mais moderno afirma que esse prazo inicia-se somente com o
aparecimento do dano e não no momento específico do ato médico, salvo se concomitantes. Outro
problema da prescrição é que ela não se conta para incapazes crianças, então esse prazo de ação
iniciará ao completar 18 anos, ou no caso de incapacidade por outro fato somente iniciará quando (e
se) cessar essa incapacidade. Ademais, a função do registro não é somente de prova, mas como
informação privada do paciente para qualquer fim, especialmente médico. A conclusão mais segura é
que estes prontuários sejam guardados por tempo indeterminado.
Ainda no que se refere à legislação geral, o Código Penal [4] também configura norma incidente no
aspecto jurídico da relação médico-paciente. Interessante notar que muitas vezes um fato contrário à
ética também é tido como crime e ilícito civil. O caso emblemático seria o chamado “erro médico”,
que tanto é punido pela norma ética quanto pela norma penal nos crimes de lesão corporal culposa e
homicídio culposo. Constitui também falta civil pela existência da culpa, gerando o dever de
indenizar.
Outras situações vedadas pelo ordenamento penal são mais específicas, pois exigem a ciência do
profissional acerca da ilicitude deste ato – dolo. Destaca-se a eutanásia com ou sem o consentimento
e participação do doente, cada qual com seu crime específico; o aborto com ou sem o consentimento
da gestante, salvo nos casos de permissão legal como estupro ou risco de vida para a mãe e ainda
autorização judicial, violação do sigilo médico, omissão de socorro, estelionato que estaria
configurado quando o médico utilizasse desta condição para enganar o paciente e auferir vantagens
geralmente financeiras com isso.
Em relação às responsabilidades penais sobre os atendimentos médicos, eventuais faltas serão
apuradas e poderão ser motivo de ação penal. Se comprovada a infração, poderá haver punição do
profissional.
Já adentrando na legislação específica sob o enfoque relação médico- paciente, estão as regras
estabelecidas pelo Estatuto do Idoso. Nessa lei também se encontra a regra geral do direito à vida e à
saúde, assegurada a dignidade do idoso nos atendimentos e tratamentos médicos. Diz o estatuto que
ao idoso, ou seja, aquele com mais de 60 anos, é garantido o direito de preferência nos atendimentos
médicos. Deve o profissional estar atento de maneira a prevenir ameaça ou violação ao direito do
idoso, devendo, quando verificada sua ocorrência, efetuar a imediata comunicação às autoridades,
que neste caso são a Delegacia de Polícia, o Ministério Público ou os Conselhos dos Idosos (art. 6º
c/c 19 do EI). [7]
O idoso, apesar das garantias, que não possuir incapacidade tem o direito de optar pelo tratamento
que entender conveniente, respeitadas as indicações médicas. No caso de incapacidade do idoso, o
próprio EI, em seu art. 17, prevê que nessa circunstância será o curador quem decidirá sobre as
questões do tratamento. Curador é a pessoa designada pelo juiz para ser o responsável pela pessoa
incapaz. Não havendo curador, serão responsáveis os familiares e em caso de emergência ou de
ausência de curador ou familiares o médico fará a decisão. Todo idoso tem ainda o direito a
acompanhante no caso de internamento.
Aliás, a regra é parecida com a regra geral, segundo a qual a pessoa capaz poderá decidir
livremente acerca do tratamento e em caso de impossibilidade essa decisão caberá aos familiares, ou
seja, cônjuge e filhos, e qualquer divergência deverá ser solucionada em juízo. Não há qualquer
regra jurídica para eventuais divergências.
No Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), as decisões sobre o tratamento de crianças e
adolescentes cabem aos pais, detentores do poder familiar. Surge uma complicação no caso dos
adolescentes que não querem ter a sua intimidade exposta, ou quando houver divergência com os
pais. O Código de Ética Médica não fixa idade para que o adolescente possa sozinho determinar-se,
de modo que seria possível no regramento ético que uma pessoa de 15 anos tivesse sua completa
intimidade e decisões respeitadas. Isso leva a um conflito ente o CEM e o ordenamento jurídico,
porém também pode ser interpretado como uma tentativa de avanço no respeito dos direitos
individuais do adolescente por parte do Conselho Federal de Medicina. Entretanto, pelo ECA, essa
pessoa está sujeita ao Poder Familiar até os 18 anos, idade em que atingirá a maioridade se já não a
tiver por outros requisitos. Portanto, pela lei, caso haja necessidade de uma decisão importante em
relação ao paciente menor de 18 anos, esta deverá ser tomada juntamente com seus pais. Havendo
divergência, restará o caminho judicial para solucionar conflitos não conciliáveis. Poderá em casos
excepcionais haver a guarda e a tutela, que são institutos conferidos pelo juiz para que uma pessoa
represente o menor.
O Estatuto dispõe acerca da prioridade absoluta da criança e do adolescente em qualquer direito,
concedendo expressamente o direito ao atendimento em serviços de relevância e no recebimento de
proteção e socorro.
Dispõe ainda que se faça, nos atendimentos de gestante, a identificação adequada da criança
nascida, que se não realizada constitui crime, bem como exames para avalição diagnóstica e
terapêutica de anormalidades no metabolismo.
É garantia da criança e do adolescente que sejam fornecidas condições para que ao menos um dos
pais ou responsáveis permaneça junto durante o internamento. Se houver verificação ou suspeita de
maus tratos, o Conselho Tutelar deve ser imediatamente avisado e também poderão ser comunicados
o Ministério Público e a Delegacia de Polícia. O ECA põe a salvo a intimidade, imagem e vida
privada da criança e do adolescente. Consigna, ainda, que o médico que tiver conhecimento de que a
mãe ou gestante tenha intenção de entregar o filho para adoção deve comunicar à autoridade
judiciária.
Apesar da relação médico-paciente ser contratual, em poucos casos há realmente a contratação
escrita, fato que não retira a natureza contratual da relação que possui os seus elementos bem
definidos, ou seja, de um lado o bom atendimento e informação e de outro o pagamento. No caso dos
atendimentos particulares, o contrato poderá ser um facilitador do paciente inadimplente. Esse
instrumento não se confunde com o termo de consentimento livre e esclarecido, que consiste na
informação do médico ao paciente sobre o seu estado de saúde e sobre os procedimentos a que o
paciente irá se submeter, incluindo seus riscos e consequências. O consentimento informado não
precisa ser assinado como documento (exceto nos casos de transplante, pesquisa e planejamento
familiar, quer na esterilização quer na reprodução assistida que exigem o documento escrito), mas
sempre que seja possível fazê-lo é indicado. Entretanto, o documento não substitui a explicação oral
ao paciente e, do ponto de vista jurídico, é importante seu registro no prontuário.
Pelo exposto se vê que a relação médico-paciente é complexa e demanda diversas situações, muitas
delas sequer previstas na lei. Este artigo, portanto, apresenta as mais comuns para conhecimento do
profissional.
Referências bibliográficas
[15] CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2009. Resolução CFM nº 1.821 de 23
de novembro de 2007.
[3] CÓDIGO Civil Brasileiro. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
[5]
CÓDIGO de Defesa do Consumidor. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990.
[1] CÓDIGO de Ética Médica. Resolução do Conselho Federal de Medicina 1.931 de 17 de setembro de 2009.
[4] CÓDIGO Penal Brasileiro. Decreto-lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940.
[2] CONSTITUIÇÃO da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988.
[6] ESTATUTO da Criança e do Adolescente. Lei nº 8.069, de 13 de julho e 1990.
[7] ESTATUTO do Idoso. Lei 10.741, de 1º de outubro de 2003.
[11] GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 7. ed.
Rio de Janeiro: Forense Univeritária, 2001.
[12] KFOURI NETO, Miguel. Culpa médica e ônus da prova. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
[9] LEI do Ato Médico. Lei nº 12.842 ,de 11 de julho de 2013.
[8] LEI dos Planos de saúde. Lei nº 9.656, de 03 de junho de 1998.
[15] NORONHA, E. Magalhães. Direito penal. 31. ed. São Paulo: Saraiva, 1995. v .1.
[13] SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 29. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007.
[14] TIMI, J. R. R. Transfusão de sangue em testemunha e Jeová. In: TIMI, J. R. R.; MERCER, P. G.; MARQUARDT, M.
A influência do direito no exercício da medicina. Rio de Janeiro: Revinter, 2004. p. 177-186.
[10] TIMI, J. R. R.; MERCER, P. G. Responsabilidade Civil do Médico e Processo Civil. In: TIMI, J. R. R.; MERCER, P. G.;
MARQUARDT, M. A influência do direito no exercício da medicina. Rio de Janeiro: Revinter, 2004; p. 27-34.
Marcelo Marquardt
Advogado com atuação no Direito Médico. Especialista em Direito Processual Civil pela UFSC.
Juramento dos médicos
A medicina como arte milenar se desenvolveu ao longo da História, do curandeirismo a um patamar
de ciência, através de grandes pesquisadores e com o auxílio da tecnologia, porém seu impulso
inicial teve uma contribuição ímpar da escola grega de Cós, na qual a figura de Hipócrates tornou-se
central, aproximando a Medicina dos fundamentos racionais e científicos. O Corpus
Hippocraticum traduz em seus livros essas impressões e lança os conceitos basilares da ética
médica naquilo que chamamos Juramento de Hipócrates. Estima-se que foi escrito no século IV antes
de Cristo e carrega os princípios da Medicina.
Juro por Apolo Médico, por Esculápio, por Higéia, por Panacéia e por todos os deuses e
deusas, tomando-os como testemunhas, obedecer, de acordo com meus conhecimentos e meu
critério, este juramento: Considerar meu mestre nesta arte igual aos meus pais, fazê-lo
participar dos meios de subsistência que dispuser, e quando necessitado com ele dividir os
meus recursos; considerar seus descendentes iguais aos meus irmãos; ensinar-lhes esta arte se
desejarem aprender, sem honorários nem contratos; transmitir preceitos, instruções orais e
todos outros ensinamentos aos meus filhos, aos filhos do meu mestre e aos discípulos que se
comprometerem e jurarem obedecer a Lei dos Médicos, porém, a mais ninguém. Aplicar os
tratamentos para ajudar os doentes conforme minha habilidade e minha capacidade, e jamais
usá-los para causar dano ou malefício. Não dar veneno a ninguém, embora solicitado a assim
fazer, nem aconselhar tal procedimento. Da mesma maneira não aplicar pessário em mulher
para provocar aborto. Em pureza e santidade guardar minha vida e minha arte. Não usar da
faca nos doentes com cálculos, mas ceder o lugar aos nisso habilitados. Nas casas em que
ingressar apenas socorrer o doente, resguardando-me de fazer qualquer mal intencional,
especialmente ato sexual com mulher ou homem, escravo ou livre. Não relatar o que no
exercício do meu mister ou fora dele no convívio social eu veja ou ouça e que não deva ser
divulgado, mas considerar tais coisas como segredos sagrados. Então, se eu mantiver este
juramento e não o quebrar, possa desfrutar honrarias na minha vida e na minha arte, entre
todos os homens e por todo o tempo; porém, se transigir e cair em perjúrio, aconteça-me o
contrário.
Ao longo dos séculos o ideal do juramento hipocrático se faz presente, sendo utilizado até os dias
de hoje em muitas escolas no momento da formatura dos novos médicos. No pós Segunda Guerra
Mundial, mais especificamente em 1948, após a verificação das atrocidades cometidas com o auxílio
do conhecimento médico, a Declaração de Genebra trouxe um ar mais contemporâneo ao texto, sem
se distanciar dos princípios já trazidos da Grécia antiga, sendo revista pela Assembléia Geral da
Associação Médica Mundial em 1994.
No momento de me tornar um profissional médico: Prometo solenemente dedicar a minha vida
a serviço da Humanidade. Darei aos meus Mestres o respeito e o reconhecimento que lhes são
devidos. Exercerei a minha arte com consciência e dignidade. A saúde do meu paciente será
minha primeira preocupação. Mesmo após a morte do paciente, respeitarei os segredos que a
mim foram confiados. Manterei, por todos os meios ao meu alcance, a honra da profissão
médica. Os meus colegas médicos serão meus irmãos. Não deixarei de exercer meu dever de
tratar o paciente em função de idade, doença, deficiência, crença religiosa, origem étnica,
sexo, nacionalidade, filiação político-partidária, raça, orientação sexual, condições sociais ou
econômicas. Terei respeito absoluto pela vida humana e jamais farei uso dos meus
conhecimentos médicos contra as leis da Humanidade. Faço essas promessas solenemente,
livremente e sob a minha honra.
Em suma, os juramentos trazem conceitos de como deve se portar um profissional médico em
relação ao seus pacientes e servem para que a classe reafirme para a sociedade seus compromissos,
tornando a medicina uma ciência que prima pela técnica, mas sem se distanciar dos conceitos
humanistas.
Conceitos bioéticos
“Bioética é o estudo sistemático das dimensões morais – incluindo visão moral, decisões, conduta e
políticas – das ciências da vida e atenção à saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas
em um cenário interdisciplinar”. [1] Por isso, pode-se dizer que a bioética tem uma tríplice função,
reconhecida acadêmica e socialmente:
A bioética apresenta várias correntes de pensamento, e a mais conhecida é a principialista, que teve
maior impulsão com o trabalho de Tom Beauchamp e James Childress no livro
Principles of biomedical ethics (1979). [3] Numa análise principialista, existem 4 princípios básicos
a serem considerados: Autonomia, Beneficência, Não maleficência e Justiça. Os princípios não
respondem a todos os questionamentos bioéticos, mas servem como ponto de partida para muitas
discussões. Cabe dizer que o principialismo, apesar de hegemônico, não pode ser confundido com a
própria bioética, que sendo mais ampla acomoda outras visões. No livro Iniciação a Bioética [4]
Autonomia é um termo derivado do grego auto (próprio) e nomos (lei, regra, norma). Significa
autogoverno, autodeterminação da pessoa de tomar decisões que afetam sua vida, sua saúde, sua
integridade físico-psíquica, suas relações sociais. Certamente que não se espera que a autonomia
individual seja total e completa, pois existem nas relações sociais um forte grau de controle, de
condicionantes e restrições à ação individual. A autonomia tem seus limites dados pelo respeito à
dignidade e à liberdade dos outros e da coletividade.
Beneficência, no seu significado filosófico moral, quer dizer fazer o bem. No seu sentido estrito
deve ser entendida, conforme o Relatório Belmont, como uma dupla obrigação, primeiramente a de
não causar danos e, em segundo lugar, a de maximizar o número de possíveis benefícios e minimizar
os prejuízos.
As origens do princípio da não maleficência remontam à tradição hipocrática: “cria o hábito de
duas coisas: socorrer ou, pelo menos, não causar dano”. Beauchamp e Childress adotam os
elementos de Frankena e os reclassificam na forma a seguir: não-maleficência ou a obrigação de não
causar danos, e beneficência ou a obrigação de prevenir danos, retirar danos e promover o bem. No
mais das vezes, o princípio de não-maleficência envolve abstenção, enquanto o princípio da
beneficência requer ação.
Rawls, em seu trabalho A theory of justice, define a justiça como equidade, palavra que no
dicionário Houaiss significa imparcialidade, igualdade e equivalência. A Constituição brasileira, ao
menos, estabelece no artigo 192 que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado. A
responsabilidade é grande em buscar implantar princípios de justiça que transformem nossa saúde
em uma prática eficiente, equânime e justa.
Esses modelos propostos servem como norte na avaliação, porém existem certas discordâncias na
literatura, como a trazida por Ezequiel Emanuel e Linda Emanuel, que propuseram, em 1992, algumas
modificações, entre elas a possibilidade de se existir um quinto modelo, o instrumentalista. [7]
Nesse modelo, o paciente seria visto como mero instrumento para que o médico alcance um
determinado objetivo, como por exemplo nos abusos verificados em pesquisas.
Se formos analisar à luz de conceitos bioéticos mais amplos, o modelo contratualista se aproxima
do modelo ideal no estabelecimento de uma relação de confiança. Nele, o profissional não perde a
sua autoridade concedida pelo seu conhecimento técnico e o paciente participa da decisão,
exercendo a autonomia sobre o seu corpo. É uma troca de informações na qual existem compromissos
de ambos os lados.
O computador
A incorporação do computador como um terceiro elemento envolvido em uma consulta médica é
cada vez mais frequente. Os estudos mostram que a integração dos computadores na consulta médica
tem sido positiva para médicos e pacientes, facilitando a comunicação e colaboração entre ambos.
As preocupações iniciais sobre uma possível deterioração na satisfação do paciente não se
materializaram. [2]
No entanto, a maneira como o médico se comporta ao usar o computador é que determina a
satisfação do paciente. [12] Assim, se o médico mantém o foco no paciente e passa a idéia para ele de
que o computador é apenas uma ferramenta a mais no auxílio ao seu cuidado e não o ator principal do
encontro, fará com que o paciente aumente sua satisfação com o uso dessa ferramenta na consulta.
Manter um bom contato visual, realizar pausas curtas durante a entrevista, mostrar a tela do
computador para dax explicações sobre a doença ou sua evolução podem auxiliar na comunicação.
O computador também facilita o fluxo de trabalho do médico por melhorias na documentação
(prontuário eletrônico), facilidade de acesso à informação ou através da consulta rápida a
ferramentas de tomada de decisão, permitindo assim que o médico tenha mais tempo para se dedicar
ao paciente. [13] [14] [15]
Para incentivar o uso dessa ferramenta, o Conselho Federal de Medicina em parceria com a
Sociedade Brasileira de Informática elaboraram uma cartilha de orientação de como o médico deve
proceder ao migrar de um prontuário de papel para um prontuário 100% digital, levando em
consideração a segurança, confiabilidade e sua validação ética e jurídica. [10]
A internet
Até a década de 1980, os médicos eram a fonte máxima de informação sobre medicina. Davam
explicações sobre a doença, como preveni-la, qual poderia ser sua evolução, como combatê-la e
frequentemente reforçavam alguma informação com a distribuição de panfletos cartilhas ou folhetos
explicativos.
O paciente, por sua vez, poderia ainda receber informações adicionais da família e amigos,
usualmente na forma de anedotas sobre pessoas que haviam passado por situações similares. Com o
surgimento da internet, no entanto, o cenário se modificou radicalmente e hoje qualquer um pode
visitar uma gama imensa de sites para encontrar a informação que precise. [5] [15] As estatísticas
mostram que o uso da internet para consultar informações sobre saúde é muito frequente,
principalmente entre jovens, com melhor grau de instrução e renda. O Google é o principal motor de
busca e os endereços mais visitados são os vinte primeiros. A navegação é feita de maneira
aleatória, chamando mais a atenção a estética do site, a facilidade de navegação, o prestígio do autor
e velocidade da conexão. [2]
Toda essa facilidade de acesso à informação fez com que o paciente adquirisse uma atitude mais
participativa nas decisões diagnósticas e terapêuticas, modificando sua postura anterior, que era a de
um receptor passivo das decisões que o médico tomava em seu nome. Isso tornou a relação com seu
médico menos vertical e mais horizontalizada.
Em um primeiro momento, o médico adotou uma postura mais defensiva, olhando para a internet
como uma excelente ferramenta tecnológica para ele, mas potencialmente maléfica para seu paciente,
quando este saísse à procura de informações médicas, já que as estatísticas mostram que a grande
maioria das informações coletadas pelos pacientes carece de um adequado teor científico, podendo
potencializar preocupações desnecessárias. Assim, por exemplo, uma paciente portadora de lúpus
eritematoso sistêmico há 7 anos que tenha sua doença bem controlada com a medicação poderá ficar
muito preocupada ao encontrar na internet que o lúpus poderá cursar com vasculite do sistema
nervoso central e que a medicação que está usando tem uma série de efeitos colaterais, entre eles a
cegueira. Na visão mais otimista, ela marcará uma visita com o seu médico para esclarecimentos,
mas na visão mais pessimista a paciente poderá abandonar seu tratamento e até procurar tratamentos
alternativos que poderão expô-la a risco de vida.
Cabe ao médico assumir uma postura de orientação para com seu paciente, tranquilizando-o,
filtrando as informações corretas, transmitindo conhecimento e confiança. Outra estratégia
interessante é oferecer uma lista útil e confiável de endereços na web sobre saúde, para que o
paciente encontre informações sobre sua doença, provocando motivações para mudanças de estilo de
vida e facilitando a aderência ao tratamento proposto. Tudo isso solidificará a relação com o
paciente.
Dessa maneira, se por um lado os pacientes deverão compreender bem suas limitações no uso da
internet, por outro lado os médicos deverão ser tolerantes e pacientes para aceitar a oposição e a
decepção, sem se sentir desafiados, mas compreendendo que a postura do paciente mudou, sendo
agora mais participativa. [2] [5] [21]
O correio eletrônico
Historicamente, a comunicação entre pacientes e médicos foi baseada em encontros pessoais ou
visita tradicional e através de documentos escritos. A invenção do telefone, em 1876, desenvolveu
uma nova forma de comunicação graças à onipresença e facilidade de uso, e introduziu uma mudança
radical no acesso dos pacientes aos seus médicos a partir da década de 1960. O fax também
constituiu outra forma de comunicação, embora não tão difundida e que cumpre com suas funções,
mas de maneira mais limitada. Desde a década de 1970, nos Estados Unidos, começou-se a utilizar
outra forma de comunicação (o correio eletrônico), porém restrita apenas ao âmbito universitário.
Nos dias de hoje, o correio eletrônico se difundiu em larga escala e já constitui uma forma bem
conhecida de comunicação, sendo depois da internet o segundo serviço mais utilizado pelos usuários
da rede. [7]
Noventa porcento dos pacientes que acessam a internet gostariam de consultar seu médico por e-
mail. [6] Os médicos, por sua vez, têm sido lentos em adotar a comunicação eletrônica com seus
pacientes. [2] Em uma pesquisa recente, apenas 20% dos médicos usaram alguma vez o e-mail para se
comunicar com seus pacientes e somente 3% costumam usá-lo frequentemente para estes fins. [6] As
barreiras em adotar essa tecnologia por parte dos médicos são variadas: falta de reembolso, cultura
médica, questões éticas e legais, preocupações sobre sigilo e responsabilidade, bem como receio em
aumentar sua carga de trabalho e diminuir seu tempo livre. Para minimizar essas barreiras, têm
surgido diversas estratégias como formas de reembolsos, normativas de uso, utilização de
tecnologias confiáveis e seguras através de codificações, senhas, uso de servidores seguros, entre
outros, porém nem sempre estão disponíveis essas soluções em nosso meio, fazendo com que os
médicos ainda se sintam mais confortáveis em fornecer o telefone do que se comunicar por e-mail. [8]
Atualmente, as normativas do uso do e-mail entre médicos e pacientes diferem entre os países. [7]
Ainda não temos uma clara recomendação do seu uso e, portanto, deve ser usado com cautela. Na
prática, tanto o médico quanto o paciente usam mais ou menos essa ferramenta dependendo do grau
de conforto, que aumenta à medida que é utilizada. É importante, porém, que ambos estejam de
acordo em como vão fazê-lo (ver Tabela). [7] [8]
Esse meio de comunicação não parece adequado para qualquer situação, porém constitui um
complemento importante na consulta se bem utilizado. Dúvidas rápidas, como “haveria um substituto
para a medicação que estou usando, pois está em falta no mercado?”, poderiam facilitar a
comunicação entre ambos, evitando um desperdiço de tempo entre a secretária receber o recado,
passar para o médico e este retornar a ligação. Ou então, outra situação, o médico solicitar para o
paciente que envie por e-mail o resultado do anátomo-patológico do pólipo que retirou há 2 anos
para atualizar o prontuário e ver se haverá necessidade de solicitar uma nova colonoscopia na
próxima consulta.
No entanto, é importante o bom senso, para que o paciente não sobrecarregue o médico com
mensagens triviais ou faça perguntas que só poderão ser resolvidas numa consulta presencial.
Tabela – Aspectos a serem considerados pelos médicos e pacientes sobre o uso do correio
eletrônico
A telemedicina
A telemedicina é uma prestação de serviços de saúde via remota através das telecomunicações
(incluindo o correio eletrônico exposto anteriormente, telefone, videoconferência, cabo, satélite, etc.)
e inclui a transmissão da palavra escrita ou falada, imagens e sons. Pode ocorrer de maneira tão
simples, quando dois profissionais discutem um caso clínico por telefone, como de maneira
sofisticada, ao se realizar uma cirurgia à distância através da robótica. [7]
Historicamente, a aplicação de tecnologias de comunicação na medicina datam do início do século
XX, quando em 1910, na Inglaterra, demonstrou-se o primeiro estetoscópio elétrico que funcionava
por telefone. O grande impulso, porém, se deu no final do anos 1960, quando a agência espacial
norte-americana (NASA) enviou sinais fisiológicos dos seus astronautas em órbita para os centros
espaciais da Terra.
Com o recente desenvolvimento tecnológico através da internet, bem como com a disseminação dos
smartphones e tablets, a telemedicina sofre um verdadeiro renascimento, incrementando a eficiência
e qualidade dos serviços, agilizando os resultados, economizando tempo e diminuindo custos.
Através da telemedicina é possível, por exemplo, treinar médicos via teleconferência em locais de
difícil acesso, evitando deslocamentos. Ou então, digitalizar uma imagem e discuti-la com um médico
radiologista localizado em um centro de referência. Analogamente, podemos fazer o mesmo com um
eletrocardiograma, com uma lesão na pele, no acompanhamento das feridas, na discussão de uma
lâmina de patologia ou na realização de uma consulta ou interconsulta, tanto entre dois profissionais
de centros universitários quanto com agentes de saúde comunitários de lugares remotos. Todas essas
aplicabilidades podem ocorrer ou não em tempo real. O monitoramento ambulatorial contínuo
através de chips que coletam os sinais vitais, níveis de glicose e o uso da realidade virtual na
simulação de procedimentos médicos são promissores.
Mas e como fica a relação médico-paciente com tudo isso? Deve-se salientar que o médico que
atende o paciente de maneira presencial é o responsável por ele. O que muda, na verdade, é a forma
de trabalho entre os médicos, que podem ter consultoria especializada à distância e sem
deslocamentos. [11] É importante pedir o consentimento do paciente, devendo-se tomar todos os
cuidados de segurança para preservar o sigilo, e, assim como foi dito sobre o computador, a
telemedicina deve ser um instrumento a mais no atendimento ao paciente e não o ator principal da
consulta. [17] [18] [19] [20]
Não se deve confundir telemedicina com consulta à distância entre médico e paciente sem a
intermediação de outro médico de maneira presencial. Isso não é permitido e já está bem
regulamentado pelo Conselho Federal de Medicina. [16]
Conclusão
As novas tecnologias têm transformado a vida das pessoas, e sua repercussão na relação entre o
médico e o paciente é cada vez mais crescente, pois produzem efeitos não somente entre os usuários,
mas também no entorno social em que se encontram. [7]
Seguramente não é a tecnologia que ameaça essa relação, mas sim a maneira como ambos a
utilizam. [2] [3] É como comparar o bisturi, que foi um avanço tecnológico na sua época, como uma
potencial ferramenta de fazer o mal, quando na verdade o médico que maneja o bisturi é quem poderá
fazer o bem ou mal, dependendo da forma como o utilize.
Por fim, no uso dessas tecnologias, é importante a leitura periódica das publicações feitas pelas
organizações científicas, órgãos reguladores da profissão ou conselhos profissionais, que não têm
medido esforços em criar normativas que se ajustem à ética e às leis vigentes.
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R382 A relação médico-paciente : experiências para o médico / organização Alexandre Alessi. — Curitiba : Orange Monkey, 2014.
ISBN 978-85-68387-00-9
Direitos de publicação
© 2014 Orange Monkey
1ª edição
Curitiba, 2014