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Dedico este livro a todos os interessados em praticar uma boa relação médico-paciente e a

aprimorá-la durante o ato médico ou o contato com os pacientes.


Sumário
PREFÁCIO
Por que incluir no curso de Medicina o módulo Relação Médico-Paciente?
Alexandre Alessi

A comunicação médica na relação médico-paciente


Marcela Dohms

Processos psicológicos diante da doença e do adoecimento


Maria Lúcia Maranhão Bezerra
Sandra Lunedo

A Bioética na relação médico-paciente


Cícero Urban

A Semiologia Médica e a relação médico-paciente


Gabriela Cunha Fialho Cantarelli
Rita Francis Gonzalez y Rodrigues Branco
Celmo Celeno Porto

A importância da relação médico-paciente na adesão e na aderência ao


tratamento
Luiz Antônio Fruet Bettini
Semi Haurani

A relação médico-paciente na visão do paciente


Dagoberto Hungria Requião

A relação médico-paciente na visão do professor de medicina


Mário Sérgio Júlio Cerci

A relação médico-paciente no consultório


Bruno Spadoni
Maurício Laroca

A relação médico-paciente na Enfermaria


Gibran Avelino Frandoloso
Maurício de Carvalho

A relação médico-paciente na Emergência


Heitor João Lagos

A relação médico-paciente na Unidade de Terapia Intensiva (UTI)


Nazah Cherif Mohamad Youssef

A relação médico-paciente na Pediatria


Eduardo Maranhão Gubert
Carlos Eduardo Gubert

A relação médico-paciente na Geriatria


Vítor Last Pintarelli
Maurílio José Pinto

A relação médico-paciente na Cirurgia


Eduardo José B. Ramos
Julio Cezar Uili Coelho

A relação médico-paciente na Psiquiatria


Roberto Ratzke
Osmar Ratzke

A relação médico-paciente na Ginecologia


Edson Luiz Almeida Tizzot

A relação médico-paciente na Pesquisa Clínica


Dalton Bertolin Précoma

Aspectos legais da relação médico-paciente


Jorge Ribas Rufino Timi
Marcelo Marquardt

A relação médico-paciente na visão do Conselho Regional de Medicina


Alexandre Gustavo Bley
A relação médico-paciente e a Medicina Moderna
Ivan Bartolomei Paredes

AGRADECIMENTOS
Prefácio
A relação médico-paciente
Este livro trata do encontro daquele que cuida com aquele que precisa ser cuidado.
A narração deste encontro trilha um caminho complexo no qual se observam ciência, tecnologia,
razão e, sobretudo, humanidade. É um convite a uma experiência com sabor e sabedoria, abordando
sem aridez ou amargura as relações que se estabelecem no delicado trabalho de aprender a cuidar.
A temática dessa relação é discutida por especialistas em áreas de conhecimento que compõem o
exercício profissional, como a ética, a bioética e o direito, de maneira que a compreensão dos
pilares que devem nortear o aprendizado da medicina seja facilitada.
Experimentamos tempos de intensa produção científica em decorrência de pesquisas com células,
cromossomos e moléculas, com o intuito de que alguns dos muitos mistérios do ser humano sejam
mais bem compreendidos. Abriu-se uma fronteira imensa de oportunidades para o diagnóstico,
tratamento e recuperação de pessoas.
Já dizia, em 1934, Milton Carneiro, professor da Universidade Federal do Paraná, ao proferir o
Discurso do Bugre como médico homenageado com o título de paraninfo:
Que tem sido o homem em sua caminhada pelo mundo? Tem sido escritor, engenheiro,
carpinteiro, jornalista, médico, porém tem se esquecido de ser a mais elementar de todas as
profissões: a de homem simples e humanamente homem.

Esta é uma obra que trata de relacionamento e preenche um espaço instrumental na formação de
pessoas que pretendem se tornar médicos. Alavanca a reflexão sobre o comportamento diante do
sofrimento, a possibilidade de perdas, a vulnerabilidade imposta pela doença.
O convívio com o “outro” e suas necessidades, receios e frustrações requerem estudo, preparo e
pesquisa, assim como treinamento e repetição. O contato com pessoas e com o mundo que as cerca
fará parte do dia do aprendiz.
A forma como o médico se comporta tem impacto direto sobre a pessoa atendida. Este é um dos
elementos que confere à profissão o cunho de moralidade que deve acompanhar os passos de quem a
exerce.
Neste livro, estão reunidos textos de pessoas habilitadas a discorrer sobre o tema, de modo a
permitir uma leitura sensível e real sobre a relação médico-paciente. Fica o convite a embarcar em
uma viagem estimulante que não acaba no último capítulo, mas nos instiga a continuar procurando o
aprimoramento pessoal.
Cumprimento o professor Alexandre Alessi pela autoria e organização, bem como felicito a todos
os autores dos 21 capítulos que fazem parte desta obra que nos acrescenta e enriquece como pessoas,
médicos e professores.
Miguel Ibrahim Abboud Hanna Sobrinho
Professor Assistente do Departamento de Clínica Médica. Mestre em Cardiologia pela UFPR. Chefe do Departamento de Clínica
Médica da UFPR.
“Ouça o que o paciente diz, ele lhe contará o diagnóstico.”
William Osler ( 1849-1919)

A essência da Medicina está no contato interpessoal e no exercício de equilíbrio entre a arte e a


ciência, para trazer um bem-estar psíquico, social e biológico. São fundamentos da Medicina a Ética,
a Relação Médico-Paciente e o Raciocínio Clínico ou Científico. Estão interligados e se
complementam. Os alunos devem aprender cada fundamento por meio da busca do conhecimento, do
treinamento, da experiência e também de uma atitude ou postura adequada.
Uma abordagem humanística e global do indivíduo se faz necessária se quisermos atingir a
plenitude do diagnóstico, prognóstico, terapêutica e aderência às nossas recomendações. O
treinamento do estudante de Medicina envolve bem mais que aquisição de novos conhecimentos:
envolve a compreensão de regras e de sentimentos, o aprendizado com os erros. Em resumo, o
treinamento está relacionado ao caráter e à identidade médica. Há necessidade de o aluno aprender a
perceber a real dimensão da relação entre saúde e doença de seu paciente, para melhor se relacionar
com ele e tratá-lo.
Em recente publicação do Jornal do Conselho Federal de Medicina (CFM), de outubro de 2013, há
uma matéria dedicada ao estímulo da redescoberta da visão humanística da Medicina. Coloca-se a
questão da necessidade de se restabelecer com a sociedade em geral, especialmente com os
pacientes, uma relação pautada pela confiança e pelo respeito. Portanto, o resgate da visão
humanística da prática médica deve ser fundamental. Em tempos modernos e acelerados, cabe ao
profissional entender a importância disso e descobrir formas de aliar as facilidades da tecnologia
com a sutileza do toque e do diálogo, diz o conteúdo da matéria. Isso reforça a necessidade de existir
um módulo que estimule o profissional a se tornar um médico do século XXI, que terá os benefícios
da alta tecnologia à sua disposição, sem jamais perder a oportunidade de buscar uma relação
médico-paciente pautada por diálogos francos e humanitários que façam nascer relações embasadas
em valores éticos, sociais, psicológicos e de confiança recíproca. Temos que dialogar com nossos
alunos sobre a prática médica humanista, de visão biopsicossocial, que requer humildade, prudência,
diligência, perícia, compaixão e justiça.
O primeiro contato numa relação médico-paciente ocorre durante a anamnese. Apesar de
claramente existir uma assimetria entre os envolvidos, é possível que nesse momento se estabeleça
uma relação harmônica, que inspire confiança e que seja por si só também terapêutica. Claramente
sabemos que o médico pode ser o remédio! Isso deve ser ensinado, reforçado, demonstrado, bem
como ser fonte de inspiração para todo estudante de Medicina, desde o início de sua graduação até o
término de seu internato, momentos antes da formatura.
Sabe-se que em torno de 50 a 75% das consultas médicas têm um forte componente psicossomático
associado. Os pacientes não procuram os médicos porque têm um problema científico, conceitual ou
teórico, mas sim porque estão sofrendo. É fundamental ensinar aos alunos de Medicina que sempre
há um paciente por trás de uma queixa, dotado de conceitos, medos, valores culturais, religiosos,
morais, familiares, e que está sofrendo emocionalmente durante o processo de adoecer.
Ao ensinar as técnicas de como se obter uma história clínica ou anamnese, há a necessidade de se
trabalhar didaticamente com os alunos a importância de se construir uma boa relação médico-
paciente. São partes indissociáveis que merecem ser discutidas, aprimoradas e encorajadas dentro de
um currículo de graduação em Medicina. Está demonstrado no Livro IV das Leis, descrito por Platão
400 anos a.C., que há duas classes de pacientes: os escravos e os homens livres. E há duas classes de
médicos: os que cuidam de escravos e os que cuidam de homens livres. Os primeiros nunca falam
com seus pacientes pessoalmente nem permitem que eles exponham as queixas. Eles acreditam na sua
experiência e exatidão, dando ordens como um tirano. Os segundos tratam de homens livres, fazendo
uma anamnese completa e cuidadosa, entram a fundo na natureza das queixas, mantêm uma conversa
com seu paciente, dando instruções na medida do possível, e não receitariam nada ao paciente se não
o tivesse convencido disso.
Ainda nos dias de hoje é importante e atual a mensagem sobre uma boa relação médico-paciente e
sua relevância no ensino e na prática médica. Posso narrar a experiência na Universidade Federal do
Paraná, onde os alunos do segundo período do curso de Medicina têm contato com esse assunto,
paralelamente ao aprendizado formal das técnicas e do roteiro de como se fazer uma história clínica
completa. Todos os professores dedicam uma boa parcela da carga horária para essa finalidade, e os
resultados têm se mostrado satisfatórios e mensuráveis pelo crescimento emocional, maturidade
profissional e fixação do conceito da abordagem biopsicossocial no trato com nosso paciente.
Durante mais de 30 anos, com os professores pioneiros da disciplina nesses moldes, formaram-se
médicos que tiveram a oportunidade de discutir, aprender e lapidar a melhor relação médico-
paciente, em sua formação, durante a disciplina de Semiologia Médica, como integrante curricular do
curso da Universidade Federal do Paraná.
O ensino da relação médico-paciente é uma estratégia valiosa para realçar os valores fundamentais
da Medicina e ajudar a superar os diversos ruídos e dificuldades que ocorrem nesse contato. Os
professores devem oferecer ferramentas e materiais que possibilitem ao aluno obter uma capacitação
profissional para entender o paciente e relacionar-se melhor com ele, buscando a integralidade dessa
relação e utilizando os melhores conceitos teóricos e práticos. A diretriz do currículo do curso de
Medicina aponta que devemos preparar um profissional com formação generalista, humanista, crítica
e reflexiva, capacitado para exercer sua atividade sob princípios éticos nos diferentes níveis de
atenção, promoção, prevenção, recuperação e reabilitação à saúde.
Quando cursam a disciplina de Semiologia Médica, nossos alunos estão num momento de transição
entre a adolescência e a vida adulta. Não é uma tarefa fácil abordar assuntos psicológicos, morais,
éticos, filosóficos e sociais nesse momento. Porém, a escolha de boas referências de leitura, que
forneçam uma base sólida de conceitos, associada a uma abordagem didática de discussão em grupo
têm sido uma boa alternativa para superar as dificuldades e acima de tudo estimular os alunos para
investir na relação médico-paciente.
A recomendação atual do Ministério de Educação é colocar o mais precocemente possível o
estudante em contato com o sistema de saúde nacional e consequentemente com o paciente. Esse é
mais um forte motivo para prover os alunos com conceitos e exemplos de pontos importantes da
relação médico-paciente. Existem mecanismos de defesa que estão operantes nessa relação, seja por
parte dos médicos, seja por parte dos pacientes. A dinâmica do “estar doente” ou “ficar doente”, com
suas perdas e ganhos, com seus direitos e deveres, deve ser apresentada e discutida com os alunos,
de maneira organizada e metodizada.
Um bom exemplo da razão de se incluir no curso de Medicina o módulo de Relação Médico-
Paciente é discutir os mecanismos conscientes e inconscientes da escolha do aluno pelo curso.
Observamos as declarações escritas dos alunos e anonimamente trabalhamos com eles esses
aspectos. Identificamos demonstração de onipotência e aspectos de invulnerabilidade médica.
Aspectos vocacionais da Medicina, com seus ônus e bônus, também são discutidos, colocando no
contexto contemporâneo a discussão segundo a qual muitas vezes a sociedade rotula legalmente essa
relação do acordo com o Código do Consumidor vigente em nosso país.
A relação médico-paciente mereceu recente espaço na publicação médica de maior fator de
impacto científico, o prestigioso New England Journal of Medicine, na edição de agosto de 2013.
No setor de perspectivas, há um belo texto sobre como melhorar a aderência no tratamento na era em
que o dinheiro faz a diferença. O texto relata a baixa aderência ao tratamento, que em parte se explica
pelo tempo reduzido de contato entre médico e paciente e, por consequência, pela má relação
médico-paciente. Doentes crônicos ou estados crônicos que levariam a doenças degenerativas
vasculares terminais de alto custo, porém preveníveis, são premiados com dinheiro ou pagamentos se
atingirem as metas de controle de suas alterações observadas nos exames e consultas. Entretanto, o
texto evidencia que um terço ou até a metade dos pacientes não adere às recomendações médicas, e
esse comportamento pode ser melhorado com uma boa relação médico-paciente. Devemos incluir
esse módulo e essa prática na formação médica dos jovens estudantes e futuros médicos.
Professor e aluno aprendem juntos, trocando experiências, vivências, problemas e sentimentos
decorrentes dos vários aspectos que influenciam a relação médico-paciente. Os diversos mecanismos
adaptativos diante da doença por parte do paciente e do médico (no caso do estudante de Medicina)
são uma oportunidade ímpar, dentro da faculdade, de serem explorados, conhecidos e discutidos.
Não há dissociação entre o aprendizado do roteiro de perguntas e sequência de tópicos que fazem
parte de uma anamnese ou história clínica e a apresentação das características e importância positiva
de uma adequada relação médico-paciente.
No curso de Medicina da Universidade Federal do Paraná, todos os professores de Semiologia
Médica I dão aula para o segundo semestre do curso. São estimuladores e encorajadores de seus
alunos à obtenção de conhecimento para adquirir uma postura e atitude proativa em busca de uma
adequada relação médico-paciente. Ensinamos que a anamnese é um primeiro contato com o paciente
e por meio dela se tem a melhor oportunidade de reforçar uma boa relação médico-paciente e assim
obter todas as informações necessárias para direcionar um exame físico. Essas são peças
fundamentais para elaborar o raciocínio clínico. Cria-se um ambiente fértil para uma entrevista
colaborativa, permeada pela visão humana da profissão, pelo caráter prático da realidade social,
pela preocupação ética e moral, além de ser uma oportunidade genuína para se demonstrar empatia.
Todos esses argumentos demonstram a importância de se valorizar o ensino e a aprendizagem de uma
boa relação médico-paciente num curso de Medicina.
Um bom aprendizado pode ser obtido por meio de uma discussão no formato tutorial de um artigo,
entrevista, material do Conselho Federal ou Regional de Medicina, bem como por meio de um filme
(por exemplo, “Um golpe do destino”). Exemplifico uma recente atividade com um grupo de alunos
do segundo período de Medicina, na qual se discutiu uma entrevista publicada nas páginas amarelas
da Revista Veja, em 25 de janeiro de 2012, em que o Professor Dr. Raul Cutait abordou o tema
“Quem decide é o paciente”, sob uma ótica de interesse leigo num veículo de amplitude nacional.
Desse excelente material, conseguimos obter a visão dos alunos sobre o assunto, destacando-se os
principais pontos escolhidos pela turma:

1. Apesar da grande qualificação do entrevistado, a relação médico-paciente ainda é o cerne


de seus atendimentos. Para Dr. Cutait, a vontade do paciente sobre a sequência do seu
tratamento é integralmente respeitada.
2. Foi discutido que a confiança e o envolvimento do médico facilitam a aceitação de
procedimentos. No caso do sistema público, em que a marcação de consultas, exames e
cirurgias é mais demorada, há maior responsabilidade do médico para que o
esclarecimento do paciente seja completo.
O tempo do médico dispensado ao cliente no sistema privado é maior que no sistema
público, e isso gera distorções de qualidade de atendimento e satisfação dos pacientes.
3. Assim como o médico não pode impor um plano de tratamento, a coação é igualmente
errada.
O ideal é ouvir os medos do paciente, esclarecer os riscos e os benefícios, mostrando
interesse e compreensão. Se o desejo do paciente, ainda assim, não for condizente com as
expectativas do médico, é preciso respeitar e abrir espaço para arrependimentos.
4. A diferença entre o erro médico e a intercorrência, mostrada no texto, bem como a
importância da humildade do médico em aceitá-los e contorná-los.
5. A falta de comunicação é a maior fonte de desgaste entre médicos e pacientes e seus
familiares.
6. O prontuário médico documenta o desejo dos pacientes e evita que família cobre do
médico pela não realização de exames ou procedimentos no futuro. A família deve
respeitar as escolhas do paciente.
7. O texto revela a importância do exame clínico na prática médica.
8. A necessidade de um bom preceptor é fundamental na formação dos novos médicos.
9. O trabalho em equipe é essencial e deve ser respeitado nos seus limites e atribuições para
que resultado terapêutico seja amplificado.
10. Discutiu-se a necessidade de se evitar o conflito de interesse para se oferecerem
procedimentos e/ou tratamentos para os pacientes.
Os atributos do bom médico devem ser ensinados, treinados e repetidos desde o início da
graduação até a formatura:
1 Capacidade de se comunicar
2 Capacidade de usar intuição e empatia
3 Capacidade de se conter

Cabe ao professor apresentar aos alunos que o conhecimento médico duplica a cada 2 anos.
Numa projeção para daqui a 10 anos, é provável que isso ocorra a cada 90 dias.
É preciso mostrar aos estudantes que a área tecnológica de terapia celular, de genética,
de exames de imagem, de equipamentos híbridos capazes de fornecer informações
funcionais e anatômicas ao mesmo tempo e da tecnologia de informação aplicada à
Medicina são as ferramentas que permitem aumentar a longevidade da população e tratar
um maior número de doenças. Porém, o aspecto humanístico da atuação médica não deve
ser esquecido. As novas tecnologias, aliadas à visão ampla do paciente, de uma abordagem
biopsicossocial, fazem sempre relembrar que a Medicina é uma atividade profissional que
está entre a arte e a ciência. Os pacientes esperam atenção, respeito, conhecimento e
empatia dos seus médicos!
Finalizo este capítulo retomando o juramento de Hipócrates, que é lido e repetido por
todos os formandos de Medicina. É utilizado geralmente apenas uma única vez e ao final
do curso, sem mesmo os alunos terem a chance de absorver seu real significado e
aplicabilidade na prática diária profissional:

Juramento de Hipócrates
Prometo que, ao exercer a arte de curar, mostrar-me-ei sempre fiel aos preceitos da
honestidade, da caridade e da ciência. Penetrando no interior dos lares, meus olhos serão
cegos, minha língua calará os segredos que me forem revelados, os quais eu terei como
preceito de honra. Nunca me servirei da profissão para corromper os costumes e
favorecer o crime. Se eu cumprir este juramento com fidelidade, goze eu, para sempre, a
minha vida e a minha arte de boa reputação entre os homens. Se o infringir ou dele me
afastar, suceda-me o contrário.
Referências bibliográficas
BALINT, M. The doctor, his patient and the illness. Londres: Pitman Medic, 1967.

CALLEGARI, Desiré Carlos. Resgate da tradição humanística. Publicação Oficial do Conselho Federal de Medicina. Ano
XXVIII, n. 224, set. 2013.

CUTAIT, Raul. Quem decide é o paciente. Veja, São Paulo, ano 45, 2253 ed., n. 4, p. 17-21, 25 jan. 2012. Entrevista a Adriana
Dias Lopes.

ROLLNICK, S.; MILLER, W. R.; BUTLER, C. C. Motivational Interviewing in Health Care. The Guilford Press. Part 1.
Behavior Change and Motivational Interviewing, 2008, pp. 3-32.

ROSENBAUM L.; SHRANK, W. H. Taking our medicine: improving adherence in the accountability era.
N Engl J Med, n. 369, 2013, p. 694-695.

SAUNDERS, L. Todo paciente tem uma história para contar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. pp. 29-66, 211-238, 239-
293. Mistérios Médicos e a Arte do Diagnóstico I, III e IV.

Alexandre Alessi
Professor Adjunto de Clínica Médica da UFPR. Mestre e Doutor em Cardiologia. Research Fellow em Hipertensão Arterial pela
Baylor College of Medicine, Houston (EUA). Coordenador da Disciplina de Semiologia Médica I e II do Curso de Medicina da
UFPR.
Introdução
Apenas o conhecimento teórico não é suficiente para um bom profissional. É preciso ser capaz de
comunicar-se bem com os pacientes, com os colegas e com a equipe. [22] [23]
Um dos momentos estruturais da relação médica é a comunicação, isto é, o conjunto de principais
recursos técnicos a que o médico deve apelar: o olhar, a palavra e o silêncio, o contato manual e a
relação instrumental. Para comunicar-se com seu paciente, o médico olha para ele, fala com ele e o
escuta, utiliza as mãos e emprega os mais diversos instrumentos exploratórios e terapêuticos. [14]
A palavra “paciente” foi escolhida por ser historicamente a mais comum e aceita entre os
profissionais [11], mas com a concepção de um ser ativo e não passivo, como a palavra pode
subentender. O termo “paciente” foi preferido a outros que vêm sendo utilizados, como “usuário” ou
“cliente”, porque estes podem trazer a noção de consumidor de serviços, e o que se quer aqui é fazer
referência ao sujeito da relação. [14]
Os médicos, em geral, têm uma relativa incapacidade para compreender os aspectos psicológicos
do ser humano. Acostumados a ouvir e palpar, tendem a não acreditar em nada que não possa ser
tocado ou percebido pelos órgãos sensoriais [3]. Entretanto, os grandes médicos de todos os tempos
foram observadores perspicazes das emoções humanas.
Sabe-se que os benefícios da prática médica não estão ligados somente às capacidades técnicas do
médico, mas também que a própria palavra do médico exerce um resultado terapêutico importante. [3]
Michel Balint, psicanalista inglês que analisou um grupo de médicos de Atenção Primária
discutindo suas relações médico-paciente por um longo tempo nas décadas de 1950 e 1960, buscou
realizar o que chamou de um estudo da farmacologia da “droga” mais usada em medicina: a
substância “médico”. Como, evidentemente, a substância “médico” encontra-se muito longe de uma
padronização, cada aplicação dela tem seus próprios efeitos colaterais. Ele buscou estudar por que a
droga “médico”, mesmo com o aparente cuidado com que é receitada, não produz os efeitos
desejados, quais são as causas desse envolvimento involuntário e como evitá-lo. [3]
O panorama atual observado em relação à comunicação clínica é de que, apesar do aumento de
tecnologia, há uma insatisfação grande por parte dos pacientes e dos médicos, que se mostram
frustrados em relação a sua profissão. [27]
A partir dessa insatisfação dos pacientes, muitos pesquisadores se aprofundaram no tema para
tentar entender melhor essa problemática. As pesquisas com revisão de processo por erro médico
verificaram que o principal motivo (71%) da abertura de processos e reclamações deve-se a
conflitos na comunicação entre médicos e pacientes e não a problemas de competência clínica, sendo
esses conflitos os efeitos de uma má relação. [23] [30]
Foi realizado um estudo de coorte de 2004 a 2008, com 229 alunos do primeiro ano do curso
médico, em que ao final de cada ano os alunos respondiam a um questionário de empatia, que
produzia um escore. O estudo mostrou que houve significativo declínio entre 73% dos estudantes nos
escores de empatia entre o ano 0 e o ano 3. Ou seja, houve declínio na maioria, mas não em todos os
casos. As mulheres tiveram escores consistentemente mais altos em todos os anos e houve maior
declínio entre os homens. Tiveram escores mais altos os alunos que buscavam especialidades
orientadas para pessoas (medicina de família, clínica médica, pediatria, gineco-obstetrícia), em
comparação com especialidades orientadas para tecnologia (anestesiologia, patologia, radiologia,
cirurgia, ortopedia cirúrgica). Além disso, os que iniciaram com baixos escores perderam mais
empatia comparados aos que começaram com escores mais altos.
A hipótese para a queda da empatia, apresentada no estudo, é a falsa ideia de que empatia não tem
importância no treinamento para a prática médica. A educação médica atual promove um
distanciamento das emoções do médico. A distância afetiva e a neutralidade clínica são enfatizadas
por um foco na ciência médica e entendidas como uma negligência da arte do cuidado médico, o que
leva à interpretação de evitar envolvimento interpessoal no cuidado do paciente. [19]
Sabe-se que os modelos e métodos convencionais e a educação médica tradicional não vêm
preparando adequadamente os acadêmicos para os desafios diários da vida profissional. [27] Em
geral, a formação social do médico é defeituosa. Em muitos países, essa educação não suscita de
maneira suficiente a moral cooperativa do indivíduo. E, por outro lado, as faculdades de Medicina
são com frequência cegas ou míopes diante dos diversos problemas que hoje interferem na relação
médico-paciente. [14]
As deficiências encontradas nos estudos brasileiros que analisam a forma de conduzir consultas
médicas são semelhantes às encontradas na literatura internacional. Os estudos indicam que os alunos
são pouco capacitados para obtenção de dados sociais e psicológicos nas entrevistas médicas. [25] [2]
A partir da década de 1990, iniciou-se a elaboração de consensos e diretrizes para o ensino das
chamadas habilidades de comunicação nas escolas médicas, que incluem também as interações entre
colegas e outros profissionais envolvidos no cuidado. [33] [26]
Atualmente, considera-se que essas habilidades não são complementares nem opcionais, mas sim o
centro de uma prática efetiva no cuidado em saúde. [12] A habilidade de comunicação é muito mais
complexa do que habilidades procedimentais e deve ser ensinada com o mesmo rigor de uma
habilidade clínica. Envolve trabalhar nossos próprios sentimentos e os dos outros, um aspecto
geralmente evitado no ensino de áreas técnicas e cognitivas. [22]
Merhy e Franco chamam essa tecnologia do conhecimento das relações de tecnologia leve ou
tecnologia leve-dura, que seria a produção das relações entre dois sujeitos, em contraposição à
tecnologia-dura, baseada em equipamentos. [28]
Vários estudos concluíram que há correlações positivas entre satisfação do paciente e alguns
aspectos do comportamento do médico, tais como: fornecer mais informações, expressar sentimentos
afetuosos e cortesia, utilizar o humor, escutar mais, facilitar a comunicação do paciente, abordar
preocupações e expressar apoio, confirmar e mostrar entendimento e preocupação. [30] Um
profissional que não utiliza esses recursos na sua prática dificilmente será capaz de realizar uma
abordagem integral.
Outros estudos demonstraram também que os profissionais que apresentam uma atuação centrada no
paciente em vez da enfermidade apresentavam resultados de saúde mais positivos em comparação
aos modelos tradicionais de abordagem. Nesse caso, os pacientes apresentavam diminuição da
utilização dos serviços de saúde, aumento de satisfação, menos queixas por má prática, melhora da
aderência aos tratamentos, redução de preocupações, melhora da saúde mental, redução de sintomas
e melhora da recuperação de problemas recorrentes. [35]
O clínico é como um instrumento musical que deve ser constantemente afinado para que faça boa
música. [15]

Evidências
Se o médico permite que o paciente faça perguntas, aumenta a captação de informação entendida.
Descobrir e entender as expectativas e dar apoio ao paciente aumentam a satisfação dele e o
benefício terapêutico, com melhora das taxas de adesão. [30]
A abordagem das preocupações do paciente influencia fortemente o resultado da consulta. Em um
estudo em que foram analisadas 716 consultas que envolviam a queixa de dor de garganta, observou-
se que os pacientes que melhoraram mais rapidamente foram aqueles que tiveram suas preocupações
mais bem abordadas pelos médicos. [24]
Consultas centradas nos pacientes estão associadas com maior satisfação, aderência, redução de
sintomas e melhora do status psicológico. [35]
As evidências mostram que não basta ter o contato com o conhecimento, é preciso praticar. Saber o
que se deve fazer não é o mesmo que saber fazer e manter a prática.
Além dos benefícios para os pacientes, foram verificados benefícios também para o profissional.
Profissionais que se comunicam bem obtêm informações com mais facilidade e qualidade, o que leva
a um diagnóstico mais preciso (especialmente em relação a problemas com um elemento
psicológico), têm pacientes que manejam melhor seus medicamentos, obtêm melhores resultados de
tratamento, são mais seguros, cometem menos erros clínicos e recebem menos queixas por má
prática. Por tudo isso, e por apresentarem melhores relações de trabalho em equipe, há aumento de
satisfação no trabalho, diminuição do estresse e isso está relacionado à prevenção da síndrome de
Burnout, que é a chamada estafa do profissional. [34] [22]
Fases do encontro clínico
Vamos analisar estratégias práticas consideradas importantes, relacionadas às fases da entrevista
clínica (KURTZ et. al., 2005; SILVERMAN, 1996; CLERIES, 2006; VON FRAGSTEIN et. al.,
2008), que se relacionam com a melhora da comunicação clínica: [22] [32] [11] [40]

1. Fase inicial da consulta


Há algumas ações que, se realizamos antes de chamarmos o paciente, facilitarão a consulta toda.
Antes de iniciar a consulta é importante concentrar-se, observar como está nosso estado de ânimo
(“Estou disposto e atento ou sonolento e cansado?”) e repassar a informação existente no prontuário.
Cuidar também para ter um domínio do ambiente de trabalho, para trabalhar com comodidade em
relação ao espaço e privacidade, com estratégias de organização para aumentar seu conforto e evitar
ruídos e interrupções. [9]
No início da consulta é importante, ao receber o paciente, buscar criar uma atmosfera cordial e
empática, com naturalidade. A cordialidade é um elemento básico para qualquer relacionamento.
Alguns marcadores de cordialidade na consulta: cumprimentar o paciente, sorrir, apresentar-se, dizer
o nome do paciente, manter contato visual e o tom de voz. [11] Esses marcadores demonstram a
atenção do médico com o paciente.

Lembre-se da Lei do eco emocional: você receberá de seus pacientes o que der a eles na
consulta. Se der sorrisos, receberá sorrisos; se der hostilidade, receberá hostilidade. [9]

É importante que nos primeiros minutos a pessoa atendida perceba que a atenção do médico está
toda voltada para ela e não para papéis ou para o computador. Isso fará com que a pessoa se sinta
mais confiante para falar sobre suas preocupações.
O bom médico seria aquele que é acolhedor, que faz com que as pessoas sintam-se cômodas, à
vontade, além de ter capacidade de observação comparativa e imaginação, bem como boa disposição
constante para a prática do benefício. [14]
Para isso, é preciso saber escutar, não interromper assim que o paciente começa a falar, como é o
comum. Pesquisas mostram que 65% dos pacientes são interrompidos pelos médicos, em média,
depois de 15 a 20 segundos de explicação do problema, e quando o paciente não é interrompido para
de falar em torno de dois minutos e aumenta a probabilidade de expor os seus medos e preocupações.
[6] O valor simbólico do primeiro minuto da entrevista está fora de qualquer dúvida: supõe

reconhecer o paciente como centro do ato clínico, e não papéis ou a tela do computador. [9]
A primeira pergunta de abertura da entrevista poderia ser mais focada, como “Qual o motivo da
consulta hoje?”, que tende a direcionar o paciente diretamente ao motivo da consulta. Perguntas
muito gerais (“Como está?”) podem levar ao paciente a divagar por temas que não são os motivos de
consulta. [9]
É preciso evitar interromper o paciente, principalmente após a primeira pergunta. Se não for
interrompido, aumenta a probabilidade de que ele conte tudo de que necessitamos saber e consiga
falar os reais motivos de consulta. Evitando interromper, provavelmente o médico precisará fazer
menos perguntas depois. Isso significa ter baixa reatividade, que se relaciona com o tempo que o
médico leva para interromper o paciente.

Após a exposição dos motivos de consulta, fazer a chamada prevenção de demandas aditivas, ou
seja, perguntar “Algo mais?”, “Mais algum motivo de consulta?”, para esgotar todas as demandas
já nessa fase. [9]

A prevenção de demandas aditivas diminui a chance do “sinal da maçaneta”, que ocorre quando ao
final da consulta o paciente vem com mais motivos. Mesmo que o paciente exponha muitas demandas,
é melhor saber no início, pois iria falar de qualquer modo, e assim o médico pode ainda priorizar
com o paciente quais motivos vai abordar e planejar a melhor condução da consulta.
Segundo o Calgary-Cambridge Guide Communication Process Skills [32], os médicos devem
buscar a identificação dos problemas de saúde prioritários para aquela consulta, abordar a agenda
do paciente, termo que surge inicialmente no trabalho de Byrne e Long em 1976.

Abordar a agenda do paciente significa o resultado da busca em descobrir quais são as queixas,
preocupações, sentimentos e expectativas associadas do sujeito que busca um atendimento. [30]

A agenda idealmente deve ser acordada entre o médico e o paciente antes do início da exploração
dos problemas, pois a identificação precoce da agenda do paciente influencia o resultado final da
consulta. [32] [22] Assim, identificar e entender os motivos para o paciente procurar o médico deveria
ser a primeira tarefa de toda consulta. [30]
Nem sempre o que o paciente declara como motivo da consulta é aquilo que realmente deseja
consultar. Estudos mostram que o primeiro problema relatado não necessariamente é o mais
preocupante para essa pessoa ou o motivo pelo qual realmente deseja consultar. [32] [22[ [9] Assim, é
preciso abordar o que Barsky denominou de: [4]

Agenda oculta: motivos de consulta importantes, mas que o paciente tem dificuldade de falar, por
motivos de ansiedade ou medo. Nessa fase, é também importante diferenciar o que são demandas
e o que são queixas do paciente.
Diferença entre queixa e demanda: é a expectativa de que o profissional possa ou não
apresentar uma solução. Demanda é o que se espera que seja solucionado pelo médico, como
pedido de algo que lhe pode ser dado, e a queixa seria mais uma lamentação de um processo de
envelhecimento, ou indisposições crônicas de impossível resolução. [9]
Observação: não superestime uma “má” entrada de um paciente. A entrevista é muito flexível. Pode
ser que no final o paciente se despeça de você muito agradecido.

2. Fase de exploração e obtenção de informações


O ideal é iniciar sempre com perguntas abertas, de maneira que o paciente tenha oportunidade de
escolher o conteúdo das respostas. Em geral, os dados são mais reais e confiáveis quanto mais
detalhes trazem. [9] Recomenda-se utilizar perguntas fechadas quando se considera necessário (por
exemplo, se o paciente for incapaz de responder a uma pergunta aberta).
Evitar perguntas indutoras, ou seja, que induzem uma determinada resposta, pois o paciente tenderá
a responder a resposta induzida e não será uma resposta confiável. Além disso, evitar dar
informações ao paciente na pergunta, como: “Está tomando o Captopril duas vezes ao dia?”. Melhor
seria uma pergunta aberta: “Me conte como está tomando a medicação”. Evitar também fazer várias
perguntas seguidas, pois o paciente tenderá responder a apenas uma delas.
Nessa fase, é importante facilitar a expressão do paciente através de gestos e sinalizações
facilitadoras, como, por exemplo, sinalização com a cabeça. Além disso, usar expressões que
estimulem que o paciente continue falando e que demonstrem que o médico está escutando, como: “te
vejo preocupado”, “o senhor parece triste”, e depois deixar tempo para que o paciente possa
expressar o que sente. Outra estratégia de facilitação é usar perguntas de clarificação. Também
manter uma escuta atenta. Não ter medo de ficar em silêncio. Usar adequadamente o chamado
silêncio funcional.

Silêncio funcional: momentos de silêncio completo na consulta, com uma atitude de interesse e
escuta ativa pelo médico. É importante principalmente em momentos de grande tensão emocional
(exemplo: choro), para permitir que o paciente elabore suas emoções. [9]

É recomendado explorar a história de vida e desenvolvimento pessoal do paciente, procurar


conhecer o contexto da pessoa, sua família, emprego, comunidade, rede de apoio e a cultura em que
está inserida. [35] Procurar encontrar os significados do sofrimento do paciente relacionando à sua
história de vida. [8]
Além da exploração da história e da etiologia para um diagnóstico diferencial, é importante avaliar
as dimensões da doença – os sentimentos, ideias, expectativas e medos do paciente. [35]
Hipócrates já dizia que o médico deve ter 3 saberes: [14]

1. conhecer a doença;
2. saber quem é a pessoa que está doente;
3. saber por que o remédio atua curando a enfermidade.

Isso significa ir além do processo patológico simplesmente, o chamado disease, e procurar entender
a sensação de vivência individual do sofrimento, o illness, contextualizado no seu universo familiar,
cultural e social. [34] Perguntas como “Quais são suas preocupações?” são estratégias eficazes para
abordar os medos do paciente.
Deve-se procurar entender qual o impacto que os sintomas estão causando na vida do paciente.
Conhecer a opinião do paciente sobre o que lhe está ocorrendo.
A abordagem da “Medicina centrada na pessoa”, como foi traduzida no Brasil, surgiu em 1982 a
partir de Levenstein, médico sul-africano, ao ser questionado por uma estudante de Medicina sobre
um padrão na sua técnica de relação médico-paciente, que era tão diferente da adotada no hospital.
Gravou 1000 consultas próprias, buscando perceber quais intervenções eram efetivas e não efetivas.
Percebeu que, quando ouvia os medos e expectativas dos pacientes, tinha intervenções mais efetivas.
A partir de então, procurou-se desenvolver um método que pudesse ser praticado pelos médicos. A
partir de pesquisas, o método teve a validade aprovada, com posterior refinamento. [34]
Nessa fase, deve-se aproveitar ainda para avaliar riscos, para identificação precoce de doenças e
redução de complicações, se adequado. [35] Mas cuidar para não acabar priorizando a agenda do
médico (problemas para o médico), em vez da agenda do paciente (problemas para o paciente).
É importante ficar atento às dicas verbais e não verbais, observando a comunicação não verbal e
paralinguagem, ou observar as “pistas” que os pacientes nos dão de que estão com dificuldade de
falar sobre determinado tema que precisa ser aprofundado.
Enquanto coleta as informações, é importante fazer um registro atento delas, demonstrando que,
enquanto registra o que é dito, está prestando atenção no paciente.

3. Fase de formulação, explicação do diagnóstico e construção do plano


terapêutico
Fazer um resumo das informações que o paciente trouxe e do que foi entendido demonstra interesse,
além de confirmar que o entendido era realmente o que o paciente pretendia manifestar. [32]
É importante evitar linguagem técnica ou jargão médico. Evitar linguagem científica – adaptar
linguagem à idade, nível intelectual e educacional do paciente.
Procurar ser conciso, concreto e específico. Organizar a informação para o paciente. Fornecer
instruções por escrito e material educativo, se possível, pois é melhor do que apenas ouvir as
informações. Buscar utilizar métodos adicionais para motivar o paciente a cumprir o plano
terapêutico.
Pesquisas mostram que a maioria dos pacientes quer estar envolvida na decisão do seu tratamento,
assim se deve buscar a elaboração de um projeto comum de manejo e decisão compartilhada:

Tomada de decisões compartilhada significa oferecer opções de tratamento, tentar envolver


o paciente na decisão e saber o que ele pensa a respeito do plano terapêutico.
Se o médico permite que o paciente faça perguntas, aumenta a captação de informação
entendida. Descobrir as expectativas do paciente e entendê-las aumentam a satisfação dele e
se amplia o benefício terapêutico, com melhora das taxas de adesão. [30]

Buscar uma aliança terapêutica, estabelecer objetivos do tratamento e os papéis do paciente e do


médico, explicar alternativas possíveis e negociar planos são passos determinantes dessa fase. [34]
O ideal é o profissional se colocar como guia, compartilhando informações, indicando alternativas
ao paciente e permitindo que ele escolha entre essas alternativas. Os estudos mostram que conselhos
de saúde explícitos em mensagens unidirecionais, como “deveria praticar sexo seguro” ou “deveria
deixar de fumar”, muito usados nas práticas educativas em saúde, têm eficácia limitada. [9] É
sugerido buscar um diálogo. Estratégias práticas para abordar temas de saúde ultrapassando a
fronteira do conselho e buscando o diálogo têm sido propostas através da Entrevista Motivacional.
[9]

Explicações e recomendações feitas de maneira generalizada e não personificadas tendem a ser


menos efetivas.

Se as orientações personificadas são formuladas com base no conhecimento da história individual e


única do paciente, há melhores resultados da consulta. O compartilhamento das decisões também foi
associado positivamente aos resultados da consulta a longo prazo, ou seja, trazendo a melhora da
saúde global do paciente. [34]
O tratamento culpabilizador é um estilo perigoso que geralmente é aprendido na família. A
culpabilização é uma arma mais defensiva do que agressiva. Em uma sociedade adulta devemos
respeitar sobretudo a autonomia do paciente. Repreender é um dos atos mais típicos de uma relação
paternalista. Nosso dever de beneficiá-lo vem depois, em geral, do seu direito de ser autônomo. [9]
Nosso papel é de estimular a autonomia das pessoas.
É preciso evitar dar certezas prematuras, que são um tipo de resposta habitual: “Vai ver como
tudo se ajeita”. É quase um lugar-comum para atenuar a própria tensão que sentimos quando um
paciente chora ou comunica más notícias. Evitar “entrar no assunto” equivale a uma rejeição
educada, geralmente aprendida em nossos relacionamentos sociais. [7]
É preciso buscar a negociação de prioridades e planos. Isso quer dizer ter flexibilidade para ceder
quando necessário e adequar o tratamento à rotina e hábitos do paciente. Ao mesmo tempo, ser
realista em relação ao tempo, uso adequado dos recursos disponíveis e seus próprios limites, bem
como acionar equipe quando necessário para divisão de tarefas. [33]
O plano deve considerar os princípios da prática baseada em evidência, em que as decisões a
respeito de cuidados de saúde sejam baseadas na melhor evidência disponível, atualizada, válida e
relevante, estando integradas com a clínica e os valores e as preferências do paciente. [34]

4. Fase de finalização
Nessa fase é importante avaliar a aceitação do plano terapêutico, por exemplo, com a pergunta “Pode
ser?”. Estudos mostram que, quando as orientações dadas e a participação no planejamento
terapêutico se relacionam positivamente com os resultados da consulta e quando a aderência ao
tratamento é acordada, e não imposta, há melhores resultados imediatos. [30] Além disso, foi
observado que a aderência ao tratamento aumenta quando o médico compartilha com os pacientes
assuntos relacionados ao plano terapêutico.
As pesquisas mostram que os pacientes querem participar das decisões sobre seu tratamento e
preferem médicos que os ouvem com atenção, fazem perguntas de fácil entendimento e verificam a
compreensão do paciente sobre a proposta terapêutica. [35] [31]

Comprovar a capacidade de compreensão das informações e checar o entendimento do paciente,


por exemplo: “Hoje falamos de várias coisas. Me diga, à sua maneira, o que fará até o próximo
atendimento.”

Platão já dizia que a arte de curar só chega à perfeição individualizando o diagnóstico e o


tratamento do paciente. Os recursos para isso seriam observar, olhar, conversar, conhecer a história
de vida, fazer-se compreender e ser compreendido. [14]
Pendleton enfatiza que, além de a aderência ao tratamento acordado aumentar quando o médico
compartilha com os pacientes assuntos relacionados ao plano terapêutico, a valorização da
autonomia do paciente e o envolvimento dele na consulta, desde o processo diagnóstico até as
decisões a respeito do manejo do problema de saúde, afetam o resultado da consulta. [30]
Deve-se combinar o próximo encontro e orientação de o que e quem procurar até a próxima
consulta em caso de dúvida ou necessidade, assim como motivar o paciente para o plano terapêutico,
destacando os aspectos positivos do modo de reagir do paciente. Sempre há algo de positivo, por
menor que seja.
Se mesmo fazendo prevenção de demandas aditivas no início o paciente vier com mais queixas no
final, cabe ao entrevistador avaliar se reinicia a entrevista ou se, com paciência, diz algo como:
“Isso que você está me contando é muito importante e merece ser analisado com mais tempo. Como o
nosso tempo hoje acabou, o que acha de marcarmos outra consulta?”.

5. A construção da relação
É importante observar aspectos de transferência e contratransferência. Será que o paciente lembra
alguém familiar ao médico? Ou será que o paciente pode estar vendo no médico alguém familiar? É
sempre importante refletir sobre isso, pois pode influenciar no relacionamento médico-paciente, pois
tendemos a agir de maneira diferente quando isso ocorre, privilegiando o paciente ou deixando de
abordar aspectos para uma pessoa que não nos mobiliza. Por exemplo, se a paciente lembra a avó do
médico, e ele gosta muito da avó, tenderá a tratar melhor essa paciente. Por outro lado, se ele tem um
pai autoritário, com quem tem problemas de relacionamento, provavelmente terá mais dificuldades
de lidar com pacientes com esse perfil.
No processo de desenvolvimento da relação médico-paciente, é preciso também observar o
equilíbrio de poder que está inerente na consulta.
A confiança é o valor máximo e essencial na construção de uma relação. A confiança se ganha
sobretudo oferecendo um espaço para a escuta, o cuidado e a cordialidade, mas também
demonstrando competência técnica. [37]

Características importantes para uma boa comunicação clínica


1. A empatia
Pode-se demonstrar que se compreende como o outro se sente de maneira verbal, através de
expressões de solidariedade, ou de maneira não verbal. Quando sentimos empatia nos oferecemos
como possibilidade de ajuda. [9]
A empatia é um estado emocional do entrevistador que lhe permite detectar emoções e demonstrar
que as captou.
Hojat define empatia no contexto da educação médica e cuidado do paciente como um atributo
predominantemente cognitivo (em oposição ao afetivo ou emocional), que envolve entendimento
(em oposição a sentimento) das experiências, preocupações e perspectivas do paciente, em
combinação com a capacidade de comunicar esse entendimento. Uma intenção de ajudar por
prevenção e alívio da dor e sofrimento é uma característica da empatia no contexto do cuidado. [19]
Alguns problemas de saúde têm poucas vias de solução, mas sempre há maneiras de enfrentar o
problema subjetivamente e adaptar-se a ele. Mesmo no pior dos casos, sempre é possível uma
empatia solidária expressada por um olhar ou um gesto. [9]
Antropologistas têm sugerido, nos últimos anos, usar o termo “ressonância” no lugar de empatia. O
termo ressonância reconhece o uso de experiências pessoais do profissional como uma base para o
entendimento das percepções das sensações de adoecer (illness). Como humanos, só podemos
entender o outro investindo na nossa própria experiência no processo de entendimento. [1] Exemplos
de intervenções empáticas e expressões de solidariedade: “entendo”, “vejo que está sofrendo” ou,
ainda, “eu entendo que essas dores tão persistentes são difíceis de aguentar”, devem ser feitas com
naturalidade e sinceridade e não de maneira forçada, apenas para cumprir uma técnica.
O fator chave reside em ter por hábito a escuta empática, uma escuta que leva em consideração as
emoções da pessoa, as próprias emoções (as emoções do profissional), o que provoca uma conexão
afetiva entre ambos. [8]
É importante também tentar legitimar o que o paciente sente e demonstrar respeito pelo esforço
realizado por ele para enfrentar o problema. Além disso, oferecer apoio. A empatia está fortemente
relacionada à confiança e ao vínculo.

2. A escuta ativa
É preciso saber escutar, em vez de interromper o paciente assim que começa a falar. Quem pergunta
obtém respostas, mas apenas respostas. [3] Quem deixa falar obtém histórias.
Nos primeiros minutos da entrevista, principalmente se deixarmos o paciente falar, surgirão
diamantes em estado bruto que talvez não voltem a aflorar. [9]
Muitas vezes “escutar dói”, como aborda Borrell em seu livro sobre estratégias práticas para a
entrevista clínica. Por isso, é preciso que cada profissional perceba quando isso ocorre,
reconhecendo seus sentimentos, e aprofunde o conhecimento sobre suas próprias zonas de
irritabilidade nas relações interpessoais, reconhecendo o que Freud chamou de transferência e
contratransferência (conforme comentado anteriormente). É importante também nesse processo de
escuta o que é definido como distância terapêutica, que consiste em não reagir de maneira imediata,
ou seja, dar a si mesmo a oportunidade de pensar com maior clareza. [9]
A reatividade do entrevistador se refere ao tempo que ele demora em intervir depois da fala do
paciente. Deve-se evitar a alta reatividade, que ocorre quando o médico frequentemente interrompe o
paciente antes de ele terminar de falar. Isso demonstra uma dificuldade de escuta e ansiedade do
médico. [9]

Acostume-se a que os silêncios não sejam um peso. [9]

É importante ouvir sem preconceitos, cuidar com “rótulos” que colocamos rapidamente ao ver a
pessoa. Além disso, nessa fase é importante a contenção emocional, que é saber escutar sem sentir
que somos obrigados a “ter soluções para tudo”. [9]

3. Estilo emocional
É importante analisarmos como é nosso estilo emocional nas consultas. [9]

Estilo emocional reativo: quando se reage de maneira similar ao estímulo recebido. São
aqueles que se deixam levar pelas emoções dos pacientes e praticam o “olho por olho”,
“pagar na mesma moeda” e respondem à hostilidade com hostilidade, às demonstrações de
desafeto com desafeto, etc.
Estilo emocional proativo: quando se busca reconduzir a entrevista para uma resolução de
problemas, sem se deixar arrastar pelas emoções negativas recebidas. Por exemplo, com um
paciente hostil: “vamos ver como podemos ajudá-lo”, enquanto sorri com cordialidade.

Em resumo, de um estilo proativo surge uma comunicação emocional em fluxo, de cooperação,


enquanto de um estilo reativo, uma comunicação turbulenta, na qual a culpa, a humilhação e o rancor
são os pilares básicos. O entrevistador proativo não apenas cresce em prestígio diante de sua
população, mas também sabe preservar sua autoestima, aspecto mais importante do que saber uma
determinada técnica de comunicação. [9]

A autopercepção do profissional
A busca por observar a si mesmo nas consultas traz uma prática reflexiva com muitos benefícios para
o médico, como:
Consciência do valor terapêutico da relação com o paciente.
Melhor compreensão dos processos de transferência e contratransferência.
Identificação e entendimento de situações que nos irritam. Aquele que não conhece suas
zonas de irritabilidade está à mercê de suas emoções negativas. [9]
Melhor uso terapêutico da relação médico-paciente.

O uso de pacientes simulados tem demonstrado ser muito útil na prática das habilidades de
comunicação. Entretanto, o uso de gravação em vídeo com feedback representa o padrão-ouro no
ensino de comunicação. [22]

Conclusão
A formação médica tem papel essencial nesse processo de mudança na relação médico-paciente. O
desafio é que todas as escolas médicas tenham um programa curricular de comunicação médico-
paciente, com um ensino sistematizado teórico-prático, com oportunidade de treinamento com
pacientes simulados e videogravação, bem como flexibilidade para adaptar-se às necessidades de
cada estudante. [13]
É preciso cuidar para não focar apenas na abordagem instrumental. O profissional não deve estar
mais interessado nas técnicas que deve realizar e enfermidades do que nas pessoas, que não são
apenas “portadoras de doenças”. [9]
Deve-se buscar a construção de um ambiente de ensino e de trabalho com relacionamentos
dialógicos e reflexivos com o professor e com a equipe. Também há que ter sensibilidade para
relacionar-se de maneira interdisciplinar e resistir às pressões laborais que podem induzir à
indiferença e ao distanciamento humano e afetivo. Tarefas complexas, mas de grande potencial para a
melhoria das relações na prática médica. [13]
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Marcela Dohms
Médica de Família e Comunidade. Mestre em Saúde Coletiva. Coordenadora do Programa de Residência em Medicina de Família e
Comunidade da Secretaria Municipal de Saúde de Curitiba/Feaes. Professora Substituta no curso de Medicina, no Departamento de
Saúde Comunitária da UFPR. Professora no módulo de Habilidades Médicas do curso de Medicina das Faculdades Pequeno Príncipe.
Coordenadora do GT de Comunicação e Saúde da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC).
A doença é o lado sombrio da vida, uma espécie de cidadania mais onerosa. Todas as pessoas
vivas tem dupla cidadania, uma no reino da saúde e outra no reino da doença.
Susan Sontag [1]

Para o cirurgião e fisiologista francês René Leriche (1879-1955), “a saúde é a vida no silêncio dos
órgãos”. [2] Essa frase, muito citada, pode nos ser útil como ponto de partida para a discussão sobre
as transformações emocionais que são praticamente obrigatórias por ocasião do adoecer. Cada
médico deverá, no entanto, verificar, na sua prática, a veracidade e a relevância dos conceitos aqui
expostos. Caberá a cada um retirá-los completamente da teoria e elevá-los a conhecimento integrado
à sua visão de mundo.
Rompido então o dito “silêncio dos órgãos”, ocorrerá um “barulho dos órgãos”. A palavra barulho
nos serve muito bem, pois nos dirige a algo que é sensorialmente percebido, que é exterior, que
chega de fora, que não vem, portanto, de dentro do sujeito.
O primeiro conceito que abordarmos é o de que a doença é quase sempre tomada psicologicamente
pelo doente como uma coisa que não foi produzida por ele e que não lhe pertence. O corpo que
adoece não é bem o seu corpo, ele não o reconhece assim, doente, como exatamente o seu corpo, e
deseja que o médico lhe restitua o seu corpo saudável. Vêm daí expressões como “recuperar a
saúde”, como se ela fosse uma coisa perdida a ser encontrada, ou “relacionar-se com a doença”,
como se ela fosse uma pessoa nova em sua vida. O corpo doente, que lhe foi imposto, ativa uma série
de movimentos emocionais que estão muito menos estimulados durante os tempos de saúde. O
sujeito, ao adoecer, invariavelmente se altera e se transforma. Essas transformações esmiuçaremos a
seguir.
Cada uma das personalidades humanas terá seu modo particular de lidar com o desgosto da doença,
mas é igualmente verdade que há muito em comum entre nós. Embora haja muitos modelos de
apreensão da personalidade, é indiscutível que o trabalho de Sigmund Freud no século XIX foi capaz
de introduzir definitivamente algumas palavras no vocabulário ocidental. Frise-se apenas que de
modo algum foi Freud o primeiro observador competente da personalidade, como mostra com
facilidade o esforço científico, artístico, literário e filosófico da humanidade desde a Pré-História.
Freud era um neurologista vienense que buscou investigar as contradições do comportamento
humano dentro da estrutura científica de sua época e criou um modelo teórico para pensar a razão
pela qual há tanta distância entre o que seria lógico fazer e o que fazemos, como ocultamos nossas
intenções menos defensáveis e como o oculto transpira incontrolavelmente e torna-se visível a olhos
treinados ou meramente curiosos. Para verificar essas últimas afirmações sugiro uma conversa
atenta, sincera e criativa com qualquer tabagista convicto que você conheça. Embora não nos
interesse aqui, Freud seguiu adiante se perguntando também como se produz a doença mental, qual o
sentido de seus sintomas e como se pode dialogar com ela de modo diferente do da conversa
convencional.
Abordaremos neste capítulo as noções freudianas [3] sobre:

o consciente e o inconsciente, para o exame das ideias que nos habitam e governam.
Algumas delas se manifestam abertamente e muitas mais são imperceptíveis ou apenas
fracamente perceptíveis aos que se interessam pelo indireto e sutil em nossas atitudes. A
emergência de ideias inconscientes é particularmente intensa quando há sofrimento.
id, ego e superego, para o exame de distintas áreas de relacionamento com o que há dentro
de nós originalmente, com o que nos foi incorporado por meio dos afetos da vida infantil e
na área de relacionamento com o mundo exterior, ou seja, com a realidade no conceito
convencional.
negação, dependência, intelectualização e as reações onipotentes e narcísicas que
constituem alguns dos mecanismos de defesa contra a dor psíquica e também, note bem,
mecanismos de adaptação à condição temporária ou permanente de doente. Esses
mecanismos oscilam com mais ou menos força na vida mental, mas certamente com mais
força em períodos de angústia.

O consciente e o inconsciente / Ego, id e superego


A consciência no modelo psicológico é uma camada periférica da mente, aberta de um lado para as
informações do exterior, que assomam todo o tempo pela via dos cinco sentidos, e de outro lado para
as sensações internas mentais fortemente centradas em um bem audível “gosto-não gosto”. Essa
relação prazer-desprazer aparece sob a forma de medo, controle, voracidade, rivalidade,
denegrimento, desprezo, entre outras, mais ou menos (in)audíveis conforme a sensibilidade da
consciência ao mundo interno. A consciência é parte da pele psíquica e colabora na estruturação de
limite e barreira entre o que é “eu” e o que é “não-eu”. O trabalho da consciência é muito ligado ao
câmbio e intercâmbio das experiências internas e externas, ao movimento do mundo e ao serviço das
providências imediatas de evitação do indesejado e de busca de prazer. A consciência também
abriga o arsenal de ideias benevolentes e indulgentes que mantemos a nosso respeito e dificilmente
sua atividade poderia conter a parte estável e profunda que nos define a cada um como um, onde há
mais elementos misteriosos, primitivos e, voilà!, irracionais.
Os elementos irracionais estão cuidadosamente distanciados de nossa consciência, de modo que se,
por um lado, seres ignorantes de nossa natureza profunda, podemos não ser muito incomodados,
pensar bem de nós mesmos e nos sentirmos cheios de razão. Por outro lado, a irracionalidade age
transparentemente e governa em paz boa fatia de nossos atos. Nosso repertório primitivo e
inconsciente de necessidades a serem atendidas conhece apenas o desejo imperioso e sem
consequências.
A existência do inconsciente é o motivo pelo qual se você pendurar na parede do seu quarto uma
lista dos dez mandamentos e dos sete pecados capitais da religião judaico-cristã, que predomina no
Ocidente, e se considerá-los a sério e de modo adulto e abrangente, mesmo excluindo as
considerações religiosas, verá que não é fácil nem comum segui-los. Isso apesar de sermos todos
provavelmente unânimes em dizer que, se prevalecessem e fossem respeitados, muito da dor do
mundo desapareceria. Verá também que é bastante difícil fazer alguma coisa bem errada que não se
enquadre nestas linhas que são um manual civilizatório tradicional, roteiro para a visibilidade.
O inconsciente é povoado pelo material proveniente de nossa natureza instintiva e pelos ecos das
experiências dessa natureza instintiva com a realidade muito ou pouco frustrante; ecos acumulados
desde o início da vida intra-útero numa espécie de biblioteca individual. O conteúdo inconsciente de
cada um de nós é a resultante de nossa biografia e um dos grandes determinantes de cada uma das
personalidades irrepetíveis. No entanto, o binômio consciente-inconsciente não é suficiente para
suportar todas as considerações da psicologia profunda freudiana.
Para outras considerações precisamos de outra visão arquitetural. Nós trazemos, no início da vida,
uma carga genética de agressividade e de características complementares como esperança e
amorosidade. Nos primeiros tempos de nossa vida, este quantum inicial, o id, predomina em nossa
mente inexperiente. O id, muito visceral, instintivo e pulsional, é suficiente para nos orientar a como
mamar, chorar, distinguir o prazer e a dor e como estabelecer nossas relações mais primitivas, as
primeiras memórias e a nascente inteligência. Logo novas funções vão se superpor e concentrar o
desenvolvimento da atenção, memória e suas associações, elaboração e simbolização das
experiências formando o ego, que tem partes conscientes e inconscientes e que organiza ações
destinadas ao mundo exterior e ao mundo interior. Tais ações têm por objetivo equilibrar e proteger
a mente. O exercício de viver vai expandindo a capacidade egoica de contato, relacionamento e
administração da realidade. Além disso, reservou-se na teoria um lugar especial para a parte da
realidade externa que é recebida dos pais e se deu a ele o nome de superego. De um jeito ou de
outro, alguém exercerá a função parental para um ser humano e aqui não precisamos ir mais longe
que considerar os pais comuns como os que exercem a função parental. É inequívoco que durante
longos anos a criança se relaciona de modo particularmente intenso com seus pais, e o que vem deles
tem uma força sem paralelo. Pelas mãos dos pais o mundo das proibições será apresentado à criança
e com elas um timbre específico será dado à qualidade da experiência com a frustração. Todo o
conteúdo do superego se relaciona ao movimento de frustração e limites, regras, ideais, julgamento e
crítica. Portanto, sendo a dor (física e psíquica) e a morte os maiores limites, aquelas que mais nos
confrontam com nossa impotência, o timbre do funcionamento superegoico dos seus pacientes sempre
frustrados será ouvido pelo médico.
Recapitulando, conversamos sobre uma arquitetura da mente discriminando consciente e o
inconsciente, sobre outra arquitetura discriminando ego, id e superego. Cotejando ambos os sistemas,
temos que o id é totalmente inconsciente sempre e para sempre, e o ego e o superego têm partes
conscientes e inconscientes. O ego fica como mediador entre as exigências pulsionais do id e as
restrições morais do superego; ele as representa simbolicamente para acomodar seus antagonismos
num produto equilibrado que busca atender os desejos sem selvageria.

Mecanismos de defesa do ego


A este ponto podemos nos debruçar, ainda que de modo simplificado, sobre os mecanismos de
defesa contra a dor psíquica produzidos pelo ego, que são o interesse central desta exposição
introdutória. Assim será possível tirar melhor proveito do debate que virá como a última parte deste
texto. Os mecanismos de defesa que escolhemos descrever (há outros também muito importantes)
devem ser compreendidos de modo flexível, pois se interpenetram e se superpõem.
O primeiro é a negação. Pode parecer exagerado à primeira vista dizer que uma pessoa normal
nega estar doente e age como se não soubesse bem o que ocorre, a despeito de ter recebido uma
informação médica compreensível. Mas o que dizer dos que seguem trabalhando na cama do hospital
atendendo telefonemas de trabalho, não reservam o tempo recomendado para a convalescença, não
realizam os exames, ou os realizam, mas não os trazem quando ficam prontos ou descaradamente
desobedecem ao médico mesmo quando o risco é evidente para qualquer criança de sete anos com
juízo? Se você ainda não pratica a medicina deve procurar observar a si mesmo e os que lhe são
próximos. Se já a pratica, um dia de trabalho pensando neste assunto acabará com suas dúvidas. A
negação afasta a pessoa da consciência completa de estar doente e revela um medo do corpo, medo
inconsciente aterrorizador que habita a mente. Isso pode ser independente da gravidade do quadro
clínico, ou seja, da realidade, pois às vezes tirar uma verruga faz um adulto desmaiar.
Outro e bem diferente mecanismo de defesa é a dependência. A dependência é uma reação
passivizante, que intensifica um traço infantilizado e que busca segurança, nesta hora de ameaça,
numa relação médico-paciente fantasiosa de protetor e protegido. O doente se entrega aos cuidados
médicos, submisso e fraco, confiante na superpotência que atribui ao médico. Não se iluda, pois
doentes que o adoram podem apenas estar incluindo a sua pessoa em um binário do sistema de defesa
do ego contra a angústia.
Há também a intelectualização, uma defesa que usa a inteligência para “dominar” a angústia. O
doente pesquisa, sabatina, deseja conduzir, discute, contesta e monitora o tratamento. Rivaliza com
suas recomendações, explicando que não as seguirá por isso ou por aquilo, ou não agora, e o
desobedecerá baseado em uma argumentação superficialmente coerente. Não se sente tão fraco.
Busca ser, na pior das hipóteses, um segundo médico, por acaso doente, mas cheio de autonomia e
controle.
A onipotência protege o doente dos sentimentos de inferioridade, inveja e mesmo vergonha,
reagindo contra a submissão natural da condição de doente. Manifestações de rivalidade com o
médico, de gabolice e inversão de perspectiva na conversa, ou seja, quando o paciente começa ele
mesmo a indicar, por exemplo, restaurantes, livros ou qualquer outra coisa, fazem parte deste
cenário.
Todos os mecanismos de defesa colaboram para a proteção do narcisismo que é natural em todos
nós, apenas em medidas diferentes em cada um. O adoecimento é uma ofensa narcísica contra a qual
o doente reage, usando recursos preexistentes em sua personalidade, de modo bastante análogo ao
modo como reagiria a uma grande agressão de outra natureza. A personalidade se envolve com este
novo fato da doença usando ferramentas acumuladas desde a infância, a partir, portanto, de sua carga
genética mais agressiva ou mais passiva, de suas relações primordiais com os pais, suas
experiências com o mundo, sua formação cultural e seu amadurecimento pessoal, resultando afinal
em um modo particular de enfrentar dor física e psíquica.
O adoecimento pode ser descrito como um processo complexo e, mesmo em um quadro agudo,
desencadeia-se a partir de fatores biológicos, sociais e psicológicos. Tal integração define a forma
como o indivíduo irá se relacionar com a sua doença e seu processo de cura, baseando-se na sua
própria percepção e avaliação. Cada sintoma será sempre próprio do ser que o desenvolve; o que
pode ser uma grande agressão ou fonte de angústia para um indivíduo, poderá ser menos importante
para outro. Existe ainda a variável do gênero, pois algumas doenças são mais relacionadas a um
sexo. Outro dado importante é a época da vida em que o sintoma acomete o indivíduo: a mesma
hipoacusia (queda na audição) tem diferente representação quando ocorre na velhice.
A enfermidade pode ser vista como um meio de comunicação, de expressão de sentimentos,
conflitos e vivências, sendo um modo de interação com o mundo, ainda que nefasto [4]. A doença
significa para o enfermo uma ameaça do destino, modifica a relação deste com o mundo e consigo
mesmo, desencadeia uma série de sentimentos como impotência, desesperança, desvalorização,
temor e apreensão. É uma dolorosa ferida no sentimento de onipotência e imortalidade.
A saúde perfeita, inatingível, se existisse, seria objeto de estudo e interesse apenas coletivo, pois é
a doença que individualiza os seres, ou seja, na saúde somos todos iguais e na doença somos
personificados, pois cada ser humano adoece de maneira própria. Apesar do modelo anatômico
referencial, cada indivíduo tem percepções diferentes do seu próprio corpo. Um halterofilista
convicto reconhece como ideal um padrão físico de musculatura desenvolvida e exuberante; um
jóquei, por sua vez, tem a percepção de seu corpo ideal bem mais franzino. Atualmente os padrões
estéticos estabelecidos, muitas vezes inatingíveis, têm favorecido percepções corporais errôneas
além de confundir conceitos estéticos com saúde (IMC abaixo de 18 pode indicar desnutrição
embora desejado por muitos profissionais da moda).
O ser humano deve ser compreendido como sujeito e objeto de sua existência e, dessa forma, o
doente e sua doença formam um “todo” maior que sua simples soma. As enfermidades se
desenvolvem guardando estreita relação com a história de vida do paciente, seu funcionamento
psíquico, emoções e sentimentos. Essa indissolubilidade pode ser evidenciada de modo simples:
quando uma pessoa, diante de uma situação estressante, apresenta taquicardia, é difícil afirmar se a
natureza do quadro é psíquica ou somática; o sintoma pertence possivelmente às duas esferas. A
ansiedade pode ser a única causa de taquicardia e os batimentos acelerados de etiologia primária
sinusal por si geram ansiedade.
As circunstâncias envolvidas no aparecimento e percepção do sintoma também são relevantes. Um
paciente pode indicar quadro álgico intenso à flexão do joelho, por exemplo, enquanto um atleta
disputando uma final olímpica realiza movimentos complexos com uma grande fratura ou lesão
muscular sem perceber a intensidade da dor.
O ser humano não escolhe para si sempre o mais adequado. Dessa forma, mesmo sabendo o que
deve ou não fazer (alimentação, sono, drogas), encontra-se submerso em suas possibilidades e
limites, muitas vezes sucumbindo ao “errado”, a despeito das orientações dos médicos, que, aliás,
também são humanos, logo passíveis dos mesmos processos. Não são poucos os médicos tabagistas
que orientam seus pacientes a largarem o vício.
Antes mesmo de o paciente buscar atendimento médico, ele já está interagindo com os sintomas,
normalmente percebidos como ameaça, pois não existe mais o “silêncio” da saúde. A partir desse
momento, instala-se não apenas a ameaça, mas também suas consequências reativas. Embora seja
conhecida a vulnerabilidade do corpo, espera-se que os complexos sistemas bioquímico e estrutural
se mantenham intactos.
Apesar da angústia e sofrimento provocados pelo fato de estar doente, o paciente tem certos
“ganhos”, chamados de diretos (ou primários) e secundários. As gratificações diretas referem-se ao
conflito inicial psíquico que gerou o sintoma. Para minimizar o desconforto interno, a pessoa
desenvolve o sintoma físico e foca sua atenção na queixa somática. Já os ganhos secundários
relacionam-se aos ganhos externos que o doente recebe em consequência da doença: mais atenção,
afastamento do trabalho ou de alguém e ganhos materiais. Como exemplo podemos citar um quadro
súbito de vertigem em paciente com história de ansiedade de longa data e solidão.
A partir do surgimento do sintoma vestibular, a ansiedade deixa de ser o foco e passa a haver uma
representação na sintomatologia somática. O ganho secundário se dá na medida em que a
incapacidade física provocada pela vertigem pode gerar a necessidade de companhia e maior chance
de cuidados e afeto.

A inserção sociocultural da doença


A estreita relação entre saúde e cultura é objeto de observação e estudo. Considerando o indivíduo
como um ser consciente e inserido em determinada sociedade, a doença pode ser analisada sob a
ótica sociocultural. Dessa forma, a aproximação do doente e de seu adoecimento extrapola a visão
cartesiana, favorecendo a relação médico-paciente e otimizando o tratamento. As repercussões da
sociedade na doença e vice-versa são conhecidas há mais de três mil anos. Na Antiguidade, como
descreve Scliar [5], predominava o pensamento mágico-religioso, em que a cura era atribuída a
indivíduos dotados de poderes transcendentais, como os sacerdotes incas e os xamãs. Por outro lado,
na medicina grega hipocrática a saúde e a doença passaram a ser vistas como resultantes de
processos naturais e não sagrados. Ao longo da história, algumas enfermidades assumiram
importância social, como a peste bubônica no fim da Idade Média, e a sífilis, com as suas
implicações sexuais, no Renascimento. Em meados do século XIX, a tuberculose se alastrou e por
mais de um século, sem causa conhecida, tornou-se uma ameaça e paradoxalmente produziu um
equivalente metafórico de romantismo.
Doenças sem etiologias definidas ou associadas a múltiplas causas tendem a ser envoltas por
mistérios e podem ser interpretadas como punição, tornando o portador culpado e agente do seu
adoecimento. Mais recentemente, o câncer e a AIDS vêm desempenhando papel significativo no
imaginário coletivo. No caso da síndrome de imunodeficiência adquirida existe a exposição de
grandes tabus sociais, como sexo, traição, homossexualidade e morte. O câncer surge como vilão,
sendo a doença mais emblemática da medicina nos últimos 70 anos, e possui status de grande
inimigo, contra o qual devemos lutar bravamente, usar armas, bombas radioativas e estratégias
individuais para vencer a “batalha” e o preconceito.
Atualmente, alguns quadros patológicos podem ser percebidos como claramente relacionados a
valores, expectativas e exigências sociais. Doenças contemporâneas incluem as relacionadas aos
padrões estéticos, doenças mentais, sedentarismo, patologias autoimunes, dores e doentes crônicos e
quadros degenerativos devido à longevidade.
A Organização Mundial da Saúde [6] tem divulgado dados relevantes sobre o crescimento de
doenças consideradas “modernas”, entre as quais a depressão assume a liderança, seguida por
ansiedade, fobia, anorexia, bulimia e outros transtornos mentais. A incidência de tais patologias pode
ser explicada positivamente pelo volume de informações que melhoram a acuidade dos diagnósticos
e negativamente pelo cotidiano cada vez menos saudável. Existe relação direta entre o estilo de vida
moderno e o adoecimento. A incapacidade da sociedade, de indivíduos doentes e de profissionais de
saúde em atuarem nas causas da doença acarreta o uso indiscriminado de medicamentos,
promovendo um falso conforto. Frequentemente trata-se apenas o sintoma, dada a dificuldade em
mudar hábitos, conceitos e preconceitos. Os remédios podem e devem ser usados como aliados, mas
na maioria das vezes são incapazes de, sozinhos, promoverem a cura, particulamente em quadros
crônicos.
O acesso fácil à informação, especialmente na internet (Dr. Google), aparece como instrumento
paradoxal, pois, da mesma forma que agiliza o acesso aos dados e informa, também pode
desinformar, uma vez que não há controle no que se expõe, favorecendo a insegurança, manipulação
da informação e até aparecimento de sintomas em indivíduos suscetíveis. Ainda que pudessem ser
confiáveis, os dados disponíveis nas mídias tratam apenas da “medicina” da doença, determinista e
ignorante quanto às peculiaridades do doente.
A relação médico-paciente bem desenvolvida e vivida pode ser capaz de dar ao médico a visão
dos planos não apenas biológico, mas também psicológico, maturacional, familiar, intelectual,
cultural, social e, eventualmente, psicopatológico do doente. O médico pode e deve dominar o
conhecimento teórico e a técnica pertinente ao seu exercício profissional, mas jamais esquecer que o
verdadeiro desafio está na busca do equilíbrio entre a medicina das doenças, mais generalista, e a
medicina dos doentes, necessariamente individualista.
Referências bibliográficas
BALINT, M. O médico, seu paciente e a doença. Rio de Janeiro: Atheneu, 1975.

DASTUR, F. A morte. Rio de Janeiro: Difel, 2002.


[3] FREUD, S. Edição standard das obras completas. Rio de janeiro: Imago, 1969.

HEIMANN, P.; ISAACS, S.; RIVIERE, J. Os progressos da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.

KLEIN, M. O sentimento de solidão. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

LAPLANCHE; PONTALIS. Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1998.


[2] LERICHE, R. La chirurgie de la douleur. Paris: Masson & Cie, 1940.

MIJOLLA, A. Dicionário internacional de psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2002.


[6] ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE (OMS). Saúde Mental: nova concepção, nova esperança. Genebra: OMS, 2001.
[4] QUAYLE, J.; DE LUCIA, M. C. S. Adoecer: as interações do doente com sua doença. São Paulo: Atheneu, 2003.
[5] SCLIAR, M. J. Do mágico ao social: trajetória da saúde pública. São Paulo: Senac, 2002.
[1] SONTAG, S. A doença como metáfora. Rio de Janeiro: Graal, 2002

Maria Lúcia Maranhão Bezerra


Psiquiatra e psicoterapeuta psicanalítica. Professora voluntária da disciplina de Propedêutica Médica I no curso de Medicina da UFPR.
Coordenadora regional da Associação Brasileira de Medicina Psicossomática. Membro do Departamento de Saúde Mental da Sociedade
Paranaense de Pediatria e da International Neuropsychoanalysis Society.

Sandra Lunedo
Professora voluntária do módulo Relação Médico-Paciente da disciplina de Semiologia Médica do curso de Medicina da UFPR. Mestre
em Clínica Cirúrgica pela UFPR. Especialista em Otorrinolaringologia e Cirurgia Craniofacial.
Introdução
A Bioética surgiu nos Estados Unidos na década de 1970, como uma reação a uma série de
transformações sociais que ocorreram naqueles anos. No Brasil, ela chegou mais tardiamente, na
metade nos anos 1980, estimulada sobretudo pela preocupação ética com as pesquisas com seres
humanos. Aqui a sua inserção no currículo médico também ocorreu depois, integrando-se e algumas
vezes até substituindo a própria Deontologia Médica na grade curricular. Além disso, assumiu uma
grande importância dentro das principais sociedades médicas de especialidades e nos Conselhos de
Medicina, devido ao fato de que ela se envolve, ao mesmo tempo, com os dilemas individuais dos
profissionais de saúde diante das situações polêmicas que ocorrem à beira do leito, bem como com
as complexas decisões sociais enfrentadas em conjunto com legisladores e cidadãos.
Assim, neste capítulo serão abordados os aspectos históricos e conceituais, suas aplicações em
saúde pública e as bases da bioética clínica dentro do contexto do relacionamento médico-paciente.

Contexto histórico
O que contribuiu mais ativamente para o surgimento da Bioética no mundo foram os abusos que
ocorreram nas pesquisas envolvendo seres humanos. Progressos médicos importantes e que geraram
controvérsias estiveram ligados também a isso, tais como: hemodiálise (Comitê de Seattle decidia
quem faria diálise e quem estaria condenado à morte), transplantes de órgãos (criação do conceito de
morte encefálica por um comitê na Universidade de Harvard), diagnóstico pré-natal (possibilidade
de escolha de embriões e da interrupção da gestação), unidades de terapia intensiva
(instrumentalização da morte), desenvolvimento dos ventiladores artificiais (prolongamento
indefinido da vida) e a pílula anticoncepcional (dissociação da atividade sexual da função
reprodutiva). Esta última, inclusive, foi fundamental para que se criasse uma mudança da ética
profissional com forte influência religiosa e paternalista para a Bioética predominantemente de
influência laica e com uma valorização muito mais forte da autonomia.
A encíclica Humanae vitae, do Papa Paulo VI, provocou por parte de alguns filósofos um
movimento contrário à ética com fundamentação ou inspiração religiosa. Além disso, os Estados
Unidos, na década de 1970, conviviam com intensas discussões sobre os direitos civis dos negros, a
legalização do aborto e também com o crescimento do feminismo e de doutrinas individualistas.
Questionavam-se as instituições tradicionais como a família, as religiões, o exército e as escolas.
Esse clima de revolução cultural, associado ao despertar da biotecnologia, acabou gerando novos
dilemas morais, sem uma solução imediata que fosse universalmente aceita. Assim, os modelos
existentes na Ética Clínica e na Deontologia não correspondiam à velocidade das transformações
impostas para a sociedade.
A este difícil despertar somaram-se os inúmeros abusos que ocorreram no campo das pesquisas
com seres humanos mesmo após a Segunda Guerra Mundial e do Código de Nuremberg. Na
Willowbrook State School, uma escola para crianças com graves deficiências mentais, entre 1956 e
1970, cerca de 800 crianças foram inoculadas com cepas do vírus da hepatite. O objetivo era estudar
uma forma de profilaxia mais efetiva contra a hepatite. Aos pais era colocado um termo de
consentimento onde constava que se não estivessem de acordo com a pesquisa seus filhos não mais
seriam admitidos naquela escola. Em 1964, num outro estudo, no Jewish Chronic Disease Hospital,
foram injetadas células tumorais em 25 idosos, sem prévio consentimento, com o objetivo de analisar
o desenvolvimento dessas células fora dos organismos que a geraram.
Um terceiro estudo, no estado do Alabama, foi o Tuskegee Syphilis Study. Entre os anos de 1932 e
1972, 600 trabalhadores braçais negros foram submetidos a um estudo organizado pelo U.S. Public
Health Service, cujo objetivo era determinar os efeitos do curso natural da sífilis não tratada. Um
grupo de 399 homens não foi tratado nem informado sobre a natureza da sua doença. Outros 201, não
portadores da doença, participaram do estudo como grupo controle. Durante aproximadamente 40
anos, esses pacientes foram privados de qualquer tratamento. Nos anos 1940 a penicilina já estava
disponível, ainda assim o desenho do estudo permaneceu inalterado. Ele só foi interrompido em
1973, após o jornal New York Times chamar a atenção da opinião pública para o grave desvio moral
e desrespeito à dignidade humana com que ele estava sendo conduzido. Formou-se uma comissão do
governo dos Estados Unidos, através de determinação do Department of Health, Education and
Welfare, que estabeleceu que, a partir desse acontecimento, a sociedade não mais poderia permitir
que o equilíbrio entre o direito individual e o progresso científico fosse determinado unicamente pela
comunidade científica.
Segundo Zygmunt Bauman [1], vivemos novos problemas, desconhecidos em gerações passadas,
assim como novas formas que tomaram os velhos problemas. É o que ele chama de modernidade
líquida, tempos em que as pessoas não são estimuladas a se lançar na busca dos ideais morais ou
mesmo de cultivá-los. Tempos, segundo ele, de individualismo e de busca da boa vida, limitados
apenas pela exigência de tolerância. Contudo, a tolerância, quando casada com o individualismo,
pode gerar a indiferença. Evitar esta armadilha moral é o grande desafio para a formação do caráter
profissional do médico e da relação médico-paciente.

Conceito
O termo Bioética foi empregado pela primeira vez no início dos anos 1970, por Van Rensselaer
Potter [2], um bioquímico envolvido na pesquisa do câncer, na Universidade de Wiscosin. Para ele,
seria necessário desenvolver um novo campo da Ética, que pudesse se direcionar para a defesa do
ser humano, da sua sobrevivência e para uma melhora na sua qualidade de vida. A proposta para a
formação de uma disciplina tinha como objetivo fundamental criar uma ponte entre duas culturas que
estavam sem se comunicar – a ciência e as humanidades. Desse diálogo, segundo Potter, sairia um
futuro melhor para a espécie humana.
A Bioética começou com a ética médica, sobretudo aquela de inspiração protestante, mas expandiu-
se e envolve atualmente as pesquisas e as ciências da vida. Ela se caracteriza mais pelo seu objeto
de estudo do que por uma metodologia específica. Peter Singer, ao ser questionado sobre a definição
de Bioética em um programa televisivo chamado Real Time, respondeu: “Bioética é a busca da ética
nas ciências biológicas”. Entretanto, o conceito que mais se aproximou do ideal de que a Bioética se
propõe foi o elaborado por Reich, em 1995, em sua Encyclopedia of Bioethics: “Estudo sistemático
das dimensões morais – incluindo a visão moral, as decisões, a conduta e as linhas que guiam – das
ciências da vida e da saúde, com o emprego de uma variedade de metodologias éticas e uma
impostação interdisciplinar”.
Especificamente no âmbito médico, a Bioética deve ser considerada como um instrumento para a
tomada de decisões, que tem na multidisciplinariedade a sua característica mais importante. Isso é o
que a diferencia da Ética Médica clássica, tradicionalmente marcada por uma ênfase no
relacionamento médico-paciente. Essa abordagem deontológica, apesar de necessária, mostrou não
ser suficiente para abraçar as situações emergentes que surgiram nas últimas décadas na área médica.
Sendo assim, os domínios da Ética Médica e da Deontologia hoje interagem intimamente com a
Bioética para resolução de conflitos na pesquisa clínica, na saúde pública e na prática clínica.

Saúde pública
Os sistemas de saúde norte-americano, assim como de outros países e também o brasileiro, estão
em meio a uma verdadeira guerra entre os planos de saúde e seguradoras, os hospitais, o governo e
os médicos. Daniel Callahan [3] fez severas críticas aos rumos da medicina. Para ele, um dos
principais problemas é que a medicina impõe a si mesma, hoje, horizontes ilimitados de atuação.
Essa falta de limites e o expansionismo desordenado (mesmo fora do âmbito saúde-doença) acabam
elevando os custos dos tratamentos médicos, que nem sempre se traduzem em melhoria para a saúde
da maioria das pessoas. Para Callahan, a regra do liberalismo aplicada à saúde pode ser formulada
nos seguintes termos: se uma nova tecnologia é desejada por um sujeito, ele deve ter acesso a ela, a
menos que existam provas de efeitos adversos que o inviabilizem.
As enhancement technologies são tecnologias biomédicas não voltadas ao tratamento de doenças,
mas à melhoria de funções fisiológicas: a cirurgia estética, os medicamentos para tratar fobias
sociais, déficit de atenção e desempenho sexual. Muitas dessas drogas foram desenvolvidas a partir
de considerações mercadológicas, com base em pesquisas de mercado mesmo. Uma das
consequências desse modelo pode ser vista nos Estados Unidos, que gastam anualmente mais de 2
trilhões de dólares com a saúde, o que representa o valor aproximado da economia chinesa e é quase
a soma do que gastam todos os outros países do globo juntos. Isso representa aproximadamente 16%
do PIB norte-americano e a projeção é ultrapassar 20% nos próximos anos. Mesmo assim, existem
mais de 46 milhões de norte-americanos completamente desassistidos, tanto que um dos pontos mais
criticados da gestão do presidente Barack Obama é exatamente a reforma na saúde dos Estados
Unidos, algo que será ainda mais complexo para ser concluído em meio a uma crise econômica
mundial.
O sistema brasileiro, com menos recursos e dificuldade maior ainda de acesso à prevenção e aos
cuidados, falta de planejamento de longo prazo, gera desigualdades ainda maiores e dilemas que são
próprios à nossa realidade. O programa do governo da presidente Dilma Roussef, intitulado “Mais
Médicos”, foi severamente criticado pelas entidades médicas e os seus efeitos positivos e negativos
de curto e médio prazo são ainda difíceis de prever.

Bioética clínica
Albert Jonsen [4], professor emérito de Ética Médica na Universidade de Washington, criou um
método para auxiliar na resolução de dilemas éticos na clínica. Tem como base quatro elementos
fundamentais: indicações médicas, preferências dos pacientes, qualidade de vida e aspectos
contextuais. Esse método tem como ponto favorável o fato de que permite um raciocínio bioético
compartilhado e de fácil compreensão entre os profissionais de saúde.

1. Indicações Médicas
É a relação entre a fisiopatologia e as intervenções diagnósticas e terapêuticas que estão indicadas
para resolver apropriadamente cada caso específico. Refere-se à aplicação do conhecimento
científico e da medicina a partir de evidências em relação ao paciente individualizado. São quesitos
importantes e com implicações bioéticas:

Qual é o problema médico do paciente?


O problema é agudo ou crônico? Crítico? Emergencial? Reversível?
Quais são os objetivos do tratamento?
Quais são as probabilidades de sucesso?
Quais são as perspectivas no caso de falência do tratamento?

O fato de ser agudo ou crônico, por exemplo, muda completamente o contexto, pois em situações
emergenciais e agudas a decisão passa habitualmente por um único profissional, e nem sempre o
paciente está em condições de exercer a sua autonomia de maneira plena. Na condição crônica,
podem ser realizadas consultorias em bioética clínica ou atuação de juntas médicas, bem como o
paciente e seu responsável legal participam ativamente do processo de decisão.

2. Preferências dos pacientes


Em todos os tratamentos médicos, as preferências dos pacientes, com base nos seus próprios valores
e percepções pessoais dos benefícios e dos riscos, são eticamente relevantes. Os seguintes pontos
devem ser esclarecidos antes da tomada de decisão:
O paciente expressou suas preferências em relação ao tratamento?
O paciente foi corretamente informado sobre os riscos, benefícios e deu seu consentimento?
O paciente é mentalmente capaz e legalmente competente?
Se incapaz, quem é o responsável legal?

A valorização da autonomia e a sua centralidade no relacionamento médico-paciente foi a


influência mais importante que a Bioética trouxe para a prática clínica.

3. Qualidade de vida
Além de salvaguardar a vida dos pacientes, outro grande objetivo das intervenções médicas é
restabelecer, manter ou melhorar a qualidade de vida deles. Critérios relevantes nesse sentido:

Qual é a expectativa com e sem o tratamento do paciente retornar à vida normal?


Quais problemas podem prejudicar a avaliação da qualidade de vida do paciente?
Quais limitações físicas, mentais e sociais que o paciente apresentará após o tratamento?
A condição presente ou futura do paciente pode ser considerada indesejável?
Quais os planos para dar conforto ou paliação?

A qualidade de vida é algo difícil de ser quantificado e os questionários de avaliação, apesar de


úteis e de serem base para diversos estudos, ainda apresentam falhas e limites. Além disso, é preciso
considerar também como o paciente percebe a qualidade de vida ou a falta dela no seu horizonte
individual e nas condições em que se encontra. E a interpretação médica nesse quesito deve
considerar o que é mais importante sobre esse aspecto.

4. Aspectos contextuais
Os cuidados com os pacientes são influenciados, positivamente ou negativamente, pelo contexto
pessoal, familiar, psicológico, emocional, religioso, educacional, financeiro, legal, institucional,
científico e social.

Existem problemas familiares que podem influenciar nas decisões terapêuticas?


Financeiros?
Médicos ou de enfermagem?
Existem fatores religiosos ou culturais envolvidos?
Alocação de recursos?
Existe justificativa para quebrar a confidencialidade?
Implicações legais?
Pesquisa/ensino?
Conflitos de interesse?

Alguns pontos importantes emergem nessa forma de metodologia. O primeiro é que não se deve
realizar nenhuma análise bioética de problemas clínicos sem que se tenha conhecimento suficiente
das evidências científicas existentes. O desconhecimento dessas evidências invalida qualquer
conclusão a posteriori. O método Albert Jonsen melhora a compreensão dos conflitos, protege a
autonomia dos pacientes e a integra nas decisões médicas. Por outro lado, apesar de trazer à tona
essas situações e organizá-las sistematicamente, não as resolve em todos os casos. Os conflitos
podem ocorrer entre cada um dos pontos cardeais que foram citados. A tomada de decisão algumas
vezes é tão complexa que se faz necessário o apoio técnico através de consultoria de profissional
com competência bioética na resolução de problemas ou mesmo de um comitê de ética/bioética
hospitalar.

Conclusões
O médico deve ter, além da competência científica, a humildade de reconhecer o seu papel e seus
limites: cuidar, mais do que curar. Esta é a virtude mais importante que pode ser cultivada com o
auxílio da Bioética.
A excelência moral, na perspectiva da Bioética, só será possível de ser atingida através da criação
do hábito ou disposição permanente para agir em conformidade com o bem e a preocupação com o
próximo. O ser humano não nasce virtuoso, e a busca da excelência profissional passa pela
excelência pessoal.
A medicina moderna, nesse sentido, infelizmente está perdendo o sentido do profissionalismo,
quebrando o seu contrato social. Excesso de mercantilização, conflitos de interesse e limites na
autonomia profissional. Muitos dos dilemas enfrentados pelos médicos necessitam de um
aprofundamento bioético. A ausência de formação humanística repercute em parte nas causas de um
declínio anunciado na saúde pública. A Bioética é um elemento de transformação para o futuro, não
apenas da medicina, mas da sociedade. Mas, para isso, é preciso atravessar a ponte de Potter.
Referências bliblográficas
ANNAS, G. J. Worst case bioethics: death, disaster, and public health. New York: Oxford University Press, 2010.

BEECHER, H. Ethics and clinical research. NEJM 1966; 274:1354-60

BRODY, H. The future of bioethics. New York: Oxford University Press, 2009.
[1]
BAUMAN, Z. Ética pós-moderna. São Paulo: Paulus, 1997.
[3] CALLAHAN, D. La Medicina impossibile: le utopie e gli errore della medicina moderna. Milão: Baldini & Castoldi, 1999.

HERLZLINGER, R. Valor para o paciente: o remédio para o sistema de saúde. Porto Alegre: Bookman, 2011.

JONSEN, A. R. The birth of bioethics. New York: Oxford University Press, 1998.
[4] JONSEN A. R.; SIEGLER M.; WINSLADE, W. J. Clinical ethics. New York: McGraw Hill, 1997.

PELLEGRINO E. D.; THOMASMA, D. C. The virtues in medical practice. New York: Oxford University Press, 1993.
[2] POTTER, V. R. Bioethics: bridge to the future. New Jersey: Prentice-Hall, 1971.

ROTHMAN, D. J. Strangers at the bedside. New Brunswick: Aldine Transaction, 2002.

SGRECCIA, E. Personalist bioethics: foundations and applications. Philadelphia: The National Catholic Bioethics Center, 2012.

Cícero Urban
Cirurgião oncológico e Mastologista. Professor de Bioética e Metodologia Científica no curso de Medicina e na Pós-Graduação da
Universidade Positivo. Mestre e Doutor em Clínica Cirúrgica pela UFPR. Chefe do Departamento de Cirurgia do Hospital Nossa
Senhora das Graças em Curitiba.
A relação médico-paciente é a peça fundamental de qualquer atendimento médico. O sucesso
terapêutico de uma consulta – domiciliar, ambulatorial ou em enfermaria – depende não apenas das
medicações que foram prescritas, mas principalmente do vínculo de confiança estabelecido entre o
profissional e o paciente assistido. Daí decorre o fato de a relação médico-paciente estar
intrinsecamente ligada à Semiologia Médica. Dessa forma, ao aprender a Semiologia, o estudante de
medicina deverá compreender, estudar e praticar a adequada relação com os seus pacientes e suas
famílias [1].
No contexto histórico, a relação médico-paciente sofreu inúmeras mudanças ao longo do tempo.
Inicialmente, ela era primorosa, solene e ocupava o ponto central da cena. Havia grande
pessoalidade nas relações entre a população e o médico, que muitas vezes era o responsável por
cuidar de várias gerações de uma mesma família. Nesse momento, o exame clínico era a única
ferramenta a ser utilizada para diagnósticos, de maneira que o contato entre o profissional e a pessoa
que buscava auxílio possuía grande proximidade física e emocional. Com o estabelecimento da
medicina científica e dos modelos hospitalocêntricos, essa relação tornou-se impessoal, sendo
resgatada nos últimos anos como a essência necessária para uma assistência bem-sucedida ao
paciente [2].
A primeira importante lição a ser compreendida pelo estudante de medicina durante o aprendizado
da Semiologia Médica é que, no contexto do atendimento ao paciente, o acadêmico exerce o papel de
verdadeiro médico na concepção do doente. No ato da assistência médica em um ambiente
acadêmico, ainda que deva ser realizado sempre sob preceptoria, é ao estudante entrevistador que o
paciente irá expor suas queixas, sua história, seus sentimentos e seus pudores. A exposição não é
apenas por meio dos relatos subjetivos durante a anamnese, mas também através do desnudamento no
momento do exame físico. Portanto, sempre que nos referirmos à importância e ao papel da relação
médico-paciente no contexto de um atendimento, esse conceito pode e deve ser extrapolado à
situação da relação estudante-paciente.

CASO 1
Estudantes de medicina iniciando o aprendizado da Semiologia Médica ficam receosos de entrarem
nas enfermarias do hospital-escola, com muito medo de abordarem os pacientes, sentindo-se
culpados pelo “incômodo” que causam às pessoas. Os acadêmicos de medicina relatam que não
podem fazer nada para ajudar os pacientes. Apenas incomodam, fazem perguntas demais
(anamnese) e não dão nada em troca.

No ambiente de assistência, o entendimento dos aspectos envolvidos na relação médico-paciente é


de extrema importância para que seja realizada uma abordagem holística. O cuidar do paciente
abrange muito mais que o componente biológico da doença que o levou ao médico. Significa
valorizar e buscar compreender os aspectos biopsicossociais envolvidos no processo de
adoecimento que o levou a buscar auxílio. Por isso, aprender a escutar e a dar atenção à narrativa
dos doentes é, sobretudo, auxiliá-los, sendo continente com suas dores existenciais. A escuta
terapêutica é de grande valia no tratamento dos pacientes, e o estudante de medicina precisa
desenvolver essa capacidade, tendo consciência do seu papel de ajuda tão bem recebida pelos
doentes que passam por suas mãos.
Os principais fenômenos a serem compreendidos pelo estudante nesse contexto têm como origem a
psicanálise e consistem nos mecanismos de transferência e contratransferência. É através da relação
transferencial que ocorre a escuta terapêutica e a possibilidade de ajuda para além da dispensação
de medicamentos ou de procedimentos cirúrgicos.
O termo transferência foi concebido a partir da percepção de Freud de que toda a carga emocional
vivida em experiências e relacionamentos passados tem influência na relação a ser estabelecida com
o profissional no momento da consulta e diz respeito aos sentimentos mobilizados no encontro entre o
paciente e o profissional que o atende [3].
A transferência consiste na projeção afetiva inconsciente que o paciente coloca na relação
estabelecida com o médico. A maneira como o paciente é recebido, o modo com que é tratado
durante a avaliação, a atenção e o tempo que o médico dispõe ao paciente são fatores que
influenciam diretamente no mecanismo de transferência desenvolvido pelo doente, o que pode ser
caracterizado como transferência positiva, negativa ou erótica não neutralizada [3].
A transferência positiva é estabelecida quando a relação médico-paciente é vivenciada de maneira
agradável, atendendo às expectativas que o paciente tinha da consulta. Já a transferência negativa é
estabelecida quando o médico, ou o estudante, desperta de maneira inconsciente no paciente a
sensação de experiências desagradáveis já vividas em relacionamentos interpessoais passados,
comprometendo o estabelecimento de um bom vínculo. A transferência negativa pode desencadear no
paciente uma resistência em relação ao que foi proposto pelo médico no transcorrer da consulta,
sejam orientações, realização de exames complementares ou mesmo a adesão ao esquema terapêutico
proposto. Durante o aprendizado da Semiologia Médica, a resistência do paciente geralmente
prejudica a anamnese desenvolvida pelo estudante. Conhecer os tipos de transferência
instrumentaliza os acadêmicos no sentido de poderem mediar a relação com os pacientes, o que
facilita a prática do encontro clínico [1].
Os pacientes podem ainda desenvolver sentimentos eróticos pelos seus médicos, o que parece ser
mais comum em relação aos estudantes de medicina. Pacientes jovens por vezes carentes de carinho
e atenção podem se sentir atraídos por estudantes bonitos, alegres e sensuais. Geralmente este tipo de
transferência é considerada meramente um aspecto moderado da transferência positiva e costuma não
causar constrangimentos, pois os pacientes tendem a neutralizar tais sentimentos. A neutralização
segundo a psicanálise é entendida como uma tarefa do ego, que transforma a energia libidinosa em
uma energia produtiva e socialmente aceita. Um exemplo seria uma paciente adolescente que, ao
sentir atração por seu médico, transforma inconscientemente essa energia em adesão ao tratamento,
procurando a cada retorno ao consultório mostrar o quanto tem seguido as orientações do
profissional. O problema se estabelece quando as funções egóicas do paciente não conseguem
neutralizar a libido em relação ao médico ou ao estudante. A situação se torna constrangedora e
perigosa, podendo comprometer a relação profissional e a ética do atendimento [3].
A contratransferência consiste na projeção afetiva inconsciente que o médico coloca na relação
estabelecida com o paciente. Nesse momento, os sentimentos, experiências e fraquezas do médico
são preponderantes no desenvolvimento de contratransferência positiva, negativa ou erótica não
neutralizada no contexto da consulta [3]. É natural que o profissional relacione o que é trazido pelo
doente à consulta a fatos vivenciados em sua vida pessoal. Aqui, faz-se importante que o médico (ou
o estudante) desenvolva mecanismos de defesa adequados no intuito de dosar os sentimentos
evocados durante a consulta e para que sejam sublimadas contratransferências eróticas que
porventura aconteçam.
Quando a contratransferência é positiva, o médico consegue estabelecer sucesso terapêutico e
conforto ao paciente tanto em consultas únicas quanto no acompanhamento de doentes a longo prazo,
em tratamento de doenças crônicas ou fora de possibilidades terapêuticas. No caso dos acadêmicos
em treinamento durante o aprendizado da Semiologia, a contratransferência positiva é um facilitador
ao encontro clínico, possibilitando um vínculo afetivo importante durante a anamnese.
Ao contrário, quando a contratransferência é negativa, pode tornar-se um martírio para o médico
ou estudante o acompanhamento do paciente que muitas vezes é encarado como cansativo, chato e
irritante. É bastante comum os estudantes rotularem seus pacientes de chatos e poliqueixosos, não
percebendo que tal julgamento decorre de suas próprias emoções envolvidas no fenômeno de
contratransferência. Mecanismos de defesa adequados são importantes nesse contexto, para que os
conflitos não interfiram negativamente na condução do caso.
O bom uso de mecanismos de defesa decorre do reconhecimento de algumas situações chamadas de
“sinais luminosos” ou “sinais de aviso”. Tais situações funcionam como sinais que apontam para a
possibilidade de deteriorização da relação médico-paciente, levando à ruína do encontro clínico.
Nesses casos, os sinais luminosos avisam que se torna necessário lançar mão de um mecanismo de
defesa para mediar as difíceis relações entre o profissional e seu paciente [4]. Dessa forma, os sinais
de aviso que podem alertar o estudante ou o médico para a emergência de defesas contra o excessivo
envolvimento emocional com os doentes são:

ansiedade súbita durante a consulta;


irritabilidade ao longo do encontro clínico;
preocupação quanto à duração da consulta (olhar compulsivamente o relógio);
distanciamento e altivez durante a narrativa do paciente;
frieza ou “zanga” diante do paciente;
cuidado excessivo para não magoar o doente;
uso exagerado do modelo biomédico durante a consulta;
comportamento “apostólico” (quando o médico dá vários conselhos procurando dirigir o seu
paciente de acordo com suas próprias crenças);
reforço na educação para a saúde de forma insistente;
fixação exagerada às normas e política do ambulatório;
identificação muito próxima ao paciente.

É óbvio pensar que a boa relação médico-paciente é algo especial, que passa a ser construída na
medida em que o estudante vivencia experiências no contato com o doente. Não se aprende a
estabelecer um bom vínculo do dia para a noite. Pelo contrário, essa relação é desenvolvida ao longo
de anos, e mesmo os bons médicos, reconhecidos pela exímia relação médico-paciente e com alto
índice de sucesso terapêutico por longo período de experiência, podem encarar situações em que é
difícil o estabelecimento de bom vínculo com o doente. No entanto, é importante que o estudante
saiba que existem bases teóricas de estudo da relação médico-paciente que podem auxiliá-lo nas
vivências cotidianas. Vale ressaltar que o estudo dessa relação tão especial é de extrema importância
para a formação de um bom médico. Da mesma forma que se faz importante conhecer os fundamentos
orgânicos das doenças, é o bom vínculo com o paciente que possibilita um exame clínico completo,
com as informações necessárias para o reconhecimento da epidemiologia, etiologia, fisiopatologia,
diagnóstico e tratamento das mais diversas doenças. Saber escutar e enxergar o paciente permite a
percepção da fenomenologia do doente, envolvendo seus comportamentos, atitudes verbais e não
verbais, preconceitos, expressões faciais, entre outros, o que contribui de maneira preponderante
para o aprofundamento da relação médico-paciente e para a realização de um diagnóstico
multidirecional nem sempre com predominância orgânica.
Atitudes positivas do estudante, percebidas pelo paciente, abrem caminho para que ambos se
coloquem mais à vontade, com informações mais completas, com maior segurança e adesão. É o
aparato para o desenvolvimento de uma relação terapêutica.
Entre as diversas teorias já estabelecidas sobre esse tema, certamente foi a teorização feita por
Michael Balint – a teoria balintiana – a de maior importância no contexto da relação médico-
paciente.
Balint, médico psicanalista nascido em Budapeste em 1896, foi o responsável pela revolucionária
mudança de paradigma da relação médico-paciente. A metodologia utilizada por Balint para o
aprofundamento no estudo do tema foram reuniões de médicos clínicos gerais na Clínica Tavistok,
em Londres. Balint chamou de “seminários” os grupos de discussão em que eram expostos casos
clínicos considerados angustiantes e de difícil condução. Durante as trocas de experiências entre os
médicos, Balint percebeu aspectos semelhantes nas atitudes relatadas e utilizava seus conhecimentos
em psicanálise para analisar os aspectos envolvidos nos mecanismos de transferência e
contratransferência estabelecidos nos casos [2].
No livro O médico, seu paciente e a doença [5], Balint descreveu as categorias que fundamentaram
sua teoria: “o médico como droga”, a “organização da doença”, a “oferta da doença”, o “conluio do
anonimato” e a “função apostólica”. As categorias balintianas são instrumentos capazes de serem
utilizados no processo de ensino-aprendizagem dos preceitos envolvidos na relação médico-paciente
e podem auxiliar o estudante na compreensão desse universo que envolve o doente e o profissional.
Elas proporcionam uma atuação mais segura pelo discente em um ambiente complexo, cheio de
inseguranças e novidades, em um meio que envolve não apenas descobertas sobre o íntimo do
paciente, mas também aspectos até então desconhecidos sobre si mesmo.

CASO 2

O estudante acaba de realizar a anamnese e o exame físico. Durante o encontro clínico, escutou
histórias da vida da paciente, como sua relação difícil com seu filho usuário de drogas. Ao
terminar sua tarefa e despedir-se da paciente, esta lhe dirigiu a palavra:
“Doutor, obrigada por ter vindo conversar comigo. Só de lhe falar sobre meu sofrimento eu
melhorei! A dor da cabeça está quase passando... venha sempre que puder para me fazer uma
visita!”

O médico como droga é a categoria fundamental da teoria balintiana. Um dos tópicos de discussão
de Balint com os médicos nos seminários foi o de substâncias que habitualmente são prescritas pelos
clínicos gerais. Balint notou que a droga mais frequentemente utilizada na prática clínica era o
próprio médico, ou seja, que não importava o frasco ou cartela de remédios receitados, mas o modo
que o médico os oferecia ao paciente [5]. Assim, a discussão revelou que o profissional, ao
prescrever um medicamento, coloca na receita muito de si e da relação instituída com o paciente, de
forma a ampliar, ou não, o efeito do remédio por ele receitado [2]. A função “droga” do médico
interfere no tratamento e na adesão do paciente às orientações propostas, resultando na melhora do
paciente ou em sua piora, a depender do vínculo estabelecido no momento do atendimento [2] [5].
Assim como os médicos, os estudantes de medicina também têm “função droga” e precisam saber
como utilizá-la. A cada encontro clínico o acadêmico pode, através da relação estabelecida com seu
paciente, ajudá-lo a sentir-se melhor ou deixá-lo mais angustiado, ansioso ou preocupado. Saber
dosar-se de maneira correta depende do aprendizado teórico-prático da relação médico-paciente e
sem dúvida é durante o treinamento da Semiologia Médica o melhor momento para esse aprendizado
tão especial.
As duas categorias seguintes dizem respeito ao paciente e correlacionam-se entre si. Trata-se da
organização da doença e da oferta da doença. Balint pôde observar que a consulta médica é um
ambiente propício para o desabafo das angústias, anseios e carências dos pacientes, que estão
cercados pelos aspectos psicossociais em que estão inseridos [5]. Ao se consultar, o paciente leva ao
médico queixas somáticas, que são organizadas ao longo do tempo para propiciar a busca por auxílio
(vide o exemplo do caso 2).
Evidentemente que algumas pessoas submetidas a situações de muito estresse podem buscar o
médico ofertando queixas vagas ainda não tão bem organizadas. Com frequência o paciente busca
atendimento médico inicialmente com uma doença “não organizada”, muitas vezes mal
compreendida, até que consiga “organizá-la” em sinais e sintomas coerentes. Vale ressaltar que a
organização da doença e a oferta das queixas ao médico não é um processo consciente, sendo, pois,
da ordem do inconsciente de cada pessoa. Isso equivale dizer que de maneira alguma essas
categorias balintianas apontam para uma situação de mentira ou de simulação.
Após organizar a enfermidade, o paciente a oferece ao médico, que pode aceitá-la ou recusá-la.
Nesse contexto, talvez o principal efeito adverso do médico na sua função “droga” seja o modo com
que ele reage em relação às ofertas do paciente [5]. Assim, percebe-se que a oferta da doença é uma
consequência de sua organização realizada a partir do meio social. É importante ressaltar que em
nosso meio cultural o termo “organização” costuma ser concebido como algo positivo. No entanto, a
organização da doença como categoria balintiana não configura algo bom para o paciente, pois o
leva ao adoecimento na medida em que torna de difícil modificação ou desmistificação a
enfermidade por ele elaborada, organizada.
O conluio do anonimato diz respeito a uma situação cada vez mais frequente e temida vivenciada
no mundo atual [2]. Diante de casos difíceis de serem conduzidos, o médico encaminha o paciente a
diversos especialistas diferentes, sem que as condutas e tratamentos sejam harmonizados e
complementados. Essa atitude resulta em uma falta de “dono” do paciente, um médico que reúna
todas as opiniões e sugestões terapêuticas em um único projeto terapêutico e que leve em conta as
possíveis interações medicamentosas existentes. Em casos de conluio do anonimato, nenhum dos
profissionais envolvidos assume, de fato, a responsabilidade pelo paciente, dessa forma o sucesso ou
insucesso do tratamento não pode ser atribuído a nenhum deles [5].
A quinta categoria trata-se da função apostólica. Essa última categoria consiste em opiniões,
conselhos e orientações médicas que carregam consigo a personalidade e a cultura do médico. O
profissional desconsidera as concepções e a realidade do paciente, impondo a ele aquilo que pensa
ser o correto, o que não é seu papel. A função apostólica envolve características históricas de que as
opiniões e conselhos do médico são corretos e inquestionáveis, além de indicar a necessidade que o
médico tem de provar a todos que é um profissional bondoso e bem intencionado em ajudar, ainda
que envolva orientações baseadas no senso comum. Os acadêmicos de medicina em aprendizado da
Semiologia muitas vezes incorrem no erro de praticar a função apostólica por não saberem o que
fazer diante de pacientes que choram ou se queixam de situações trágicas. Cabe aos estudantes
buscarem a tranquilidade de uma escuta atenciosa e não a pressa de falar palavras vagas e muitas
vezes não verdadeiras, como por exemplo dizer a um paciente terminal que ele vai ficar curado de
sua doença.
Outro ponto importante a ser colocado para a compreensão do estudante de medicina é que deve
sempre estar atento à sua própria saúde física e mental. O acadêmico é um profissional de saúde
cronicamente exposto a situações estressoras não apenas em relação às demandas do paciente e do
curso de Medicina, mas também no que diz respeito a relações interpessoais com os membros da
equipe multiprofissional, os professores e colegas [6] [7]. Esse contexto pode resultar em uma
síndrome psicológica descrita no final do século XX, a chamada síndrome de Burnout. A síndrome
reúne os sinais e sintomas relacionados à tríade de despersonalização, exaustão emocional e
diminuição da realização pessoal. As manifestações são orgânicas e psíquicas e incluem cansaço,
desmotivação, irritabilidade, frieza na relação com as pessoas e frustração profissional com falta de
perspectivas para o futuro. A síndrome de Burnout provoca repercussões não apenas no meio
profissional, mas também no convívio do estudante com os familiares, amigos, namorado(a),
acarretando um desajuste completo dos meios social e profissional em que está inserido. Dessa
forma, é importante o desenvolvimento de mecanismos de defesa adequados no intuito de lidar com
os diversos fatores de risco a que o estudante está exposto no cotidiano, objetivando prevenir o
desenvolvimento da Burnout e as manifestações a ela relacionadas [6] [7].
Nesse contexto, o conceito de coping faz-se importante, na medida em que atua como fator de
proteção à síndrome de Burnout. Consiste no conjunto de estratégias utilizadas para que o indivíduo
consiga adaptar-se às situações estressoras. Uma das formas mais conhecidas de coping é a
utilização da comunicação interpessoal objetivando compartilhar com outras pessoas as situações e
sentimentos angustiantes vivenciados pelo profissional durante experiências adversas. Atividades
físicas e de lazer também configuram importantes possibilidades de atuação como mecanismos de
defesa a fatores estressores, atuando como coping [6][7]. Ainda, os chamados Grupos Balint, com
essência semelhante aos seminários de discussão realizados por Michael Balint na Clínica Tavistok,
em Londres, são realizados de maneira curricular e extracurricular em diversas universidades no
Brasil e no mundo, configurando mais uma alternativa de coping para os profissionais de saúde.
Finalmente, é necessário que o estudante de medicina compreenda que se encontra em processo de
aprendizagem. O paciente é capaz de notar quando está diante de um profissional sincero, sendo de
suma importância que o acadêmico reconheça suas limitações e esteja sempre sob preceptoria, para
que possa ter suas dúvidas esclarecidas. Termos como “não sei”, “precisamos estudar melhor”, “vou
perguntar ao professor” são nobres, e ao contrário do que pensa o estudante podem contribuir para
que o paciente não se sinta enganado e tenha uma transferência positiva.
Além disso, o acadêmico irá se deparar com situações de pacientes e/ou acompanhantes hostis, que
deixarão claro não desejarem ser atendidos por estudantes. É um direito que deve ser respeitado, e o
estudante não deve se sentir desencorajado. Pelo contrário, deve encarar esse tipo de adversidade
como uma insegurança inerente a determinados pacientes, talvez um desafio a ser vencido durante sua
trajetória profissional como acadêmico/residente/médico.
Referências bibliográficas
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[2] BRANCO, R. F. G. R. (Org.). A relação com o paciente: teoria, ensino e prática. 1. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan,
2003.
[6] GUIMARÃES, K. B. S. (Org.). Saúde mental do médico e do estudante de medicina. 1. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo,
2007.
[3] KAHN, M. Freud básico: pensamentos psicanalíticos para o século XXI. 1. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
[1] PORTO, C. C. (Org.). Semiologia médica. 6. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2010.
[4] SALINSKY, J; SACKIN, P. Médicos com emoções: identificar e evitar comportamentos defensivos na consulta. 1. ed. Lisboa:
Fundação Grünenthal, 2004.

Gabriela Cunha Fialho Cantarelli


Médica especialista em Clínica Médica. Professora Auxiliar do Departamento de Medicina da PUCGO. Especialista em Docência do
Ensino Superior. Líder de Grupos Balint.

Rita Francis Gonzalez y Rodrigues Branco


Médica graduada pela UFGO. Residência Médica em Cardiologia pela UFGO. Título de Habilitação em Cardiopediatria por Proficiência.
Especialização em Saúde Pública pela UNAERP. Mestre em Educação pela UFGO. Doutora em Educação pela UFGO. Formação para
líder de Grupos Balint: Universidade de Oxford (UK); treinamentos pela American Balint Society em Santa Rosa, Califórnia (EUA), e
Portland, Oregon (EUA). Professora Adjunta do curso de Medicina da PUCGO. Líder de Grupos Balint. Psicoterapeuta de base
Psicanalítica. Membro da American Balint Society. Autora do livro A relação com o paciente: teoria, ensino e prática (Ed.
Guanabara Koogan).

Celmo Celeno Porto


Especialista em Clínica Médica e Cardiologia. Doutor em Clínica Médica pela UFMG. Professor Emérito da Faculdade de Medicina da
UFGO. Professor do Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Ciências da Saúde da UFGO. Membro Titular da
Academia Goiana de Medicina.
Introdução
A relação médico-paciente envolve fenômenos psicodinâmicos quando um indivíduo procura um
médico para um atendimento a qualquer questão relacionada à sua saúde. Essa relação dependerá de
uma gama de fatores psicológicos, que envolve um paciente e as alterações decorrentes de sua
enfermidade diante de um atendimento médico.
Assim, será estabelecida uma relação em que a influência do médico possibilitará ao paciente uma
participação variável, manifestada por uma passividade, uma atitude colaborativa ou uma atitude
ativa. Na primeira, o paciente aceita todas as orientações médicas; na segunda, compreende as
orientações e colabora na sua efetivação; e, na terceira, passa a atuar com o médico na tomada de
decisões.
A relação médico-paciente estabelecida entre os atores dessa relação terá influências no resultado
do atendimento, especialmente no tratamento do paciente, que contará então com um melhor resultado
caso essa inter-relação seja positiva, através de uma maior participação do paciente em querer
realizar as orientações esboçadas pelo seu médico, convicto de que isso será importante para a sua
cura ou melhoria.
Assim, o paciente e o médico estarão diante de um dilema que será favorável a uma maior
participação de ambos, caso essa relação seja mutuamente compartilhada, propiciando uma
satisfação profissional ao médico, que verá o seu paciente empenhado em realizar as orientações por
ele referendadas para uma melhor efetividade de seu tratamento.
O médico bem preparado é aquele que, antes de tudo, está apto ao exercício de seu papel como
profissional médico, humano e racional, que transmite ao paciente os seus conhecimentos de maneira
adequada para uma melhor compreensão do paciente, que perceberá que tudo o que está sendo
transmitido será importante para o melhor restabelecimento.
Ao analisar as informações repassadas pelo seu médico, o paciente certamente poderá ser
favorecido pela melhor compreensão da doença que apresenta, uma vez que esteja convencido do
diagnóstico e então do tratamento. Para tanto, torna-se importante o papel do médico ao atender o
paciente.
Nesse sentido, temos que uma relação médico-paciente positiva, na qual o médico preocupa-se em
atender bem o paciente desde o primeiro contato, na maneira de tratá-lo durante o exame clínico,
especialmente durante a anamnese, com disponibilidade de tempo, certamente terá uma maior
efetividade na aderência ao tratamento por parte do paciente.
O paciente poderá assim experimentar sentimentos agradáveis diante de um componente
inconsciente de transferência positiva, relembrando figuras importantes de seus relacionamentos
primários. Entretanto, haverá situações em que o médico enfrentará resistências por parte de seu
paciente, que de modo inconsciente passa a contestar a autoridade do médico diante de uma
percepção desagradável durante a consulta ou no decorrer do tratamento. [1]
O médico deverá estar sempre atento ao comportamento de seu paciente para evitar situações que
poderão interferir no tratamento. Para isso, deverá compreender a postura do paciente e a forma
como está agindo diante de suas orientações.

Adesão ao tratamento
Podemos definir adesão ou aderência como a utilização dos medicamentos prescritos ou outros
procedimentos em pelo menos 80% de seu total, observando horários, doses, tempo de tratamento.
Representa a etapa final do que se sugere, como uso racional de medicamentos. [2]
Uma definição mais ampla considera aderência como uma conduta do paciente em termos de tomar
medicamentos, seguir as dietas e executar mudanças de estilo de vida coincidindo com a prescrição
clínica, ou seja, aderência não é um problema do paciente ou causado exclusivamente pelos
pacientes. [3]
Aderir ao tratamento significa aceitar a terapêutica proposta e segui-la adequadamente. A adesão à
terapêutica tem sido considerada fundamental para a resolubilidade de um tratamento ou para a
redução do número de hospitalizações.
De acordo com Leite e Vasconcellos, as razões de não adesão ao tratamento medicamentoso são: o
acesso econômico aos medicamentos, o número muito alto de medicações prescritas e o esquema
terapêutico, mesmo quando o medicamento é fornecido gratuitamente, os efeitos colaterais e a
ausência de sintomas em algumas fases da doença. [2]
A análise de quatro décadas de pesquisa sobre a adesão, os seus determinantes e intervenções, bem
como o conhecimento acumulado ao longo dos anos sobre a prevalência da não adesão levaram o
adherence project [10] da OMS (2003) a emitir um conjunto de mensagens ou recomendações com
relevância para a prática dos cuidados de saúde no âmbito das doenças crônicas e que traduzem o
“estado da arte”, no que se refere ao conhecimento e intervenção relativos à adesão ao regime
terapêutico:

a. A não adesão ao regime terapêutico, no âmbito das doenças crônicas, é um problema


mundial de grande magnitude. A mortalidade e morbilidade que lhe estão associadas
atingem valores desproporcionalmente elevados, com graves repercussões na saúde das
pessoas e elevados custos econômicos.
b. O impacto da não adesão aumenta proporcionalmente ao peso das doenças crônicas na
economia global.
c. As consequências da não adesão incluem, além do aumento das despesas, resultados
negativos nos indicadores de saúde.

Alguns pacientes não aderem ao tratamento porque se recusam a aceitar que possuem a doença.
Apesar da importância de aderir, em muitos casos os pacientes não o fazem. Segundo a OMS, “não
há como negar que pacientes têm dificuldade em seguir o tratamento recomendado. A baixa adesão
ao tratamento de doenças crônicas é um problema mundial de magnitude impressionante. A adesão ao
tratamento de longo prazo em países desenvolvidos é em torno de 50%. Em países em
desenvolvimento as taxas são ainda menores”. Além disso, muitos pacientes interrompem o
tratamento de longo prazo de sua doença à medida que ela é controlada. No entanto, essa atitude pode
representar risco à saúde, como o retorno dos sintomas, o aparecimento de complicações e, em
alguns casos, o surgimento de resistência ao medicamento. Segundo a OMS, “melhorar a adesão ao
tratamento pode ser o melhor investimento para gerenciar as condições crônicas de maneira efetiva”.
Um estudo conclui, por exemplo, que a maior adesão ao tratamento da asma entre idosos acarretou
em uma redução anual de 20% nas internações hospitalares entre esse público.
Os benefícios da adesão se estendem aos pacientes, às famílias, aos sistemas de saúde e à
economia dos países. O paciente passa a ter a sua condição controlada, podendo, na maioria das
vezes, manter uma vida normal e economicamente ativa. A família pode se dedicar a outras
atividades e deixar de lado seu papel de cuidadora. O sistema de saúde economiza com a redução de
internações emergenciais e intervenções cirúrgicas, e a economia ganha com o aumento da
produtividade. [5]
O tema é relevante para a prática clínica do médico de família e comunidade, pois se observa que
mais de 85% dos pacientes podem ser não aderentes em algum momento do curso de sua doença. [6]

Que fatores influenciam a aderência a tratamentos medicamentosos?


A realização de aconselhamento por telefone por farmacêuticos e o uso de polipílula para pacientes
com doenças crônicas, em dois anos de acompanhamento, demonstraram redução da mortalidade e
maior aderência ao tratamento. [7]
Mesmo com as evidentes limitações para a generalização, em função de o local de estudo ter uma
cultura muito diferente da brasileira, essa estratégia pode ser útil em casos selecionados. O uso da
associação medicamentosa comprovou que pode minimizar a não aderência, pois reduz o uso de
múltiplos medicamentos em variadas doses. [6]
Utilizando a escala ROMI (Rating of medication influences ou Escala de influências em
medicações), demonstrou-se que a “percepção de benefício diário” foi o fator mais associado à
aderência, e o sentimento de “desconforto por efeitos colaterais” estava mais associado à não
aderência. Em pacientes com esclerose múltipla, observou-se a mesma relação de não aderência com
presença de efeitos colaterais dos medicamentos utilizados. [8]
Ao estudar pacientes em uso de anti-hipertensivos, sugere-se que o médico deve abordar os efeitos
colaterais. Mesmo que o paciente não expresse espontaneamente, o emprego da expressão efeitos
palpáveis pode facilitar a comunicação entre ambos. Além disso, o médico deve reforçar os efeitos
benéficos dos tratamentos, mesmo quando surgem efeitos colaterais. Esses efeitos não devem ser
minimizados, mas se deve demonstrar que é um dos indicadores do efeito do tratamento, pois para o
paciente indicam que o tratamento está dando resultados. [9]
Opção semelhante é o método SIMPLE, a partir de revisão narrativa, que sugere o uso de
abordagem combinada para melhorar a aderência. Para facilitar o acompanhamento, elaborou-se o
seguinte acróstico:
S Simplificar o regime terapêutico
I Intensificar a oferta dos seus conhecimentos sobre a condição do paciente
M Modificar crenças e mitos
P Promover a melhoria da comunicação com pacientes e familiares
L Levar em consideração aspectos demográficos
E Evolução da aderência
Sugere-se aplicar a escala ROMI periodicamente, já validada em português pelos estudos de Rosa
e colaboradores. [10] Ela pode ser aplicada pelo próprio médico e está dividida em duas partes. A
primeira é semiestruturada e aborda questões sobre o estilo de vida, local do tratamento, regime
medicamentoso prescrito, atitude do paciente perante o tratamento, postura da família diante da
condição clínica e tratamentos e orientações indicadas.
A segunda envolve questões sobre as razões de aderência ou não aderência. Ambas as seções
iniciam com uma questão aberta como “Qual a sua motivação primária para tomar a medicação?” ou
“Qual a sua motivação primária para não tomar a medicação?”. Na sequência, as seções apresentam
uma escala de motivos para tomar ou não a medicação. O paciente atribui um grau de influência, ou
um “peso”, para cada item: “nenhuma influência”, “moderada influência” ou “forte influência”,
pontuando-se respectivamente com 1, 2 ou 3 e 9 (o 9 é para o caso de não ser possível avaliar o grau
de influência do item).
Conclusão
A aderência ao tratamento depende de inúmeros fatores e tem sua maior efetividade por meio de uma
relação médico-paciente que incentiva o paciente a perceber no seu médico uma figura preocupada
com o seu bem-estar, por meio de uma postura empática, reconhecendo as necessidades do paciente,
bem como anseios, angústias e temores. Por fim, o médico transfere ao paciente uma segurança que
gera um sentimento de que tudo está sendo feito para o seu restabelecimento.
Referências bibliográficas
[5] ADESÃO ao tratamento. Disponível em: <http://www.novartis.com.br/_saude/Apoio/adesao.shtml>. Acesso em: 7 ago. 2014.
[9] BENSON, J.; BRITTEN, N. What effects do patients feel from their antihypertensive tablets and how do they react to them?
Qualitative analysis of interviews with patients. Fam Pract, n. 23, p. 80-7, 2006.
[11]
DEVONSHIRE, V.; LAPIERRE, Y.; MACDONELL, R. The Global Adherence Project (GAP): a multicenter observational study
on adherence to disease – modifying therapies in patients with relapsing remitting multiple. European Journal of Neurology, 2011.
Wiley Online Library.
[3] GARCIA, Rigueira A. I. Cumplimiento terapêutico: qué conocemos de Espanã. Atencion primária, Barcelona, v. 7, n. 8, 15 maio
2006.
[2] LEITE, Silvana Nair; VASCONCELOS, Maria da Penha Costa. Adesão à terapêutica medicamentosa: elementos para a discussão
de conceitos e pressupostos adotado na literatura. Ciência, saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 8, n. 3, 2003.
[6] O’CONNOR, P. J. Improving medication adherence: challenges for physicians, payers and policy makers. Arch Intern Med, n. 166,
p. 1802-4, 2006.
[1] PORTO, Celmo Celeno. Semiologia Médica. 6. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2009.
[10] ROSA, M. A.; MARCOLIN, M. A. Tradução e adaptação da Escala de Influências Medicamentosas (ROMI): um instrumento para
avaliar a aderência ao tratamento. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, n. 10-12, p. 405-412, 2000.
[8] ROSA, M. A.; MARCOLIN, M. A.; ELKIS, H. Avaliação dos fatores de aderência ao tratamento medicamentoso entre pacientes
brasileiros com esquizofrenia. Revista Brasileira de Psiquiatria, n. 27, p. 178-84, 2005.
[7] WU, J. Y.; LEUNG, W. Y.; CHANG, S.; LEE, B.; ZEE, B.; TONG, P. C. et al. Effectiveness of telephone counselling by a
pharmacist in reducing mortality in patients receiving polypharmacy: randomised controlled trial. BMJ, n. 333, p. 522, 2006.
[4] ZAGO, Ana Carolina. Adesão ao tratamento medicamentoso dos usuários dos CAPS em Pelotas, RS, com transtornos de
humor e esquizofrenia. 2009. 56 f. Dissertação (Mestrado em Saúde e Comportamento). Universidade Católica de Pelotas. 2009.

Luiz Antônio Fruet Bettini


Professor Adjunto de Clínica Médica e Semiologia da Universidade Positivo. Mestre em Cardiologia pela UFPR. Professor de
Semiologia I e II do curso de Medicina da UFPR.

Semi Haurani
Especialista em Medicina Interna e Cardiologia. Mestre em Cardiologia. Coordenador do Programa de Internato no Departamento de
Clínica Médica da UFPR.
É rotina na vida de um médico frequentar uma UTI, mesmo não sendo sua especialidade. Atender a
pacientes internados, visitar pacientes, familiares e amigos faz com que você, atento, entenda a
dinâmica que envolve esse setor. A vida e a morte em constante confronto. Mal sabia eu que logo
estaria em uma UTI.
Fazemos da vida como se estivéssemos em um trem em alta velocidade, moderno, perfeito, envolto
em altas tecnologias, a paisagem passando pela janela em estonteante rapidez, sem que atentemos
para os detalhes, as cores, os contornos e a vida que corre lá fora. Estamos muito mais voltados para
nossas próprias coisas, para nossa própria viagem, focados em nós mesmos, em atingirmos objetivos
pré-traçados, alguns sem lógica alguma, numa correria sem muito sentido.
Parece que tudo isso nós já sabemos, porém negamos. Acreditamos que temos que fazer tudo, sem
tréguas e pronto. O estresse tornou-se nossa dependência. Sem ele tudo parece não ter muito sentido.
“O que conta é a adrenalina”. E a vida segue. Num dia pacato, sereno e tranquilo, num repente, como
se parado instantaneamente por uma força descomunal, o trem estanca.
O tempo parece parar. Não há barulho algum, nem choro, nem desespero, mas sim uma indescritível
sensação de que algo de muito grave está em evolução. Um leve desconforto gástrico, azia talvez?
Sim, nada mais sério. Mas e as gotículas de suor na testa em um dia de frio? Talvez o esforço de
brincar com o neto? Talvez. As perguntas são muitas e as respostas, difíceis.
E o crescente aperto no peito, indescritível, soturno, quieto, opressivo, amedrontador. A lembrança
que assoma à mente é a descrição do meu professor de cardiologia, que relatava o momento de
enfarto como num dia de céu azul e limpo. Um raio cai sobre seu peito, rasga-o e uma poderosa mão
de aço o aperta sem piedade. A imagem que assume a consciência é a de um elefante sentando em
meu peito, e penso: “Que merda, estou enfartando!” Eu não sabia que o trem veloz que me levava
transportava também um elefante. Eu nem tinha percebido o circo...
O que fazer? Como agir?
Volta a dúvida que tenta esconder a verdade. Não deve ser nada. O raio caiu mesmo. É tudo.
A opressão no peito é contínua, o suor aumenta, respirar só superficialmente, o suspiro não alivia,
nem tampouco a tosse... Que falta nos faz o oxigênio!
Então, a certeza assume o espetáculo. Está deflagrada a guerra entre Tanatos (a morte) e Eros (a
vida). Medo? Não há tempo para sentir! O seu psiquismo muda radicalmente, as percepções são um
tanto confusas, irreais, contrastando com a realidade. Um sentimento estranho de solidão. É você e
seu corpo. Nada mais. Nesse momento impera a absoluta incerteza. Uma esquisita sensação de que a
luta é somente sua, solitária e é quem vai determinar as ações seguintes. De maneira fria e calculista
vem o apelo: “Filho, leve-me ao hospital que estou infartando.”
Ele não duvida. A fotografia devia estar assustadora. A negação funciona, não para mim, mas para a
família. Ninguém aceita um pedido desses, facilmente. Mas, pelo que viram, o crispar das mãos, a
sudorese e a mudança da cor e a súplica, começa a corrida. Agora pela vida. Tanatos e Eros estão
empatados. No carro, ora suplicando pressa, ora pedindo cautela, tudo parece muito distante. O
pensamento, tentando driblar a dor, também acelera. Tenho dúvidas. Muitas. Um pensamento
ridículo: “Pô, não posso morrer, pois nem me despedi da família, meu!”
Como o tempo é relativo. O que pareceu uma eternidade na realidade foram alguns minutos até
chegar ao hospital. A rapidez do atendimento, desde a chegada à emergência até a mão quente e
tranquilizadora de um membro da equipe de atendimento já é a primeira “medicação”. A primeira
avaliação ainda na cadeira de rodas confirmou: é infarto! Nesse momento, o que poderia ser meu
erro de avaliação teve sua confirmação oficial. É inacreditável que, mesmo sendo médico, a
expectativa era de não ouvir este diagnóstico. O que nos matam é a racionalização e a negação. A
recusa de nosso psiquismo em aceitar a verdade. Novamente a sensação ambivalente. É como a
“briga”, mas agora tenho ajuda. Serão dois contra Tanatos. Incontinenti, peço ajuda aos céus.
“Nossa Senhora da Luz! Fica aqui comigo. Não me abandone AGORA, estende teu manto, abriga-
me!”, rezei, no meio da dor. Interessante esse momento. O sentimento de que a sua crença em um
poder superior descortina a você uma força que até então não tinha sido percebida. É irreal estar
deitado, olhando as luzes acima de você tal qual tantas vezes assistimos nos filmes. Aquilo não era
filme! Era verdade, e o artista principal era eu.
A entrada da equipe médica, a precisão da movimentação da enfermagem ao meu redor, os
procedimentos, e um agradecimento pela rapidez da chegada e uma súplica, “arranca de mim esta
dor”. Tal qual uma orquestra afinada, o espetáculo se desenrolando à minha volta, trouxe-me o alívio
da dor maior. Assistir a todo o procedimento, vendo nervosos cateteres buscando a lesão, numa
contemplação estranha é, no mínimo, surreal. Meu coração sendo invadido e eu nem aí! Nem penso,
observo. Não há medo, é tudo muito rápido, o mundo fora de você não tem muita importância. O
importante é cada segundo que se passa dentro da sala e dentro de meu peito. Penso, estou negando?
Estou dissociando, isso não é comigo. Entendo melhor, na prática, o que são mecanismos de defesa
psicológicos. Aquele órgão pulsante no monitor será mesmo o meu? Sim, desaba a realidade sobre
mim. É o meu coração. Novas preces. Que aconteça o melhor! Aí, as palavras esperadas: “OK,
terminamos, correu tudo bem!”
Que calma absurda. Dá para acreditar no que aconteceu? Comigo? Médico é imune ao sofrimento
de estar doente? Não, não é. Por alguns segundos fico sozinho na sala. Aí então penso: e a minha
família, como estará? Já sabem o que aconteceu? Então pela primeira vez eu chorei. Não por mim,
mas por eles. Tempo para minha mente sair em disparada. E agora? Como? E eu me assusto! Correr,
não quero mais! Eros acaba de marcar um gol. Porém, o segundo tempo está para começar. E você
mergulha em um verdadeiro turbilhão de emoções. Tenho mil coisas a fazer! Segura, peão. O elefante
acabou de sair de seu peito. Não se esqueça de que ele deixou a sua marca. Sua vida agora muda?
Seu status muda? Sua rotina muda? Seus medos mudam? Sou resgatado pela realidade novamente. O
convite para passar para a maca e irmos à UTI. Palavra que nunca assustou, passa a ser assustadora.
Lembranças das vezes em que acompanhamos pacientes e familiares a esse local de luta pela vida.
Eu lá. Nunca tinha imaginado. Ou sabia, talvez, que um dia...
Agora, com uma calma estranha, inicia-se a ida ao “centro”. Deitado, atento aos movimentos da
maca, as luzes passando sobre mim, tal qual em muitos filmes. Penso, que importante essa dança das
luzes sobre mim. Corredores, elevadores... Lembro-me de William Hurt no filme “Um golpe do
destino”. A mudança de status! Sim, de médico à condição de paciente. Diferente, para não dizer
estranho. Nada mal! Vamos aprender algumas lições, certamente. E elas começam imediatamente.
Tubos, conexões, fios, monitores, aparelhos, picadas, apertões, tudo acontecendo como se numa nave
espacial. Sinto-me um astronauta.
Que viagem! Penso muito. Em tudo que deixei para trás. Minha esposa, meus filhos e meus netos. Já
estou com saudades. Não tenho nenhuma possibilidade de ouvi-los. À enfermagem uma chantagem:
“Meu reino por um celular, senão serve meu notebook.” Nada. Tudo gentilmente negado por um
grupo de jovens enfermeiros e auxiliares, incrivelmente afetivos, humanizados, conscientes do local
em que trabalham. Meu elo de contato com o exterior, neste momento “sem conexão”. E aí, a rotina
diária, repetitiva, enfadonha. Olhar para o teto e pensar. Pensar e pensar. Lembro-me da música: “Vá
pensamento...”, é Verdi? Não tenho certeza. Mas o que importa? Pensar é um ato de bravura, mesmo
porque tudo que você planeja não vai acontecer. Pelo menos, enquanto durar meu isolamento. O
relógio na parede segue seu ritmo. Mas eu duvido que as pilhas sejam novas. Devem estar fracas. O
tempo não passa! Quero que corra! Não, não! Devagar, creio que aprendi a lição. Será que acredito
mesmo, ou estou tentando ser bonzinho? Bem, o tempo dirá. Esperemos. Aí, palavras mágicas. Aliás,
onde estou é pleno de palavras mágicas!
Visita! Deus, como esperei este momento. A família entra. Que situação! Que estranho. Há menos
de um dia tudo era diferente! Agora, uma sensação jamais experimentada. O calor do beijo, das
mãos, aquece a alma. Não há lamentos, nem queixumes. Somente a aceitação passiva da realidade
dos fatos. O agradecimento conjunto à ajuda dos céus. Novamente a ela, Maria, a Boa Mãe! Algumas
diretrizes são dadas, comandos. Indispensáveis. Avisar pacientes, amigos no local de trabalho. A
mesa de trabalho entulhada de documentos para serem processados, lidos, encaminhados. Nada
disso! Para tudo. O alvo sou eu, minha recuperação.
Relógio desgraçado, só corre na hora das visitas. Acabam rápido demais! Quero mais tempo!
Sossega, leão! Não aprendeu a lição? E o relógio volta ao seu enervante ritmo lento. As horas agora
passam a ser contadas de forma diferente. Quanto tempo falta para novas visitas? E assim passam os
dias.
Se pensamento tivesse peso, certamente eu ganharia uma fortuna vendendo-os. Promessas internas,
resoluções, intenções, ideias novas, outras requentadas, partes de um novo começar.
E a massacrante rotina continua. E aquele trem? O que foi feito dele? Dane-se. Não quero nem
saber. O que imagino agora é um carro de boi. É este que me conduzirá daqui para frente. Ops... Será
mesmo? Mentira, estou fazendo média, comigo e com a família. Terei outro ritmo. Não do veloz trem,
mas um que permita que eu permaneça vivo, que é o que realmente conta!
Com essas reflexões em pleno andamento e já habituado ao espaço onde estou confinado, ouço
novas palavras mágicas. “Sai hoje da UTI, vai para o quarto e amanhã... casa!”. Poucas pessoas já
experimentaram esta sensação. Ir para casa, voltar ao seu espaço, aos ruídos, aos cheiros que eu
conheço. Penso: “Arre, escapei desta! Obrigado, Senhor.”
A saída do hospital é outro grande momento. Um ato tão banal, mas ao mesmo tempo tão
emblemático. Quem está saindo é alguém muito diferente de quem entrou. Levo na bagagem tudo
aquilo que vivenciei, que pensei, que orei e que chorei. Essa lição não é para ser esquecida.
E não será! O tempo confirmará.
E o elefante? Ah! Este jamais poderá ser perdido de vista. Dependendo de mim, no meu peito ele
não senta mais!
Retornar à vida normal é uma nova experiência. Enxergamos o mundo de outra maneira.
O modelo de vida anterior a tudo isso é revisto. Restabelece-se a autoconfiança. Na reconsulta, após
alguns dias, nova experiência. Após o exame físico, avaliação dos exames laboratoriais, de uma
maneira empática, serena e assertiva, o cardiologista confirma outro diagnóstico: obstrução arterial
grave. Opções: tratamento clínico ou cirúrgico. Opto com muita angústia pelo procedimento
invasivo. Intensas emoções ressurgem com os medos e ansiedades, já velhos conhecidos. A postura
do cardiologista, empática e serena, decidida em seus movimentos, foi decisiva para enfrentar esse
momento crucial. Ter confiança no médico é absolutamente decisivo para o enfrentamento.
A partir daí, a verdadeira experiência de ser paciente. Chegar ao hospital para os procedimentos
burocráticos é embaraçoso. Constrangedor para quem sempre esteve do outro lado da recepção. A
entrada no quarto em companhia da família gera uma estranha sensação de solidão, incerteza,
parecendo algo irreal e absurdo. Muitas dúvidas, perguntas que necessitam de respostas imediatas,
mas não as tenho. A enfermeira transmite as orientações iniciais sobre quais procedimentos serão
executados. Troco de roupa, visto o pijama e me torno paciente. Estar doente implica em
insegurança, impotência, sentimentos de perda, insights que nos remetem à infância. Tudo é
problemático e incerto.
A partir desse momento até o dia da alta, um novo mundo abriu-se à minha frente. Começa com a
tricotomia. Ato banal da enfermagem que se transforma no primeiro momento de outros
absolutamente constrangedores que serão vividos. Ficar nu, em pé, no meio do quarto. Estar despido
a princípio é embaraçoso e absolutamente desconfortável. A partir de então, mesmo tendo pudores,
você se habitua a estar nessa situação nas várias ocasiões de invasão à sua privacidade. Sendo
assim, para qualquer um, mesmo doente, estar despido pode significar desconforto e embaraço. É a
atitude profissional e empática que torna possível a superação dessa experiência.
Enfim, assim é e assim será. A chegada do técnico para coleta de sangue representará, a partir daí,
mais sofrimento. Dores desconhecidas, até então, farão parte da rotina durante o internamento. Coleta
de sangue arterial, anticoagulantes, angina, levam-me de imediato à UTI. Sedado, não participo das
ações pré-cirúrgicas. Acordo cinco dias depois, sobrevivente de um tamponamento cardíaco,
experiência de sair do corpo e coma. Nenhuma lembrança, nenhum medo, apenas o despertar confuso
e desorientado no tempo e no espaço. A família em torno é uma linda e tranquilizadora visão.
Desde a academia, raramente os jovens médicos aprendem a importância do trabalho conjunto com
a equipe de enfermeiros, auxiliares, técnicos, etc. Considerados como “concorrentes” no atendimento
ao paciente, deixam de merecer o devido respeito. A convivência maior durante todo o tempo de
internamento é com essas pessoas. Profissionais responsáveis, éticos, afetuosos, pacientes, mantendo
as rotinas e o funcionamento deste espaço o menos traumático possível ao doente, que vê o
enfermeiro como o seu depositário de medos, ansiedades, dúvidas, receios. Toda a gama de
sentimentos é repartida com o enfermeiro. O médico, por sua rotina diária, necessitando visitar os
pacientes sob sua responsabilidade, não pode arcar também com um contato mais prolongado com o
paciente. As visitas tendem a ser técnicas e objetivas, não dando ao paciente tempo suficiente para
atender seu sofrimento emocional.
A perspectiva que o paciente tem da movimentação na UTI faz com que sua atenção esteja focada
em todos os detalhes do que se passa a sua volta. Fica-se hipervigilante. Cada ruído, passos,
movimentos em torno, pessoas murmurando parecem ameaçadores. Entende-se então a dimensão
exata da responsabilidade dos funcionários desse setor. Atender às solicitações incessantes dos
pacientes exige empatia, serenidade e profissionalismo. A rapidez de ação em situações de
emergência lembra o pit stop em uma corrida. Quando você ocupa o leito, um sentimento muito
especial toma conta de você. Estar ali junto com outros pacientes, com os quais você não se
relaciona e que não conhece, desperta um sentimento de que estamos juntos numa “corrente” em prol
da sobrevivência.
A mudança de status é significativa. De profissional que cura agora você se transformou em alguém
a ser cuidado. Suas percepções tornam-se muito mais acuradas. É perfeitamente possível identificar
as modificações psicológicas que estão acontecendo. A visão a partir do leito com outros pacientes
sofrendo tira do médico a possibilidade de sair de onde está para ajudar o outro. É frustrante. Essa
experiência vivida mais as lições tiradas de todos os momentos resultam em uma alteração drástica
da forma como você passa a ver a sua vida e a própria medicina. A paciente que estava no box ao
lado do meu, senhora idosa, em coma há várias semanas. Não conhecia nada sobre ela, nem mesmo
sua voz ou cor dos seus olhos. Quando soube que ela tinha falecido senti como se tivesse perdido
alguém muito querido. A falta sentida me fez chorar. Senti-me por alguns dias em luto. Muito a
refletir sobre esse sentimento!
Porém, não podemos negar que estar numa UTI implica também em muito “trabalho” para o
paciente aguentar o correr das horas de um dia. Por exemplo: a alvorada festiva (perder o bom humor
nestas circunstâncias piora o sofrimento). A alvorada começa bem cedo com eletrocardiograma,
radiografia, às vezes tomografia, coleta de material, picada da glicemia, troca de veias, gotejamento
endovenoso, medicamento via oral, nebulização, banho no leito, de cadeira depois no chuveiro,
curativos, fisioterapia respiratória, monitoramento cardiorrespiratório, visita do médico e, em algum
intervalo, café da manhã.
No período da tarde é esperar o tempo passar: a paciência, o pensar em tudo, o pensar em nada,
orar, as reflexões, o planejar do estar sozinho, a espera pela família, nada alivia as tensões desse
período do dia. Atrelado a um leito em decúbito dorsal, praticamente sem se movimentar grande
parte do dia, alternando com o sentar na poltrona é outra experiência dolorosa. Você sente saudades
do que seja uma verdadeira poltrona.
É estudando o que é vocação que se entende o que é ser enfermeiro nos momentos da hora dos
banhos, dos curativos, do controle do gotejamento de soros, do atentar para os dados vitais e do
participar dos momentos críticos para o paciente que é a sua higienização depois de idas ao
banheiro. A higiene da área genital e perineal são igualmente desconfortáveis. A exposição de sua
intimidade gera ansiedade e desconforto. Em momento algum essa atividade da enfermagem é aceita
naturalmente.
Os primeiros banhos no leito são vividos de maneira estressante: a exposição de sua nudez e a
autoestima baixa são constrangedoras. Adapta-se a isso com certa facilidade. Mas, na etapa seguinte,
o que já foi superado em termos de banhos recrudesce no banho na cadeira. Experiência muito
estranha. Mas, finalmente quando se vai ao banho no chuveiro, tudo é deixado para trás.
Não podemos esquecer que a parceria com a enfermagem é que possibilita a transmissão de
informações decisivas percebidas durante o plantão às quais o médico jamais teria acesso que não
pelo diálogo paciente com os enfermeiros.
Nenhum funcionário em contato com o paciente é dispensável. Nutricionista, fisioterapeuta,
higienizadora estão fazendo parte dos “invisíveis”, aquelas pessoas nas quais prestamos pouca ou
nenhuma atenção. Foi com uma higienizadora que aprendi muita coisa sobre a doença, sobre o
sofrimento e sobre a sua responsabilidade na evitação das infecções hospitalares. Também nela
identifica-se a forma humanística com a qual desenvolve seu trabalho.
Estar internado com dores, angústias, incertezas dá a sensação de desgoverno total de sua vida.
Mesmo a autoestima e a autoimagem tão cultivadas durante a vida nessa fase tendem a desesperá-lo.
Nenhuma frase de efeito, nenhum estímulo é maior do que você redescobrir a fé. Orações passam a
ser sua tábua de salvação. Saber que oram por você fortalece seu espírito e lança-o à luta com muito
mais confiança. Acreditar que você não está sozinho e que um Poder Superior, conforme cada um o
concebe, é um verdadeiro bálsamo. Ter fé nesses momentos, além da sensação quase física da
presença deste Poder, embala você em expectativas de um bom fim, seja ele qual for, além de ocupar
sua mente e seu coração, aliviando-os da constante tensão das incertezas, descortinando à sua frente a
esperança. O entendimento da fragilidade da vida, da imperiosa necessidade de lutar por ela em um
ambiente em que a morte ronda a todos tem que ter por parte de nós, médicos, a compreensão de que
as crenças do paciente fazem parte de seu arsenal de sobrevivência. Falar sobre fé e a importância
das orações não fragiliza nem expõe o médico, mas sim o humaniza. Saber que médico professa
alguma fé e assim se declara permitindo um diálogo dá a sensação de que ele está mais perto de você
e é capaz de entendê-lo melhor.
Entre todas as emoções sentidas, a relação de você, médico, com os colegas é a mais emblemática.
Estar na posição de paciente exige, sem exageros, uma nova reprogramação psicológica. O que
sempre foi lado a lado com um colega passa a ser “do outro lado da mesa”. Não é fácil assumir o
papel de paciente. A fragilidade vivida intensamente pelo paciente faz com que mínimos gestos
passem a ter uma importância fundamental. Por exemplo: um cumprimento, identificar-se para o
paciente, demonstrar interesse não só em relação às queixas ou ao estado clínico, mas também em
relação ao seu quadro emocional. Ser empático, colocando-se na posição do paciente, possibilita aos
profissionais entenderem que aquele atendimento tão rotineiro é para ele uma nova experiência
perturbadora, mesmo que ele já tenha tido outros tratamentos anteriormente. Toda situação nova gera
ansiedade.
Receber as explicações de como estão seus exames, suas imagens, as explicações sobre quais serão
os passos a serem seguidos gera muitas expectativas. Fazer perguntas, dirimir dúvidas é feito de
modo mais cauteloso. A terminologia usada não é a da minha especialidade. Nesse momento
consolida-se a relação de confiança do paciente com seu médico.
A prévia já havia acontecido quando da escolha do profissional para o qual, sem querer ser
dramático, você se entrega literalmente. Você entrega nas mãos do cirurgião sua vida, seu coração. A
rotina diária não permite ao médico, qualquer que seja sua especialidade, perceber o quanto de
sagrado existe na relação médico-paciente. Ser médico não é para qualquer um. Temos que atender
ao chamamento (nossos componentes emocionais, racionais, irracionais, idealizações, espirituais e
outros), que é a nossa verdadeira vocação.
Para um médico psiquiatra, “estar paciente” é uma grande oportunidade de entender melhor como
funciona essa relação. A busca incessante nos contatos pessoais é a compreensão e a interpretação
do que é dito e principalmente do que não é dito. É fácil perceber, creio que mesmo para um leigo, a
quantidade e a intensidade das emoções que estão permeando uma relação. Identificam-se claramente
as dificuldades de outros médicos no relacionar-se com o colega doente. É muitas vezes embaraçoso
estarmos diante de um colega que necessita de seus cuidados. Entre os médicos mais jovens esse
comportamento é percebido muito mais facilmente.
Fato que merece também alguma consideração é a comunicação da alta. Nós, médicos, não temos a
percepção clara da importância do momento em que é comunicada a alta. Essa palavra mobiliza uma
torrente de sentimentos. Por mais paradoxal que possa parecer, abandonar esse local protegido, com
atenção permanente, pela volta para casa, gera medo. Abre-se um questionário angustiante. Estarei
seguro em casa? Serão os atendentes capazes de identificar alguma ocorrência clínica tardia? Estará
o médico disponível para uma consulta, mesmo que pelo telefone?
Finalizo com algumas reflexões. A experiência vivida “do outro lado”, pessoalmente ou como
profissional e professor, será levada até o fim de minha vida. Descubro como paciente que parece
haver outra medicina além daquela que praticamos. Fica muito claro o quanto precisamos, numa era
altamente tecnicista da medicina, resgatar o que parece não ser tão importante nos dias de hoje, que é
a relação médico-paciente. Precisamos resgatar o nosso papel de sacerdotes, interessados,
empáticos, humanos. Humanização não é resolução, lei ou norma a ser seguida. Não se aprende
humanização em palestras, seminários. Humanização é atitude. É o reconhecimento piedoso da
importância e da responsabilidade de merecermos a confiança inabalável de uma pessoa em busca de
nosso socorro.
Enfim, passar por tudo o que passamos no decorrer de nossas vidas exige que aprendamos algumas
lições. Eu aprendi muito. Sou outra pessoa e outro profissional. Pratico outra medicina.
Dagoberto Hungria Requião
Médico especialista em Psiquiatria. Professor de Psiquiatria da Escola de Medicina da PUCPR. Assessor da Pró-Reitoria Comunitária
da PUCRPR na implantação do Programa de Qualidade de Vida. Diretor da CIPAE – Consultoria e implantação de programas de
prevenção de drogas e desordens emocionais em empresas e escolas. Ex-presidente da ABEAD (Associação Brasileira de Estudos
sobre Álcool e Outras Drogas), atual membro de seu Conselho Consultivo.
No final da década de 1980, então Coordenador do curso de Medicina da UFPR, observei na
interação com alunos, professores e egressos uma insatisfação generalizada com o currículo do curso
de Medicina da UFPR, tanto interna quanto externamente à Universidade.
Na época, numa reunião entre Ângelo Luiz Tesser, Sergio Zuñeda Serafini, Roseli Boerngen
Lacerda e demais membros do colegiado do curso de Medicina, além de outros professores
interessados em modificar aquela realidade, solicitamos a orientação da Pró-reitora de Graduação,
pedagoga Maria Amélia Sabagg Zainko.
Foi elaborada uma pesquisa com alunos, professores e egressos e confirmou-se a enorme rejeição
ao currículo da época, que era constituído por mais de 80 disciplinas ofertadas de maneira
desintegrada, intensamente teórica e superespecializada.
Após discussões com os componentes do colegiado do curso foi proposta a realização de uma
pesquisa-ação, tendo sido convidados grandes expoentes das mais diferentes concepções
curriculares para proferir palestras a professores e alunos acerca das diversas concepções
curriculares.
As palestras foram gravadas e transcritas para todos os professores e alunos, para que tomassem
ciência das várias concepções e optassem pela proposta de reforma curricular que melhor atendesse
à opinião da maioria dos participantes do projeto da reforma curricular. Foi elaborado um
questionário para ser respondido pelos alunos, professores e egressos.
A análise das respostas ao questionário produziram princípios norteadores para a reestruturação do
currículo, princípios estes que passaram a balizar as discussões com as diversas áreas da formação,
disciplinas e departamentos.
A produção e discussão desses princípios tiveram um duplo significado, pois se constituíram em um
instante privilegiado de avaliação diagnóstica do curso e da própria perspectiva de trabalho.
Objetivamente, na ótica dos docentes e discentes foi importante como guia das reflexões diretamente
ligadas ao curso e, concretamente, no próprio Grupo Gestor da Pesquisa, pelas respostas à constante
necessidade de análise, problematização e sistematização da diversidade de elementos que se
incorporavam à proposta de intervenção curricular. Foi um profundo e rico debate pedagógico, em
que as concepções de médico e de seu processo de formação se evidenciaram.
Tanto os momentos de concordância quanto os de recusa – acerca da proposta – constituíram-se na
instância de explicitação de uma situação contraditória, que é própria da natureza e da especificidade
de uma comunidade educativa.
O Grupo Gestor da Reforma Curricular apresentou sugestões para atender a demanda referida e
elaborou um conjunto de princípios filosóficos, dos quais se identificavam predominantemente:

A definição do profissional a ser formado: com características de Médico Generalista, isto


é, capacitado a atuar de maneira abrangente em todas as fases do processo saúde-doença,
reconhecendo aspectos biológicos, psicológicos e sociais.
A terminalidade do curso: ao término do treinamento o médico deverá ter condições de
atuar com resolutividade e eficiência em problemas prevalentes de saúde, devendo ter
garantida a continuidade desse processo educacional através de iniciativas pessoais e
institucionais.

Os demais princípios indicavam formas para se atingir os filosóficos.


O Grupo Gestor da Reforma, seguindo esses princípios, enfrentou os impasses surgidos,
reavaliando as questões e sempre se norteando por uma ampla consulta, acatando e incorporando as
sugestões criativas que apresentavam vantagens na aplicação teórico-prática.
Como exemplo de propostas de modificação do currículo, nos ateremos à disciplina de
Propedêutica Médica, que foi integrada por professores da Propedêutica e Psiquiatria e incluído o
tema relação médico-paciente e relação do estudante de Medicina com o paciente.
O Professor Antonio Villela Lemos, da Psiquiatria, foi incorporado ao corpo docente, participando
então de reuniões de grupo para discussão de temas da relação médico-paciente e relação estudante
de Medicina com o paciente. Posteriormente, foram incorporados os psiquiatras Jaime Bieler,
Luciano Souza e Maria Lucia Bezerra.
O primeiro texto a ser oferecido aos alunos e depois discutido entre eles e o professor foi A
vulnerabilidade do estudante de medicina. [1]
O texto traz a experiência de Lorin L. Stephens, que foi um médico ortopedista e professor da
Universidade do Sul da Califórnia, sendo muito estimado e considerado não só como profissional,
mas principalmente como educador médico.
Do seu relacionamento estreito com estudantes de medicina e com médicos, desenvolveu um
conhecimento amplo que lhe possibilitou uma visão particular de uma filosofia para a educação dos
futuros médicos que seguramente influenciou muitos educadores, médicos e estudantes de medicina.
Neste artigo foram apresentadas as suas ideias acerca das possíveis vulnerabilidades pessoais do
estudante de medicina, durante os anos de profissionalização.
Stephens considerava o curso médico como uma experiência forte, emocionalmente perturbadora
“pela qual os estudantes passam”, com pouco ou nenhum apoio formal ou informal dos professores e
dos próprios colegas do curso.
Para alguns é compreensível esse tipo de comportamento, pois “a única e justa” preocupação é
aquela que é direcionada à aquisição de novos conhecimentos e habilidades técnicas, em detrimento
de qualquer ideia que priorize também a formação individual e pessoal. É fato conhecido que nos
anos iniciais da transição intelectual do estudante, de uma situação leiga para a de médica, ele irá se
deparar com tabus e com muitas situações que são potencialmente traumáticas, e que poucas
oportunidades são oferecidas durante o curso para que possa pensar, falar e discutir sobre essas
questões.
A realidade, infelizmente, é que todos agem como se as experiências pessoais do estudante e do
médico não fossem importantes. Logo, esses assuntos não devem ser abordados para não distraí-los
do seu trabalho fundamental: o cuidado com o paciente!
Evidentemente, é fácil perceber que esse tipo de atitude representa a negação da existência de
sentimentos na pessoa do estudante. E, quando um determinado aluno ousar falar dos seus
sentimentos para um membro do corpo docente do hospital, ou até para um colega seu, será julgado
como “diferente, imaturo e inadequado” para o exercício da medicina. A melhor opção passa a ser:
nada a comentar. Silenciar! Stephens pensava que essa situação particular era estabelecida por um
acordo informal, como se fosse um pacto não-verbalizado, não-falado, e denominou essa situação de:
“A conspiração do silêncio”! É evidente que esse silêncio não é pacífico como parece ser. Produzirá
desdobramentos que afetarão as reações e posturas do estudante e que se refletirão no seu
relacionamento com os pacientes.
Por afinidade com este texto, entendendo que isso é muito importante para os alunos de graduação
de medicina durante o processo de profissionalização na área de saúde é que resolvemos ampliar as
discussões em grupo para os seguintes temas:

Morbidade e Mortalidade
Tipos de identificação (Empatia, Transferência, Contratransferência e Desumanização)
Responsabilidade
As manifestações do inconsciente
Importância dos fatores biopsicossociais.

Após a incorporação do professor Jaime Bieler, foi iniciada a discussão sobre a escolha da
profissão médica e escrevemos um texto sobre esse assunto.
A escolha de uma carreira é um processo que ocorre durante certo período de tempo, e a decisão
implica na conscientização da necessidade de decidir, isto é, de coletar informações, identificar
opções e depois entrar em ação para implementar a escolha desejada.
Ela resulta de uma sequência regular ou irregular de modificações da pessoa e do sistema de
imagens com que se julga a si mesmo e aos outros. Há certos períodos previsíveis na vida, nos quais
um indivíduo provavelmente se envolve num processo de decisão. Algumas pessoas decidem antes
de passar por esse processo, enquanto outros postergam a decisão, ou ainda ficam numa indecisão
crônica.
Em relação à escolha da profissão médica, os alunos de medicina, neste momento particular de suas
vidas (acadêmica e pessoal) estão iniciando o ciclo clínico, ou seja, o contato direto com pessoas,
doentes. A cadeira de Propedêutica Médica tem a responsabilidade e a função de prepará-los para
esses momentos extremamente delicados e difíceis. O aprendizado se faz através do contato com
pessoas biologicamente comprometidas, sendo impossível que não apresentem dúvidas, insegurança,
medo e angústia, portanto comprometidas emocionalmente de maneira intensa. Esse encontro gerará
uma sobrecarga emocional no médico (estudante), porque o que expõe o paciente também nos expõe.
Não me surpreende que se me dedicar unicamente a analisar hemogramas ou interpretar achados
radiológicos, além de distante será muito mais fácil e menos comprometedor.
Os alunos naturalmente devem estar pensando que estamos diante de um paradoxo: queremos ser
médicos para estar junto daquele que sofre e necessita de ajuda, mas “arrumamos” maneiras de ficar
à distância.
O contato direto entre o médico e o seu paciente (relação médico-paciente) é construído
integralmente sobre esse paradoxo. E, como decorrência natural desse fato, os professores
constataram que em todos os semestres os alunos apresentavam uma dificuldade importante durante
as experiências iniciais no atendimento aos pacientes. A ausência de um texto objetivo e prático
sobre o assunto gerava muita dúvida, produzindo angústia, pois à medida que dúvidas não eram
esclarecidas a insegurança naturalmente aumentava.
Quando se observa o currículo médico da Universidade Federal do Paraná e de quase todas as
demais universidades, infelizmente há um predomínio acentuado da informação em detrimento da
formação, não havendo praticamente um espaço apropriado para a discussão dos fatos que são
relevantes para a profissão médica no momento em que um paciente e médico estão em uma consulta.
Para diminuir essa dificuldade elaboramos textos que mostravam a experiência dos autores acerca
dos mistérios que envolvem a relação médico-paciente, com o objetivo de que os alunos
vivenciassem essa relação de uma maneira menos desgastante, para que se informassem acerca de
assuntos que geram indagações, dúvidas e incertezas. Os temas passaram a ser discutidos em grupos
sobre a formação médica com a supervisão dos professores, com a intenção de melhorar o
conhecimento daquilo que será utilizado durante toda a sua vida profissional.
Didaticamente, apresentamos a divisão em fatores inconscientes e conscientes na escolha da
profissão médica. [2] [3]
Relacionamos em ordem decrescente as principais motivações conscientes:

1. Compreender
2. Ver
3. Prestígio do saber
4. Desejo de contato
5. Prestígio social
6. Aliviar os que sofrem
7. Atração pelo dinheiro
8. Necessidade de tornar-se útil
9. Atração pela responsabilidade
10. Atração pela necessidade de aprovação
11. Profissão liberal

É claro que existem os fatores individuais, fruto de acontecimentos, relações e situações especiais,
dentro da natureza circunstancial de cada um, e que determinarão as escolhas de vida e futura
atividade profissional.
Listamos, também, as motivações inconscientes:
1 Necessidade de algum tipo de aprovação
2 Negação de dependência
3 Procura do exercício de onipotência
4 Defesa contra as doenças
5 Defesa contra o sofrimento
6 Defesa, através do mecanismo de negação, diante da morte
Em seguida, passamos a fazer uma pesquisa sobre as razões da escolha da profissão médica pelos
alunos do curso de Medicina da UFPR e estes são exemplos dos relatos que eles fizeram:

“Meu pai queria ser, mas não pôde.”


“Ser visto com admiração.“
“Dá fama de inteligente.“
“Como asmático, era comum na minha infância estar internado com frequência, assim como viver
nos consultórios médicos. Sonhava desde muito pequeno em ser médico. Passar para o outro lado
da mesa e deixar de ser doente.”
“Acho que desde que eu me lembro como gente, eu vivia doente.”

Muitas respostas tinham a ver com vocação. O vocábulo “vocação” vem do latim vocatio. É a
tendência, propensão ou inclinação para qualquer ofício, profissão, índole, talento, disposição
natural do espírito, escolha, eleição, chamamento, predestinação.
O termo “vocação” se origina da união de vox (voz) e core (coração) – e significa evocar a voz do
coração. O sentido original da palavra é, portanto teológico, pois tem sido o chamamento pelo qual
Deus destina um ser humano a uma função determinada.

“Vontade de Deus“
“Acho que fui escolhido...”

Da mesma forma, na questão da dor, do sofrimento, da doença e da morte, tornar-se médico


significa para alguns ter poder e proteger a si e aos outros da morte e da doença.

“Desejo de poder”
“Ter poder sobre os seres humanos.”
“Auto-defesa”
“Buscar a imortalidade.”
“Saber curar para não ficar doente, não morrer.”
“Ter poder sobre os seres humanos.”
“Desejo de evitar a própria morte.”
“Buscar a imortalidade.”
“Saber curar para não ficar doente, não morrer.”

Sempre observei a dificuldade de escrever o relatório da anamnese e do exame físico. Assim, em


conjunto com dois alunos monitores voluntários da Propedêutica Médica do curso médico (Nilton
Salles Rosa Neto e Bruno Iochio Mori), elaborei um pequeno livro a respeito desse tema, que serve
como suplemento à disciplina de Propedêutica Médica. Fica a indicação nas Referências
bibliográficas no final do capítulo. [4]
Vale ressaltar aqui o papel extremamente relevante que os monitores da disciplina desempenham
um papel na formação dos seus colegas nesse momento de grande angústia que os alunos vivenciam.
Os monitores retribuem a ajuda que receberam de outros monitores que os ampararam em seu
momento de angústia no primeiro contato com os pacientes.
O contato com pacientes reais é a melhor forma de aprendizado da medicina, mas os alunos
precisam de muito apoio para conseguir vencer a barreira de fazer esse contato. Os monitores, dessa
forma, têm condições de entender essas questões melhor do que o professor, pois há menos barreiras
entre eles e o alunos, de maneira que conseguem ajudá-los a fazer a anamnese e o exame físico.
Concluindo, do meu ponto de vista a disciplina de Propedêutica Médica tem a obrigação de ensinar
técnica e forma da anamnese, conteúdo e sequência da realização do exame físico, sendo
indispensável o aprendizado entre colegas tanto da anamnese como do exame físico, para então
somente os alunos serem liberados para realizar os passos com os pacientes, que são a fonte de
inspiração para o aprendizado.
Sem dúvida alguma, a relação médico-paciente ou estudante-paciente tem de ser amplamente
debatida, pois é fundamental para o preparo do aluno do curso de Medicina, que tem de ser
amparado nesse momento de tanta ansiedade e incertezas da formação médica.
Tudo o que fizemos foi uma semente e esperamos possa germinar e ser seguida por outras ações
subsequentes, que sejam úteis para futuros médicos, no sentido de prepará-los e qualificá-los para
uma melhor assistência médica.
Ainda uma última questão: aprender não é um processo passivo. Mesmo que apenas fiquemos
diante de um professor absorveremos algo apenas se prestarmos atenção e buscarmos entender,
refletindo, meditando, comparando e concluindo. Abandonando a postura passiva e fazendo os
questionamentos devidos, o aprendizado será maior e a fixação dos conteúdos será mais efetiva. Ser
agente ativo do aprendizado conduz a maior eficiência na aquisição de conhecimento. Atuar como
agente passivo é mais confortável e mais cômodo. Porém, esse conforto é prejudicial ao aprendizado
e pouco condizente com o nosso potencial de crescimento intelectual.
O mundo contemporâneo dominado pelas modernas tecnologias de informação nos permite acessar
conteúdos e conhecimentos em fontes diferentes e variadas. Devemos sempre buscar os mestres, os
melhores que pudermos encontrar, mas nunca entregar na mão deles a responsabilidade total pelo
nosso aprendizado.
Assim, ser médico não é um privilégio. Ser médico, ser profissional, nos coloca diante de uma
responsabilidade diferente e diferenciadora: a responsabilidade social.
Referências bibliográficas
WERNER, Edwenna R.; KOLSCH, Barbara M. Pediatrics, v. 57, n. 3, pp. 321-328, mar. 1976.

JEAMMET, P.; RAYNAUD, D. M.; CONSOLIS, S. Psicologia médica. Rio de Janeiro: Messon, 1982.

KRAKOWSKI A. J. Stress and the practice of medicine. Psychotherapy and Psychosomatics, v. 42, p. 143-147, 1984.

ROSA NETO, Nilton Salles; MORI, Bruno Iochio; CERCI, Mario Sérgio Julio. Como escrever o relatório de um paciente. Curitiba:
Editora da UFPR, 2003.

Mário Sérgio Júlio Cerci


Professor Associado da UFPR. Mestre e Doutor em Cardiologia pela UFPR.
Introdução
O consultório é o local onde a atividade médica mais depende da relação médico-paciente (RMP)
para que a qualidade do atendimento seja excelente. Isso ocorre porque é no consultório que o
paciente conta sua história e o médico se dedica a ouvi-la. Em seguida, o médico procede ao exame
físico, faz a hipótese diagnóstica, delineia um prognóstico e chega a uma proposta de conduta. O
momento da consulta, portanto, é o mais decisivo de todo o atendimento, porque é a partir dele que é
desencadeado todo o restante da interação do paciente com o serviço de saúde, como a realização de
exames, cirurgias e internamentos.
Independentemente de o atendimento ser particular (estabelecido e gerido pelo próprio médico),
público ou mesmo em atendimentos de emergência, a função do local no fluxo do atendimento é a
mesma: é o local apropriado para a consulta.
Sendo a consulta o momento principal do desenvolvimento da RMP, os problemas que podem
ocorrer nesse momento causam grande impacto no atendimento. Além disso, muitas vezes, no
atendimento médico ambulatorial a consulta é o único procedimento requerido. Ela é o próprio
procedimento terapêutico: o médico faz uma proposta de encaminhamento da situação para o paciente
executar. Assim, é importante abordar aqui os aspectos característicos da RMP no consultório. Para
buscar produzir como resultado tanto o bem como a satisfação das partes envolvidas, é preciso, antes
de tudo, uma boa relação entre pessoas.

Uma constatação desconcertante


Em 1991, uma equipe de estudiosos de vários países se reuniu em Toronto, Canadá, para elaborar
uma declaração de consenso sobre a relação médico-paciente. [1] Infelizmente os dados reunidos de
estudos existentes à época demonstraram um quadro desfavorável da RMP no mundo. Por exemplo,
em um estudo, houve discordância entre o médico e o paciente em 50% dos casos a respeito de que a
RMP foi o principal problema apresentado na consulta. Em outro, o tempo médio entre o início da
descrição do problema pelo paciente e a interrupção da sua fala pelo médico foi de 18 segundos. A
conclusão da declaração foi que existiam evidências de que a RMP passava por problemas graves,
frequentes e que afetavam o prognóstico dos pacientes.
Ainda hoje não encontramos evidências de que esses problemas tenham sido superados. No Brasil,
por exemplo, um estudo de 2004 na região de Fortaleza, no Ceará, mostrou um tempo médio de
consulta de 9 minutos e uma taxa de apenas 47% de consultas em que o médico verificou se o
paciente havia compreendido o plano terapêutico. [2]

Modelo de participação mútua e recíproca


Hollander [3] descreveu a relação médico-paciente como tendo três diferentes modelos no âmbito da
atividade-passividade dos seus participantes:

Atividade-passividade: ocorre nas emergências, na UTI e em outras situações em que o


médico necessita tomar as decisões pelo paciente, que se encontra em estado de
dependência.
Direção-cooperação: em situações de menor dependência do paciente, como internamentos
em enfermarias, por exemplo, é necessário que o paciente colabore, e o médico assume uma
atitude diretiva.
Participação mútua e recíproca: é o modelo de relação que ocorre no consultório. O
paciente é independente e será ele próprio que deverá tomar a iniciativa de implantar
medidas para a correção do problema. Ou seja, o paciente é quem providencia a compra do
medicamento, a organização dos horários de tomada, a marcação dos exames, a realização
das medidas preparatórias para os exames. É ele que precisa programar e executar as
mudanças de hábitos alimentares, atividade física e inúmeros outros detalhes.

Enquanto os outros dois modelos se assemelham à relação de um adulto com uma criança – o de
atividade-passividade à de uma mãe com um bebê e o de direção-cooperação o de um adulto
responsável com uma criança –, o modelo de participação mútua e recíproca é o de uma relação
adulto-adulto.

A assimetria da relação médico-paciente


Embora sejam dois adultos, a relação médico-paciente ocorre entre um profissional conhecedor de
um assunto e um paciente, ou seja, um receptor de um tratamento. Essa característica impõe uma
assimetria entre eles em relação ao conhecimento técnico necessário para tomada de decisões.
Essa assimetria se encontra em modificação constante desde que a Revolução Digital passou a
transformar o modo como o ser humano obtém informação e conhecimento. Muitos pacientes
atualmente consultam a internet antes de consultar o médico, e a capacidade da internet de fornecer
boa informação aumenta rapidamente. O conteúdo assim encontrado em pesquisas há pouco tempo
podia ser considerado inadequado em sua maioria, o que não é mais a realidade hoje. Por exemplo,
em 2005 a prestigiosa revista Nature publicou uma comparação em que a Wikipedia, fonte gratuita
de informações na rede mundial de computadores, se equiparava à tradicional Enciclopédia
Britannica em confiabilidade. [4]
Antes na posição de exclusivo conhecedor, o médico agora é obrigado a procurar novas maneiras
de lidar com as relações de conhecimento e autoridade. Em um exemplo de grande repercussão,
Jerome Groopman, professor de medicina da Universidade de Harvard, publicou em 2007 o
excelente livro Como os médicos pensam [5], em que ele procura dar aos pacientes formas de
abordar os médicos, a partir das quais se torne possível a diminuição da probabilidade de erros. Na
contracapa ele declara: “Os médicos precisam desesperadamente que os pacientes, seus parentes e
amigos os ajudem a pensar.”
Há um confronto de autoridades nas decisões que necessitam ser tomadas por médicos e pacientes.
O maior conhecimento determina maior autoridade. Outra assimetria vem do fato de o paciente, e não
o médico, ser o receptor e o executor das medidas que forem decididas. Dessa forma, o médico,
apesar de conhecer tecnicamente os procedimentos terapêuticos e diagnósticos, não conhece as
implicações deles para a vida do paciente.
Além de determinar a necessidade de uma negociação entre duas autoridades, a assimetria dificulta
a comunicação. Segundo o antropólogo Edward Hall [6], a comunicação pode ter um contexto fraco
ou forte. Se for forte, a maior parte da informação está no contexto e não na fala explícita. Nesse
caso, para que ocorra uma comunicação efetiva, as partes precisam partilhar pressupostos e
compreender mutuamente uma grande quantidade de informações.
Os médicos aprendem uma nova cultura no seu treinamento e desenvolvem uma linguagem peculiar
com um contexto próprio. Ao comunicar-se com o paciente, precisam transformar contexto em
linguagem explícita para serem claros no que dizem.
Além disso, de acordo com William Innis [7], a passagem da cultura oral para a escrita envolve
abstração e elimina grande parte do contexto. Dessa forma, pessoas na nossa sociedade com baixa
vivência da cultura escrita (poucos anos de escola) necessitam de mais contexto para a comunicação.
Esse fato impõe uma dificuldade adicional para o médico. Ao expressar-se, ele terá que decodificar
o contexto do paciente além de explicitar o contexto médico.

O modelo biomédico não explica a maior parte das queixas em consultório


Outra característica da RMP no consultório é o conjunto de consequências do fato de que
frequentemente as queixas que os pacientes trazem não podem ser encaixadas em um modelo
biológico de doença.
O modelo biológico é um paradigma antigo. Paradigma é uma parte do conhecimento científico que
é tomada como dada. Segundo Kuhn [8], essa parte do conhecimento é necessária para que os
cientistas tenham consenso e possam progredir a partir daí. Quando a comunidade científica chega a
um acordo a respeito de determinadas questões daquele campo do conhecimento, os questionamentos
sobre o assunto param e forma-se o paradigma. Por exemplo, na medicina assume-se que existem
entidades chamadas doenças, que são o objeto do estudo médico. A partir do ponto em que se toma
isso como verdade, pode-se passar a estudar as doenças e deixar-se de discutir se elas existem ou
não.
Segundo o paradigma biomédico, os doentes padecem de doenças que podem ser categorizadas
independentemente das pessoas que sofrem delas. Essas doenças são físicas ou mentais ou
psicossomáticas. Cada doença tem um agente causal e, dessa forma, descobri-lo é a ação mais
proveitosa para o doente.
Esses conceitos se firmaram na metade do século XIX, quando a medicina passou por um progresso
vertiginoso ao perceber a correlação entre manifestações clínicas e anatomia patológica. Eles se
ajustam bem a um conjunto de doenças para as quais considerável alívio foi encontrado, como
infecções, alguns cânceres e estados emergenciais em geral.
Entretanto, para algumas das queixas mais comuns em consultório, como dor no peito [9], dor
abdominal [10] e cefaleia [11], estudos no final do século XX não encontraram diagnósticos
específicos em 50%, 79% e 73% respectivamente.
Tome-se o exemplo de uma jovem de 18 anos que procurou atendimento em consultório
apresentando queixa de cefaleia. Durante uma semana tinha episódios de sensação de pressão ao
redor da região parietal de segundos de duração, mas de intensidade forte. Desde o início do ano, ela
havia perdido um pouco o ânimo de sair para se divertir aos finais de semana e apresentava também
sonolência e falta de iniciativa em relação ao seu normal, mas de intensidade leve, mantendo seus
compromissos normalmente. Também desde o início do ano havia aumentado a frequência de uma
cefaleia frontal de fraca intensidade que ocorria em momentos de cansaço e durava entre 4 e 8 horas.
Os diagnósticos de episódio depressivo menor e cefaleia tipo tensional foram feitos e foi proposta
conduta expectante para a depressão, analgesia e uma avaliação imagenológica por causa da
mudança recente no padrão da cefaleia.
Mesmo com a categorização precisa feita no caso acima – depressão menor e cefaleia tipo tensional
–, com mecanismos propostos para cada uma, a correlação entre sintomas e a fisiopatologia é
errática. Isso porque não é possível conferir o sintoma com uma alteração demonstrável. Por
exemplo, numa cirrose hepática o paciente se queixa de aumento de volume abdominal e a ascite
pode ser objetivamente demonstrada. No caso da cefaleia, o padrão mudou, mesmo com os exames
permanecendo normais, e não se pode explicar o porquê.
É possível que, com o tempo, uma explicação bioquímica para essa mudança da cefaleia seja
encontrada, mesmo que a sua causa seja algum fato da vida da jovem que sobrecarregou um pouco
mais o seu humor já um pouco abatido. Talvez surja um ensaio para detectar uma substância que
permita conferir que aquele padrão de cefaleia é causado por determinado mecanismo químico. No
momento, porém, essa e uma grande quantidade de outras queixas apresentadas no consultório
possuem essa característica de não poderem ser correlacionadas com alguma alteração fisio ou
anatomopatológica. Em pacientes internados, frequentemente predominam as doenças com alterações
anatomopatológicas.
A falta de um exame ou uma alteração demonstrável que confirme o sintoma do paciente fragiliza o
diagnóstico do médico e a sua posição de detentor do saber sobre as doenças, afetando a RMP.

O método clínico
Além de fragilizar o diagnóstico, a insuficiência do modelo biomédico afeta a RMP em mais um
aspecto – o método clínico, que é a forma que os médicos usam para abordar o seu paciente.
O método clínico foi aperfeiçoado na mesma época em que a correlação entre sintomas e anatomia
patológica teve seu grande impulso no século XIX. Nessa época, ficou clara a necessidade de que a
história clínica contivesse a identificação, a queixa principal, a história mórbida atual, a história
mórbida pregressa, etc.
Decorre disso o fato de que a abordagem em geral aprendida atualmente pelos médicos visa à
descoberta de sintomas que possam ser conferidos com achados anatomopatológicos. Há, portanto,
uma seleção dos sintomas: em certo grau, somente interessam esses achados, enquanto os outros são
irrelevantes.
Embora o método clínico vigente há tantos anos tenha um valor inestimável para a atividade
médica, é possível que essa seja uma explicação para o fato de os médicos interromperem os
pacientes que estão explicando sua queixa, o que se constitui em uma grande barreira à comunicação
entre as duas partes.

Significados dos sintomas e das doenças para o doente


Ian McWhinney, no seu livro Manual de Medicina Familiar [12], explica que o paciente vem à
consulta já munido de um plano. Ele tem seus conceitos sobre a doença, ligados à sua cultura e sua
experiência de vida e também atribui significados a seus sintomas e às suas interpretações do que
eles possam representar. Enquanto o médico está fazendo perguntas, o paciente está correlacionando
o que ele interpreta que o médico está pensando com os seus próprios conceitos e confirmando ou
reformulando o que pensa. Ao ouvir a apresentação do plano médico, o paciente o compara com o
seu próprio plano e procura entender as vantagens de cada um, decidindo sobre o que fazer.
Portanto, o médico perde uma grande oportunidade de comunicação ao deixar de investigar os
significados dos sintomas e das doenças que o doente vem lhe apresentar.
Além disso, esses significados podem conter justamente uma oportunidade de verificação dos
sintomas que não podem ser explicados por alterações anatomo-fisiopatológicas, conforme
mencionado anteriomente. Essa verificação ocorre se o significado atribuído ao sintoma ou à doença
pelo paciente proporciona uma possibilidade de explicação, permitindo ao médico testar a hipótese
de que o sintoma tem origem psicológica ou fisiopatológica ou outra.

O fluxo da entrevista
A dificuldade do médico de ouvir o paciente é provavelmente causada por vários fatores, mas um
dos expostos aqui merece pesquisa a respeito. Além de interromper o paciente precocemente na sua
explicação do motivo da consulta, o médico não segue o fluxo de ideias do paciente, esclarecendo o
que ele diz, quando ele diz. Por exemplo:
– Quando começaram seus sintomas?
– Desde o início do ano.
– Você atribui o início somente neste ano a alguma coisa?
É diferente de:
– Quando começaram seus sintomas?
– Desde o início do ano.
– Como é a sua dor?
No segundo caso, a pista sobre o início ficou no ar e seguiu-se o fluxo de prioridades do médico. A
prioridade do médico é definir se o doente tem uma doença ou não e, se tem, o prognóstico dessa
doença é o resultado de uma abstração mental da prioridade “O que o paciente tem, seja ou não uma
doença, e qual o prognóstico disso”.

Implementar mudanças
O Consenso de Toronto já em 1991 fazia recomendações que vêm ao encontro das questões
colocadas até aqui:
Os médicos devem inicialmente encorajar seus pacientes a discutirem suas preocupações
principais sem interromperem prematuramente o seu discurso.
Os médicos devem também se esforçar para desvendar as percepções dos pacientes sobre suas
doenças e os sentimentos e expectativas associados a elas.
Dados suficientes se acumularam para provar que os problemas na comunicação entre
médicos e pacientes são extremamente comuns e afetam de forma adversa o manejo do
paciente. Repetidamente se tem demonstrado que as habilidades clínicas necessárias para
melhorar estes problemas podem ser ensinadas e que os benefícios subsequentes para a
prática médica são demonstráveis, realizáveis rotineiramente e duráveis... Se o conhecimento
atual for implementado na prática clínica e as prioridades para a pesquisa forem abordadas,
poderá haver melhora concreta na relação médico-paciente.
(Tradução do autor)

Mais de duas décadas depois é certamente angustiante observar que não parece ter havido qualquer
progresso. Entretanto, o problema pode ser olhado sob nova luz ao estudarmos as evidências
recentes sobre o assunto da implantação de melhorias.
A partir do bombástico relatório To err is human: building a safer health system [13], de 1999, do
Institute of Medicine dos Estados Unidos, um grande esforço de pesquisa foi desencadeado em todo
o mundo a respeito da segurança e qualidade no atendimento médico. Um dos assuntos centrais
dessas pesquisas foram os motivos pelos quais alguns conhecimentos bem estabelecidos pela ciência
não são incorporados à prática clínica disseminadamente.
Tome-se um exemplo semelhante ao que é estudado neste capítulo: o do uso de beta-bloqueadores
em pacientes que tiveram infarto agudo do miocárdio. Um estudo publicado no ano 2000 mostrou que
a porcentagem de pacientes que tiveram prescrição desses medicamentos nos hospitais americanos
foi de 36% em hospitais não envolvidos em ensino médico, 40% em hospitais-escola menores e 49%
em grandes hospitais-escola. [14] Ao mesmo tempo foi determinado que forte evidência do benefício
desses agentes estava disponível na literatura desde 1984.
Esses dois problemas – o da melhoria da RMP e o do uso do beta-bloqueador no infarto do
miocárdio – têm em comum o fato de que a dificuldade não está em estabelecer evidências sobre a
melhor maneira de lidar com uma questão, mas em como implantar o que as evidências apontam na
prática dos médicos.
Uma maneira de abordar esses problemas seria fazer hipóteses sobre as possíveis causas da
resistência existente à implantação do conhecimento existente. No caso dos problemas descritos para
a RMP é possível que os médicos não consigam implantar as mudanças por vários motivos, entre os
quais:

O aumento de tempo necessário para investigar queixas adicionais às que já são vistas pode
ser uma barreira à aceitação por médicos já sobrecarregados no seu tempo com o paciente.
A insegurança dos médicos quanto ao seu preparo para abordar problemas psicológicos,
familiares ou sociais pode impedi-los de perguntar sobre queixas que possam levar a esses
problemas.
A inexistência de um ganho econômico previsto ao se efetuar as mudanças dificulta a
realização da grande carga de trabalho necessária para programá-las e torná-las realidade.

Para cada uma dessas hipóteses, pesquisas poderiam ser feitas para determinar o quanto elas
contribuem proporcionalmente, formando assim um maior conhecimento do problema. Entretanto, os
problemas podem ser heterogêneos em lugares diferentes, complicando ainda mais a sua avaliação.
Como alternativa, surgiram – ou foram adaptadas de outras áreas para as questões específicas do
atendimento médico – as metodologias para a implantação de melhorias. Algumas dessas
metodologias são usadas hoje para abordar os problemas de implantação de medidas baseadas em
evidências científicas em ambientes de trabalho: o Model for improvement, propagado pelo IHI
(Institute for Healthcare Improvement), o Six Sigma’s DMAIC e o 7-Step Problem-Solving Method
são exemplos.
O que essas metodologias propõem é que hipóteses sobre as causas da não implantação das
melhorias como as que estão descritas acima sejam usadas para formular ações locais de melhoria,
levando-se em conta as peculiaridades de cada serviço. Além disso, o efeito das ações implantadas
precisa ser medido de maneira que se possa verificar se as medidas são efetivas e adotar outras, se
necessário, até que um alvo preestabelecido seja atingido.
Foi por meio desse tipo de metodologia que se chegou ao que hoje chamamos de feixes de medidas
– tradução mais usada para o termo inglês bundles –, conceito recente de que certas melhorias só são
atingidas quando se implanta um conjunto de ações como um pacote completo. A falta de qualquer
das medidas do pacote costuma frustrar os esforços.
Essas abordagens têm conseguido resultados antes considerados impossíveis, como trazer a zero a
incidência de pneumonias associadas à ventilação-mecânica ou a de sepse relacionada a cateter em
certos hospitais por longos períodos.
Conclusão
Sumarizando, o consultório é o local onde a relação médico-paciente mais exige perícia por parte do
médico, por ser uma relação de participação mútua e recíproca, exigindo grandes habilidades de
comunicação para o sucesso da relação. Além disso, as queixas apresentadas em consultório com
grande frequência não se encaixam em explicações fisiopatológicas, expondo o médico a
dificuldades adicionais na RMP.
Diante dessas dificuldades, o desempenho dos médicos, historicamente deficiente, não tem obtido
sucesso em atingir melhorias significativas. Entretanto resultados promissores em outras áreas da
medicina, de dificuldade comparável, lançam esperança de se encontrarem as soluções adequadas.
Conta-se que Jean-Martin Charcot, um dos maiores médicos-cientistas do século XIX, saía de seu
consultório numa noite fria em Paris. Contava com um guarda-chuva e galochas para enfrentar a neve,
quando uma rica carruagem parou a seu lado e seu ocupante lhe disse: “entra aqui, professor, que eu
o levo até a sua casa.” Mais aquecido dentro da carruagem, o professor descobriu que seu benfeitor,
Pierre, era o jovem que anteriormente lidava com os cadáveres usados para o ensino na Faculdade
de Medicina e que sua fortuna vinha de seu trabalho como médico na periferia da cidade. Intrigado,
perguntou a ele como poderia alguém que nem era médico ganhar mais que um detentor de títulos de
doutor honoris causa pelas maiores universidades do planeta. Como resposta, o jovem mostrou a
ponte sobre o rio Sena e disse: “Quantas pessoas o senhor acha que passam sobre aquela ponte por
dia?” “Milhares”, ele respondeu. “E quantas delas o senhor acha que têm capacidade para distinguir
entre mim e o senhor?”
Esta historieta sugere que, além da competência técnica, a relação médico-paciente também é
necessária para o sucesso médico. Convenientemente ela ocorre com um dos representantes da época
em que surgiu o método clínico atual e, portanto, que possa servir para lembrar que há possibilidade
da prática médica mudar de paradigma e evoluir também nesse aspecto, à semelhança do que tem
evoluído em muitos outros campos.
Referências bibliográficas
[14] ALLISON, J. J.; KIEFE, C. I.; WEISSMAN, N. W.; PERSON, S. D.; ROUSCULP, M.; CANTO, J. G. et al. Relationship of

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CAPRARA, A.; RODRIGUES, J. A relação assimétrica médico-paciente: repensando o vínculo terapêutico. Ciênc. saúde colet., v. 9,
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<http://www.nature.com/nature/journal/v438/n7070/full/438900a.html>. Acesso em: 6 jun. 2013.
[5] GROOPMAN, J. Como os médicos pensam. Rio de Janeiro: Agir, 2008.
[6] HALL, E. T. Beyond culture. New York: Anchor Press/Doubleday, 1977.
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[7] INNIS, H. A. The bias of communication. Toronto: University of Toronto Press, 1951.
[13] KOHN, L. T.; CORRIGAN, J. M.; DONALDSON, M. S. To err is human: buildind a safer health system. Washington, D. C.:
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[8] KUHN, T. S. The structure of scientific revolutions. Chicago: University of Chicago Press, 1967.
[12] MCWHINNEY, I. R. Manual de medicina familiar. Lisboa: Inforsalus, 1994.
[1] SIMPSON, M.; BUCKMAN, R.; STEWART, M.; MAGUIRE, P.; LIPKIN, M.; NOVACK, D. et al. Doctor-patient
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<http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1671610/pdf/bmj00155-0047.pdf>. Acesso em: 21 abr. 2013.
[3] THOMAS, S. S.; HOLLENDER, M. H. A contribution to the philosophy of medicine: the basic models of the doctor-patient
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[1] WASSON, J. H.; SOX, H. C.; SOX, C. H. The diagnosis of abdominal pain in ambulatory male patients. Med Decis Making, v. 1,
n. 3, pp. 215-24, 1981.

Bruno Spadoni
Residência de Clínica Médica pela UFPR. Médico internista no Hospital Marcelino Champagnat (PUCPR). Médico do Tribunal de
Contas do Paraná.

Maurício Laroca
Médico do Hospital de Clínicas da UFPR. Residência de Clínica Médica pela UFPR. Médico do Tribunal de Contas do Paraná.
Introdução e conceito
A prática médica mudou e permanece em constante mudança (de fato, com velocidade cada vez
maior) nos últimos anos. Ao considerar a relevância e as dificuldades do ato médico (seja pela
consulta em si, pela realização de exames de alta tecnologia, diversos procedimentos ou cirurgias),
nota-se que a relação médico-paciente constitui o universo de trabalho da Medicina e envolve regras
e compromissos, limitações, erros e acertos de ambas as partes.
Até algumas décadas atrás, a relação médico-paciente (RMP) seguia um modelo paternalista no
qual se esperava do paciente obediência, confiança e gratidão; e do médico se ansiava autoridade e
cumprimento dos seus deveres profissionais. A busca pela valorização do envolvimento entre o
médico e o paciente trouxe também para a superfície o debate sobre a importância do humanismo
nessa relação. [1]
Pode-se conceituar, de modo bastante pessoal, a RMP como uma parceria entre o médico e o
paciente que visa à personalização da assistência médica, a humanização do atendimento, o direito à
informação e o consentimento informado do paciente em relação a atitudes diagnósticas e
terapêuticas.

Modelos de relação médico-paciente


Em 1972, Robert Veatch, da Universidade Georgetown, definiu quatro modelos de relação médico-
paciente: [2]

Modelo Sacerdotal: é o mais antigo. Propõe a completa submissão do paciente ao médico,


sem valorizar a cultura e opinião do paciente; há pouco envolvimento (relação) e a decisão é
tomada somente pelo médico em nome da beneficência.
Modelo Engenheiro: é o inverso do sacerdotal. Nesse modelo, o médico tem a função de
informar e executar procedimentos. A decisão é inteiramente tomada pelo paciente. O
médico tem uma atitude de acomodação (‘’lava suas mãos’’) e possui baixo envolvimento
com o problema clínico apresentado pelo paciente.
Modelo Colegial: há envolvimento substancial entre o médico e o paciente. O poder de
decisão é compartilhado de forma igualitária através de negociações e não há relação de
superioridade/inferioridade.
Modelo Contratualista: é talvez o mais adequado. O conhecimento e as habilidades do
médico são valorizados, preservando sua autoridade. Existe a participação ativa tanto do
paciente quanto do médico. Por causa dessa interação, há uma efetiva troca de informações e
comprometimento de ambas as partes.

A RMP pode ser entendida, portanto, como interação. Este último termo pode ser percebido como
uma “relação profissional de saúde-cliente”. O termo cliente, em vez de paciente (este, preferido
pelos autores deste capítulo), pode ser empregado num sentido mais dirigido ao contexto
institucional, assim como para caracterizar a visão do paciente como sujeito ativo e coparticipante
do encontro terapêutico. Além disso, muitas vezes o cliente (aqui no sentido daquele que busca a
ajuda) não é propriamente o paciente (no sentido de quem necessita de tratamento), podendo ser o
seu responsável imediato, como nos casos de consultas pediátricas, geriátricas, de emergência, etc.
[3]

A ciência e a arte da medicina


A medicina não é apenas ciência. É também arte.
O avanço tecnológico e o acesso à informação, especialmente na área biológica, proporcionaram a
perda de espaço da subjetividade, colocando a RMP em segundo plano. O advento da genética e da
biologia molecular, de novas e sofisticadas técnicas de imagens e avanços na bioinformática e na
tecnologia de informação contribuíram para a explosão científica que mudou o modo como os
médicos definem, diagnosticam, tratam e previnem as doenças. [4]
Outra razão importante para o enfraquecimento da RMP se encontra na divisão da medicina em
especialidades e ao modo de trabalho vigente, uma vez que o ensino médico mantém como paradigma
a concepção do organismo humano como um conjunto de órgãos que deve ser estudado cada um por
diferentes especialistas. [5] Além disso, a ausência de políticas públicas eficazes, a deterioração dos
serviços de saúde e das relações de trabalho, as deficiências do ensino médico, entre outros fatores,
geram problemas que poderiam ser evitados. [6]
Quando o paciente apresenta um problema que desafia o conhecimento clínico, o médico deve ser
capaz de identificar os elementos principais para o diagnóstico através da anamnese e do exame
físico; requisitar os testes laboratoriais e de imagem mais apropriados para o caso; e extrair de todos
esses elementos aqueles que sejam determinantes para a resolução. A partir daí, pesar os riscos e os
benefícios do tratamento, seja ele clínico (farmacológico ou não) ou cirúrgico. Ainda, refletir se
naquele momento o paciente necessita apenas de observação criteriosa e vigilância. E aproveitar
todas as oportunidades para exercer a prevenção de doenças e a promoção da saúde. Essa
combinação de conhecimento médico, intuição, experiência e julgamento define a arte de exercer a
medicina. [4]

Algumas sugestões para a boa prática da RPM

1. Exercício da medicina baseada em evidências


Baseia-se no conceito de que as decisões clínicas devem preferencialmente ser suportadas
por dados formais, objetivos, derivados de estudos prospectivos, randomizados,
controlados, com fonte de financiamento claramente explicitada. Ao seguir a medicina
baseada em evidências, o médico tem um pouco facilitada a adoção das máximas de
“primeiro não causar dano” e de “não ser o primeiro ou o último a adotar determinado
teste diagnóstico ou método de tratamento”. [4]
2. Consultar as principais diretrizes e protocolos existentes
Organizações profissionais (como a Associação Médica Brasileira, por exemplo) e
governamentais (Ministério da Saúde) desenvolvem periodicamente guias práticos para
auxiliar decisões terapêuticas e diagnósticas que são baseadas na melhor evidência, no
equilíbrio de custo-efetividade e que sejam mais apropriadas para um determinado
paciente e situação clínica. Essas diretrizes podem também “proteger” os pacientes, ao
demandar um cuidado padrão (standard) mínimo de saúde, fato importante para aqueles
com dificuldades de acesso pleno ao sistema de saúde. Entretanto, devem ser utilizadas
dentro do contexto individual de cada paciente, e o conhecimento e a experiência de cada
médico devem ditar a palavra final na decisão clínica. [4]
3. Particularizar o cuidado do paciente idoso
Na década de 2020, a parcela de idosos na população brasileira passará dos atuais 11%
para 14,6%. Já em 2040, os indivíduos com 60 anos ou mais de idade representarão mais
de 27% dos brasileiros. Em termos absolutos, o número de habitantes nessa faixa etária
deixará o patamar atual de cerca de 21 milhões de pessoas, para beirar os 30 milhões em
2020, chegando a ultrapassar a marca dos 55 milhões de indivíduos em menos de três
décadas. (Fonte: Ipea – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).
Os problemas de saúde do idoso, além de serem de longa duração, requerem pessoal
qualificado e equipes multidisciplinares. Na RMP, a atenção deve ser dirigida para
condições clínicas prevalentes, como abordagem da depressão, demência, fragilidade,
incontinência urinária e também de prevenção de fraturas, entre outras. [4]
4. Adquirir competência em situações de doenças graves, incuráveis e terminais
Entre os vários protocolos existentes, o de Buckman, publicado em 1992 [7], ainda é um
dos mais utilizados para a comunicação de más notícias aos pacientes. Para promover a
melhor RMP possível nessas situações, um acrônimo de 7 passos é empregado (P-
SPIKES): P (preparation), prepare a comunicação mentalmente; S (setting up),
preparação da entrevista, tanto a escolha do lugar ideal como a forma de se apresentar ao
paciente; P (perception), consiste em avaliar o que o paciente e sua família já conhecem
sobre sua doença e a percepção que têm dela; I (invitation and information), avaliação de
até que ponto o paciente deseja saber de sua condição, para que o médico não ultrapasse o
limite do paciente e transmita detalhes que este não desejava ouvir; K (knowledge), o
momento em que o médico transmite, de fato, a má notícia. É indicado que não se usem
palavras técnicas e sim termos de fácil compreensão para o paciente e que se transmita a
verdade; E (empathy), fase em que se trabalham as reações emocionais do paciente de
forma empática. Por fim, o sexto passo, S (strategy and summary), seria o momento de
apresentar e discutir o plano terapêutico e o prognóstico, alimentando expectativas reais e
considerando a autonomia do paciente na escolha do tratamento. [8]

Aspectos jurídicos da RPM


Qual a natureza da relação entre o médico e o paciente em geral? Alguns juristas veem apenas uma
relação contratual, isto é, entre o médico e o paciente celebra-se um contrato de prestação de serviço
profissional; outros admitem duas feições: a contratual e a extracontratual (delitual). Quando um
paciente procura os cuidados de um profissional da Medicina, fica claro o caráter contratual da
relação que se estabelece. Quando, no entanto, o médico atende uma emergência, quando sequer
conhece o paciente ou quando o paciente, por mais de um motivo, não pode expressar seu
consentimento, não há como falar-se em vínculo contratual; contrato não há. [9]
Essas feições do atendimento médico em nada interferem com os aspectos da responsabilidade
legal. Se o médico, em qualquer dessas situações, age com imprudência, com negligência ou com
imperícia, comprometendo a vida ou a saúde de seu paciente, envolve-se na má prática: é o ato
ilícito, em sua forma culposa. [9]
De acordo com levantamento realizado pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São
Paulo a partir de cerca de 12.000 denúncias registradas entre 1995 e 2001, as principais queixas
relacionadas à RMP foram: discussão (descontrole emocional); má-conduta (desrespeito com
pacientes e familiares, assédio, não elaboração de relatório médico quando solicitado); agressão
(física, verbal ou moral); discriminação (racial, social, religiosa, etc.); divergências (não aceitação
de exames, laudos e atestados). [9]

Aspectos éticos da RMP


Em vigor a partir de 13 de abril de 2010, o sexto Código de Ética Médica [10], do Conselho Federal
de Medicina, em seu capítulo V, que trata da relação do médico com pacientes e seus familiares, tem
como principais destaques:
É vedado ao médico:
Art. 31 Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente
sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de
morte.
Art. 32 Deixar de usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento, cientificamente
reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente.
Art. 33 Deixar de atender paciente que procure seus cuidados profissionais em casos de
urgência ou emergência, quando não haja outro médico ou serviço médico em condições de
fazê-lo.
Art. 34 Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos
do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse
caso, fazer a comunicação a seu representante legal.
Art. 35 Exagerar a gravidade do diagnóstico ou do prognóstico, complicar a terapêutica ou
exceder-se no número de visitas, consultas ou quaisquer outros procedimentos médicos.
Art. 36 Abandonar paciente sob seus cuidados.
§ 1° Ocorrendo fatos que, a seu critério, prejudiquem o bom relacionamento com o paciente ou
o pleno desempenho profissional, o médico tem o direito de renunciar ao atendimento, desde
que comunique previamente ao paciente ou a seu representante legal, assegurando-se da
continuidade dos cuidados e fornecendo todas as informações necessárias ao médico que lhe
suceder.
§ 2° Salvo por motivo justo, comunicado ao paciente ou aos seus familiares, o médico não
abandonará o paciente por ser este portador de moléstia crônica ou incurável e continuará a
assisti-lo ainda que para cuidados paliativos.
Art. 37 Prescrever tratamento ou outros procedimentos sem exame direto do paciente, salvo em
casos de urgência ou emergência e impossibilidade comprovada de realizá-lo, devendo, nesse
caso, fazê-lo imediatamente após cessar o impedimento.
Art. 38 Desrespeitar o pudor de qualquer pessoa sob seus cuidados profissionais.
Art. 39 Opor-se à realização de junta médica ou segunda opinião solicitada pelo paciente ou
por seu representante legal.
Art. 40 Aproveitar-se de situações decorrentes da relação médico-paciente para obter
vantagem física, emocional, financeira ou de qualquer outra natureza.
Art. 41 Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal.
Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os
cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou
obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua
impossibilidade, a de seu representante legal.
Art. 42 Desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre método contraceptivo,
devendo sempre esclarecê-lo sobre indicação, segurança, reversibilidade e risco de cada
método.

Atitudes do médico para melhorar a RMP [6]

A atitude principal é realizar uma boa anamnese (do grego anamnesis, significa “recordação”), que
consiste na história clínica do paciente, ou seja, é o conjunto de informações obtidas pelo médico por
meio de entrevista previamente esquematizada.

1. A RMP implica na presença de certos elementos no desdobrar da interação, tais como: um


cumprimento, um sorriso, senso de humor, atenção, gentileza, demonstração de interesse,
desejo de ajudar, suspensão de julgamentos e comentários pessoais.
2. Prestar atendimento humanizado, marcado pelo bom relacionamento pessoal e pela
dedicação de tempo e atenção necessários.
3. Saber ouvir o paciente, esclarecendo dúvidas e compreendendo suas expectativas, com
registro adequado de todas as informações no prontuário.
4. Explicar detalhadamente, simples e objetivamente, o diagnóstico e o tratamento para que o
paciente entenda claramente a doença, os benefícios do tratamento e também as possíveis
complicações e prognósticos.
5. Após o devido esclarecimento, deixar que o paciente escolha o tratamento sempre que
existir mais de uma alternativa. Ao prescrever medicamentos, dar a opção do genérico,
sempre que possível.
6. Atualizar-se constantemente por meio de participação em congressos, estudo de
publicações especializadas, cursos, reuniões clínicas, fóruns de discussão na internet, etc.
7. Ter consciência dos limites da Medicina e falar a verdade para o paciente diante da
inexistência ou pouca eficácia de um tratamento.
8. Estar disponível nas situações de urgência, sabendo que essa disponibilidade requer
administração flexível das atividades.
9. Indicar o paciente a outro médico sempre que o tratamento exigir conhecimentos que não
sejam de sua especialidade ou capacidade, ou quando ocorrerem problemas que
comprometam a relação médico-paciente.
10. Reforçar a luta das entidades representativas da classe médica (Conselhos, Sindicatos e
Associações), prestando informações sobre condições precárias de trabalho e de
remuneração e participando dos movimentos e ações coletivas.

Atitudes do paciente para melhorar a RMP [6]

1. Lembrar-se de que, como qualquer outro ser humano, o médico tem virtudes e defeitos,
observando que o trabalho médico é uma atividade naturalmente desgastante.
2. Considerar cada médico principalmente por suas qualidades, lembrando que em todas as
áreas existem bons e maus profissionais. Ter claro que o julgamento de toda a classe
médica por conta de um mau médico não faz sentido.
3. Não exigir o impossível do médico, que só pode oferecer o que a ciência e a Medicina
desenvolveram. Da mesma forma, jamais culpar o médico pela doença.
4. Respeitar a autonomia profissional e os limites de atuação do médico. Ele não pode ser
responsabilizado, por exemplo, por todas as falhas dos serviços de saúde, muitas vezes
sucateado por seus gestores. Nesse sentido, é direito do paciente denunciar e reivindicar
para que o Estado cumpra sua obrigação. Existem órgãos competentes para isso, como os
Conselhos de Saúde e o Ministério Público, além da direção dos próprios serviços. Não
exigir dos médicos exames e medicamentos desnecessários, lembrando que o sucesso do
tratamento está muito mais na relação de confiança que se pode estabelecer com o médico.
5. Seguir as prescrições médicas (recomendações, dosagens, horários, etc.) e evitar a
automedicação.
6. Ter consciência dos seus direitos.
Suplemento
NOVAS ESTRATÉGIAS PARA ENSINO NAS ENFERMARIAS - SUGESTÕES
PARA O INTERNISTA
Gibran Avelino Frandoloso
Mudanças no ambiente de aprendizado clínico ocorridas nos últimos anos nos Estado Unidos, mas
também em nossos hospitais brasileiros, têm motivado tentativas de mudanças no processo de ensino
médico nas enfermarias. Além das mudanças estruturais ora observadas, o grupo de médicos
atualmente em treinamento nos hospitais, conhecida como Geração Y, possui diferentes afinidades
com o ensino, mormente representadas por maior uso de tecnologia, aprendizado interativo e em
grupos. Um processo mnemônico para essas novas estratégias propostas para ensino nas enfermarias
(FUTURE) será apresentada na sequência. Essa estratégia tem por objetivo melhorar ou facilitar o
aprendizado em todos os momentos de ensino ou assistência a pacientes nas enfermarias. Nesse novo
contexto a figura do Médico Hospitalar (Hospitalista) tem papel importante, senão fundamental, no
ensino médico.
Uma das estratégias descritas acima para motivar o ensino nesse novo momento é utilizar modelos
diferentes de ensino. Um desses modelos, focado especialmente na participação do Médico Internista
(Hospitalista) no ensino nas enfermarias é denominado com o acrônimo inglês FUTURE, sendo assim
explicado:

F = Flipping the Wards. Consiste em orientar palestras, indicar leituras e materiais para
estudo individual e solicitar “tarefas de casa”, encorajando o uso de trabalho em grupo para
discussão interativa.
Exemplos: enviar artigos por e-mail depois das visitas e discutir no dia seguinte.
Compartilhar artigos por meio da “nuvem” (ex.: Dropbox). Utilizar chats para discussão de
temas fora do período letivo.
U = Using Documentation to Teach. Consiste em usar um chat ou blog para educação e
estruturas modelo para documentação, com uso destas para ensino.
Exemplos: documentar seu processo de raciocínio diagnóstico ou terapêutico nas notas de
visita (escritas em prontuários de papel ou eletrônicos). Usar os prontuários para prover
reavaliações da documentação dos casos e melhorar a comunicação.
T = Technology-Enabled Teaching. Consiste em utilizar a tecnologia (aparelhos e
aplicativos) para melhorar o ensino à beira do leito e propiciar discussões interativas.
Exemplos: usar aplicativos de smartphones e tablets para esclarecer ou lembrar pontos em
discussão (ex.: usar calculadoras de prognóstico).
U = Using Guerrila Teaching Tactics. Consiste em explorar o ambiente das enfermarias
(suas características e complexidades) para facilitar ensino de pontos didáticos.
Exemplo: ensinar a partir do que é visto e feito diariamente nas enfermarias (ex.: discussão
sobre remoção de cateteres de Foley; higiene de mãos; indicações para isolamento de
contato; reconciliação medicamentosa). Checklists e medidas de qualidade incorporados às
visitas.
R = Rainy Day Teaching. Consiste em separar pontos importantes a serem ensinados para
dias com menos tarefas assistenciais (“rainy days”).
Exemplo: não discutir assuntos relevantes em pós-plantões ou períodos com alta necessidade
de assistência. Designar outros membros da equipe para buscar informações sobre os
tópicos discutidos e retornar para discussão no dia seguinte.
E = Embedding Teaching Moments into Rouds. Consiste em criar a expectativa de
aprendizado em cada visita médica nas enfermarias.
Exemplos: voltar a focar a visita médica na avaliação de pacientes, com ênfase em revisão
de história, exame físico. Discutir diariamente os exames complementares, explorar um
eletrocardiograma ou discutir uma questão pontual (por exemplo: uma questão do MKSAP –
Medical Knowledge Self-Assesment Program).

Outros modelos que permitem rever o ensino nas enfermarias podem ser utilizados e até
estimulados a partir da realidade brasileira, mas certamente devem ser mais dinâmicos e fugir das
aulas expositivas como estrutura básica.
Resgatar a Semiologia Médica, com ênfase na excelência da história clínica, do exame físico e no
uso racional e competente da tecnologia são, além de necessidades desse processo de ensino,
responsabilidade social médica, em face de um sistema que despersonaliza o paciente e coloca
ênfase excessiva no uso de tecnologias, muitas vezes sem a base lógica que sustenta sua utilização.
Educar essa geração e as próximas nesse ambiente em constante mudança exige de nós, médicos e
professores, adaptações rápidas e vontade de desafiar nossa tendência a manter o modelo atual ou
aquele ao qual estejamos mais adaptados.

Adaptado de: MARTIN, S. K.; FARNAN, J. M.; ARORA, V. M. New strategies for hospitalists to overcome challenges in
teaching on today’s wards. Department of Medicine, University of Chicago, Chicago, Illinois. J Hosp Med. 12 jun. 2013.
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1992.
[10]
CÓDIGO de ética médica: Resolução CFM nº. 1931, de 17 de setembro de 2009 / Conselho Federal de Medicina. – Brasília:
Conselho Federal de Medicina, 2010. 98 p.
[6] CONSELHO Regional de Medicina do Estado de São Paulo [Cremesp]. Guia da Relação Médico-paciente. Disponível em:
<www.cresmep.org.br>. Acesso em: 3 ago. 2014.
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(Doutorado em Engenharia de Produção) – Programa de Pós-graduação em Engenharia de Produção. UFSC. Florianópolis – SC.
[8] SILVA, Carlos Maximiliano Gaspar Carvalho Heil et al. Relação médico-paciente em oncologia: medos, angústias e habilidades
comunicacionais de médicos na cidade de Fortaleza (CE). Ciênc. saúde coletiva [online], v. 16, suppl.1,
pp. 1457-1465, 2011.
[3] SOAR FILHO, E. J. A interação médico-cliente. Rev. Assoc. Med. Bras., v. 44, n. 1, pp. 35-42, 1998.

Gibran Avelino Frandoloso


Professor de Clínica Médica da UFPR e PUCPR. Supervisor do Programa de Residência em Clínica Médica da UFPR. Preceptor do
Serviço de Clínica Médica do Grupo Marista (PUCPR). Membro do American College of Physician e American Association of
Family Physicians.

Maurício de Carvalho
Professor Adjunto de Clínica Médica da Universidade Federal do Paraná. Vice-chefe do Departamento de Clínica Médica da UFPR.
Professor Titular de Nefrologia da PUCPR. Research Fellow em Nefrolitíase pela Universidade de Chicago (EUA).
Introdução
A relação do médico com o paciente na emergência carrega muitas expectativas. Cabe ao
profissional conhecer as influências do ambiente, do quadro clínico, da equipe e da estrutura para
obter os melhores resultados na abordagem com os pacientes. Diferentemente de um médico que
atende em seu consultório, a situação no ambiente de emergência é mais desafiadora, uma vez que o
médico não foi escolhido e, sim, imposto.
O encontro com o desconhecido num ambiente hostil demanda que o profissional compreenda as
prioridades do paciente. Entre as mais frequentes estão: saber o que ele tem, obter alívio de um
sofrimento ou esclarecer dúvidas sobre a necessidade de um procedimento invasivo para
diagnóstico.
Por sua vez, o paciente atendido numa situação de doença aguda desejaria encontrar um médico
conhecido e de confiança naquele momento. Embora saiba que nem sempre será possível, deverá
confiar em um profissional que muitas vezes nunca viu antes.
Com esses desafios, temos de estar preparados e conhecer os aspectos que influenciam na relação
médico-paciente na emergência é de extrema utilidade.

O cenário
1. Ambiente de pronto-socorro
A realidade de estar num ambiente hostil e de aparente caos em alguns momentos exige atitudes
proativas. A estrutura hospitalar e a equipe de enfermagem podem facilitar ou prejudicar a atuação
do médico, uma vez que nesses ambientes a agilidade e a condição técnica da estrutura serão
decisivas para o desempenho do médico diante dos quadros agudos de pacientes no pronto-socorro.
O médico é um dos componentes da equipe de emergência e deve estar ciente de que a qualidade da
relação médica dependerá também das ações de outros membros da equipe. Portanto, se as ações não
ocorrerem de maneira adequada, irão refletir na relação com o paciente. Esse aspecto deve ser
motivo de uma atenção especial que o médico da emergência precisa controlar e saber como
prevenir.

CASO EXEMPLO - PROBLEMA 1


Uma paciente de 45 anos chega ao pronto-socorro com sintomas de dor abdominal. Após anamnese
e exame físico, o médico percebe que não existem sinais de gravidade e a dor é suportável.
Para investigação, solicita exames de sangue e um exame de ultrassonografia. Após 30 minutos, o
médico recebe a informação de que o setor de ecografia está superlotado com casos graves e que o
exame demorará mais de 1 hora.
Com essa informação, uma ação proativa do médico seria: informar à paciente e seus familiares de
que existe uma sobrecarga de exames prioritários e que, conforme ele avaliou o caso em questão,
poderá esperar e que se houver alguma mudança receberá uma reavaliação.
Obviamente ninguém fica muito satisfeito em esperar mais do que o necessário, mas essas situações
são muito comuns.
A informação recebida pelo médico e transmitida ao paciente ajudará muito para amenizar essa
insatisfação, ou seja, passar uma mensagem de que tudo está sob controle, apesar da demora na
realização do serviço. Também mostrará que o médico está atento e preocupado com a espera, mas
isso não vai acarretar um problema maior para a paciente.

2. A sobrecarga de trabalho em ambiente de stress


O tempo para um doente fragilizado e com desconforto agudo é percebido como muito lento. Cinco
minutos parecem cinco horas. A ansiedade e o medo da doença podem gerar uma consequência de
maior gravidade, como morte ou sequela grave, trazendo muita angústia e pressão ao profissional.
O atendimento médico no pronto-socorro é como procurar um rosto na janela de um trem em
movimento. Um vagão passa após o outro. Se você se distrair ou ficar desatento, corre o risco de
perder a pessoa. Ou, se o trem ganhar muita velocidade, os rostos começam a ficar borrados e você
não consegue ver quem está procurando. Essa metáfora citada na obra Como os médicos pensam, de
Jerome Groopman, retrata o desafio do médico da emergência que está diante de muitos casos
durante um plantão e que muitas vezes não são graves, mas se o a tendimento for rápido demais ele
poderá deixar passar um diagnóstico de maior gravidade e causar prejuízo a um paciente, liberando-
o do pronto-socorro ou internando-o num quarto quando deveria estar na Unidade de Terapia
Intensiva.
Nas emergências, os médicos trabalham em forma de plantões, que muitas vezes se estendem por
mais de 12 horas. O número de pacientes atendidos por médico aumenta e, consequentemente, o
desgaste por cansaço será um fator a ser administrado pelo profissional.
Para os jovens médicos, conhecer seu limite é fundamental. Nem todos são bons profissionais para
trabalharem em emergências, e aqueles que são devem tomar as precauções para não serem vitimas
do stress profissional.

CASO EXEMPLO - PROBLEMA 2

Criança com 9 meses de idade estava irritada e não se alimentara bem durante o dia. Em casa
eliminou fezes escuras e mal cheirosas, diferentemente do habitual. Com essa história, foi avaliada
por um pediatra que liberou a criança dizendo que não seria nada preocupante. Após algumas horas
em casa a criança estava grunhindo e levando as pernas até o peito. Chegando a outro hospital foi
constatada uma obstrução intestinal.
O primeiro pediatra havia feito uma avaliação apressada e achou que as informações dadas pelos
pais não eram confiáveis, uma vez que eram pais de primeiro filho. Reconhecer padrões na
pediatria começa pelo comportamento da criança, algo que todo pediatra deve treinar, uma vez que
as informações não são transmitidas diretamente pelo paciente e sim pelos pais. Ou seja, crianças
que estão sorrindo e brincando enquanto seus pais contam de uma forma exagerada aquilo que é
normal faz com que o pediatra fique mais tranquilo, e o contrário também é verdadeiro.
A precisão da percepção é maior quanto mais tempo o médico dedicar-se a ouvir a história dos
pacientes. Para evitar tais armadilhas, concentre-se em cada paciente e aprenda a conhecer o seu
limite de trabalho, especialmente perto do final dos turnos de plantão.

O paciente
As principais expectativas dos pacientes quando vão a serviços de emergência devem ser conhecidas
pelos médicos, dessa forma poderemos ser mais assertivos na nossa abordagem, característica que
na emergência é fundamental e distingue os profissionais que melhor se sairão no contato com os
pacientes.
As perguntas abaixo devem ser respondidas pelos médicos quando atendem um paciente na
emergência, mesmo que elas não sejam expressas por eles. Alguém com deficiências de comunicação
ou cognição pode ter dificuldades até mesmo de torná-las conscientes, mas, se o médico apresentar
as respostas, certamente serão entendidas pela mensagem que passarão.
No livro A nova consulta, de David Pendleton, são propostos os itens a seguir como sendo os
principais questionamentos dos pacientes:

O que é que eu tenho?


Quanto tempo vai durar?
Qual foi a causa?
Como me afetará e já está me afetando?
Pode ser curado ou controlado?

Devemos saber que todos os pacientes têm tais questionamentos, mas nem sempre estão claros, uma
vez que todos sofrem influências de elementos que englobam questões físicas, psicológicas e sociais
que interagem entre si. Esses fatores afetam a relação médico-paciente, logo o médico que ignora tais
elementos não será bem sucedido.
As questões acima, influenciadas pelas crenças sobre saúde, explicam a origem das expectativas.
Sabendo disso, podemos alinhar nossas ferramentas para melhorar a relação médico-paciente. A
satisfação do paciente nessa relação é diretamente proporcional ao fato de o médico:

prestar informações, especialmente sobre o problema, sua importância e seu tratamento;


construir uma parceria, por exemplo, por meio do encorajamento do paciente para falar e do
questionamento sobre suas ideias e opiniões;
expressar-se positivamente: uma “fala positiva”, expressando concordância, dando apoio,
confirmando e mostrando entendimento e preocupação.

CASO EXEMPLO - PROBLEMA 3

O filho de uma senhora de 88 anos liga para o médico da família informando que ela está com
sudorese, dor torácica, e a pressão aferida em casa está muito alta. O médico de família,
preocupado com as informações, orienta o filho a levar sua mãe imediatamente ao serviço de
emergência mais próximo, e que após ser atendida peça ao plantonista para se comunicar com ele.
Após a paciente ter sido atendida, o filho pede ao plantonista para entrar em contato com o médico
da família, que poderá lhe informar tudo sobre a condição médica da paciente.
O plantonista evita fazer este contato, afirmando que não tem tempo e que fará exames na paciente a
fim de descobrir o que está acontecendo. Com isso, o filho se sente inseguro e contrariado.
A atitude do médico da emergência quebrou a relação de confiança entre a família e ele, pois nesse
caso um pedido do filho para que recebesse as informações do médico da família e que conhecia a
saúde da paciente foi visto como não querer ouvir algo importante e que poderia afetar o
diagnóstico e a conduta.

A consulta
Os médicos aprendem sobre doenças e técnicas para diagnosticá-las e tratá-las, porém, quando vão
lidar com as pessoas, precisam treinar outras habilidades as quais nem sempre se sentem à vontade
de desenvolver.
A comunicação é uma dessas ferramentas que devemos exercitar à exaustão, pois ela será percebida
desde o momento do primeiro contato visual, em que a forma de se vestir, a expressão facial e a
postura física do médico transmitirão informações que irão atuar como facilitadores ou não.
A anamnese na emergência, muitas vezes objetiva e dirigida devido à necessidade de obtenção de
informações de forma rápida, não deve ser confundida como fria e distante, aliás, deve ser
acolhedora, objetiva e direta sem perder a cumplicidade que o momento de se relacionar com o
paciente exige. Nesse momento, é importante que o médico se torne o mais livre possível de prévios
julgamentos. Para conseguir essa interação, o médico deve demonstrar interesse e preocupação com
o sofrimento que aflige o paciente.
O exame físico, também motivo muitas vezes de constrangimento, deve ser sucinto e obedecer a
princípios do respeito à privacidade. Fornecerá informações que ajudarão a construir, além de
hipóteses diagnósticas, formas subjetivas de percepção de zelo e cumplicidade para com o paciente.
O toque do médico parece primitivo e incerto quando comparado ao que podemos descobrir com as
maravilhas da tecnologia. No entanto, a ausência desse toque interfere de maneira negativa nas
relações com os pacientes.
Todas as etapas acima estarão construindo uma relação médico-paciente eficaz ou não, por isso
cada uma tem um papel importante no diagnóstico e no tratamento dos pacientes. Mesmo que o
médico não consiga estabelecer um diagnóstico exato, elas ajudarão a não causar danos e passarão
uma mensagem de cuidado, questão fundamental na relação com o paciente.
O livro O médico, seu paciente e a doença marcou o início de uma mudança de paradigma no
atendimento médico, porque foi nele que Balint descreveu o seu conceito de médico como droga, ou
seja, o médico é como um medicamento, que será consumido através das palavras, mensagens não
pronunciadas e contatos físicos, produzindo efeitos com ou sem reações adversas.
A aplicação desses processos seguindo as etapas apontadas anteriormente resultarão em
diagnósticos e condutas compartilhadas com os pacientes ou familiares e que poderão ser aceitas ou
não dependendo da percepção deles.

CASO EXEMPLO - PROBLEMA 4

Num dia de plantão agitado na emergência de um hospital geral, o plantonista inicia o atendimento
do seu sexto paciente do turno. A queixa era febre, tosse, dor torácica ventilatória dependente. A
primeira hipótese diagnóstica foi de pneumonia. Sem proceder ao exame físico completo, o médico
solicitou um raio X, para adiantar o atendimento. Após o resultado do raio X ter vindo normal, o
plantonista procedeu ao exame físico mais detalhado e verificou que a dor era na verdade em
região lombar direita, com sinal de Giordano, ou seja, a dor e a febre se deviam a uma pielonefrite
em um paciente com tosse.
O fato de ter pulado a etapa do exame físico interferiu na acurácia diagnóstica, mas além disso
serviu para reduzir a confiança do paciente e impactou de maneira decisiva a relação médico-
paciente.
Hipócrates é responsável pelo sustentáculo ético da relação médico-paciente e recomenda ao
médico fazer o bem ao paciente e evitar o dano: Primum Nom Nocere.

O médico
Paracelso (1490-1541) afirma: “O caráter do médico pode atuar mais poderosamente sobre o
enfermo do que todas as drogas empregadas.”
Os médicos em muitas questões não são neutros e, assim como os pacientes, têm suas visões que
influenciam nas consultas.
As habilidades e experiências, sejam técnicas ou pessoais, influenciam o comportamento e a
relação médico-paciente.
No livro A nova consulta, David Pindleton cita Roter e colaboradores (1997) pela identificação de
quatro estilos entre médicos que atuam nos Estados Unidos:

Paternalismo: o estilo centrado no médico.


Consumismo: o paciente é firmemente colocado como condutor dos processos.
Negligência (ou “deixar correr”): nenhuma das partes assume a responsabilidade, o que
produz uma consulta disforme e sem objetivo.
Mutualidade: tanto o médico quanto o paciente se envolvem, e as preferências do paciente
são ativamente investigadas e comparadas com as do médico. Todo o processo é de
negociação.

Diante de tais influências e estilos, devemos sem dúvida escolher a mutualidade, e para isso temos
de desenvolver algumas ferramentas.
A assertividade melhora a comunicação ética entre as pessoas, porque transmite a impressão de
autorrespeito e respeito pelos outros. O diálogo assertivo é direto porque faz economia de palavras,
não permitindo rodeios, justificativas e desculpas.
O profissional deve influenciar o paciente e conseguir que ele faça o que se espera dele: repousar,
seguir uma dieta ou tomar a medicação prescrita, etc. Um médico assertivo consegue influenciar
através da atenção e negociação, oferecendo ao paciente a opção pela cooperação. Não oferece
retaliações e estimula a comunicação de mão dupla.
A comunicação tem de atender as necessidades dos médicos, para que possam extrair as
informações dos pacientes de maneira adequada e fazer com que eles entendam o que está
acontecendo através de uma linguagem customizada.
O médico não pode dialogar da mesma maneira em todas as consultas. De acordo com a faixa
etária, grau de instrução ou outras características, deve adaptar a linguagem.
As mudanças da medicina, do acesso à informação, das relações humanas, das novas mídias e do
mercado de saúde influenciam as relações entre médicos e pacientes. Num ambiente tão desafiador
como o dos serviços de emergências, a sensibilidade e o preparo técnico do profissional farão com
que esses encontros de desconhecidos que ocorrem todos os dias em milhões de oportunidades
possam resultar em ganhos para cada um dos lados.
Referências bibliográficas
GROOPMANN, Jerome E. Como os médicos pensam. Rio de Janeiro: Agir, 2008.

MARTINS, Vera. Seja assertivo: como ser direto, objetivo e fazer o que tem de ser feito; como construir relacionamentos saudáveis
usando a assertividade. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.

PENDLETON, David. A nova consulta: desenvolvendo a comunicação entre médico e paciente. Porto Alegre: Artmed, 2011.

PERESTRELLO, Danilo. A medicina da pessoa. São Paulo: Atheneu, 2006.

PINHEIRO, Raimundo. Escolha e abandono de médicos: o poder do cliente. Salvador: Ed. Raimundo Pinheiro Consultoria, 2002.

SANDERS, Lisa. Todo paciente tem uma história para contar: mistérios médicos e arte do diagnóstico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2010.

Heitor João Lagos


Médico especialista em Clínica Médica na área de atuação em Emergência. Especialista em Medicina Intensiva. Preceptor da
Residência de Clínica Médica do Hospital Nossa Senhora das Graças em Curitiba.
Tradicionalmente, a criação de um local destinado a monitorização e tratamento de doentes graves
foi idealizado pela enfermeira britânica Florence Nightingale. [1] Durante a guerra da Crimeia, entre
1854 e 1856, Florence mantinha os soldados gravemente feridos em um local ao redor do posto de
enfermagem onde ela poderia mantê-los sob sua visão direta e prestar assistência de imediato se
fosse preciso. [1]
Durante a epidemia de poliomielite em 1952, em Copenhagen, o médico anestesista Björn Ibsen
saiu da sala de cirurgia e levou a tecnologia disponível na época para um quarto onde uma criança de
12 anos sofria de insuficiência respiratória por poliomielite. [2] A partir dessa ocasião criou-se
dentro do hospital um local destinado a tratar insuficiência respiratória. Além do uso dos pulmões de
aço (ventiladores de pressão negativa que foram utilizados na época), o local unia uma equipe
multidisciplinar – médicos, enfermeiros e demais profissionais exclusivamente para esse grupo de
pacientes. [1]
Uma década mais tarde, nos anos 1960, o conhecimento sobre a parada cardiorrespiratória e a
sistematização de seu atendimento deu ainda mais força a esse novo setor do hospital destinado a
salvar vidas. [1] As Unidades de Terapia Intensiva proliferaram, propiciando a monitorização e
tratamento de pacientes após cirurgias de alta complexidade. [1] Médicos abraçaram essa missão, a
especialidade começou a ser reconhecida e as sociedades organizaram-se: em 1971, foi fundada a
Society of Critical Care Medicine (SCCM) nos Estados Unidos da América; em 1974, a World
Federation of Societies of Intensive and Critical Care Medicine; em 1975, a Australia-New
Zealand Intensive Care Society; em 1982, a European Society of Intensive Care Medicine (ESICM)
e a Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB). [1]
Em grande parte dos países filiados às sociedades de Medicina Intensiva ao redor do mundo, exige-
se um treinamento específico para o médico tornar-se um médico Intensivista titulado e reconhecido
por seus colegas. [1]
Atualmente, não somente o médico intensivista se faz necessário na unidade, mas enfermeiros,
fisioterapeutas, nutricionistas, psicólogos, farmacêuticos clínicos, fonoaudiólogos especialistas no
doente grave, que proporcionam um atendimento multidisciplinar e focado para o paciente e seus
familiares. O líder da equipe, que é o médico, coordena e é responsável pelo planejamento do
atendimento dentro da unidade, desde o controle de admissões e altas até a educação continuada com
a constante atualização dos protocolos assistenciais. Além de atuar à beira de leito, o Intensivista é
responsável também pelo gerenciamento de riscos e de protocolos que a UTI aplica.
A Unidade de Terapia Intensiva (UTI) é um ambiente dominado pelo conhecimento da Medicina
Intensiva e pela tecnologia avançada adquiridos ao longo destes últimos 40 anos. [3]
O cuidado dispensado ao doente grave é um desafio constante em conciliar o conhecimento médico
e o interesse individual do próprio doente. O médico Intensivista enfrenta uma série de conflitos
diários: decisões médicas; cuidados de final de vida e pacientes que frequentemente não têm como se
comunicar. A falta de comunicação do doente cria uma dificuldade em entender seus desejos, seus
medos, suas ansiedades e suas expectativas. [3]
O entendimento do que o médico deve fazer em benefício dos doentes não é guiado somente pelo
conhecimento científico, mas também por atributos complexos que envolvem a responsabilidade
moral, as obrigações legais e o fato de respeitar uma decisão do próprio paciente. [3]
As responsabilidades morais dos médicos em relação aos seus pacientes vêm desde a Antiguidade
com o Juramento de Hipócrates (400 a.C.) [4], o código de Nuremberg na primeira metade do século
XX (proibição de pesquisa médica em prisioneiros de guerra) [3], o relato de Belmont na segunda
metade do século XX (proteção dos pacientes em quaisquer tipo de pesquisa clínica) [3] e os atuais
códigos de ética médica. [5] Essas descrições clássicas enfatizam o conceito de responsabilidade
baseada na verdade, compaixão, justiça, cuidado e ações em prol do benefício humano. [3] O
conceito contemporâneo muda o foco do médico para o doente: envolve o individualismo e a
autonomia do paciente em tomar a decisão de cuidar-tratar ou não cuidar-tratar.
Logo, os princípios modernos de Bioética [3] que regem a atividade médica na UTI são:

Beneficência: médico age em prol dos interesses do doente.


Não-Maleficência: médico age com cautela para não prejudicar o doente.

Justiça: médico fornece ao doente o tratamento necessário independentemente de condição


social, econômica ou étnica.
Autonomia: médico e paciente decidem em conjunto sobre o tratamento a ser recebido. Isso
implica que o doente receba todas as informações técnicas sobre sua situação atual, que
tenha capacidade de entender os riscos e benefícios de uma intervenção, decidir se quer
receber tal intervenção e assumir sua decisão.

Com base nesses quatro princípios, na UTI há uma situação peculiar: muitas vezes o doente está
incapaz de compreender e decidir sobre o que quer e não quer receber como tratamento. [3] Ele é um
sujeito vulnerável e precisa que alguém defenda seus interesses. Nessa hora, o médico Intensivista
deve tomar as rédeas da situação e assumir a responsabilidade baseada em conhecimento técnico,
colaboração com o médico assistente e interação com a família do doente.
A discussão de casos clínicos que demonstram os conflitos na prática diária de muitos médicos
intensivistas ajuda a entender melhor a aplicação dos princípios de bioética.

CASO CLÍNICO 1 – Diagnóstico de Morte Encefálica e Autorização para Doação de Órgãos

JBM, masculino, branco, 33 anos, casado, comerciante, católico, sempre conversava com a esposa
a respeito de seu desejo de ser doador de órgãos.
BM viajou com a esposa na semana de Páscoa e sofreu uma colisão na estrada com outro carro. Ele
e ela sofreram vários traumatismos de crânio, tórax e abdome. Foram atendidos pelo Serviço de
Emergência pré-hospitalar e encaminhados à UTI. Dra. NCY informou que JBM estava em coma
profundo, com múltiplas hemorragias intracranianas diagnosticadas com tomografia de crânio,
dependente de ventilação mecânica invasiva. Sua esposa estava na mesma situação. Após 36 horas
de UTI, constatou-se que JBM não apresentava reflexos de tronco cerebral ao exame físico. Dra.
NCY suspeitava de morte encefálica (ME).
O diagnóstico de ME foi conduzido conforme a resolução 1480 de 1997 do Conselho Federal de
Medicina: pré-requisitos clínicos confirmados, feitos 2 exames neurológicos, feitos 2 testes de
apneia e 1 exame complementar. [6] Toda a família, pai, mãe, 2 irmãos, 4 tios, 2 tias, 8 primos
foram informados e acompanharam cada passo do diagnóstico que se confirmou 8 horas após ter
sido feita a suspeita. Foi um desespero total. No momento que houve a confirmação de ME com o
último exame feito, a mãe ainda não acreditava que aquilo estava acontecendo na sua família.
Aquele menino que ela carregou em seu ventre por 9 meses, amamentou, cuidou ao ter rubéola e
caxumba, levou na escola em dias de sol e dias de chuva, viu formar-se em administração, viu
casar-se, agora morreu antes dela? Isso é antinatural! Será que não haveria um milagre? Já tinha
ouvido falar que muitos doentes em coma acordam após anos. E se esse era o caso de seu filho?
Será que todos os exames foram feitos e estavam corretos? Afinal, pode haver algum erro.
Todas as explicações foram novamente reforçadas pela Dra. NCY: JBM sofreu um trauma
craniencefálico muito grave, tinha coma profundo e múltiplas hemorragias intracranianas. Apesar
de ter recebido todo o tratamento disponível com cirurgia, medicações múltiplas, ventilação
mecânica invasiva, seu cérebro parou de funcionar. O cérebro é como o maestro de todo
organismo. O maestro para, e aos poucos todos os outros órgãos, desgovernados sem liderança,
param progressivamente. Esta morte cerebral foi confirmada com vários exames conforme a
legislação brasileira. Não havia nada mais a fazer por JBM. Mas havia o que fazer por outros
doentes que estavam morrendo e ainda tinham uma esperança. Outros doentes que estavam na fila
de transplantes de fígado, rins, pâncreas, córneas, coração, pulmão. Se a família aceitasse, poderia
haver doação de órgãos. JBM poderia salvar 8 vidas! Dra. NCY se colocou à disposição para
esclarecer dúvidas!
A mãe não queria outras 8 vidas! Queria somente a vida de JBM! Queria seu filho novamente! Ela
acreditava em um milagre! Seu filho querido seria devolvido a ela, pois acabava de fazer uma
promessa a Nossa Senhora Aparecida! Ela iria a pé a Aparecida e levaria uma vela da altura de
JBM. Nossa Senhora sempre atendeu suas preces!
Novamente, Dra. NCY reforçou que não havia mais esperanças. Era uma questão de tempo para a
parada cardíaca. Ela pediu que a família se reunisse, pensasse na possibilidade de doação e
voltasse com uma resposta: DOAR ou NÃO DOAR. Ela aguardaria e respeitaria qualquer uma das
decisões.
O pai e um dos irmãos voltaram 24 horas após. Perguntaram como estava JBM, se realmente não
havia esperanças de vida, se no caso de não aceitarem a doação, o que ocorreria. Dra. NCY
novamente explicou o que é morte encefálica, que não há esperanças porque morte é morte, que no
caso de não haver doação tudo que JBM estava recebendo seria retirado porque o suporte
avançado de vida estava simplesmente mantendo órgãos para uma futura doação. Eles agradeceram
e pediram mais um tempo para conversar com a mãe, que ainda não aceitava o fato da morte do
filho. Os demais familiares já tinham entendido e queriam a doação. Dra. NCY combinou uma nova
conversa para o próximo dia, à tarde.
Desta vez, voltaram os pais, os irmãos e 2 tios. Pediram novos esclarecimentos sobre o diagnóstico
de morte encefálica e sobre como procede a doação de órgãos. Pediram esclarecimentos sobre
quais órgãos doar, caso eles aceitassem. Novamente, Dra. NCY esclareceu todas as dúvidas e
colocou-se à disposição. Ao final, a própria mãe posicionou-se e aceitou a doação. Ela assinou o
termo de consentimento de doação de órgãos e todos expressaram seu pesar pela morte do ente
querido e, ao mesmo tempo, seu consolo e alegria de poder proporcionar uma nova vida a 8 outras
pessoas. JBM viveria ainda em 8 outras pessoas.

Conflitos do caso e questões a pensar:

1. Estabelecimento de uma relação médico-paciente em um tempo muito curto e em uma


situação extremamente adversa.
2. Garantia de que o doente recebeu atendimento adequado e que teve chances de cura.
3. Garantia de que não houve erro médico na condução do caso.
4. Abertura de diálogo para esclarecimento de dúvidas em relação do diagnóstico de morte
encefálica.
5. Dar tempo para família entender o que estava acontecendo.
6. Mesmo o paciente tendo expressado em vida sua vontade, ele não teve autonomia de
decisão.
A decisão final ficou ao encargo da família (responsável legal).

CASO CLÍNICO 2 – Alta a Pedido da UTI

MLR, feminina, branca, 62 anos, do lar, viúva, procedente de Fortaleza, vem visitar a filha em
Curitiba em junho de 2013 e apresenta crise de asma brônquica grave. A filha a leva para o pronto-
atendimento de um hospital e lá é indicada internação na UTI.
MLR é internada e começa a receber todas as medicações necessárias. O médico plantonista, Dr.
MO, vem conversar com a filha. Pergunta se MLR já toma alguma medicação. A filha diz que não
sabe. Ele agradece e diz que ainda não sabe o que ela tem exatamente, mas que vai fazer todos os
exames necessários e cuidar dela bem. Que a filha volte nos horários de visita e saberá sempre
como a mãe está.
No dia seguinte, na hora da visita, a filha entrou, falou com a mãe, que estava melhor para respirar.
A mãe disse que estava sendo bem tratada pela equipe e que todos eram muito gentis. Nenhum
médico veio dar informações. Ao indagar à enfermeira, ela responde que o médico de hoje está
ocupado em um procedimento de emergência e no período da tarde outro plantonista fala com ela.
À tarde, novamente não recebeu informações médicas. A mãe pediu para ter paciência, pois os
médicos conversavam com ela e estava a par de tudo que acontecia. A filha voltou noutro dia de
manhã e recebeu a mesma resposta: o médico está em um procedimento de emergência e não pode
vir dar informações. Nesse mesmo instante, decidiu transferir a mãe da UTI para o quarto e pediu
alta sem conversar com a mãe. Mesmo assim, nenhum médico veio falar com ela e após 2 horas a
mãe estava no quarto esperando o médico assistente para continuar o tratamento.

Conflitos do caso e questões a pensar:

Falta de vínculo entre médico e familiar, apesar de haver vínculo entre a equipe médica e a
paciente.
Dúvidas se há tratamento adequado.
Dúvidas da evolução do caso.
Familiar expõe doente a diversos riscos com a alta a pedido.

CASO CLÍNICO 3 – Decisão de Final de Vida e Limitação de Suporte

LS, feminina, branca, 16 anos, solteira, católica, designer de sobrancelhas, procedente de


Curitiba, vem para o hospital após sofrer queimaduras em 80% da superfície corporal por tentativa
de suicídio. Chega em coma moderado, com desidratação importante e já com falência de múltiplos
órgãos. Recebe todo o suporte avançado de vida como ressucitação + ventilação mecânica invasiva
+ hemodiálise + antibiótico. Após 72 horas, não há melhora clínica e está refretária a tratamento
medicamentoso, mantendo hipotensão e hipoxemia continuamente.
A família acompanhou o caso desde o atendimento pré-hospitalar, no pronto-socorro e na UTI. Foi
permitida a permanência de um familiar na UTI durante as 24 horas do dia. Todos os passos do
tratamento foram informados ao familiar presente na unidade e aos familiares no horário de visitas.
No quarto dia de internamento, com a não resposta clínica ao tratamento, a família foi chamada
para uma reunião com a equipe multidisciplinar. Estavam os pais, 3 irmãos, avós e avôs. Da equipe
estavam o intensivista responsável pela unidade, o médico plantonista, a enfermeira plantonista, o
fisioterapeuta, a nutricionista, a psicóloga e a farmacêutica clínica.
A família esclareceu as dúvidas e perguntou as chances de sobrevida. Havia menos de 10% de
chance de sobrevivência naquela situação. A família, em conjunto, solicitou à equipe
multidisciplinar que não deixasse haver nem dor nem sofrimento. Que em caso de óbito, houvesse
uma morte com dignidade. A família entendeu que não havia outros recursos curativos a oferecer.
Todos se colocaram à disposição da família para quaisquer eventualidades. A paciente ficou
recebendo todo o suporte avançado de vida, com exceção da hemodiálise, e foram intensificadas a
sedação e a analgesia endovenosa contínua. Em 12 horas o óbito foi diagnosticado e o corpo foi
encaminhado ao Instituto Médico-Legal (caso de morte violenta).
A atitude da equipe descrita nesse caso trata de terminalidade e segue a orientações do Fórum de
Terminalidade da AMIB realizado em 2008. [7] O Código de Ética médico prevê tal situação e
apoia o médico a não manter recursos que podem ser considerados fúteis em casos terminais. [5]

Conflitos do caso e questões a pensar:

Quando caracterizar que um paciente é terminal?


O que é limitação de suporte avançado de vida?
O que é tratamento fútil?
A decisão de limitação de suporte avançado de vida é sempre em conjunto com a família?
Estabelecimento de vínculo entre a equipe da UTI e a família é fundamental para decisões
que podem ser polêmicas.
Referências bibliográficas
[5] CÓDIGO de Ética Médica. Curitiba, 2013. Disponível em: <www.crmpr.org.br>. Acesso em: 1 jun. 2013.
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Nazah Cherif Mohamad Youssef


Professora Assistente do Departamento de Clínica Médica da UFPR. Responsável pela disciplina de Medicina Intensiva do Curso de
Medicina da UFPR. Especialista em Neurologia e Medicina Intensiva. Fellow em Doppler Transcraniano pela Universidade de
Hannover (Alemanha). Fellow em Sepse Grave e Choque Séptico pela Universidade de Jena (Alemanha). Médica da UTI Adulto do
Hospital de Clínicas da UFPR.
Introdução
Ter confiança no médico é o principal fator para uma boa relação médico-paciente. Confiar um filho
a um tratamento ou consulta médica faz da relação médico-paciente-família algo mais do que
especial para a pediatria. Este capítulo tem por objetivo caracterizar as particularidades dessa
relação.
A consulta pediátrica possui aspectos característicos próprios, diferentes da consulta normal de um
adulto. Ela tem a peculiaridade de não ser uma relação médico-paciente direta, mas sim uma relação
triangular: um médico (pediatra/clínico/cirurgião), um paciente (lactente/criança/adolescente) e uma
família (mãe/pai/avós/irmãos/cuidadores). Essa relação triangular exige uma simbiose, uma relação
mais intensa, um vínculo complexo entre o médico, a criança e os informantes, geralmente a mãe. Se
o pediatra conseguir gerar um ambiente de integração na consulta, a cumplicidade entre ele, o
paciente e a família existirá, e as chances de um tratamento funcionar serão maiores. Para que esse
triângulo obtenha sucesso, três condições são fundamentais: confiança, empatia e tempo.
Na pediatria, muito mais do que em outras especialidades, é necessário criar uma empatia com a
família e a criança. Desde o início da consulta é preciso recebê-los com sorriso nos lábios,
expressar interesse na fala, nas informações da família, principalmente nas da mãe, criando condição
para um bom, rápido e crescente estado de confiança. Isso inclui honestidade, tanto da família sobre
as informações prestadas, uma vez que serão muitas vezes a base do raciocínio clínico do pediatra,
quanto do profissional nas explicações de tratamento, para que a família e a criança assumam aquilo
como verdades a serem seguidas. A conquista da família é importante para a boa prática da
pediatria. O comportamento do pediatra e seu interesse na consulta contam pontos nessa relação.
Algumas técnicas de entrevista usadas por profissionais para controlar o tempo da consulta, como
perguntas de “sim ou não”, podem indicar para a família uma falta de interesse interpessoal por parte
do pediatra e piorar essa relação, prejudicando a evolução do tratamento. [1]
Em relação ao tempo, sabemos que a consulta pediátrica por si só já demanda um tempo muito
maior do que a de outras especialidades. Além dos problemas recentes que trazem a família ao
médico, sempre se deve avaliar as questões rotineiras da criança. A grande dificuldade atual da
medicina pediátrica brasileira é o tempo, devido ao número excessivo de consultas nos postos de
atendimento e nos consultórios de convênios. Os pediatras devem interferir nas políticas de saúde
para equacionar melhor o tempo de atendimento ao paciente pediátrico, cabendo ao médico a direção
e o comando do diálogo para poder obter, em um curto período, o maior número de informações
precisas sobre o paciente, extraindo-as da mãe/informante sem que haja um sentimento de pressão ou
angústia.
Outro importante aspecto é o fato de o paciente pediátrico ser muito diferente em cada estágio do
seu desenvolvimento. Inúmeras são as diferenças da consulta do recém-nascido, do lactente, do pré-
escolar, do escolar e do adolescente. São diversas características e infinitas diferenças de
questionamentos a cada período citado da evolução de um paciente pediátrico. Nessas diversas
fases, o crescimento e o desenvolvimento da criança devem ser elaborados e explicados para a
família de maneira clara. A consulta engloba sempre o aspecto da puericultura, da tendência natural e
lógica da medicina preventiva, da atenção do médico muito mais na função preventiva do que
curativa. O tempo volta a ser necessário para boas explicações. Essa atuação é muito importante,
principalmente nos primeiros anos de vida da criança, tempo em que a necessidade de informações e
esclarecimentos por parte dos pais é maior.
Para que a prevenção da saúde da criança aconteça, deverá haver uma relação pediatra-paciente-
família muito adequada. Ela funciona como uma banqueta de três pernas. Só estará segura e apta com
as três pernas firmes e proporcionais. Se uma delas quebrar ou não funcionar, não adianta as outras
estarem boas, a banqueta cairá.
Para melhor exemplificar essa situação, diversos estudos que avaliaram a relação pediatra-
paciente-família através da comunicação demonstraram a não participação da criança na conversa
médica. [2] A relação médico-paciente pediátrico restringe-se muito mais ao contato afetivo. Uma
hipótese para explicar esse fato na pediatria traduz-se principalmente na dificuldade do profissional
em abordar a criança verbalmente ou na tentativa de protegê-la de informações médicas, evitando
perturbá-las emocionalmente. [3] Essa falta de comunicação com pacientes pediátricos pode, porém,
ser fonte maior de angústias e fantasias, mesmo que o objetivo inicial seja minimizar seu sofrimento.
[4]

Construindo a relação pediatra-paciente-família


1. Comunicação
A construção da relação pediatra-paciente-família está intimamente ligada à comunicação do
profissional com a criança e sua família. A comunicação é o principal “procedimento” na medicina.
[1] Através dela, assuntos como esperança, medos, preocupações com desenvolvimento, sexualidade

e transtornos mentais podem vir à tona. Uma boa comunicação é a fonte para o estabelecimento de um
melhor cuidado ao paciente.
A comunicação na pediatria é uma ferramenta essencial para um diagnóstico preciso e para o
desenvolvimento de um plano de tratamento bem sucedido. No caso de notícias que possam gerar
estresse, uma comunicação habilidosa permite à família uma melhor adaptação a um novo desafio em
relação à saúde da criança. Essa habilidade pode requerer um comportamento que inclui sentimentos
de reflexão, com demonstração de respeito, preocupação e compaixão, frequentemente por meio de
uma linguagem não-verbal, como gestos, postura e contato ocular. [1] [5]
Por outro lado, a falta de habilidade e delicadeza na comunicação gera angústias, rejeição e
comprometer a evolução da criança e de sua família, podendo até levar a situações médico-legais.
Nos Estados Unidos, estima-se que 35 a 70% dos processos médicos resultem de uma má
comunicação, falha em entender as perspectivas do paciente e da família ou falha em incorporar ou
perguntar sobre os valores das duas partes em relação ao tratamento proposto. [1] [5]
Existem dois tipos de necessidades do paciente e da família a serem sanados durante uma entrevista
médica: cognitivas (que dizem respeito à necessidade de conhecer e compreender) e afetivas (que
dizem respeito à necessidade de se sentir conhecido e compreendido). A satisfação dos pais com a
atenção à saúde de seu filho é substancialmente influenciada pelas habilidades interpessoais do
profissional, principalmente em situações em que os pais e a família se encontram muito ansiosos. [6]
[7]
Apesar de a comunicação ser essencial para o bom cuidado à saúde, pouco se ensina sobre a
construção dessa habilidade tanto nos currículos universitários médicos quanto nas residências e
serviços pediátricos. [1] O estudante de medicina ou o residente de pediatria acaba assumindo
posturas diante de pacientes e famílias com base na observação dos comportamentos diários de
profissionais da saúde, tanto bons como ruins. Às vezes, a coleta de um dado “difícil” na anamnese é
mais premiada pelos professores do que o papel psicossocial, existencial e as necessidades e
preocupações interpessoais do paciente e sua família.
No início, a comunicação é aprendida por tentativas e erros. Porém, cada vez mais estudos vêm
demonstrando que ela pode ser ensinada e aprendida. [8] [9] [10] [11] Dependendo da realidade a ser
aplicada, existem relatos na literatura de preceptores não médicos, desde psicólogos infantis a
terapeutas especializados na vida infantil, que podem ajudar os estudantes e até mesmo os
professores a desenvolver essas habilidades. [12] Utilizar materiais de vídeo gravados em
combinação com feedback individualizado em grupos pequenos teve um maior impacto na melhora
do comportamento da comunicação, segundo um estudo da Universidade de Cambridge. [9] O estudo
também recomendou que o entusiasmo sobre o ensino dessas habilidades depende também de um
programa de desenvolvimento da equipe de ensino, bem como de instalações cedidas pelos cursos
médicos ou governamentais.
2. Cuidado centrado na família
Cada vez mais vem se falando a respeito de entrevistas ou visitas à beira do leito centradas na
família. Apesar de ser um conceito antigo surgido nos anos 1960, a ideia de um cuidado de saúde
centrado na família na pediatria tomou mais força após o Children’s Hospital de Cincinnati
descrever sua experiência de mudar a forma abordada nas visitas médicas hospitalares, a fim de
estabelecer esse novo padrão. [1]
Esse conceito prevê que uma decisão sobre a saúde da criança deva ser uma decisão centrada na
sua família. [9] A criação de um plano médico em conjunto com a criança e sua família permite uma
maior satisfação e aderência ao tratamento. A maioria dos pais quer estar envolvida nas decisões
sobre como um assunto de saúde será contado ao seu filho. Para que isso aconteça da melhor
maneira, o pediatra deve conhecer a relação familiar prévia, valores culturais, as necessidades da
criança, bem como seu desejo em participar de seu plano de cuidados.
Três preocupações iniciais surgem quando se aborda o cuidado médico centrado na família: o
ensino, o tempo e a confidencialidade. O estudante de medicina ou residente de pediatria pode
pensar que o ensino ficaria em segundo plano, uma vez que o foco passa a ser a família. Observando
diretamente seu preceptor e participando ativamente dessa relação, provou-se que esse novo estilo
de ensinar permite uma qualidade até maior da educação. [9] Não há dúvidas de que visitas centradas
na família tomam mais tempo e que poderiam ser um empecilho para a agenda de um médico. O
mesmo estudo de Cincinnati demonstrou um aumento de aproximadamente 20% nesse tempo, porém
acreditou-se na melhora da eficiência do profissional, salvando tempo de discussões futuras no
restante do dia. [9] A confidencialidade de quem participa da visita deve ser reforçada, e a busca
pela privacidade da criança e familiar, principalmente através de espaço físico, deve ser constante,
independentemente da realidade do local.
Os princípios do Cuidado Centrado na Família requerem colaboração dos pacientes, familiares,
médicos, enfermeiras e outros envolvidos no cuidado à saúde, bem como àqueles envolvidos na
educação desses profissionais. [11] São eles:

1. A criança e a família devem ser ouvidas.


2. A família é a base de apoio da criança.
3. Crianças e famílias são únicas e diversas.
4. Deve haver um colaboração entre profissionais de saúde e a família.
5. Compartilhar informações honestas, sem desencontros.
6. Reconhecer as forças ou limitações de cada pessoa. [8] [9] [11]

A qualidade do cuidado em pediatria melhorará se a criança for seriamente reconhecida como um


indivíduo com necessidades emocionais e cognitivas próprias, sendo considerada capaz, inteligente e
cooperativa. [1] [8]
3. Permitindo a participação efetiva da criança
O convite do pediatra à criança (dependendo da idade) e sua família para contribuir na consulta ou
na visita médica hospitalar e expressar preocupações é na maioria das vezes bem aceito pelos pais, e
não aumenta a duração, mas sim a utilidade do encontro. [1] [5] [14] Uma revisão da literatura indicou
que crianças acima de 7 anos têm mais capacidade que seus pais em fornecer informações capazes de
alterar o prognóstico, apesar de serem piores em informar sobre seu passado médico. [15]
A prática mais comum, entretanto, deixa a criança mais passiva, com pouco poder participativo no
tratamento e com poucas oportunidades de expressar suas preocupações. Além da dificuldade dos
profissionais de saúde quanto à comunicação, nota-se também que a família também tem
preocupações e dúvidas sobre informar à criança sobre seu adoecimento. Por exemplo, muitos pais
que têm filhos com doenças crônicas, como um câncer, relutam em falar com a criança sobre o
adoecimento, pois acreditam que assim o filho será poupado do sofrimento e do estigma da doença.
Quando isso acontece é notável o fato que as crianças sabem que algo errado está acontecendo. Elas
sabem sobre sua doença por meio de falas ou percepções faciais dos adultos. Muitas vezes, como os
pais são os principais negadores do adoecimento de seus filhos, estes percebem os fatos que aqueles
querem esconder. [4]
O linguajar médico pode dificultar esse processo, pois os termos técnicos (“medicinês”) são
incompreensíveis para o universo infantil. Às vezes, a utilização de termos mais técnicos pode ser
uma forma de proteção na visão do pediatra, como um código secreto que impede o sofrimento de
seu paciente. [4]
Um exemplo de como todas essas habilidades na comunicação são importantes é o acesso e
tratamento do maior sintoma subjetivo da criança: a dor. Se a criança não estiver incluída, com
certeza reconhecer o nível da dor será mais difícil. Para reforçar essa mensagem que a criança sabe
sua dor, ela deve estar participando do controle de seu tratamento e confiar no poder das
intervenções terapêuticas. [1] Dunbar et al consideraram que crianças acima de 4 anos são capazes de
controlar sua dor eficazmente. [16]
Existe uma obrigação ética de discutir saúde e doença com o paciente pediátrico, que está
embasada em leis de diversos países, como Reino Unido, Canadá, Estados Unidos e Brasil. [1] [17]
Envolver as crianças nas conversas sobre sua saúde e em decisões sobre seus cuidados e tratamentos
demonstra respeito à sua capacidade, melhora seu processo de tomar decisões futuras na saúde e
permite que ela se torne parte em uma tomada de decisão difícil, em que não há uma resposta certa, e
sim uma que melhor se encaixe às suas necessidades e de seus familiares. [1] Elas querem ser
incluídas no plano de tratamento de uma forma às vezes até profunda, frequentemente se tornando
experts no assunto. Adolescentes e crianças mais velhas com certeza se encaixam nesse perfil. E
quando não há acordo entre a família e o paciente, uma relação de respeito por parte do médico, com
base em todos os aspectos culturais e valores familiares, deve existir.
Em muitos casos os pais erroneamente pensam que não informar seus filhos sobre uma doença é o
melhor a se fazer. Essa atitude paternalista de segurar “informações pesadas” é difícil de ser
contrariada dependendo do ambiente criado entre o triângulo pediatra-paciente-família. A literatura,
porém, aponta para uma preferência da criança pela informação. [1] [18] Quando a criança pergunta
sobre sua condição, muito frequentemente ela já sabe que há alguma coisa errada e nesse momento
está procurando em quem confiar. Deve-se dar a oportunidade do questionamento, porém, se a
criança a recusa, a informação não deve ocorrer de maneira forçada.
Um estudo antigo de Princeton sobre crianças terminais demonstrou que até mesmo crianças de 3
anos ou mais estavam a par de seu diagnóstico e prognóstico mesmo sem eles nunca terem sido
contados por um adulto. [19] Ele também mostrou que isso pode gerar um sofrimento duplo. Os pais
sofrem, pois inconscientemente acham que, se contarem para a criança, ela se sentirá abandonada e
menos amada. Já a criança sofre também, pois frequentemente ela responde a isso calada, como uma
forma de “proteger” seus pais de suas próprias angústias. Kriegbergs et al [20] analisaram pais suecos
que perderam seus filhos e revelaram que todos aqueles que falaram com eles abertamente sobre a
doença não se arrependeram de tal atitude, enquanto os 27% dos que não abordaram esse assunto
antes da morte de seus filhos não só estavam arrependidos, como também apresentaram maior
incidência de depressão e ansiedade.
Aconselhar os pais sobre essa possibilidade de incluir a criança na entrevista pediátrica é
necessário para um melhor desenvolvimento tanto de coisas boas quanto de coisas ruins ligadas à sua
saúde.

Um “bom jeito” de dar más notícias


Uma má notícia pode ser definida como uma ameaça à integridade mental ou física de alguém, uma
situação na qual passa a se achar que não existe mais esperança, um risco para mudança no estilo de
vida ou mensagem que confere a alguém poucas chances de vida. No que diz respeito à saúde de uma
criança, esta má notícia normalmente ocorre em um ambiente de UTI pediátrica ou neonatal, pronto-
socorro, sala de parto ou na discussão de doenças terminais. Muitas vezes a rapidez ou cronicidade
do quadro clínico é o principal fator que pode determinar a intensidade da emoção da família e da
criança. Mesmo assim, é possível que pais de crianças cronicamente enfermas que sobreviveram a
diversos internamentos fiquem chocados, negando uma má notícia de que a criança não se recuperará
desta vez.
Muitos pais de vítimas fatais de trauma relatam receber a notícia da morte de seu filho em um
corredor, numa sala de espera ou em outra área pública do hospital. [21] Convém dizer que nesses
lugares a chance da notícia ser tratada de forma impessoal e insuficiente pelo profissional é maior.
Essa falta de privacidade, empatia, clareza na mensagem e respeito pelo paciente é percebida por
sua família e essas memórias e experiências podem ficar marcadas em suas mentes, prolongando o
luto. Dado esse fato, assegurar a preparação do cuidador se faz necessário.
Ao ouvirem más notícias, os pais tendem a valorizar o médico que demonstra claramente
solidariedade e que permite que eles falem e expressem suas emoções. [22] Pode-se abrir a conversa
com: “Me contem o que vocês já sabiam sobre o caso do ou da (nome da criança).” Deixe que os
pais exponham suas ideias, corrigindo alguns erros de percepção. Pode-se também perguntar a eles
se conheciam outra criança com um diagnóstico ou situação parecida. Isso pode facilitar o
estabelecimento dos medos e expectativas da família, e a partir daí abordar os aspectos de piora e
gravidade do quadro clínico da criança.
Isso pode ser mais difícil na emergência ou sala de parto, visto o vínculo médico-paciente-família
ser recente. Nesses casos, dar um “sinal de aviso” que um problema maior está por vir,
comunicando-se com mensagens claras e permitindo que os pais vejam que foi feito o possível para
salvar a vida de seu filho, por exemplo, gera um conforto maior para a família e facilita sua
compreensão de gravidade.
Já em UTI pediátrica e neonatal, cada vez mais evidências falam a favor do Cuidado Centrado na
Família, melhorando muito a relação do profissional com a família. [10] As dificuldades envolvidas
em ter sua criança em uma UTI, beirando a constante incerteza, tornam as reações negativas dos pais
compreensíveis. Isso gera um grande estresse dos familiares, pois muitas vezes veem seu filho triste,
com medo e dor e estão impossibilitados de conversar com a criança. O profissional deve entender
esse aspecto mental dos pais, uma vez que frequentemente também estão “doentes”. Uma boa
comunicação ajudará muito mais para a construção de uma relação de entendimento e respeito,
afastando os frequentes confrontos consequentes às frustrações familiares. Aumentar a assistência à
família, compreendendo suas necessidades, melhora as relações com a equipe.

Consideração final
Apesar das dificuldades que a consulta e a visita pediátrica oferecem, os médicos envolvidos com a
pediatria devem ser capazes de modificar atitudes, de abrandar sofrimentos físicos, psíquicos e
afetivos, de promover a saúde em todos os seus inúmeros aspectos. A habilidade em indicar
caminhos a serem seguidos pode levar a algo que está ao alcance de todos: a felicidade. Sim,
felicidade, pois, se perguntarmos aos pais o que mais querem para seus filhos, com certeza a resposta
mais frequente e honesta será: “que sejam felizes”.
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Eduardo Maranhão Gubert


Professor Adjunto de Pediatria e de Urgências e Emergências da PUCPR. Preceptor de Clínica Médica da Residência de Pediatria do
Hospital Pequeno Príncipe. Médico Titulado em Terapia Intensiva Pediátrica pela Associação de Medicina Intensiva Brasileira.

Carlos Eduardo Gubert


Professor Adjunto de Pediatria e de Urgências e Emergências da PUCPR. Preceptor de Clínica Médica da Residência de Pediatria do
Hospital Pequeno Príncipe. Médico Titulado em Terapia Intensiva Pediátrica pela Associação de Medicina Intensiva Brasileira.
Entre as muitas características que poderiam ser escolhidas para descrever a população idosa, a
heterogeneidade, certamente, é uma das merecedoras de maior destaque. A não ser entre os idosos,
em nenhum outro grupo etário são encontradas diferenças tão acentuadas, nos mais diversos
parâmetros, como condições gerais de saúde, estado cognitivo, funcionalidade, autonomia,
independência, grau de satisfação com a vida, etc. Isso representa um grande desafio aos
profissionais da saúde que atuam nas áreas de geriatria e gerontologia, tanto em termos técnicos
como em matéria de relação profissional-paciente.
Diferentemente do adulto jovem, que procura o médico predominantemente devido a problemas
agudos, a população idosa que busca atendimento médico costuma fazê-lo com certa regularidade,
para diagnóstico, monitoração e tratamento de problemas crônicos, de modo que a figura do médico
torna-se uma presença bastante corriqueira em suas vidas. Na verdade, não poucas vezes, os
pacientes idosos fazem acompanhamento simultâneo em vários especialistas diferentes, devido a
múltiplas comorbidades. Quando esses médicos não se conhecem ou não trocam informações sobre o
caso, o atendimento ao paciente se deteriora, o que infelizmente se constata com muita frequência na
prática clínica.
Além disso, outras peculiaridades do atendimento geriátrico incluem a necessidade de adaptação da
metodologia de trabalho às demandas de cada paciente (consultas com longa duração, grande
disponibilidade para ouvir, necessidade de interação com familiares e cuidadores), a versatilidade
de atuação em cenários diferentes (consultório, hospital, domicílio, instituições de longa
permanência), o enfrentamento de questões éticas e a participação na tomada de decisões complexas.

A consulta geriátrica
Sem deixar de lado a semiologia tradicional (anamnese e exame físico), a estrutura de uma consulta
médica geriátrica apresenta algumas características próprias, como a aplicação da Avaliação
Geriátrica Ampla (AGA). A AGA corresponde a um conjunto de instrumentos destinados à avaliação
e ao seguimento clínico dos pacientes idosos, que, por características intrínsecas ao processo do
envelhecimento e sua susceptibilidade e vulnerabilidade para múltiplas condições médicas, de
caráter biológico, psicológico e/ou social, necessitam de uma avaliação médica mais abrangente. A
AGA é composta de vários instrumentos de avaliação, muitos já validados no Brasil, com farta
literatura científica que comprova não somente sensibilidade e especificidade nesses rastreios, mas
principalmente redução do risco de desfechos indesejados na saúde global de uma pessoa idosa.
Embora a Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia tenha elaborado um protocolo de AGA
reconhecido como o modelo oficial recomendado por essa entidade, os diferentes serviços de
geriatria muitas vezes desenvolvem protocolos próprios, com algumas variações na escolha dos
instrumentos, para melhor atender às suas circunstâncias de trabalho. Apesar dessas variantes, a
AGA inclui ferramentas para avaliação cognitiva (como o mini-exame do estado mental, o teste do
desenho do relógio e outros), avaliação nutricional (como a mini-avaliação nutricional e
determinados parâmetros do exame físico), avaliação do humor (escala de depressão geriátrica),
avaliação de equilíbrio, marcha e risco de quedas (get up and go test e outros), avaliação funcional
(escalas de Katz, Lawton, medida de independência funcional), triagem de déficits sensoriais (cartão
de Snellen, teste do sussurro) e avaliação socioambiental.
Adicionalmente, outras informações de grande relevância para a atenção à saúde do idoso devem
ser coletadas rotineiramente em cada consulta, como a situação vacinal e, de modo muito especial, os
medicamentos em uso. Pacientes idosos são os principais usuários de medicamentos, e grande parte
das queixas relatadas em consultas geriátricas relaciona-se com os efeitos de fármacos em uso, pois
os idosos são também o grupo mais exposto e vulnerável a interações medicamentosas e efeitos
colaterais de drogas. Idosos ambulatoriais utilizam, em média, 3 a 4 medicamentos diferentes
diariamente e muitas vezes também possuem hábitos como automedicação, utilização de chás, ervas e
outros fitoterápicos, vitaminas e drogas homeopáticas, mas podem não reconhecer como
medicamentos os produtos utilizados nesses tratamentos, além de frequentemente omiti-los nas
anamneses. O mesmo se dá com medicamentos de uso esporádico e outras formas farmacêuticas,
como analgésicos, anti-inflamatórios, laxantes, pomadas e colírios.
Nesse contexto, uma estratégia frequentemente adotada em consultas geriátricas para identificar os
medicamentos empregados pelos idosos consiste em solicitar que tragam no retorno a “caixa” ou a
“sacola” de medicamentos. Não raramente, isso leva a descobertas desconcertantes, como a
manutenção do uso de fármacos já suspensos, o consumo de medicamentos fora do prazo de validade,
o uso cumulativo da mesma droga com nomes comerciais diferentes, a prática de automedicação, etc.

A relação de confiança entre o médico e o paciente na Geriatria


Uma consulta geriátrica pode ser motivada por diversas razões, que nem sempre são de ordem
técnica biomédica. Muitos idosos procuram o médico não somente por problemas de saúde; embora
os tenham, buscam-no também porque sentem necessidade de alguém que os ouça e lhes dê atenção.
A relação de confiança estabelecida entre o geriatra e seus pacientes pode torná-lo uma pessoa de
referência em suas vidas, a quem os idosos confidenciam suas preocupações, suas angústias e seus
sonhos, e a quem pedem conselho, mesmo que o médico tenha idade para ser seu filho ou neto. No
entanto, a relação de confiança entre o geriatra e o paciente se faz necessária também para permitir
que o idoso expresse livremente queixas que poderiam causar-lhe algum constrangimento, como
autopercepção de perda cognitiva, questões relativas à sexualidade, incontinência esfincteriana e
outras.
Como em qualquer especialidade médica, na geriatria a relação de confiança entre médico e
paciente estrutura-se essencialmente em boa comunicação e transparência de conduta. O geriatra
deve sempre explicar de forma compreensível ao paciente e a seus responsáveis as informações
necessárias sobre as doenças, seus desdobramentos e prognóstico, os eventuais efeitos adversos dos
medicamentosos prescritos e os riscos em torno de procedimentos diagnósticos e terapêuticos.
No entanto, essa relação de confiança também pode deteriorar-se, devido a comentários e atitudes
de ambas as partes. Para evitá-las, o geriatra deve assimilar com paciência e versatilidade certos
problemas corriqueiros em qualquer consultório, como faltas dos pacientes a consultas marcadas ou
seu comparecimento em datas e horários errados, motivadas por esquecimentos ou distrações (que
não acontecem somente com portadores de demência). Em grau mais elevado de importância,
eventuais falhas ocorridas no atendimento ou iatrogenias involuntárias devem ser admitidas pelo
médico, que na busca pelo melhor atendimento a seu paciente pode equivocar-se, como qualquer ser
humano no desempenho de sua profissão. Nesses casos, a postura ética esperada do médico é a de
procurar sanar prontamente os efeitos adversos de suas decisões e atitudes, e a existência de uma
sólida relação médico-paciente é o melhor recurso para contornar adversidades que podem ocorrer
mesmo aos médicos mais experientes e cuidadosos.

A relação com familiares e cuidadores de idosos


A relação médico-paciente na geriatria não se restringe ao médico e ao paciente, mas agrega também
os familiares e cuidadores do paciente, guardando certa relação com o que ocorre na pediatria. Isso
se manifesta de modo especialmente marcante no que se refere ao atendimento de pacientes
portadores de síndromes demenciais, pois são indivíduos necessitados de cuidadores, de modo que o
vínculo formado durante o atendimento médico alcança a dimensão de relação médico-paciente-
família ou médico-paciente-cuidador. Entretanto, na pediatria a criança cresce, desenvolve-se, ganha
autonomia e independência, torna-se progressivamente mais responsável por si, chegando, nas fases
mais avançadas da adolescência, a prescindir da presença dos pais nas consultas médicas. Na
geriatria, especialmente em se tratando de portadores de quadros demenciais, verifica-se o oposto: o
idoso torna-se funcionalmente mais dependente, devido à deterioração progressiva de suas funções
cognitivas, incluindo sua capacidade de comunicação e de percepção dos fatos à sua volta. Desse
modo, a participação dos cuidadores na consulta geriátrica é de fundamental importância para a
coleta das informações de que o médico necessita e também para a transmissão das orientações sobre
os cuidados a serem tomados em relação ao idoso.
Adicionalmente, o vínculo formado pela relação médico-paciente-cuidador torna natural que o
geriatra não polarize suas atenções exclusivamente no seu paciente idoso, mas o leva a dedicar a
devida atenção à pessoa do cuidador, que também deve ser reconhecido como um ser humano
necessitado de cuidados. Não se trata apenas de força de expressão, mas de uma realidade observada
cotidianamente, pois os cuidadores são, habitualmente, os familiares mais próximos do idoso, como
seu cônjuge e seus filhos, que em muitos casos se dedicam em jornada integral ao atendimento do
familiar doente, sem remuneração, folgas ou férias. Os cuidadores familiares muitas vezes também
são idosos e portadores de doenças crônicas, que frequentemente negligenciam a sua própria saúde
em prol da manutenção da rotina de cuidados prestados ao parente portador de demência. Cuidadores
de idosos são altamente propensos a desenvolver sintomas de um distúrbio psíquico de caráter
depressivo, precedido de esgotamento físico e mental intenso, conhecido como síndrome do estresse
do cuidador, ou síndrome de Burnout. Essa é uma entidade clínica de difícil manejo, especialmente
quando não há outras pessoas em condições de colaborar numa redistribuição da carga de trabalho
correspondente ao atendimento das necessidades diárias do idoso demente.

Os cenários por onde transita o geriatra


Diferentemente de outras especialidades médicas, que se vinculam explicitamente a determinados
locais de trabalho, na geriatria as circunstâncias obrigam os profissionais a desempenharem seu
trabalho em cenários variados, sendo os principais o consultório, o hospital, o domicílio e as
instituições de longa permanência. Logo, o geriatra deve ser suficientemente versátil para ajustar-se
às peculiaridades de cada ambiente, adaptando sua conduta profissional de acordo com as
possibilidades e limitações inerentes a cada local.
Nos atendimentos domiciliares, por exemplo, a dinâmica de trabalho requer cuidados especiais,
pois se trata do ambiente em que o paciente expõe sua intimidade pessoal e familiar, e no qual ele
vivencia seus costumes e impõe suas regras. Em visitas domiciliares, com certa frequência, o médico
constata a existência de hábitos nocivos em questões de higiene, alimentação e estilo de vida. Ao
tocar nesses assuntos, o geriatra deve proceder com discrição e sensibilidade, sem deixar de cumprir
seu dever de orientar, para que o paciente ou sua família não se sintam invadidos ou desrespeitados
dentro de sua própria casa. Quanto às limitações impostas pelos recursos semiológicos e
terapêuticos passíveis de emprego no domicílio, é preciso reconhecer a necessidade de selecionar os
tipos de atendimentos que podem ser realizados nesse local. Entretanto, quando não há possibilidade
de remover o paciente para outro cenário mais adequado para atendimento, impõe-se a necessidade
de adaptações das condutas tradicionais às circunstâncias locais.

Escolhas difíceis e aspectos éticos


O processo de envelhecimento e as doenças crônicas que a ele se associam fazem com que o geriatra
seja convidado a se manifestar em momentos críticos, como decisões de grande impacto na vida
íntima de seus pacientes. Situações como o aumento da dependência funcional podem tornar
desaconselhável que um idoso resida sozinho, pois os riscos de acidentes e a incapacidade para
desempenho de atividades básicas de vida diária tornam imprescindível a presença de
acompanhantes.
Cabe ao geriatra reconhecer esse tipo de situação e alertar ao paciente e a seus responsáveis quanto
à necessidade uma solução para essas questões. Entretanto, a decisão sobre as condutas práticas
(como a mudança do idoso para a casa de algum filho, mudança de algum familiar para a casa do
idoso, contratação de cuidadores, etc.) não deve ser transferida ou assumida pelo médico, mas sim
tomada pelo paciente e seus responsáveis, sob a orientação desse profissional. Outras questões
delicadas em que o geriatra é frequentemente chamado a intervir abrangem a interdição judicial de
um idoso portador de demência avançada, a orientação a parar de dirigir veículos quando as
condições físicas ou mentais não permitem fazê-lo com segurança e a transferência do idoso para
uma instituição de longa permanência.

A relação do geriatra com pacientes em processo de terminalidade


A morte é um evento inerente à vida do ser humano, e a idade avançada é, por si, um dos fatores de
maior relevância estatística para predição do risco de óbito. Desse modo, o atendimento de pacientes
que se encontram na fase final de suas vidas faz parte do cotidiano da geriatria, porém isso não é o
mesmo que afirmar que se trate de algo rotineiro para o geriatra. O atendimento a cada pessoa que se
encontra em processo de terminalidade e morte é único, e por mais que as condutas paliativas devam
ser exercidas segundo critérios técnicos, o aspecto humano do cuidado não pode ser padronizado de
forma cartesiana.
A assistência ao idoso em processo de morte deve incluir o alívio de seus sintomas físicos, mas
sem negligenciar as demais necessidades impostas por esse momento, especialmente a atenção aos
desejos manifestados pelo paciente, como completar alguma obra inacabada, reunir sua família, ou
receber assistência espiritual segundo sua crença religiosa.
Para proporcionar dignidade ao paciente moribundo, o geriatra deve ter a sensibilidade necessária
para evitar procedimentos desnecessários, que não alterarão o desfecho do caso, ou de benefício
duvidoso no controle dos sintomas. Por exemplo, em casos de doença grave terminal, a internação
hospitalar ou a transferência do paciente para a unidade de terapia intensiva só se justificam quando
se preveem melhorias no controle de sintomas mediante procedimentos que não poderiam ser
realizados fora desses ambientes.
Por fim, ao abordar o tema da terminalidade, não se pode deixar de tratar das questões éticas em
torno dos termos eutanásia, distanásia e ortotanásia. Eutanásia é a prática pela qual se abrevia a
vida de um enfermo incurável de maneira controlada e assistida por um especialista. Distanásia é a
prática pela qual se prolonga, através de meios artificiais e desproporcionais, a vida de um enfermo
incurável (“obstinação terapêutica”). Ortotanásia é o termo utilizado para definir a morte natural,
permitindo ao paciente morte digna, sem sofrimento, deixando a evolução e percurso da doença.
A prática da eutanásia é condenada pelo Código de Ética Médico e é ilegal no Brasil e na maior
parte do mundo. Embora seja permitida em alguns países, como a Holanda, atualmente as
comunidades médicas desses locais já organizam movimentos para reverter ou restringir as leis que a
autorizam. Isso decorre da constatação de abusos cometidos na prática da eutanásia e ao avanço da
medicina paliativa que, ao permitir melhor controle sintomático de pacientes terminais, muda sua
perspectiva da morte como única forma de alívio para seu sofrimento.
A distanásia, mesmo não sendo intencional, infelizmente é constatada com grande frequência, pois a
formação do médico leva-o, instintivamente, a encarar a morte como o “inimigo a ser combatido com
todas as armas possíveis”. Contudo, nessa guerra, o maior derrotado acaba sendo o paciente, que
mesmo fora de perspectiva de cura é submetido a procedimentos invasivos, dolorosos, caros e
inúteis. Para evitar essas situações, o médico deve avaliar criteriosamente cada passo de sua
conduta, considerando de forma realista quais os efeitos esperados dos recursos semiológicos e
terapêuticos que cogita empregar. Deve ser dada prioridade a procedimentos que tragam melhor
controle de sintomas causadores de sofrimento, em detrimento de outros de necessidade discutível ou
eficácia duvidosa.
Com relação à ortotanásia, não há infração ética nem crime em omitir o uso de meios artificiais
extraordinários para manter a vida do paciente em caso de doença grave irreversível. Sobre esse
tema, a resolução n. 1805/2006 do Conselho Federal de Medicina estabeleceu os critérios para a
prática da ortotanásia, e essa mesma resolução foi validada pela Justiça Federal em julgamento sobre
sua legalidade. Os maiores desafios em torno da ortotanásia consistem na identificação precisa do
quadro clínico do paciente como elegível para sua prática, no reconhecimento pelo médico das
limitações de sua ação para evitar a morte de seus pacientes. Adicionalmente, deve-se destacar a
necessidade de valorização do aprendizado e da prática do cuidado paliativo por médicos de
especialidades que atendem a pacientes terminais, como os geriatras, oncologistas e intensivistas.

Considerações finais
A relação médico-paciente é um dos fundamentos que torna a medicina, simultaneamente, ciência e
arte, e tem como ferramenta principal a comunicação clara e honesta, e como pressuposto
fundamental a confiança. Essa confiança é a garantia que permite ao idoso confiar ao médico sua
intimidade, revelar suas preocupações e encontrar no geriatra um apoio seguro em seu quotidiano e
também por ocasião da tomada de decisões difíceis próprias dessa fase de sua vida.
Na geriatria, a relação médico-paciente frequentemente estende-se aos familiares e cuidadores do
paciente idoso, que precisam não somente compartilhar da relação do confiança em relação ao
médico, como também devem ser alvos de especial atenção de sua parte, pelo elevado risco de
síndrome do estresse do cuidador.
O atendimento a idosos sob as perspectivas da terminalidade e da opção pelos cuidados paliativos
deve levar ao aprofundamento da relação médico-paciente, na qual o cuidado técnico deve
combinar-se com a atenção humana às diversas necessidades do paciente moribundo.
Referências bibliográficas
CONSELHO Federal de Medicina. Resolução n. 1805/2006. Disponível em:
<http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2006/1805_2006.htm>. Acesso em: 30 maio 2013.

NERI, A. L.; FORTES, A. C. G. Dinâmica do estresse e enfrentamento na velhice e sua expressão no prestar cuidados a idosos no
contexto da família. In: FREITAS, E. V.; PY, L.; CANÇADO, Fax; DOLL, J.; GORZONI, M. L. Tratado de geriatria e
gerontologia. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan, 2006.

SIQUEIRA, J. E. A relação médico-paciente em tempo de individualismo. Disponível em:


<http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/conteudo.phtml?tl=1&id=1347016&tit=A-relacao-medico-paciente-em-tempo-de-
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SOCIEDADE Brasileira de Geriatria e Gerontologia. Avaliação geriátrica ampla modelo oficial SBGG. Disponível em:
<http://www.sbgg.org.br/profissionais/arquivo/AGA-SBGG-livre.pdf>. Acesso em: 30 maio 2013.

TONIOLO-NETO, J.; PINTARELLI, V. L. Farmacologia aplicada ao paciente idoso. In: LOPES , A. C.; JOSÉ, F. F.; LOPES,
R. D. Guia de Clínica Médica. Barueri: Manole, 2007.

Vitor Last Pintarelli


Médico geriatra. Doutor em Ciências pela UNIFESP. Professor Titular de Semiologia da Universidade Positivo. Professor Adjunto de
Geriatria da UFPR. Coordenador do estágio em Geriatria da Fundação de Apoio e Valorização do Idoso. Diretor científico da
Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAz), Seção Paraná. Vice-presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia,
Seção Paraná.

Maurílio José Pinto


Professor Adjunto de Geriatria do curso de Medicina da Universidade Positivo. Mestre em Cardiologia pela UFPR. Especialista em
Geriatria Clínica pela Universidade de Paris VI (França). Especialista em Geriatria e Gerontologia pela SBGG/AMB. Chefe do Serviço
de Geriatria da Fundação de Apoio e Valorização do Idoso.
A relação médico-paciente é um ponto fundamental no tratamento de um paciente. O sucesso de um
procedimento cirúrgico necessita de uma comunicação efetiva entre o paciente e o cirurgião. Um bom
resultado implica que se desenvolva uma cumplicidade, e que o paciente seja informado e educado
da natureza de sua doença e das diferentes formas de tratamento. Isso faz com que o paciente e seus
familiares estejam envolvidos ativamente nas decisões a serem tomadas e assim se estabelece um
vínculo de confiança nas expectativas do tratamento proposto. Um excelente relacionamento melhora
a qualidade do atendimento, e não tem necessariamente relação direta com o aumento do tempo de
consulta ou com os custos do tratamento.
O cirurgião deve demonstrar empatia, preocupação e humanismo. Uma boa comunicação não
somente melhora a satisfação do paciente, como aumenta a satisfação do próprio profissional. Outro
fator importante é que a falta de comunicação e empatia ou a quebra da relação médico-paciente é o
principal fator motivador de processos contra médicos. [1]

Influência do sistema de saúde na relação médico-paciente


O grande número de usuários no Sistema Único de Saúde (SUS) e o constante aumento de pacientes
nos planos de saúde, associado a uma diminuição de honorários, têm feito com que o médico
estabeleça metas a serem cumpridas, fazendo com que o atendimento seja mais rápido. Porém, mais
rápido não deve necessariamente significar de pior qualidade. O médico atual necessita ser eficiente
e objetivo, mas o paciente não deve sentir que está em uma linha de produção.
Uma consulta pré-operatória inadequada faz com que a história seja obtida de maneira inadequada,
com dados incompletos, gerando dificuldades de identificar o problema real, tratamento inadequado,
perda da confiança, consequentemente mais tempo será dispendido futuramente. Como exemplo, um
paciente pode se apresentar no consultório cirúrgico com colelitíase e sintomas dispépticos. É
importante que o cirurgião esclareça ao paciente que os sintomas dispépticos poderão permanecer
após a colecistectomia. Assim, evita que o paciente fique insatisfeito ou diga que não foi tratado
adequadamente se, após a colecistectomia, os sintomas dispépticos persistirem. Um mínimo de boa
comunicação no pré-operatório evita um longo tempo de explicações no pós-operatório,
principalmente em pacientes ansiosos e com outras comorbidades.
O relacionamento entre a fonte pagadora e os médicos também tem afetado inapropriadamente a
relação médico-paciente. O sistema de saúde de convênios é competitivo, e isso faz com que
médicos sejam contratados com metas, tanto para um número expressivo de atendimentos quanto para
diminuição de custos das companhias. Em outras situações, os médicos são pagos de acordo com o
número de atendimentos e procedimentos, para que tentem ser o mais produtivos possível, o que
pode piorar a qualidade no atendimento.
Em alguns casos, o sistema de saúde, seja público ou privado, não contempla o direito de o
paciente ter acesso a um tipo de medicamento ou tecnologia utilizada, fazendo com que o médico
informe ao paciente que determinado procedimento cirúrgico não pode ser realizado. Assim, para o
paciente, o médico se torna o fornecedor de notícias ruins e é visto como o culpado de não poder
fornecer o melhor tratamento. Muitas vezes, o paciente acredita que o médico não quer ajudá-lo ou
não tem boa vontade para resolver o seu problema. Quando isso acontece, o relacionamento é
deteriorado, e uma barreira é criada.
Outro fator importante é que existe alta rotatividade de médicos. Em muitas situações, o cirurgião
que hoje realiza uma operação não será o mesmo que acompanhará o paciente durante o tratamento.
Como exemplo, em alguns hospitais do Sistema Único de Saúde, o paciente é operado por um
plantonista e outro cirurgião é que provém o cuidado de pós-operatório. Outro exemplo: o paciente
operado procura o seu cirurgião alguns meses depois e ele já não está atendendo pelo convênio.
Essas situações afetam a confiabilidade no médico.
Para o sistema de saúde privado ou público, é difícil conciliar os interesses dos médicos, dos
pacientes e da fonte pagadora. Assim, tem sido utilizado o princípio da medicina baseada em
evidências, e protocolos têm sido criados para minimizar custos e maximizar e garantir a qualidade
no tratamento. Porém, pacientes com necessidades diferenciadas no seu tratamento são ignorados,
fazendo com que o médico tenha de lidar com essa situação.

Atitudes do cirurgião
Uma comunicação adequada deve ser estabelecida. Os objetivos de uma boa comunicação são criar
um bom relacionamento interpessoal, facilitar o intercâmbio de informações e incluir o paciente nas
tomadas de decisões sobre o seu tratamento. Assim, o cirurgião deve permitir que o paciente
expresse seus sintomas, sentimentos e expectativas em relação ao tratamento, com as próprias
palavras. O tempo de uma consulta é menos crítico do que a percepção do paciente de que está
realmente sendo ouvido apropriadamente. Ele deve se sentir ouvido e possuir liberdade para fazer
questionamentos e expressar as suas preocupações. [2] Os principais tópicos a serem seguidos
durante a consulta médica estão demonstrados na Tabela 1.

Tabela 1. Relação médico-cirurgião

Avalie o paciente como um indivíduo e não somente como uma patologia

Demonstre empatia e respeito.


Ouça o paciente e crie um vínculo de confiança.
Informe o paciente das opções de tratamento.
Oriente dos riscos e benefícios do tratamento proposto.
Responda às perguntas honestamente.
Obtenha o consentimento informado.

Em avaliações de qualidade do atendimento, tem sido demonstrado que os principais fatores


avaliados por pacientes são o quanto o médico os ouve, valoriza as suas queixas, como são
explicados o diagnóstico e as opções de tratamento. Assim, principalmente quando o tempo de
consulta é limitado, é importante enfatizar a necessidade de uma boa comunicação e a qualidade de
interação.
Porém, muitos cirurgiões superestimam a sua habilidade de comunicação. Tongue et al. reportaram
que 75% de cirurgiões ortopédicos acreditavam que estavam se comunicando satisfatoriamente com
seus pacientes, enquanto somente 21% destes reportaram que houve uma comunicação adequada. [3]
Quando um paciente se apresenta com um problema para o cirurgião, emergencial ou eletivo, ele
procura as habilidades e conselhos de um especialista. O paciente coloca a sua vida nas mãos do
cirurgião, fazendo com que os princípios morais, conhecimento e habilidades técnicas do médico
norteiem o seu tratamento. O cirurgião deve colocar de lado seus interesses próprios e manter o foco
primariamente no paciente, agindo para promover e proteger seus interesses, e assim conquistar a sua
confiança. Não é somente o paciente que confia no cirurgião, mas também os familiares que
concordam com a conduta a ser tomada. Uma vez que a confiança é estabelecida, surgem várias
expectativas. Eles esperam que o cirurgião faça tudo e da melhor forma possível para salvaguardar a
vida, assegurando inclusive que outros profissionais da saúde, como anestesistas, enfermeiros,
fisioterapeutas ajam da mesma forma. Também criam expectativas de um bom resultado, e esperam
do cirurgião honestidade e abertura para discussões sobre como está evoluindo o tratamento. [4]
A natureza invasiva e potencialmente com risco de óbito ou de sequelas das terapias cirúrgicas
pressupõe um grau extraordinário de confiança do paciente no médico. Inicialmente, o paciente está
sob o comando da situação e escolhe o cirurgião para realizar o seu tratamento. Em conjunto,
decidem pelo tratamento e, durante a operação, o cirurgião e a equipe possuem o poder de decisões,
tendo o controle total da situação. Essa transferência de poder de decisões para o cirurgião
raramente é vista em outras áreas da medicina.
Assim, a confiança entre o paciente e o cirurgião difere de qualquer outra área da medicina, pois a
especialidade cirúrgica é atrelada a resultados imediatos. Um cirurgião frequentemente é avaliado
por resultados, complicações e mortalidade, e muitas vezes são realizadas somente uma a duas
consultas no pré-operatório, sendo necessário que um vínculo de confiança seja feito rapidamente.
Em outras especialidades, a confiança é desenvolvida em um tempo mais prolongado, em que o
paciente e médico chegam a um diagnóstico e um plano de tratamento. A evolução do quadro clínico
é constantemente reavaliada, e o paciente possui controle sobre o seu tratamento. Assim, a confiança
na relação médico-paciente tem tempo para se desenvolver e se estabelecer.
Little e Fearnside demonstraram que, quanto mais grave é a doença, maior é a necessidade de
confiança. Porém, quanto maior o risco de vida, maior é o grau de vulnerabilidade desse sentimento.
Assim, em casos cirúrgicos, a confiança é um sentimento mais frágil. A decepção com um resultado,
por menor que seja, faz com que o paciente muitas vezes aja de maneira desproporcional, devido à
vulnerabilidade emocional dele diante da sua doença. [5]
A comunicação deve ser adequada para o entendimento do paciente, ou seja, deve-se ter cuidado ao
utilizar uma linguagem muito técnica. O cirurgião deve sempre possuir o conhecimento e habilidade
técnica de tratar determinada patologia, e ao mesmo tempo ter habilidade de transmitir a informação,
construindo uma relação de confiabilidade. Tem sido demonstrado que uma boa comunicação, tanto
no pré quanto no pós-operatório, melhora os resultados e aumenta a satisfação do paciente. Existe
correlação direta entre uma boa relação médico-paciente e a habilidade de tolerar a dor, recuperação
de uma doença, retorno às atividades, melhora do estado emocional e menor tempo de internação. [5]
[6] [7]
Sempre deve ser oferecido o melhor para cada indivíduo, independentemente de qual será a fonte
pagadora. Isso não quer dizer que os médicos devem ignorar os custos implicados em suas decisões,
mas esforços devem ser realizados para minimizar custos desnecessários. A utilização do princípio
de medicina baseada em evidência deve ser respeitada, para evitar gastos excessivos em tratamentos
fúteis ou não comprovados. O cirurgião deve ter conhecimento de quando a qualidade do tratamento
proposto pode ser afetada por restrição na utilização de determinado equipamento ou técnica, e deve
colocar a saúde em primeiro lugar. Como exemplo, atualmente alguns planos de saúde não
contemplam cirurgia para obesidade mórbida a ser realizada por laparoscopia, e sabe-se que o
benefício é indiscutível. Sendo assim, o médico deve orientar a respeito dos benefícios a serem
obtidos, independentemente de o paciente ter acesso a essa tecnologia ou não. O cirurgião deve
conversar com o paciente e explicar o porquê de utilizar determinada técnica ou tecnologia.
Outro fator importante é que o médico não deve possuir conflito de interesse, de ordem pessoal ou
financeira. O cirurgião deve prestar atenção para incentivos financeiros ou não financeiros que
podem estar sendo obtidos, seja pelo hospital, seja pela fonte pagadora.
Ao fazer um diagnóstico da patologia a ser tratada cirurgicamente, o cirurgião deve informar ao
paciente e seus familiares dos riscos e dos benefícios do tratamento. Entre os benefícios, deve
orientar todas as formas existentes para o tratamento, bem como explicar o porquê de utilizar
determinado método e quais são os resultados esperados. Entre os riscos, deve informar a respeito
da possibilidade de infecção, sangramento, necessidade de reoperações, riscos de não melhorar os
sintomas, cicatrizes e inclusive o risco de óbito. Não existem procedimentos isentos de riscos.
Assim, o paciente se sente seguro diante de um resultado inesperado, e o cirurgião não se sente
acuado diante do paciente e de seus familiares. Importante também é obter o consentimento
informado assinado pelo paciente antes do procedimento a ser realizado.

Consentimento informado
O consentimento informado é um documento necessário ao atual exercício da medicina, como um
direito do paciente e um dever moral e legal do médico, pois, sendo o paciente dono de seu próprio
interesse, para decidir se prefere manter-se no estado de saúde em que se apresenta ou submeter-se a
um tratamento que não é isento de riscos, deve ser devidamente esclarecido pelo profissional que o
atende.
O consentimento informado representa uma manifestação expressa da autonomia da vontade do
paciente, ou seja, é recomendável que seja por escrito para evitar maiores discussões sobre se o
consentimento foi fornecido e se foi de modo suficiente ou não. O cirurgião deve explicar para cada
paciente ou seu representante legal as implicações de um tratamento cirúrgico, e se assegurar de que
o paciente entendeu e que teve oportunidade de ter qualquer o questionamento respondido. Mesmo
que o consentimento informado seja um formulário impresso, o cirurgião deve rever com o paciente
os termos do consentimento e documentar no prontuário médico os termos do consentimento.
Basicamente, o consentimento informado deve possuir as informações apresentadas na Tabela 2.

Tabela 2. Elementos do consentimento informado

Diagnóstico da patologia

Orientar sobre tratamento proposto e outras alternativas de tratamento.


Indicar riscos e benefícios do tratamento.
Indicar consequências do tratamento.
Assegurar-se de que o paciente entendeu o tratamento proposto.
Assegurar que o paciente teve suas perguntas respondidas.
Assegurar que o paciente deseja realizar o tratamento.

Importante destacar que o paciente legalmente capaz tem o direito de recusar tratamento, mesmo que
essa recusa possa resultar em deficiência permanente ou até mesmo em óbito. O paciente tem o
direito de participar no seu plano de tratamento e é responsabilidade do médico assistente assegurar
que o paciente entendeu a respeito de sua doença, para que tome, então, suas decisões. O
consentimento informado, portanto, é uma garantia de que o paciente foi informado para depois tomar
a decisão que julgar correta.
Para proteger um cirurgião de processos legais, é importante documentar o processo de
comunicação feito com o paciente. Um bom prontuário médico do consultório com a descrição das
orientações dadas ao paciente e um consentimento informando padrão específico para uma cirurgia
são documentos importantes em um processo ético, além de demonstrar que realmente houve uma
conversa entre médico e paciente sobre o tema.
Outro fator importante, ao obter o consentimento informado, é que o cirurgião não deve exagerar
nos benefícios potenciais da cirurgia proposta nem fazer promessas e garantias. Duas testemunhas
capazes e maiores de idade também devem assinar o termo de consentimento.
Para pacientes menores de idade, os pais ou os tutores legais devem participar do consentimento
informado e fornecer assinatura em procedimentos eletivos. Quando pacientes são mentalmente
incapacitados ou os pais ou representantes legais de menores de idade se recusam a fazer um
tratamento, o cirurgião pode requerer assistência jurídica.
Atualmente, algumas sociedades cirúrgicas, como o Colégio Brasileiro de Cirurgia Digestiva,
disponibilizam manuais de esclarecimento de várias doenças, para as quais existem termos de
consentimento apropriados.

Problemas na relação paciente e cirurgião


Existem muitas barreiras que devem ser vencidas para estabelecer um bom relacionamento médico-
paciente, entre as quais fatores relacionados ao paciente e ao próprio cirurgião, como ansiedade,
medo, falsas expectativas, excesso de trabalho, medo de processos, entre outros. [8]
Tem sido observado que a habilidade de se comunicar tende a declinar em estudantes de medicina
conforme progridem durante o curso e, com o passar do tempo, os cirurgiões também tendem a
perder a visão holística no cuidado do paciente. [9] Frequentemente pacientes cirúrgicos são tratados
pelo cirurgião por um tempo limitado, retornando ao seu clínico ou médico de família para
acompanhamento de outras comorbidades ou para tratamento oncológico clínico. Isso pode ser
entendido pelo paciente como uma forma de abandono. Essa situação é muito comum, por exemplo,
após a realização de um procedimento cirúrgico realizado para o tratamento da obesidade mórbida.
É importante o cirurgião orientar o paciente antes da operação que o acompanhamento clínico será
realizado por outro médico, caso assim desejar.
Quando acontece um desentendimento entre o paciente e o cirurgião, o médico não pode abandonar
o paciente. O abandono do paciente é definido como término da relação médico-paciente em um
momento crítico do tratamento, sem que seja oferecida a chance de encontrar outro médico
igualmente qualificado para o atendimento. Para provar que foi abandonado, o paciente deve
demonstrar que o médico o abandonou em um momento crítico do tratamento sem uma razão
adequada e sem tempo para procurar outro médico. Um cirurgião que não finaliza a relação médico-
paciente de maneira apropriada pode ter sua conduta ética questionada. Assim, caso haja
necessidade de finalizar uma relação médico-paciente, o paciente e seus familiares devem ser
avisados, os motivos devem ser explicados e deve ser dado um tempo para que o paciente procure
outro médico. O prontuário médico e todas as explicações devem ser fornecidos ao outro médico
caso o paciente julgue necessário. [10] Vale ressaltar que o cirurgião não pode abandonar o paciente
por motivos financeiros ou em uma situação de emergência.
Os pacientes geralmente escolhem o cirurgião, mas este pode aceitar ou recusar o paciente. A livre
escolha permite que tanto o paciente quanto o cirurgião possam iniciar ou terminar a relação médico-
paciente. Quando o paciente concorda com um procedimento cirúrgico, porém condiciona ou exige
resultados que não podem ser garantidos, o cirurgião deve optar por se retirar do caso.
Concluindo, os cirurgiões devem fazer todo o esforço possível para conquistar e manter a confiança
do paciente e seus familiares em todas as fases de avaliação, pré e pós-operatória. Devem assegurar
ao paciente tempo e explicações suficientes para o entendimento do procedimento cirúrgico, riscos,
alternativas de tratamentos, etc. O cirurgião deve respeitar a decisão do paciente. O termo de
consentimento não é um mero documento, mas sim um processo que requer tempo, clareza e
explicações. Deve-se demonstrar honestidade, segurança e responder às perguntas e queixas com
cortesia e respeito. No momento de tomar uma decisão, o cirurgião deve indicar o tratamento mais
adequado, independentemente de pressão do paciente, de outros médicos ou incentivos financeiros.
Uma relação de confiança traz bons resultados tanto para o cirurgião quanto para o paciente.
Referências bibliográficas
[] CRUZ, M.; ROTER, D.; CRUZ, R. F.; WIELAND, M.; COOPER, L. A.; LARSON, S.; PINCUS, H. A. Psychiatrist-patient verbal

and nonverbal communications during split-treatment appointments. Psychiatr Serv., v. 62, n. 11, pp. 1361-8, nov. 2011.
[8] FAZEL, S.; GULATI, G.; LINSELL, L.; GEDDES, J. R.; GRANN, M. Schizophrenia and violence: systematic review and meta-
analysis. PLoS Med., v. 6, n. 8, pp. 1000-120, ago. 2009.
[1] GENTIL, V. Comunicação pessoal. Local: Editora, 1998.
[9] GOLEMAN, D. Emotional intelligence. New York: Bantam Books, 1995.
[3] HAHN, S. R.; THOMPSON, K. S.; WILLS, T. A.; STERN, V.; Budner, N.S. The difficult doctor-patient relationship: somatisation,
personality and psychopathology. J Clin Epid, v. 47, n. 6, pp. 647-57, 1994.
[5] HAHN, S. R.; THOMPSON, K. S.; WILLS, T. A.; STERN, V.; BUDNER, N. S. The difficult doctor-patient relationship:
somatisation, personality and psychopathology. J Clin Epid, v. 47, n. 6, pp. 647-57, 1994.
[2] MARTIN, D. J.; GARSKE, J. P.; DAVIS, M. K. Relation of the therapeutic alliance with outcome and other variables: a meta-
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[7] MARTINS, M. C. F. N. Relação profissional -paciente: subsídios para profissionais de saúde. Psychiatry On Line Brazil,
n. 2, p. 3, 1997.
[6] SELLERS, R. V.; SALAZAR, R.; MARTINEZ JÚNIOR, C.; GELFOND, S. D.; DEUTER, M.; HAYES, H. G.; KETCHUM, N.;
POLLOCK, B. H. Difficult encounters with psychiatric patients: a South Texas Psychiatry practice-based research network (PBRN)
study. J Am Board Fam Med., v. 25, n. 5, pp. 669-75, set-out. 2012.

Roberto Ratzke
Professor Assistente do Departamento de Medicina Forense e Psiquiatria da UFPR. Mestre em Psiquiatria pela FMUSP. Diretor Clínico
da Clínica Heidelberg.

Osmar Ratzke
Professor Adjunto do Departamento de Medicina Forense e Psiquiatria. Diretor Geral da Clínica Heidelberg.
Introdução
Em 1998, Valentim Gentil Filho, Professor Titular de Psiquiatria da USP, proferiu uma palestra aos
novos residentes de psiquiatria cujo tema era a “identidade do psiquiatra”. À sua própria indagação
“Os psiquiatras são especialistas em quê?”, o professor respondeu: na “relação médico-paciente”. [1]
A relação médico-paciente é fundamental em qualquer especialidade médica, especialmente em
uma especialidade em que os doentes não aceitam ou percebem que estão doentes. Os portadores de
transtornos mentais por vezes são trazidos contra sua própria vontade, por familiares, ou, atualmente,
são até mesmo internados por determinação do poder judicial, como, por exemplo, nas internações
compulsórias. A relação médico-paciente tem um papel fundamental na psiquiatria, que é o de servir
como uma psicoterapia no sentido amplo do termo, que engloba toda relação humana com o
propósito de mudança terapêutica. Em psicoterapias, a qualidade da relação muitas vezes tem maior
impacto na mudança do comportamento do paciente que a técnica utilizada. [2]
Os aspectos característicos na relação médico-paciente em psiquiatria levam a uma relação entre
dois seres humanos especialmente difícil e complexa, pois envolvem aspectos psicológicos,
culturais, sociais, que não podem ser ignorados, além do modelo biomédico tradicional. Em
atendimento primário, relações médico-paciente pouco eficazes muitas vezes têm como pano de
fundo os transtornos mentais. [3] Em serviços de psiquiatria, aspectos psicossociais, relacionados à
pessoa e não necessariamente a aspectos biomédicos podem ocupar o maior tempo da consulta. [4]

A psiquiatria e os pacientes “difíceis”


Os pacientes considerados difíceis ou cuja relação médico-paciente é difícil do ponto de vista do
médico, em atendimento primário, são frequentes. São pacientes com maior disfunção ocupacional,
utilização de serviços de saúde e insatisfação com o atendimento, isto é, a relação médico-paciente
também é vista como prejudicada pelos pacientes. Os pacientes difíceis em atendimento primário
apresentam maior chance de transtornos mentais comuns, como somatoformes, do pânico, de
ansiedade generalizada, distimia, depressão maior, abuso e dependência de álcool. [5] Isso demonstra
a importância do reconhecimento dos principais transtornos mentais em atendimento primário ou
programas de saúde da família, do manejo inicial adequado e do encaminhamento a um serviço
especializado quando necessário.
Em um serviço ambulatorial de psiquiatria, cerca de 15% dos pacientes foram considerados
difíceis, sendo os portadores de esquizofrenia, abuso de álcool ou outras substâncias e transtornos de
personalidade os que melhor se enquadravam nessa definição. [6]
Uma das principais dificuldades no manejo dos pacientes difíceis com transtornos mentais é a
ausência de percepção de seu estado mórbido ou da necessidade de tratamento. Muitas vezes o
clínico geral é o único profissional de saúde que esse paciente aceita frequentar. Nesses casos, é
fundamental para este médico uma excelente relação médico-paciente, a fim de lidar com os
preconceitos e barreiras ao tratamento que impedem uma melhora do quadro clínico e qualidade de
vida do paciente.

O papel do paciente na relação médico-paciente em Psiquiatria


A relação médico-paciente em psiquiatria pode ser classificada em três níveis de acordo com o
menor ou maior papel do paciente como agente na relação: uma atitude do paciente de passividade,
de cooperação ou de participação mútua.
Na atitude de passividade, o paciente encontra-se impotente, incapaz de participar ativamente no
seu tratamento, devido à gravidade de sua doença ou de uma estrutura de ego muito frágil, usando
mecanismos de defesa primitivos, como regressão a fases anteriores do desenvolvimento
psicossocial, como a infância. Martins considera essa relação semelhante à relação mãe-lactente. [7]
São típicas as relações em que o médico tem toda a responsabilidade sobre a ação, e o paciente está
em uma atitude de passividade: em cirurgias, por exemplo, em que se encontra anestesiado, ou em
UTIs, quando está em coma. Em psiquiatria, tal situação é configurada em pacientes com retardo
mental grave ou profundo ou em psicoses graves, como alguns tipos de esquizofrenia. Eles não
apresentam crítica alguma de seu estado mórbido e o tratamento acaba sendo involuntário ou
compulsório. Muitos desses pacientes acabam sendo interditados, deixando seus direitos cíveis aos
cuidados de curadores, em geral membros da família. Nesses casos, a relação se dá através destes,
na forma de cooperação ou de participação mútua.
A forma de cooperação, segundo Martins, se assemelha na relação entre pais e filhos. Os pais,
assim como os médicos, são os detentores do saber, da responsabilidade e têm papel mais ativo na
tomada de decisões que o filho ou o paciente. Esse tipo de relação é comum em nossa cultura, na
qual a autonomia não é tão valorizada como em outros países, como nos Estados Unidos. Os
pacientes, mesmo estando lúcidos, muitas vezes abstêm-se de opinar sobre o próprio tratamento.
Essa relação é comum na maior parte dos transtornos mentais, por exemplo, em transtornos
somatoformes, conversivos, ansiosos, depressão, em psicoses mais leves. Nesses casos, cabe ao
profissional lentamente trazer maior responsabilidade ao paciente pelo seu tratamento, tentando levá-
lo a um modelo de participação mútua entre dois adultos.
O modelo ideal de relação médico-paciente em portadores de doenças crônicas é o de participação
mútua-recíproca. A maioria dos transtornos mentais é crônica, sem prejuízo da crítica. É um modelo
que prevê uma relação de longa duração, entre dois adultos, em que ambos têm papel ativo e dividem
a responsabilidade pela tomada de decisões. Esse modelo auxilia na redução do estigma em relação
aos transtornos mentais, e em relação à atividade do psiquiatra. Porém, o médico deve estar
preparado para um paciente que preza a sua autonomia, questiona ativamente o tratamento, que
procura várias opiniões sobre o seu transtorno, que lê sobre seus sinais e sintomas na internet,
exigindo maior conhecimento e atualização dos profissionais de saúde.

O papel do médico na relação médico-paciente em Psiquiatria


O médico diante de um portador de transtorno mental inicialmente deve lidar com seus próprios
preconceitos. Não deve esperar um paciente que “não tem doença alguma” ou que “quer chamar a
atenção”. Deve lembrar que há uma pessoa à sua frente, com história de vida, relações familiares,
concepções a respeito do que tem, que podem ser corretas ou não. Estudantes de medicina ou
médicos muitas vezes têm medo do paciente psiquiátrico, devido ao potencial de violência ou
agressividade. Porém, portadores de psicose, por exemplo, têm risco de violência semelhante à
população geral, sendo mais vítimas de violência que perpetradores. [8]
Na relação médico-paciente com uma pessoa portadora de transtorno mental grave, é essencial que
o médico tenha conhecimento sobre psicopatologia geral e experiência no trato desses pacientes. O
paciente, por exemplo, pode ser hostil, agressivo à presença do médico, sem qualquer motivo ou
atitude do profissional. Cabe ao profissional aceitar que tal comportamento não é pessoal, não é
voltado especialmente ao médico, mas, sim, o modo como o paciente está lidando com seus sintomas,
o modo como ele interage com todas ou quase todas as pessoas ao seu redor. Quando o médico
percebe isso, é mais fácil manter a tranquilidade para uma boa relação médico-paciente.
A comunicação por parte do médico deve ser cuidadosa, sucinta, porém utilizando termos simples,
respeitando o nível cultural e educacional do paciente. Há muitos preconceitos por parte de
familiares e pacientes dos sintomas de transtornos mentais, sendo muitas vezes tais sintomas
interpretados como “problema espiritual”, “falta de fé”, “sem-vergonhice”, assim o profissional
assume um papel importante na redução do estigma e correção das distorções de conceitos ligados a
transtornos mentais.
Quando se relaciona com os pacientes, o médico também deve se relacionar consigo mesmo. Ele
deve procurar desenvolver uma inteligência emocional. São características de pessoas com
inteligência emocional desenvolvida: percepção consciente acurada e monitorização de suas
próprias emoções, modificação de suas próprias emoções tornando-as apropriadas ao contexto,
reconhecimento e respostas adequadas às emoções de outras pessoas, habilidade em negociação de
relacionamentos próximos, capacidade de focar emoções (motivação) em um objetivo desejado,
adiando gratificações e controlando impulsos. (9) O desenvolvimento dessas características pode
ocorrer com cursos, psicoterapia ou com a própria prática médica, através da experiência com
diversos tipos de pessoas e situações clínicas.
Conclusão
A relação médico-paciente tem fundamental importância na psiquiatria. Sem ela, pode-se dizer que
não existe prática psiquiátrica.
Na relação, o paciente pode ter diversas posturas que a facilitam ou dificultam. Cabe ao médico
conhecer essas posturas, lidar com os próprios preconceitos, conhecer as síndromes psiquiátricas
através da psicopatologia, sabendo que as atitudes do paciente não são pessoais, mantendo a
serenidade e profissionalismo, através do desenvolvimento de uma inteligência emocional.
Referências bibliográficas
[4] AXELROD, D. A.; GOOLD, S. D. Maintaining Trust in the Surgeon-Patient Relationship Challenges for the New Millennium. Arch

Surg.,v. 135, n. 1, pp. 55-61, 2000.


[7] BRÉDART, A.; BOULEUC, C.; DOLBEAULT, S. Review Doctor-patient communication and satisfaction with care in oncology.
Curr Opin Oncol., v. 17, n. 4, pp. 351-4, 2005.
[9] DIMATTEO, M. R. The role of the physician in the emerging health care environment. West J Med., v. 168, n. 5,
pp. 328-333, 1998.
[2] DUFFY, F. D.; GORDON, G. H.; WHELAN, G.; COLE-KELLY, K.; FRANKEL, R.; BUFFONE, N. et al. Assessing competence
in communication and interpersonal skills: the Kalamazoo II report. Acad Med., v. 79, n. 6, pp. 495-507, 2004.
[10] ENDING the physician-patient relationship. Canada: The College of Physicians and Surgeons of Ontario. Disponível em:
<http://www.cpso.on.ca/uploadedFiles/policies/policies/policyitems/ending_rel.pdf>. Acesso, em: 9 ago. 2014.
[8] FENTIMAN, I. S. Review Communication with older breast cancer patients. Breast J., v. 13, n. 4, pp. 406-9, 2007.
[1] HA, J. F.; LONGNECKER, N. Doctor-patient communication: a review. Ochsner J., vo. 10, n. 1, pp. 38-43, 2010.
[6] LITTLE, P.; EVERITT, H.; WILLIAMSON, I.; WARNER, G.; MOORE, M.; GOULD, C. et al. Observational study of effect of
patient centredness and positive approach on outcomes of general practice consultations. BMJ., v. 323, n. 7318,
pp. 908-11, 2001.
[5] ROTER, D. L. Physician/patient communication: transmission of information and patient effects. Md State Med J.,
v. 32, n. 4, pp. 260-5. 1983.
[3] TONGUE, J. R.; EPPS, H. R.; FORESE, L. L. Communication skills for patient-centered care: research-based, easily learned
techniques for medical interviews that benefit orthopaedic surgeons and their patients. J Bone Joint Surg Am.,
v. 87, pp. 87:652-658, 2005.

Eduardo José Brommelstroet Ramos


Professor Adjunto de Anatomia da UFPR. Mestre e Doutor em Cirurgia pela UFPR. Research Fellow na Universidade Estadual de
Nova Iorque (EUA). Clinical Fellow em Transplante de Fígado, Rim e Pâncreas na Clínica Mayo (EUA).

Julio Cezar Uili Coelho


Professor Titular e Coordenador da Disciplina de Cirurgia do Aparelho Digestivo e Transplante Hepático da UFPR. Ex-Clinical Fellow
da Universidade de Illinois, Chicago (EUA). Doutor em Medicina pela Universidade de Limburg, Maastricht (Holanda). Doutor em
Medicina e Ex-Professor Visitante da Universidade de Heidelberg (Alemanha). Pós-Doutoramento e Ex-Professor Assistente Visitante
da Universidade do Texas, Houston (EUA). Livre-Docente pela USP, Ribeirão Preto, SP.
A relação médico-paciente, base da medicina, assim como os métodos de diagnóstico e terapêutica,
precisa ser cada vez mais aprimorada. As relações sociais são extremamente dinâmicas e isso impõe
um ritmo que faz com que muitas vezes as relações interpessoais fiquem em segundo plano. No
entanto, no atendimento médico isso não pode jamais ocorrer, pois, por mais simples ou complexo
que seja o motivo que nos leva a um atendimento, o início se fará por meio de uma relação
interpessoal de confiança e grande expectativa quanto ao retorno da credibilidade depositada no
profissional médico.
O sucesso da consulta médica está vinculado à comunicação estabelecida, à interação e ao grau de
empatia obtido. Na ginecologia, habitualmente, as expectativas, desejos e exigências da paciente
transcendem à queixa que motivou a consulta médica. Esses sentimentos fazem com que o
atendimento venha a ser direcionado de maneira abrangente à saúde da mulher, tanto nas esferas
física e emocional como em todas as relações do universo feminino.
Para melhor entendimento do amplo raio de ação de uma simples consulta ginecológica, serão
abordados alguns tópicos que ressaltam esse contexto.

Acolhimento inicial
Este primeiro passo se constitui em um importante alicerce para que a relação médico-paciente se
concretize adequadamente. Deve ser dado propiciando-se um local seguro para a consulta. Para isso,
é importante que a paciente perceba uma relação de respeito desde a acolhida inicial pela secretária
ou enfermeira. Um consultório bem montado, com o conforto mínimo e condições de discrição e
confidencialidade são fatores importantíssimos.
A postura do ginecologista ao cumprimentar a paciente e tratá-la pelo nome poderá demonstrar,
logo de início, que se trata de um profissional receptivo e digno de confiança. Durante a consulta a
paciente deve sentir-se acolhida, protegida de interferências externas e sem a presença de ruídos ou
fatores que venham a causar distrações, para que possa revelar as suas queixas sem interrupções e
sem receio de que possa estar sendo ouvida em outros ambientes.
A anamnese deve transcorrer da maneira mais livre e espontânea possível, sendo os dados
registrados em ordem fixa apenas na anotação médica, evitando-se imprimir à sua obtenção o caráter
de depoimento engessado na sequência das perguntas. Como veremos a seguir, trata-se de colher
dados dos aspectos mais variados, porque a vida íntima da paciente será revelada, merecendo,
portanto, uma postura cuidadosa e técnica do ginecologista.

Anamnese
A história clínica em ginecologia, sabidamente, deve compreender vários itens que lhe impõem um
fluxo de informações a ser seguido atentamente. Partindo-se de uma saudação inicial que reflita a
disponibilidade do médico para ouvir a paciente e de uma pergunta aberta que permita a elaboração
da queixa principal e história mórbida atual, diretamente relacionadas ao motivo do atendimento,
seguem-se itens que vão explorar detalhes da vida reprodutiva, do instante hormonal em que vive a
paciente, da sua sexualidade, da compreensão de fenômenos fisiológicos do seu trato genital e das
inter-relações com órgãos que se avizinham à pelve feminina.
Itens específicos são produzidos no sentido de compor a visão geral do organismo feminino e com
isso interpretam-se adequadamente as respostas, separando o que pode ser fisiológico de um lado e o
que for patológico de outro. Com esse objetivo, serão analisados alguns itens que devem compor a
história clínica da paciente sob o ponto de vista das implicações diretamente envolvidas na relação
médico-paciente.

Antecedentes menstruais: com o detalhamento do fluxo menstrual, a frequência e em


especial a percepção da paciente, por meio de suas reações, podem-se obter dados
importantes sobre o equilíbrio hormonal. É o momento de indagar se os dias da menstruação
lhe causam algum impacto que possa ocasionar dificuldades nas atividades diárias, quer
laborativa, de estudo ou de relacionamento. Cria-se um espaço livre para a paciente
explanar sobre suas eventuais modificações físicas e emocionais, à procura da quebra do
paradigma da fase pré-menstrual como período delicado. Na maioria das vezes, a tensão
pré-menstrual (TPM) está atrelada a um rótulo pejorativo, podendo levar a paciente a não
revelar alterações, ainda que fisiológicas, durante esse período para não expor sua suposta
fragilidade.

Antecedentes obstétricos: a vida obstétrica, as gravidezes e os puerpérios, assim como os


planos para iniciar ou interromper a fertilidade, são partes igualmente indissociáveis da
anamnese. Nesse momento, as pacientes se sentem muito à vontade e receptivas a passarem
suas experiências, mesmo quando não bem sucedidas, pois no universo feminino a vida
reprodutiva alcança um dos maiores graus de relevância. O escutar atento de detalhes dos
períodos pré-natais ou da adaptação aos primeiros dias do recém-nascido transforma-se em
eco claro da plena interação médico-paciente. Exemplo típico da relevância desses dados na
vida da mulher observa-se quando está presente no consultório a mãe como acompanhante da
paciente. Dificilmente no momento de inquirirem-se os dados obstétricos a mãe se deixa
furtar a oportunidade de revelar experiências por ela vivenciadas durante a gravidez da
paciente. A ambivalência dos sentimentos entre ser mãe e as consequências à sua vida
profissional, assim como dificuldades no relacionamento com o parceiro, são problemas que
naturalmente podem emergir e devem ser escutados e orientados cautelosamente. A busca do
planejamento familiar consciente e adequado para cada paciente deve ser a meta do
ginecologista, expondo dados que permitam a reflexão da paciente e respeitando a sua
decisão.

Antecedentes mamários: diante do temor das doenças das mamas com as quais as mulheres
hoje convivem, qualquer alteração, qualquer sintoma, automaticamente, gera a procura de
uma consulta imediata, tornando-se essencial a pronta disponibilidade do ginecologista em
atendê-la e tranquilizá-la. Dessa forma, mesmo ciente de que dificilmente alguma queixa
mamária passaria despercebida por uma paciente, deve-se ressaltar a importância da atenção
especial aos sintomas mamários, incentivando o auto-exame. Durante a consulta, o
autoexame deverá ser demonstrado de modo didático. Outro dado especial se refere aos
detalhes da amamentação, ao incentivo e ao preparo para a adesão incondicional e por
tempo prolongado da amamentação materna exclusiva. Os temores da paciente e os aspectos
relacionados à autoestima naquela que apresente alterações morfológicas importantes das
mamas devem ser explorados e orientados, pois podem ser causadores de alterações na
sexualidade, inicialmente não verbalizados pela paciente.

Antecedentes sexuais: detalhes da vida sexual devem ser inquiridos com especial cuidado,
pois se trata de um momento em que a vida íntima da paciente é revelada e, portanto, uma
postura cautelosa e respeitosa deve ser adotada. As disfunções sexuais podem ser
negligenciadas se o ginecologista não procurar dar espaço para que a paciente verbalize as
queixas que podem ser o verdadeiro e único motivo da consulta. É importante, nesse
momento, trazer à compreensão que dados da vida sexual, como dor ou sangramento, não
podem passar despercebidos, pois podem ser importantes indícios de patologias específicas
hormonais ou tumorais. Antecedentes de doenças de transmissão sexual, o conhecimento das
principais doenças, os meios de transmissão e prevenção serão indagados, corrigindo-se
eventuais erros de entendimento e estimulando os cuidados e a orientação para, diante de
sinais de alerta, buscar o atendimento adequado. É o momento de revelarem-se hábitos e
gêneros, as relações hetero e homossexuais, estabelecendo-se um diálogo ao mesmo tempo
compreensivo e técnico, totalmente isento de indício de qualquer juízo de valor do médico
assistente.
Anticoncepção: as suas variadas formas implicarão diretamente em sintomas cíclicos ou
acíclicos, assim como na adequação da vida sexual. Trata-se, igualmente, de expor de
maneira clara a importância de a paciente estar atenta à melhor forma de se precaver da
gravidez se não for o seu desejo. A presença desse item obrigatório na anamnese é um bom
exemplo do caráter educativo do qual se reveste a relação médico-paciente em ginecologia.
Em especial, no atendimento de adolescentes, durante a consulta, devem ser expostos
abertamente os métodos anticoncepcionais. Uma explanação didática simples poderá ser a
porta aberta para que essa adolescente se sinta à vontade e retorne para solicitar a
prescrição de um método contraceptivo antes ou logo no início de sua vida sexual.
Leucorreia: esse item revela a necessidade de explorarem-se dados da fisiologia feminina
para que suas alterações possam ser precocemente percebidas. É preciso entender o grau de
percepção da mulher às suas secreções fisiológicas, o muco vaginal e o muco cervical, que
podem se constituir, mesmo quando fisiológicos e adequados, em uma queixa importante de
desconforto ou não adaptação à vida sexual. Da mesma forma, deve-se destacar a
importância da perfeita caracterização pela paciente para que alterações patológicas sejam
percebidas e reveladas de imediato.
Queixas referentes a outros órgãos e aparelhos: ressaltam-se os sintomas pertinentes aos
órgãos vizinhos, em especial dos aparelhos gastrointestinal e urinário. Sintomas específicos,
mesmo não sendo relacionados a patologias desses órgãos, mas sim a condições
fisiológicas, podem causar repercussões com grande desconforto na região pélvica feminina.
Nesse quesito, duas possibilidades devem ser consideradas: primeira, os sintomas refletirem
doenças dos aparelhos vizinhos e, portanto, a anamnese cuidadosa revelará que a verdadeira
causa da alteração motivadora da consulta não é de origem ginecológica; segunda, se o
relato for negligenciado, pode-se deixar escapar a possibilidade de intervir em aspectos
fisiológicos do aparelho urinário e gastrointestinal, que se corrigidos levarão a paciente a
um maior conforto e adequação.
Condições e hábitos de vida: dados gerais do dia a dia da paciente, do seu trabalho ou
estudo, atividades físicas, aspectos nutricionais, tabagismo, ingesta de bebidas alcoólicas,
uso de drogas ou outras substâncias de uso contínuo irão compor o perfil psicossocial da
paciente. Esses dados revestem-se de grande importância e devem ser exaustivamente
inquiridos. Exemplificando, o tabagismo aumenta o risco de fenômenos trombo-embólicos
quando associado a medicações hormonais que são frequentes na vida da mulher, como os
anticoncepcionais orais ou terapias de reposição hormonal na menopausa. Da mesma forma,
o incentivo constante à prática de atividade física irá em muito beneficiar a paciente, tanto
para o seu preparo para a gravidez e para a recuperação pós-parto como para adequação ao
climatério e pós-climatério, enfim, para uma vida sempre saudável. Temas estéticos podem
ocupar espaço nesse momento, pois têm reflexo importante na adesão a certos tratamentos e
implicação direta na sexualidade da mulher. Esse é o momento da anamnese, em que o
ginecologista reafirma a sua condição de participante ativo nos cuidados à mulher, impondo
o seu caráter de promotor da saúde em todos os momentos de vida. Essa interação fortalece
a relação médico-paciente, tornando-a duradoura e refletindo traços de confiança e amizade.
Reflexo desse envolvimento é a continuidade do atendimento ao longo dos anos que se faz
entre o mesmo médico e a mesma paciente. Com frequência, o ginecologista detentor de uma
relação médica consistente encontra-se agraciado com a possibilidade de acompanhar a
mesma paciente desde a adolescência, nas suas gravidezes, na maturidade e no período de
climatério.

A interpretação dos dados da anamnese


Na análise das principais queixas motivadoras das consultas ginecológicas, ao contrário de muitas
especialidades médicas, vemos que inexiste o predomínio de doenças como suas determinantes.
Culturalmente, a mulher brasileira transformou a consulta ginecológica em um elo fundamental para a
sua saúde. As mães orientam sistematicamente as filhas para que façam a prevenção do câncer
ginecológico, em especial da citologia oncótica de Papanicolaou, que é largamente realizada e se
encontra à disposição das mulheres praticamente em todos os municípios brasileiros. Igualmente, as
mulheres são condicionadas a receber orientação anticoncepcional, procuram esclarecer sintomas
relativos à menstruação e às secreções vaginais. Procuram ter um seguimento exemplar no período
pré-natal e preocupam-se precocemente com as alterações que possam ocorrer no climatério. Isso
resulta em consultas periódicas e consequentemente o ginecologista irá fornecer apenas orientações,
sem a necessidade de prescrições médicas, numa grande parcela dos atendimentos.
Evidentemente, não se pode negar a relevância da queixa principal, mas ressalta-se que todos os
itens da anamnese anteriormente citados devem ser explorados exaustivamente. A motivação inicial
da consulta pode, não raras vezes, ocultar o verdadeiro motivo da procura assistencial. Pode-se citar
como exemplo uma adolescente que apresenta queixas inespecíficas de corrimento ou cólicas
menstruais, mas que, na verdade, anseia pela orientação de um método anticoncepcional. Mulheres na
menacme com queixas menstruais inespecíficas podem estar vivenciando dificuldades na vida sexual
e este dado só será revelado se pesquisado pelo médico. Da mesma forma, mulheres no climatério,
ao indicarem desconforto com fogachos, muitas vezes estão vivenciando sintomas depressivos que,
se não explorados na anamnese, tornam a consulta para ela inútil e frustrante.
A postura atenta, não relegando qualquer informação, e estando sempre pronto para dar uma palavra
de orientação, fará do ginecologista uma pessoa de especial importância na vida da paciente, o que
pode ser verificado pelos retornos frequentes com o mesmo profissional por anos seguidos.

O exame ginecológico
O exame ginecológico será realizado após a cuidadosa anamnese, na qual o ginecologista deve ter
estabelecido um grau de confiança com a paciente e criado nela a inequívoca percepção do respeito
que irá nortear todo o procedimento. Nesse momento, é essencial ter instalações adequadas e
protegidas para a paciente se preparar para o exame e ao mesmo tempo sentir-se segura em todos os
seus passos. A presença de uma auxiliar é fundamental, e deve ficar posicionada lateralmente à
paciente e manter com o médico examinador um diálogo estritamente profissional. Todas as etapas
do exame serão realizadas de modo a expor o mínimo possível a paciente, respeitando-se a sua
intimidade, porém sem descuidar da semiologia ginecológica completa.
Na eventualidade de solicitação da presença da mãe ou marido na sala de exames, deve-se
obedecer à vontade expressa da paciente. Caso assim ela o deseje, o acompanhante será colocado
preferencialmente à cabeceira da paciente, obedecendo à determinação do médico assistente, que, ao
mesmo tempo em que atende o desejo da paciente, estabelecerá de maneira nítida os limites por ele
permitidos para a presença na sala.
Ao dialogar com a paciente após o exame, todas as instruções deverão ser dirigidas a ela de
maneira não excessivamente técnica e, caso haja acompanhante, a ele será conferido apenas o papel
de ouvinte secundário. Nesse momento, independentemente da causa motivadora da consulta, a
revisão dos dados referentes à saúde geral, reprodutiva e prevenção de câncer ginecológico devem
ser revistos e acentuados enfaticamente.

A finalização do atendimento
Como demonstrado, a consulta ginecológica é ampla, sendo mais bem caracterizada como um
momento destinado à saúde da mulher. O motivo dessa consulta é variado: orientação relativa a
fenômenos fisiológicos do ciclo menstrual; fenômenos hormonais em diferentes fases da vida, como
da puberdade ao climatério; procura de controle dos ciclos menstruais e fertilidade; prevenção dos
cânceres ginecológicos; ou simplesmente com o motivo de acompanhamento da saúde, intensificando
a relação médico-paciente ano após ano na vida da mulher.
Na atualidade, em plena era digital, o ginecologista pode utilizar-se de meios que permitam
esclarecimentos complementares à paciente e com isso obter maior aderência às suas
recomendações. A disponibilidade de ser contatado por mensagens via telefone celular ou via
internet deve ser incentivada. Muitas vezes, questões simples como o que fazer com o esquecimento
da tomada de uma pílula, o modo de utilizar determinado medicamento, a orientação quanto a um
inesperado atraso menstrual, a percepção de uma menstruação com um fluxo pouco maior, cólicas
mais intensas ou um novo sintoma no período pré-menstrual podem ser esclarecidas de imediato,
tranquilizando a paciente e orientando-a até que possa receber, se necessário, atendimento médico
complementar. Existe uma tendência maior para o uso de mensagem via internet pela possibilidade
de inclusão de informações mais detalhadas, além da segurança de que essas mensagens somente
serão acessadas, por meio de senha, pelo interlocutor. Essa forma de comunicação pode ser
oferecida à paciente e, para ser efetivada, deve-se assegurar da anuência dela, bem como
disponibilidade e confidencialidade na troca de informações.
Por último, ressalta-se a crescente participação dos ginecologistas na atenção primária à saúde,
atuando, com destaque, na prevenção e promoção da saúde. Além do caráter habitual da consulta
para a pesquisa de processos patológicos, os aspectos educativos e preventivos constituem-se em um
importante elo na promoção da saúde da mulher, seja qual for a etapa de vida em que se encontre no
momento da realização da consulta ginecológica.
Referências bibliográficas
BEREK, J. S.; HILLARD. P. J. A. avaliação e comunicação iniciais. In: BEREK & NOVAK. Tratado de ginecologia. 14. ed. Rio de
Janeiro: Guanabara Koogan, 2008. p. 3-19.

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Edson Luiz Almeida Tizzot


Professor Adjunto de Ginecologia e Bioética da UFPR. Mestre e Doutor em Ginecologia. Fellow FAIMER (Foundation for
Advancement of International Medical Education and Research). Ex-coordenador do Curso de Medicina da UFPR.
A semiologia na pesquisa clínica
Abordaremos alguns aspectos importantes sobre o papel da pesquisa clínica na prática médica,
que estuda e avalia as terapêuticas e assim contribui para a Medicina Baseada em Evidências.
Inicialmente faremos um relato sobre a importância e a estrutura de um Centro de Pesquisa Clínica,
tema pouco discutido durante a formação médica e áreas afins. Com isso, esperamos despertar
interesse de alunos de medicina e médicos para essa importante área que contribui significativamente
com a evolução da medicina e nas tomadas de decisão.

Estudos clínicos
Com o objetivo de aprimoramento do conhecimento médico, um estudo clínico é realizado em
voluntários humanos obedecendo a todos os preceitos de ética em Pesquisa Médica, regida por
princípios da ética e respeito ao ser humano. Além disso, possui uma regulamentação específica e de
abrangência universal.
Há dois tipos de estudos clínicos: os ensaios clínicos e estudos observacionais. O ensaio clínico ou
de intervenção compara uma nova terapêutica ou procedimento com uma já usual, ou ainda com
placebos, que não contêm princípios ativos. Esses ensaios clínicos são realizados com base em um
protocolo específico, e seguem uma normatização científica contendo um racional do estudo,
objetivos, critérios de seleção e não seleção dos pacientes, procedimentos a serem adotados, plano
de acompanhamento, estatística e todas as especificações pertinentes à segurança do paciente.
Os estudos observacionais avaliam os resultados em um determinado grupo de pacientes após
receberem intervenção medicamentosa ou dispositiva terapêutica, como parte da rotina médica, não
sendo atribuídas intervenções específicas.
1. Fases dos Estudos Clínicos
O desenvolvimento das novas medicações começa geralmente em ensaios pré-clínicos em animais,
para demonstrar a eficácia, antes de ser testado em seres humanos. O desenvolvimento de uma nova
droga e a sua utilização na prática médica demoram muitos anos e passam por várias fases, a saber:

Fase I: realizada em pequeno número de pacientes e testa a segurança da terapêutica. São


analisados a tolerância do novo fármaco, os efeitos colaterais e a segurança de doses
progressivas até a dose máxima e sua possível toxicidade.
Fase II: é uma fase destinada a avaliar a eficácia do medicamento e inclui um número maior
de pacientes, geralmente 20 a 100 com o mesmo tipo de problema.
Fase III: é realizada a comparação entre os tratamentos padrões e a nova proposição e
avaliados os efeitos colaterais. Geralmente são incluídos um número grande de pacientes,
como na cardiologia e endocrinologia, que atingem entre 10 a 20 mil pacientes. Nessa fase é
comum à randomização dos pacientes, isto é, os pacientes ficam com seus tratamentos
conforme o padrão estabelecido pelo seu médico, e a nova terapêutica é testada com a
substância ativa comparada com placebo. Em muitos estudos com embasamento científico
prévio é realizada a comparação entre a medicação usual e a nova, na forma aleatória. Com
essa fase concluída e a terapêutica avaliada mostrando a comprovação da eficácia e
efetividade, os órgãos regulatórios dos governos aprovam a medicação para uso comercial.
Fase IV: aqui os pacientes são avaliados geralmente após a comercialização do produto, por
tempo prolongado e em número de pessoas muito grande. São monitorados os efeitos
colaterais, qualidade de vida e efeitos em diferentes populações.

2. Objetivos dos estudos clínicos


Os estudos clínicos possibilitam o aumento do conhecimento médico relacionado ao diagnóstico,
tratamento e prevenção das doenças. O propósito de estudar o tratamento medicamentoso já
conhecido é verificar a eficácia e a eficiência em uma nova indicação clínica. Nos novos
medicamentos, o estudo visa analisar a evidência científica e fornecer dados para a regulamentação
do produto, se comprovada sua eficácia.
3. Etapas dos estudos clínicos e a ênfase na semiologia
Na pesquisa clínica os estudos são realizados seguindo uma sequência operacional, que descrevemos
sucintamente a seguir:
a) Visita de seleção
A etapa inicial é a seleção dos pacientes, que serão recrutados para o estudo se preencherem os
critérios de inclusão e não os de exclusão. Nessa fase, o paciente e o investigador ainda não
decidiram a entrada no estudo. Após análise do investigador e a verificação de todos os critérios, o
paciente será selecionado. A partir disso, de maneira voluntária, a decisão é do paciente ou
testemunha imparcial, que pode ser um familiar ou acompanhante. Em pacientes menores de idade e
em pessoas com dificuldade de decisão, os pais ou responsáveis legais poderão opinar e assinar.
b) Visita de inclusão
Nos pacientes elegíveis, a próxima etapa é uma dos mais importantes, que é a obtenção do termo de
consentimento livre e esclarecido (TCLE). Após verificar que o sujeito da pesquisa preencheu os
critérios do estudo, esse termo assegura toda a proteção ética ao paciente, para que o estudo seja
conduzido de maneira correta, bem como que todos os pontos do estudo sejam esclarecidos antes do
início. Deve ser aceito voluntariamente pelo sujeito, após plena apresentação do protocolo e seus
objetivos. Após o aceite, tanto o pesquisador quanto o paciente assinam, datam e ficam com cópias
do TCLE. Esse termo deve ser obtido com tempo suficiente para o paciente ou representante legal
decidirem se participarão ou não do estudo. O ambiente deve ser favorável, tranquilo e sem nenhuma
interferência da equipe do centro de pesquisa ou qualquer coação.
Uma das mais importantes etapas do estudo é a visita inicial, onde o relacionamento médico-
paciente é instituído, que se refletirá por todo o estudo. A permanência no estudo e bom seguimento
do tratamento dependerão desse contato com a equipe do centro de pesquisa. Nessa visita inicial, é
fundamental a aplicação da semiologia clássica. Desde a queixa principal e todos os detalhes da
história clínica são analisadas pelo investigador. Mesmo que a doença do foco principal do
medicamento ou aparelho a ser estudado seja específico, todas as doenças prévias devem ser
exploradas ao máximo.
Outros pontos a serem especificados são os tratamentos anteriores, com a data de início e final de
cada terapêutica. Esses detalhes são importantes para que a análise do novo tratamento
investigacional instituído não seja confundido com os eventos adversos que devem ser muito bem
relatados durante o estudo.
Os hábitos de vida precisam ser relatados e podem refletir em todos os níveis do tratamento prévio
ou do produto investigacional.
Os dados vitais são obtidos seguindo todos os preceitos técnicos da aferição da pressão arterial,
frequência cardíaca, peso e altura. Conforme o protocolo, alguns dados específicos são solicitados,
como medida das pregas cutâneas, relação cintura-quadril e circunferência abdominal.
O exame físico é iniciado pela inspeção, descrevendo os aspectos ectópicos, a descrição das
características das mucosas, pele e fâneros. Na palpação o objetivo é detectar a presença de
linfomegalia, massas, verificação do ictus cardíaco, frêmitos, visceromegalias e edemas. A ausculta
deve incluir a verificação da presença de sopros carotídeos, cardíacos, campos pleuropulmonares,
sopros abdominais e outros. A percussão é útil nos casos de macicez visceral e derrames pleurais e
outros. Mesmo que o foco de um produto investigacional tenha objetivos específicos, o exame físico
precisa ser detalhado e reportar qualquer alteração. Assim, se os achados forem frequentes e comuns
a vários centros de pesquisa do mundo, pode-se estar à frente de um dado relevante na avaliação
final do produto.
c) Guia de Boa Prática Clínica (GCP)
Criado após a Segunda Guerra Mundial com a finalidade de regularizar a pesquisa envolvendo seres
humanos, evitando assim as atrocidades observadas durante a guerra. Foi elaborado pela União
Europeia, Japão, Estados Unidos, Canadá, Austrália, Países Nórdicos e Organização Mundial de
Saúde (WHO).
O Manual Tripartite Harmonizado (Conferência Internacional de Harmonização), aprovado em 17
de julho de 1996, cita: “A Boa Prática Clínica é um padrão de qualidade científica e ética
internacional para o desenho, condução, registro e relato de estudos que envolvam a participação de
seres humanos”. A aderência a esse padrão assegura a garantia pública de que os direitos e a
segurança de bem-estar dos pacientes participantes desses estudos estão protegidos, consoantes com
os princípios que têm sua origem na Declaração de Helsinki, bem como a credibilidade dos dados do
estudo clínico.
Essas normatizações éticas no Brasil são regidas pela Comissão Nacional de ética em Pesquisa
(CONEP), que está diretamente ligada ao Conselho Nacional de Saúde (CNS). A comissão foi criada
pela Resolução do CNS 196/96 como uma instância colegiada, de natureza consultiva, educativa e
formuladora de diretrizes e estratégias no âmbito do Conselho.
Cada centro ou núcleo de pesquisa precisa estar ligado a um Comitê de Ética em Pesquisa da
cidade ou da própria instituição.
O Guia de Boa Prática Clínica determina que o investigador principal seja o responsável pela
condução do estudo dentro da instituição onde o estudo será realizado. Como geralmente o centro de
pesquisa possui vários componentes, o investigador principal poderá ser o coordenador responsável.
4. Estrutura de um Centro de Pesquisa Clínica
Além do coordenador responsável, que geralmente é o investigador principal, a estrutura é composta
de outros coordenadores que podem ser profissionais da área médica e afins. É necessária uma
pessoa que tenha maior contato com o paciente, geralmente uma enfermeira. Além da ajuda ao
médico, faz a dispensação e a orientação do produto investigacional. Muitos centros possuem uma
farmacêutica para essa função. É necessária uma pessoa treinada para a coleta de materiais
fisiológicos (sangue, urina e outros) e com curso e certificação em remessa do material fisiológico
para o laboratório central.
Uma coordenadora precisa tratar dos aspectos regulatórios, recebimento de material
investigacional, documentos, correspondências, correio eletrônico e outros aspectos gerenciais.
Além disso, os dados do paciente precisam ser enviados ao centro coordenador através de
programas especiais, com conexão direta ao centro internacional, que controla todos os dados do
estudo. Os sub-investigadores são médicos que devem ter treinamento na pesquisa, dedicação
suficiente e a certificação de Boas Práticas em Pesquisa.
A estrutura do centro deve oferecer condições de adequado atendimento com todo o material
básico. Os equipamentos especiais podem fazer parte da instituição.
Os pacientes são encaminhados de outros serviços e dos setores do próprio hospital, tais como
setor de internação, emergência, outras especialidades, ambulatório, etc. O investigador principal é
responsável pela divulgação e esclarecimento dos protocolos dos estudos. O prontuário do paciente
precisa ser completo e conter todas as informações necessárias: identificação completa, história da
doença atual, história pregressa, condições e hábitos de vida, exame físico, detalhamento dos exames
complementares realizados e plano de conduta. O arquivo deverá ficar sob a responsabilidade do
centro de pesquisa durante 15 anos.
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Dalton Bertolin Précoma


Professor Titular de Cardiologia da PUCPR. Doutor em Cardiologia pela USP. Mestre em Cardiologia pela UFPR. Fellow do American
College of Cardiology e da European
Society of Cardiology.
A relação médico-paciente é o pilar fundamental da medicina. Entretanto, o seu ensino é
negligenciado na maioria das escolas médicas do Brasil.
Apesar da constante e crescente judicialização da medicina no Brasil, ainda é a quebra da relação
médico-paciente a principal causa de ações contra médicos e instituições de saúde no país.
O Direito Médico tem por característica que um mesmo ato pode levar a vários e diferentes
processos. Por exemplo, um paciente insatisfeito, usuário de um plano de saúde de uma cooperativa
de serviços médicos, pode buscar seus direitos de forma administrativa junto à cooperativa e junto
ao Conselho de Medicina. Pode ainda fazer uma notícia crime, embrião de um processo criminal e,
ainda, buscar uma indenização em um processo civil.
Do ponto de vista legal, a relação médico-paciente envolve direitos e deveres de ambas as partes.
Entretanto, essa não é uma relação direta apenas entre o médico e o paciente, pois também podem
estar envolvidos os familiares do paciente, outros médicos e as operadoras de planos de saúde.
Exercer a medicina, antes de tudo, é conhecer o Código de Ética Médica (CEM), que é a Resolução
do Conselho Federal de Medicina de número 1.931/2009 [1], e as demais resoluções do Conselho
Federal de Medicina.
Porém, não basta ao médico conhecer apenas o CEM, pois como cidadão tem a obrigação de
conhecer a Constituição Federal [2] e as demais leis do ordenamento jurídico nacional, no que se
refere à sua profissão, com especial destaque para tópicos do Código Civil [3], do Código Penal [4],
do Código de Defesa do Consumidor [5], do Estatuto da Criança e do Adolescente [6], do Estatuto do
Idoso [7] e da Lei dos Planos de Saúde [8].
Os dois primeiros princípios fundamentais do CEM definem, de maneira inequívoca, a posição do
paciente na relação médico-paciente:
I – A Medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e será
exercida sem discriminação de nenhuma natureza.
II – O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá
agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional.

Como não poderia deixar de ser, a medicina gera direitos e deveres para ambas as partes na
relação médico-paciente. O médico tem autonomia e liberdade para exercer a sua profissão. A
autonomia está definida no Princípio Fundamental VII:
VII – O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços
que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações
de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa
trazer danos à saúde do paciente.

O médico não precisa atender a todos, pois não é obrigado a atender a quem não deseje ou em
situações que contrariem a sua consciência. O melhor exemplo de situação contrária aos ditames da
consciência do profissional é o aborto legal [4], em que a paciente tem direito de fazê-lo, porém o
médico contrário ao aborto não tem a obrigação de executá-lo.
Porém, essa não é uma autonomia plena, pois se limita em prol do paciente em três situações:
quando não houver outro médico; nos casos de urgência ou de emergência, pois caracteriza omissão
de socorro; e nas situações que, mesmo tendo mais de um médico, a atuação de determinado
profissional, se não se der, poderá trazer danos ao paciente, como na situação em que, na presença de
vários médicos e somente um neurocirurgião, este não pode se recusar a drenar um hematoma
extradural em expansão.
Além da autonomia, o médico também tem liberdade no atendimento ao paciente, que está definida
no Princípio Fundamental VII do CEM:
VIII – O médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto, renunciar à sua
liberdade profissional, nem permitir quaisquer restrições ou imposições que possam
prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho.

Essa liberdade não pode ser renunciada pelo médico e serve para que as Instituições com quem o
médico se relaciona (hospitais, planos de saúde, sociedades de classe, etc.) não limitem a sua
atuação em prol do paciente para o cumprimento de normas burocráticas ou financeiras.

Então, são direitos fundamentais do médico a liberdade e a autonomia, porém jamais o médico pode
esquecer que quem se trata é o paciente, que tem o direito de decidir sobre a sua pessoa e seu bem-
estar. Isso é definido no Princípio Fundamental XXI:
XXI – No processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus ditames de
consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de seus pacientes, relativas
aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao
caso e cientificamente reconhecidas.
Entretanto, no respeito à decisão do paciente, o médico não precisa e não deve infringir os ditames
de sua consciência, a legislação vigente e a ciência médica. Também deve evitar a obstinação
terapêutica nos casos de doentes terminais, como prescreve o Princípio Fundamental XXII do CEM:
XXII – Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de
procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua
atenção todos os cuidados paliativos apropriados.
O Código de Ética Médica de 2009 trouxe em relação ao seu antecessor de 1988 a perda da
punibilidade por infrações aos Princípios Fundamentais, fazendo com que esses princípios sejam
reproduzidos novamente nos artigos das secções de Direitos do Médico e de Deontologia do Código.
Isso é visto nos Direitos do Médico II, VIII e IX.
É direito do médico:
II – Indicar o procedimento adequado ao paciente, observadas as práticas cientificamente
reconhecidas e respeitada a legislação vigente.
VIII – Decidir, em qualquer circunstância, levando em consideração sua experiência e
capacidade profissional, o tempo a ser dedicado ao paciente, evitando que o acúmulo de
encargos ou de consultas venha a prejudicá-lo.
IX – Recusar-se a realizar atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos
ditames de sua consciência.
A parte deontológica do CEM é composta de 118 artigos, divididos em 11 capítulos, sendo o
Capítulo V dedicado exclusivamente à relação médico-paciente. Todos os 118 artigos iniciam com
norma impositiva: “É vedado ao médico”, seguida do texto dessa vedação em cada artigo.
No Capítulo III, que aborda a responsabilidade profissional, o artigo segundo diz:
Art. 2º É vedado ao médico: Delegar a outros profissionais atos ou atribuições exclusivos da
profissão médica.

A vedação é para a proteção do paciente, para que pessoas não capacitadas e habilitadas pudessem
atuar, por delegação do médico, atos exclusivos da profissão. Porém, isso foi profundamente
alterado pela Lei do Ato Médico [9], que retirou da profissão de médico vários atos exclusivos, a
começar pela exclusividade de fazer diagnóstico e propor tratamento.
A medicina gera uma obrigação de meio, em que o médico coloca todo o seu conhecimento e a sua
técnica a serviço no paciente, não se comprometendo com o resultado alcançado [10]. Porém, essa
obrigação de meio não é entendida por corrente majoritária do Judiciário Brasileiro no que se refere
à cirurgia plástica estética, que entende gerar uma obrigação de resultado, em que o médico se
compromete com o resultado obtido pelo procedimento.
O médico é sempre responsável pelos seus atos no atendimento ao paciente, mesmo quando o
paciente autoriza o tratamento ou que estejam atuando diversos médicos no caso. Também, o médico
não deve assumir responsabilidade por ato que não praticou. Isso é definido nos artigos 3º, 4º e 5º do
CEM, que dizem ser vedado ao médico:
Art. 3º Deixar de assumir responsabilidade sobre procedimento médico que indicou ou do qual
participou, mesmo quando vários médicos tenham assistido o paciente.
Art. 4º Deixar de assumir a responsabilidade de qualquer ato profissional que tenha praticado
ou indicado, ainda que solicitado ou consentido pelo paciente ou por seu representante legal.
Art. 5º Assumir responsabilidade por ato médico que não praticou ou do qual não participou.
Os insucessos de tratamento podem acontecer e fazem parte do exercício da medicina. Algumas
vezes são decorrentes da quebra de responsabilidade de Instituições (por exemplo, falta de um
material cirúrgico) ou mesmo do próprio paciente (por exemplo, não seguir o tratamento prescrito),
mas para fazer essa alegação o médico tem que ter a devida comprovação de acordo com o artigo 6º
do CEM:
Art. 6º Atribuir seus insucessos a terceiros e a circunstâncias ocasionais, exceto nos casos em
que isso possa ser devidamente comprovado.
A omissão de socorro a uma pessoa em necessidade é crime [4] e é mais grave quando cometida por
um médico, que por sua profissão tem o conhecimento da gravidade que isso pode trazer para o
paciente. O médico pode evitar essa lamentável situação com a observância dos artigos 7º, 8º e 33
do CEM, que diz ser vedado ao médico:
Art. 7º Deixar de atender em setores de urgência e emergência, quando for de sua obrigação
fazê-lo, expondo a risco a vida de pacientes, mesmo respaldado por decisão majoritária da
categoria.
Art. 8º Afastar-se de suas atividades profissionais, mesmo temporariamente, sem deixar outro
médico encarregado do atendimento de seus pacientes internados ou em estado grave.
Art. 33 Deixar de atender paciente que procure seus cuidados profissionais em casos de
urgência ou emergência, quando não haja outro médico ou serviço médico em condições de
fazê-lo.
O Capítulo IV do CEM aborda os Direitos Humanos e três de seus artigos são altamente
relevantes na relação médico-paciente, a começar pelo artigo 23, que diz ser vedado ao
médico:
Art. 23. Tratar o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua dignidade ou
discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto.
Obviamente que esse artigo se aplica a todos, médicos e não médicos nas relações interpessoais,
pois é uma questão de educação pessoal e um dever expresso na Constituição Federal.
Em todas as situações, por mais difícil que seja para o médico, este deve sempre garantir ao
paciente o direito da decisão final sobre o seu tratamento, pois é ele que necessita do tratamento e a
ele que está voltada toda a atenção do médico, em respeito aos artigos 24 e 22 do CEM, que afirmam
ser vedado ao médico:
Art. 24. Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua
pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo.
Art. 22. Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após
esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte.
Se a decisão final do tratamento é do paciente, cabe ao médico o respeitar o artigo 31 do
CEM, que abre o Capítulo V que aborda a relação do médico com pacientes e familiares:
Art. 31. É vedado ao médico: Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal
de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em
caso de iminente risco de morte.
As limitações dessa decisão se fazem quando há risco iminente de morte, quando o médico tem
obrigação de atuar em prol da vida do paciente; ou quando a decisão do paciente vai de encontro dos
ditames da consciência do médico ou contra os postulados da ciência médica. Nessas situações, o
médico deve esclarecer sua posição, solicitando ao paciente que procure atendimento em outro
serviço de saúde que concorde com as suas decisões.
Mesmo na função de docente, o médico deve obter o devido consentimento do paciente, como se vê
no artigo 110 do CEM:
Art. 110. É vedado ao médico: Praticar a Medicina, no exercício da docência, sem o
consentimento do paciente ou de seu representante legal, sem zelar por sua dignidade e
privacidade ou discriminando aqueles que negarem o consentimento solicitado.
Cabe ao médico utilizar de todos os meios de diagnóstico e tratamento em prol do paciente,
evitando, porém, a obstinação terapêutica, nos casos de doente terminal, sem, contudo, jamais
praticar qualquer ato que possa caracterizar eutanásia, mesmo a pedido do paciente ou de seus
familiares. Isto é visto nos artigos 32 e 41 do CEM:
Art. 32. É vedado ao médico: Deixar de usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e
tratamento, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente.
Art. 41. É vedado ao médico: Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu
representante legal.
Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os
cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou
obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua
impossibilidade, a de seu representante legal.
Na maioria das vezes, o primeiro contato do médico com o paciente se dá em uma consulta médica,
na qual o médico deve respeitar o pudor do paciente e, preferencialmente, deve sempre estar
acompanhado por uma funcionária sua durante o exame físico. Somente após a anamnese e o exame
físico é que o medico pode prescrever o tratamento do paciente, em respeito aos artigos 37 e 38 do
CEM:
Art. 37. É vedado ao médico: Prescrever tratamento ou outros procedimentos sem exame direto
do paciente, salvo em casos de urgência ou emergência e impossibilidade comprovada de
realizá-lo, devendo, nesse caso, fazê-lo imediatamente após cessar o impedimento.
Art. 38. É vedado ao médico: Desrespeitar o pudor de qualquer pessoa sob seus cuidados
profissionais.
Ao terminar a consulta, o médico deverá informar o diagnóstico e prognóstico ao paciente, ou
conforme diz o artigo 43 do CEM, ao seu representante legal:
Art. 34. É vedado ao médico: Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os
riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar
dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal.
O médico não deve, em hipótese alguma, exagerar na gravidade da doença do paciente, pois isso
não é correto no bom relacionamento com o paciente. Deve procurar utilizar, dentro das condutas
possíveis e efetivas para o caso, a mais simples, evitando complicar o tratamento, em respeito ao
artigo 35 do CEM:
Art. 35. É vedado ao médico: Exagerar a gravidade do diagnóstico ou do prognóstico,
complicar a terapêutica ou exceder-se no número de visitas, consultas ou quaisquer outros
procedimentos médicos.
Também a relação médico-paciente não deve trazer ao médico quaisquer outras vantagens além do
justo honorário profissional, com diz o artigo 40 do CEM:
Art. 40. É vedado ao médico: Aproveitar-se de situações decorrentes da relação médico-
paciente para obter vantagem física, emocional, financeira ou de qualquer outra natureza.
Dentro do direito de escolha do paciente, este pode pedir uma segunda opinião para qualquer outro
profissional, bem como mudar de médico para a continuidade de seu tratamento, cabendo ao médico
respeitar os preceitos do artigo 39 do CEM:
Art. 39 É vedado ao médico: Opor-se à realização de junta médica ou segunda opinião
solicitada pelo paciente ou por seu representante legal.
O médico, como cidadão, tem suas convicções pessoais, entretanto elas não devem influenciar em
relação às escolhas do paciente, servindo como exemplo o enunciado do artigo 42 do CEM:
Art. 42. É vedado ao médico: Desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre
método contraceptivo, devendo sempre esclarecê-lo sobre indicação, segurança,
reversibilidade e risco de cada método.
O sigilo profissional também é um dos pilares do relacionamento médico-paciente, e o CEM tem o
Capítulo IX dedicado ao tema. É fundamental o respeito aos artigos 73, 74 e 75 do CEM:
Art. 73. É vedado ao médico: Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício
de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do
paciente.
Parágrafo único. Permanece essa proibição: a) mesmo que o fato seja de conhecimento
público ou o paciente tenha falecido; b) quando de seu depoimento como testemunha. Nessa
hipótese, o médico comparecerá perante a autoridade e declarará seu impedimento; c) na
investigação de suspeita de crime, o médico estará impedido de revelar segredo que possa
expor o paciente a processo penal.
Art. 74. É vedado ao médico: Revelar sigilo profissional relacionado a paciente menor de
idade, inclusive a seus pais ou representantes legais, desde que o menor tenha capacidade de
discernimento, salvo quando a não revelação possa acarretar dano ao paciente.
Art. 75. É vedado ao médico: Fazer referência a casos clínicos identificáveis, exibir pacientes
ou seus retratos em anúncios profissionais ou na divulgação de assuntos médicos, em meios de
comunicação em geral, mesmo com autorização do paciente.
As hipóteses de quebra do sigilo estão albergadas no artigo 73. É clara a possibilidade da quebra
quando há desejo do paciente para isso. Como exemplos de dever legal estão as doenças de
notificação compulsória e de motivo justo está o uso do prontuário médico na defesa do médico
processado pelo paciente, lembrando que, se o processo for fora da esfera do Conselho de Medicina,
é recomendável ao médico que solicite o sigilo de justiça no processo.
O Código de Ética Médica prevê a situação em que o médico pode abandonar o paciente que esteja
aos seus cuidados, pelo princípio da autonomia, respeitando-se ao artigo 36:
Art. 36. É vedado ao médico: Abandonar paciente sob seus cuidados.
§1° Ocorrendo fatos que, a seu critério, prejudiquem o bom relacionamento com o paciente ou
o pleno desempenho profissional, o médico tem o direito de renunciar ao atendimento, desde
que comunique previamente ao paciente ou a seu representante legal, assegurando-se da
continuidade dos cuidados e fornecendo todas as informações necessárias ao médico que lhe
suceder.
§2° Salvo por motivo justo, comunicado ao paciente ou aos seus familiares, o médico não
abandonará o paciente por ser este portador de moléstia crônica ou incurável e continuará a
assisti-lo ainda que para cuidados paliativos.
Ocorrendo a necessidade de abandonar ao tratamento do paciente, o médico deve registrar o motivo
no prontuário do paciente e informar ao diretor médico da instituição o ocorrido. Nessa situação,
estando o paciente internado, o médico continuará seu atendimento até que um médico substituto
assuma o tratamento do paciente, sempre solicitando a interferência do diretor médico na solução da
substituição.
Uma situação que pode levar ao desgaste do relacionamento entre o médico e o paciente é a questão
dos honorários profissionais. O Direito Médico X do CEM define claramente a questão de que o
médico tem direito aos seus honorários:
X – É direito do médico: Estabelecer seus honorários de forma justa e digna
Os honorários devem ser previamente estabelecidos e jamais devem ser indevidos, como as
situações que caracterizariam infração aos artigos 65 e 66 do CEM, que vedam ao médico:
Art. 65. Cobrar honorários de paciente assistido em instituição que se destina à prestação de
serviços públicos, ou receber remuneração de paciente como complemento de salário ou de
honorários.
Art. 66. Praticar dupla cobrança por ato médico realizado.
Parágrafo único. A complementação de honorários em serviço privado pode ser cobrada
quando prevista em contrato.
No que se refere à visão legal da relação médico-paciente, importante é o enfoque sobre as normas
que regem essas relações e o seu conteúdo dividido entre direitos e obrigações dos médicos e
pacientes.
Todas as relações da vida civil devem ser tratadas pelas leis do direito privado, salvo quando há o
envolvimento de Estado, quando o enfoque legal transmuta-se para o direito público. Aqui se
apresenta, de maneira geral, as principais questões jurídicas que envolvem o atendimento médico.
Os direitos do cidadão médico e do cidadão paciente estão de certo modo abrangidos pelas leis
comuns que estabelecem regras gerais, ao contrário das disposições éticas do Conselho Federal de
Medicina, que são direcionadas tão somente para os profissionais médicos.
Não constitui tarefa fácil enquadrar o exercício da medicina dentro de uma ou outra forma jurídica.
O Conselho Federal de Medicina define que a relação médico-paciente não se caracteriza como uma
relação de consumo [1]. Entretanto, a corrente majoritária do judiciário nacional há muito tempo
coloca o exercício da medicina como uma prestação de serviço.
A medicina é uma profissão bastante específica, que tem por base uma ciência, e por mais avançada
que esteja não tem o controle sobre os resultados que determinado ato pode alcançar. Como ciência
pode, dentro de seu estudo, orientar condutas tidas como corretas e é dentro destes parâmetros que se
entende lícito o seu exercício.
De outro lado está o tomador ou destinatário do serviço, chamado paciente, que espera que o
profissional exerça a sua profissão observando rigorosamente e da melhor maneira os protocolos da
ciência médica. E não é dada ao profissional a faculdade de obedecer ou não aos preceitos da
ciência médica. A exceção existe nos casos de pesquisa, que merece atenção importante, para a qual
a bioética e a legislação definem seus limites e, quando envolvido paciente, sua aceitação livre e
absoluta.
A prestação de serviço tem por base a colocação por parte de alguém, seja pessoa física seja
jurídica, de algum trabalho mecânico e/ou mental, normalmente sob pagamento de alguma quantia,
para algum interessado, tomador, que o solicite [11].
Em regra, a prestação de serviços é chamada de contrato bilateral, pois aquele que se coloca à
disposição para a realização de um trabalho o faz por vontade livre e aquele que busca este trabalho
também o faz de maneira voluntária, ainda que por necessidade [11].
Então, o paciente e sua família procuram determinado profissional ou casa de saúde para buscar um
diagnóstico, orientação e tratamento. A instituição pode ser pública ou privada, com pagamento por
convênio ou particular, de modo que se estabelece esse vínculo entre a pessoa que quer ou necessita
atendimento e o médico que o presta profissionalmente.
A medicina é ciência e tem relevante função social e humanitária, mas sob o enfoque das atividades
não deixa de ser um trabalho realizado mediante remuneração, tal qual a definição do Código Civil
Brasileiro no seu artigo 594, que trata da prestação de serviços, e mesmo quando as partes não
assinam contrato a relação é contratual em razão da vontade de ambas as partes na realização desse
atendimento.
A considerar o trabalho médico como prestação de serviço, uma segunda questão, um pouco mais
complexa, se apresenta: essa prestação de serviços constitui relação de consumo?
Neste momento, a visão médica se confronta com a visão jurídica, pois se de um lado o Código de
Ética Médica é expresso em afirmar que a “atuação profissional do médico não caracteriza relação
de consumo”, de outro, na regra geral do Código de Defesa do Consumidor [5], é estabelecido como
consumidor o destinatário final do serviço e como fornecedor toda pessoa física ou jurídica que
desenvolve atividade de prestação de serviço conforme a leitura do Art. 3º. Logo adiante, no
parágrafo 2º do citado artigo, define-se prestação de serviço como “qualquer atividade fornecida no
mercado de consumo, mediante remuneração”, salvo as de natureza trabalhista.
Entrar nessa discussão não constitui objetivo deste artigo, de modo que analisaremos apenas o
aspecto prático, ou seja, saber se incidem ou não as regras do CDC nas relações médico-pacientes.
O CEM e o CDC são antagônicos, de modo que é preciso analisar inicialmente nesse conflito a
hierarquia das normas e nesse primeiro aspecto confronta-se uma norma administrativa com uma Lei
de onde se extrai que o que vale é o CDC: esse entendimento é pacífico no Superior Tribunal de
Justiça (STJ). Portanto, a discussão sobre a natureza jurídica da relação médico-paciente atualmente
é apenas filosófica, pois no campo prático se considera uma relação abrangida pelo CDC.
Conduzida por essa Lei, na relação médico-paciente existem obrigações do médico e obrigações do
paciente, em contrapartida direitos de ambos também. O CDC estabelece como direitos dos
consumidores pacientes a proteção da vida, saúde e segurança, direitos que são estabelecidos como
de todos os cidadãos pela Constituição Federal de 1988; direito à integral informação sobre o
atendimento prestado, seja ele diagnóstico e prognóstico de sua situação, assegurada sua liberdade
de escolha; direito à informação adequada sobre suas obrigações enquanto paciente, como sobre os
hábitos a desenvolver e a cessar, os medicamentos que deverá tomar, seus efeitos esperados, as
eventuais contra-indicações e efeitos colaterais, bem como o modo de ingestão; direito de saber,
quando possível, os custos do serviço prestado no caso em que o paciente ou sua família arque com
as despesas do atendimento; direito a não ser vítima de qualquer método que se aproveite da relação
médico-paciente para vender ou fornecer serviços que não sejam necessários; direito à reparação
dos danos efetivamente causados. Em contrapartida, tem o médico direito ao recebimento do valor
adequado pelo seu atendimento, bem como recusar-se a prestar o serviço quando a recusa não vier a
causar prejuízo iminente do paciente.
Ainda que se aplique a lei consumerista, para algumas questões no que se refere às obrigações
indenizatórias específicas, forma de aplicação de prescrição ou alguma outra lacuna do CDC
poderão ser utilizadas regras gerais do Código Civil.
Em relação às obrigações de indenizar, o CDC traz o conteúdo mais importante sobre a
responsabilidade civil dos médicos em seu art. 14, §4º, quando estabelece que o dever de indenizar
dos profissionais liberais deverá ser apurado mediante verificação de culpa.
Isso quer dizer que somente poderá ser considerado incorreto e passível de alguma reparação o
atendimento em que ficar demonstrada a existência de negligência, imprudência ou imperícia, que é
aquele atendimento médico que deveria ter sido conduzido de outra forma sob o enfoque da boa
técnica médica.
Se o médico conduziu o tratamento de acordo com os preceitos médicos atuais, não se obriga para
com aquele resultado almejado, e se não houver cura ou acontecer outro fato que constitua risco do
tratamento, isso não poderá ser considerado como descumprimento de sua obrigação. Se de um lado
o paciente, ou alguém por ele, se obriga a pagar, o médico por sua vez se obriga a maior diligência
dentro do que se entende como a conduta (ou uma das) esperada para o caso em medicina. Há uma
construção dos julgados no sentido de que as cirurgias plásticas fugiriam a essa regra. Este
entendimento, apesar de majoritário, não está livre de críticas, posto que se o cirurgião trabalhou
dentro da estrita técnica médica e o resultado depende de inúmeros outros fatores, não haveria por
que se punir o profissional que agiu corretamente. O argumento de que a cirurgia era desnecessária e
que assim o cirurgião plástico estaria obrigado pelo risco pode ser debelado pelo fato de o paciente,
ciente dos riscos, aceitá-lo.
A característica mais marcante dessa definição é processual, e o CDC permite, no caso de haver
verossimilhança ou hipossuficiência do consumidor, a inversão do ônus da prova, fato que transfere a
prova da higidez do ato médico ao próprio profissional. Desse modo, o profissional, além de exercer
uma medicina correta, ainda deverá estar preparado para provar e explicar as suas condutas médicas,
quando assim solicitado. [12]
De outro lado, há a obrigação do paciente, ou do plano de saúde ou do Estado, em efetuar o
pagamento desses honorários médicos, no caso do paciente particular o valor combinado, no caso
dos planos e SUS o valor estabelecido e aceito pelo médico.
No que se refere à obrigação de pagamento, uma questão tem surgido quando o atendimento se dá
em caráter emergencial, quando o paciente não está em condições de aceitar ou não os elementos do
contrato e quando a necessidade retira por completo a possibilidade de negociação e aceitação das
condições impostas pelo prestador. Nesses casos, a justiça tem se posicionado no sentido de que por
ser necessário e urgente é dispensável a aceitação do paciente, mas, em razão disso, não é dado ao
médico o direito de aproveitar-se dessa situação para cobrar valores abusivos, ou submeter o
paciente a procedimentos desnecessários, sob pena de se incorrer no vício de estado de necessidade.
No ponto de vista constitucional, verifica-se que entre os direitos principais à vida e à saúde, estes
se ligam diretamente com os objetivos da medicina. Entretanto, alguns direitos influenciam estes
primeiros, pois há o direito à liberdade e religião, fazendo com que muitas vezes as escolhas feitas
pelo paciente não agradem e mesmo dificultem a atuação do médico. [13] No rigor da lei, essas
liberdades somente esbarram no direito à vida, tido como absoluto, mas podem efetivamente adentrar
ao campo dos riscos graves, como o clássico exemplo do paciente que não aceita receber sangue. [14]
A relação médico-paciente deve pautar-se na confiança, que é garantida legalmente quando a
legislação põe a salvo as informações do paciente obtidas pelo médico, não apenas de sua saúde,
mas de seus hábitos e de qualquer fato ou pensamento exposto durante uma consulta médica. Violar
esse dever de sigilo, além de infração ética também constitui infração penal [15], e quando gerar
algum dano é passível de indenização. [16]
Também cabe ao médico a guarda dos registros feitos em prontuário de seu consultório, salvo
quando esses prontuários forem arquivados em instituição hospitalar. A guarda é inerente à relação
médico-paciente, pois com esse registro pode o profissional saber a qualquer momento sobre o
atendimento prestado, pode o paciente solicitar o documento numa necessidade médica futura. O
registro faz parte do próprio serviço médico. Uma dúvida frequente aparece acerca dos prazos pelo
qual o prontuário deve ser guardado. No aspecto legal, encontra-se no Estatuto das Crianças e
Adolescentes [6] em seu art. 10, inciso I, a determinação para que hospitais e estabelecimentos
públicos ou privados de atenção à saúde da gestante mantenham arquivados os prontuários por 18
anos. Tal determinação é específica, não havendo lei que estabeleça prazo para a guarda de
prontuários de atendimentos outros.
Em que pese a ausência legislativa, o CFM no art 8º da Resolução CFM nº 1.821/07 [17]
estabeleceu que o tempo de guarda mínimo é de 20 anos para arquivos em papel. Também no que
tange à possibilidade de existência de ação judicial em relação a este atendimento, o CDC estabelece
como prazo de prescrição 5 anos, que a princípio poderia balizar o tempo de guarda, entretanto
ocorre que o posicionamento mais moderno afirma que esse prazo inicia-se somente com o
aparecimento do dano e não no momento específico do ato médico, salvo se concomitantes. Outro
problema da prescrição é que ela não se conta para incapazes crianças, então esse prazo de ação
iniciará ao completar 18 anos, ou no caso de incapacidade por outro fato somente iniciará quando (e
se) cessar essa incapacidade. Ademais, a função do registro não é somente de prova, mas como
informação privada do paciente para qualquer fim, especialmente médico. A conclusão mais segura é
que estes prontuários sejam guardados por tempo indeterminado.
Ainda no que se refere à legislação geral, o Código Penal [4] também configura norma incidente no
aspecto jurídico da relação médico-paciente. Interessante notar que muitas vezes um fato contrário à
ética também é tido como crime e ilícito civil. O caso emblemático seria o chamado “erro médico”,
que tanto é punido pela norma ética quanto pela norma penal nos crimes de lesão corporal culposa e
homicídio culposo. Constitui também falta civil pela existência da culpa, gerando o dever de
indenizar.
Outras situações vedadas pelo ordenamento penal são mais específicas, pois exigem a ciência do
profissional acerca da ilicitude deste ato – dolo. Destaca-se a eutanásia com ou sem o consentimento
e participação do doente, cada qual com seu crime específico; o aborto com ou sem o consentimento
da gestante, salvo nos casos de permissão legal como estupro ou risco de vida para a mãe e ainda
autorização judicial, violação do sigilo médico, omissão de socorro, estelionato que estaria
configurado quando o médico utilizasse desta condição para enganar o paciente e auferir vantagens
geralmente financeiras com isso.
Em relação às responsabilidades penais sobre os atendimentos médicos, eventuais faltas serão
apuradas e poderão ser motivo de ação penal. Se comprovada a infração, poderá haver punição do
profissional.
Já adentrando na legislação específica sob o enfoque relação médico- paciente, estão as regras
estabelecidas pelo Estatuto do Idoso. Nessa lei também se encontra a regra geral do direito à vida e à
saúde, assegurada a dignidade do idoso nos atendimentos e tratamentos médicos. Diz o estatuto que
ao idoso, ou seja, aquele com mais de 60 anos, é garantido o direito de preferência nos atendimentos
médicos. Deve o profissional estar atento de maneira a prevenir ameaça ou violação ao direito do
idoso, devendo, quando verificada sua ocorrência, efetuar a imediata comunicação às autoridades,
que neste caso são a Delegacia de Polícia, o Ministério Público ou os Conselhos dos Idosos (art. 6º
c/c 19 do EI). [7]
O idoso, apesar das garantias, que não possuir incapacidade tem o direito de optar pelo tratamento
que entender conveniente, respeitadas as indicações médicas. No caso de incapacidade do idoso, o
próprio EI, em seu art. 17, prevê que nessa circunstância será o curador quem decidirá sobre as
questões do tratamento. Curador é a pessoa designada pelo juiz para ser o responsável pela pessoa
incapaz. Não havendo curador, serão responsáveis os familiares e em caso de emergência ou de
ausência de curador ou familiares o médico fará a decisão. Todo idoso tem ainda o direito a
acompanhante no caso de internamento.
Aliás, a regra é parecida com a regra geral, segundo a qual a pessoa capaz poderá decidir
livremente acerca do tratamento e em caso de impossibilidade essa decisão caberá aos familiares, ou
seja, cônjuge e filhos, e qualquer divergência deverá ser solucionada em juízo. Não há qualquer
regra jurídica para eventuais divergências.
No Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), as decisões sobre o tratamento de crianças e
adolescentes cabem aos pais, detentores do poder familiar. Surge uma complicação no caso dos
adolescentes que não querem ter a sua intimidade exposta, ou quando houver divergência com os
pais. O Código de Ética Médica não fixa idade para que o adolescente possa sozinho determinar-se,
de modo que seria possível no regramento ético que uma pessoa de 15 anos tivesse sua completa
intimidade e decisões respeitadas. Isso leva a um conflito ente o CEM e o ordenamento jurídico,
porém também pode ser interpretado como uma tentativa de avanço no respeito dos direitos
individuais do adolescente por parte do Conselho Federal de Medicina. Entretanto, pelo ECA, essa
pessoa está sujeita ao Poder Familiar até os 18 anos, idade em que atingirá a maioridade se já não a
tiver por outros requisitos. Portanto, pela lei, caso haja necessidade de uma decisão importante em
relação ao paciente menor de 18 anos, esta deverá ser tomada juntamente com seus pais. Havendo
divergência, restará o caminho judicial para solucionar conflitos não conciliáveis. Poderá em casos
excepcionais haver a guarda e a tutela, que são institutos conferidos pelo juiz para que uma pessoa
represente o menor.
O Estatuto dispõe acerca da prioridade absoluta da criança e do adolescente em qualquer direito,
concedendo expressamente o direito ao atendimento em serviços de relevância e no recebimento de
proteção e socorro.
Dispõe ainda que se faça, nos atendimentos de gestante, a identificação adequada da criança
nascida, que se não realizada constitui crime, bem como exames para avalição diagnóstica e
terapêutica de anormalidades no metabolismo.
É garantia da criança e do adolescente que sejam fornecidas condições para que ao menos um dos
pais ou responsáveis permaneça junto durante o internamento. Se houver verificação ou suspeita de
maus tratos, o Conselho Tutelar deve ser imediatamente avisado e também poderão ser comunicados
o Ministério Público e a Delegacia de Polícia. O ECA põe a salvo a intimidade, imagem e vida
privada da criança e do adolescente. Consigna, ainda, que o médico que tiver conhecimento de que a
mãe ou gestante tenha intenção de entregar o filho para adoção deve comunicar à autoridade
judiciária.
Apesar da relação médico-paciente ser contratual, em poucos casos há realmente a contratação
escrita, fato que não retira a natureza contratual da relação que possui os seus elementos bem
definidos, ou seja, de um lado o bom atendimento e informação e de outro o pagamento. No caso dos
atendimentos particulares, o contrato poderá ser um facilitador do paciente inadimplente. Esse
instrumento não se confunde com o termo de consentimento livre e esclarecido, que consiste na
informação do médico ao paciente sobre o seu estado de saúde e sobre os procedimentos a que o
paciente irá se submeter, incluindo seus riscos e consequências. O consentimento informado não
precisa ser assinado como documento (exceto nos casos de transplante, pesquisa e planejamento
familiar, quer na esterilização quer na reprodução assistida que exigem o documento escrito), mas
sempre que seja possível fazê-lo é indicado. Entretanto, o documento não substitui a explicação oral
ao paciente e, do ponto de vista jurídico, é importante seu registro no prontuário.
Pelo exposto se vê que a relação médico-paciente é complexa e demanda diversas situações, muitas
delas sequer previstas na lei. Este artigo, portanto, apresenta as mais comuns para conhecimento do
profissional.
Referências bibliográficas
[15] CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2009. Resolução CFM nº 1.821 de 23
de novembro de 2007.
[3] CÓDIGO Civil Brasileiro. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
[5]
CÓDIGO de Defesa do Consumidor. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990.
[1] CÓDIGO de Ética Médica. Resolução do Conselho Federal de Medicina 1.931 de 17 de setembro de 2009.
[4] CÓDIGO Penal Brasileiro. Decreto-lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940.
[2] CONSTITUIÇÃO da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988.
[6] ESTATUTO da Criança e do Adolescente. Lei nº 8.069, de 13 de julho e 1990.
[7] ESTATUTO do Idoso. Lei 10.741, de 1º de outubro de 2003.
[11] GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 7. ed.
Rio de Janeiro: Forense Univeritária, 2001.
[12] KFOURI NETO, Miguel. Culpa médica e ônus da prova. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
[9] LEI do Ato Médico. Lei nº 12.842 ,de 11 de julho de 2013.
[8] LEI dos Planos de saúde. Lei nº 9.656, de 03 de junho de 1998.
[15] NORONHA, E. Magalhães. Direito penal. 31. ed. São Paulo: Saraiva, 1995. v .1.
[13] SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 29. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007.
[14] TIMI, J. R. R. Transfusão de sangue em testemunha e Jeová. In: TIMI, J. R. R.; MERCER, P. G.; MARQUARDT, M.
A influência do direito no exercício da medicina. Rio de Janeiro: Revinter, 2004. p. 177-186.
[10] TIMI, J. R. R.; MERCER, P. G. Responsabilidade Civil do Médico e Processo Civil. In: TIMI, J. R. R.; MERCER, P. G.;
MARQUARDT, M. A influência do direito no exercício da medicina. Rio de Janeiro: Revinter, 2004; p. 27-34.

Jorge Ribas Rufino Timi


Médico cirurgião vascular e endovascular. Professor de Cirurgia Vascular e de responsabilidade legal do médico na UFPR. Advogado
atuante em Direito Médico. Ex-Conselheiro do CRM do Paraná.

Marcelo Marquardt
Advogado com atuação no Direito Médico. Especialista em Direito Processual Civil pela UFSC.
Juramento dos médicos
A medicina como arte milenar se desenvolveu ao longo da História, do curandeirismo a um patamar
de ciência, através de grandes pesquisadores e com o auxílio da tecnologia, porém seu impulso
inicial teve uma contribuição ímpar da escola grega de Cós, na qual a figura de Hipócrates tornou-se
central, aproximando a Medicina dos fundamentos racionais e científicos. O Corpus
Hippocraticum traduz em seus livros essas impressões e lança os conceitos basilares da ética
médica naquilo que chamamos Juramento de Hipócrates. Estima-se que foi escrito no século IV antes
de Cristo e carrega os princípios da Medicina.
Juro por Apolo Médico, por Esculápio, por Higéia, por Panacéia e por todos os deuses e
deusas, tomando-os como testemunhas, obedecer, de acordo com meus conhecimentos e meu
critério, este juramento: Considerar meu mestre nesta arte igual aos meus pais, fazê-lo
participar dos meios de subsistência que dispuser, e quando necessitado com ele dividir os
meus recursos; considerar seus descendentes iguais aos meus irmãos; ensinar-lhes esta arte se
desejarem aprender, sem honorários nem contratos; transmitir preceitos, instruções orais e
todos outros ensinamentos aos meus filhos, aos filhos do meu mestre e aos discípulos que se
comprometerem e jurarem obedecer a Lei dos Médicos, porém, a mais ninguém. Aplicar os
tratamentos para ajudar os doentes conforme minha habilidade e minha capacidade, e jamais
usá-los para causar dano ou malefício. Não dar veneno a ninguém, embora solicitado a assim
fazer, nem aconselhar tal procedimento. Da mesma maneira não aplicar pessário em mulher
para provocar aborto. Em pureza e santidade guardar minha vida e minha arte. Não usar da
faca nos doentes com cálculos, mas ceder o lugar aos nisso habilitados. Nas casas em que
ingressar apenas socorrer o doente, resguardando-me de fazer qualquer mal intencional,
especialmente ato sexual com mulher ou homem, escravo ou livre. Não relatar o que no
exercício do meu mister ou fora dele no convívio social eu veja ou ouça e que não deva ser
divulgado, mas considerar tais coisas como segredos sagrados. Então, se eu mantiver este
juramento e não o quebrar, possa desfrutar honrarias na minha vida e na minha arte, entre
todos os homens e por todo o tempo; porém, se transigir e cair em perjúrio, aconteça-me o
contrário.
Ao longo dos séculos o ideal do juramento hipocrático se faz presente, sendo utilizado até os dias
de hoje em muitas escolas no momento da formatura dos novos médicos. No pós Segunda Guerra
Mundial, mais especificamente em 1948, após a verificação das atrocidades cometidas com o auxílio
do conhecimento médico, a Declaração de Genebra trouxe um ar mais contemporâneo ao texto, sem
se distanciar dos princípios já trazidos da Grécia antiga, sendo revista pela Assembléia Geral da
Associação Médica Mundial em 1994.
No momento de me tornar um profissional médico: Prometo solenemente dedicar a minha vida
a serviço da Humanidade. Darei aos meus Mestres o respeito e o reconhecimento que lhes são
devidos. Exercerei a minha arte com consciência e dignidade. A saúde do meu paciente será
minha primeira preocupação. Mesmo após a morte do paciente, respeitarei os segredos que a
mim foram confiados. Manterei, por todos os meios ao meu alcance, a honra da profissão
médica. Os meus colegas médicos serão meus irmãos. Não deixarei de exercer meu dever de
tratar o paciente em função de idade, doença, deficiência, crença religiosa, origem étnica,
sexo, nacionalidade, filiação político-partidária, raça, orientação sexual, condições sociais ou
econômicas. Terei respeito absoluto pela vida humana e jamais farei uso dos meus
conhecimentos médicos contra as leis da Humanidade. Faço essas promessas solenemente,
livremente e sob a minha honra.
Em suma, os juramentos trazem conceitos de como deve se portar um profissional médico em
relação ao seus pacientes e servem para que a classe reafirme para a sociedade seus compromissos,
tornando a medicina uma ciência que prima pela técnica, mas sem se distanciar dos conceitos
humanistas.

Conceitos bioéticos
“Bioética é o estudo sistemático das dimensões morais – incluindo visão moral, decisões, conduta e
políticas – das ciências da vida e atenção à saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas
em um cenário interdisciplinar”. [1] Por isso, pode-se dizer que a bioética tem uma tríplice função,
reconhecida acadêmica e socialmente:

1. descritiva, consistente em descrever e analisar os conflitos em pauta;


2. normativa com relação a tais conflitos, no duplo sentido de proscrever os comportamentos
que podem ser considerados reprováveis e de prescrever aqueles considerados corretos;
3. protetora, no sentido, bastante intuitivo, de amparar, na medida do possível, todos os
envolvidos em alguma disputa de interesses e valores, priorizando, quando isso for
necessário, os mais “fracos”. [2]

A bioética apresenta várias correntes de pensamento, e a mais conhecida é a principialista, que teve
maior impulsão com o trabalho de Tom Beauchamp e James Childress no livro
Principles of biomedical ethics (1979). [3] Numa análise principialista, existem 4 princípios básicos
a serem considerados: Autonomia, Beneficência, Não maleficência e Justiça. Os princípios não
respondem a todos os questionamentos bioéticos, mas servem como ponto de partida para muitas
discussões. Cabe dizer que o principialismo, apesar de hegemônico, não pode ser confundido com a
própria bioética, que sendo mais ampla acomoda outras visões. No livro Iniciação a Bioética [4]
Autonomia é um termo derivado do grego auto (próprio) e nomos (lei, regra, norma). Significa
autogoverno, autodeterminação da pessoa de tomar decisões que afetam sua vida, sua saúde, sua
integridade físico-psíquica, suas relações sociais. Certamente que não se espera que a autonomia
individual seja total e completa, pois existem nas relações sociais um forte grau de controle, de
condicionantes e restrições à ação individual. A autonomia tem seus limites dados pelo respeito à
dignidade e à liberdade dos outros e da coletividade.
Beneficência, no seu significado filosófico moral, quer dizer fazer o bem. No seu sentido estrito
deve ser entendida, conforme o Relatório Belmont, como uma dupla obrigação, primeiramente a de
não causar danos e, em segundo lugar, a de maximizar o número de possíveis benefícios e minimizar
os prejuízos.
As origens do princípio da não maleficência remontam à tradição hipocrática: “cria o hábito de
duas coisas: socorrer ou, pelo menos, não causar dano”. Beauchamp e Childress adotam os
elementos de Frankena e os reclassificam na forma a seguir: não-maleficência ou a obrigação de não
causar danos, e beneficência ou a obrigação de prevenir danos, retirar danos e promover o bem. No
mais das vezes, o princípio de não-maleficência envolve abstenção, enquanto o princípio da
beneficência requer ação.
Rawls, em seu trabalho A theory of justice, define a justiça como equidade, palavra que no
dicionário Houaiss significa imparcialidade, igualdade e equivalência. A Constituição brasileira, ao
menos, estabelece no artigo 192 que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado. A
responsabilidade é grande em buscar implantar princípios de justiça que transformem nossa saúde
em uma prática eficiente, equânime e justa.

Definição de relação médico-paciente


Esse contexto inicial é importante para que possamos definir a relação médico-paciente como um
processo de comunicação contínuo que se estabelece durante o contato médico-paciente, com base na
confiança mútua e norteado pelos princípios do sigilo, da beneficência e não maleficência por parte
do médico e da autonomia por parte de ambos, dentro de um contexto que se garanta a equidade.
Portanto, a presença de respeito e garantias nos dois pólos dessa relação é premissa para que se
alcance uma relação sadia entre as partes.

Modelos de relação médico-paciente


Em 1972, o professor Robert Veatch, do Instituto de Ética da Universidade de Georgetown, nos
Estados Unidos, propôs uma maneira didática de se avaliar as relações existentes entre os médicos e
os pacientes. [5] No seu estudo definiu 4 modelos de relação: sacerdotal, engenheiro, colegial e
contratualista.
Os professores de bioética José Roberto Goldim e Carlos Fernando Francisconi, da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, explicam as diferenciações em artigo sobre os modelos de relação
médico-paciente: [6]

Modelo sacerdotal é o mais tradicional, pois se baseia na tradição hipocrática. Nesse


modelo, o médico assume uma postura paternalista com relação ao paciente. Em nome da
beneficência, a decisão tomada pelo médico não leva em conta os desejos, crenças ou
opiniões do paciente. O médico exerce não só a sua autoridade, mas também o poder na
relação com o paciente. O processo de tomada de decisão é de baixo envolvimento,
baseando-se em uma relação de dominação por parte do médico e de submissão por parte do
paciente. Em função desse modelo e de uma compreensão equivocada da origem da palavra
“paciente”, esse termo passou a ser utilizado com conotação de passividade. A palavra
paciente tem origem grega, significando “aquele que sofre”.
Modelo engenheiro, ao contrário do Sacerdotal, coloca todo o poder de decisão no
paciente. O médico assume o papel de repassador de informações e executor das ações
propostas pelo paciente. O médico preserva apenas a sua autoridade, abrindo mão do poder,
que é exercido pelo paciente. É um modelo de tomada de decisão de baixo envolvimento,
que se caracteriza mais pela atitude de acomodação do médico que pela dominação ou
imposição do paciente. O paciente é visto como um cliente que demanda uma prestação de
serviços médicos.
O modelo colegial não diferencia os papéis do médico e do paciente no contexto da sua
relação. O processo de tomada de decisão é de alto envolvimento. Não existe a
caracterização da autoridade do médico como profissional, e o poder é compartilhado de
forma igualitária. A maior restrição a esse modelo é a perda da finalidade da relação
médico-paciente, equiparando-a a uma simples relação entre indivíduos iguais.
O modelo contratualista estabelece que o médico preserva a sua autoridade, enquanto
detentor de conhecimentos e habilidades específicas, assumindo a responsabilidade pela
tomada de decisões técnicas. O paciente também participa ativamente no processo de tomada
de decisões, exercendo seu poder de acordo com o estilo de vida e valores morais e
pessoais. O processo ocorre em um clima de efetiva troca de informações e a tomada de
decisão pode ser de médio ou alto envolvimento, tendo por base o compromisso
estabelecido entre as partes envolvidas.

Esses modelos propostos servem como norte na avaliação, porém existem certas discordâncias na
literatura, como a trazida por Ezequiel Emanuel e Linda Emanuel, que propuseram, em 1992, algumas
modificações, entre elas a possibilidade de se existir um quinto modelo, o instrumentalista. [7]
Nesse modelo, o paciente seria visto como mero instrumento para que o médico alcance um
determinado objetivo, como por exemplo nos abusos verificados em pesquisas.
Se formos analisar à luz de conceitos bioéticos mais amplos, o modelo contratualista se aproxima
do modelo ideal no estabelecimento de uma relação de confiança. Nele, o profissional não perde a
sua autoridade concedida pelo seu conhecimento técnico e o paciente participa da decisão,
exercendo a autonomia sobre o seu corpo. É uma troca de informações na qual existem compromissos
de ambos os lados.

Tomada de decisão e o consentimento informado


Como disse Napoleão Bonaparte: “Nada é mais difícil e, portanto, tão precioso, do que ser capaz de
decidir”.
O processo de tomada de decisão expressa ao longo da História da humanidade o momento vivido
pelas sociedades. Na época de Hipócrates, a participação do paciente nas decisões era subjugada
pela figura do médico e seu conhecimento não alcançado pelo leigo. Na Idade Média, com o
aparecimento do obscurantismo, a Igreja tomou papel preponderante nos limites da ciência e sua
divulgação. Com o advento da Renascença e os princípios humanistas, o conhecimento da medicina
como arte se aproximou mais das pessoas. Todos esses momentos tiveram seu papel na História da
humanidade, mas sem sombra de dúvidas a Revolução Francesa, com seus conceitos de liberdade,
igualdade e fraternidade, impulsionou muitos dos ideais que hoje vivenciamos, inclusive o
movimento da bioética.
Dentro do conceito de autonomia do paciente, este tem o direito de consentir ou não os
procedimentos propostos, sejam diagnósticos ou terapêuticos. Como dizem Júlio Cézar Meirelles
Gomes e Genival Veloso de França Genival Velozo, no livro Iniciação à bioética: [4]
É fundamental que o paciente seja informado pelo médico sobre a necessidade de
determinadas condutas ou intervenções e sobre os seus riscos ou conseqüências. Mesmo que o
paciente seja menor de idade ou incapaz, e que seus pais ou responsáveis tenham tal
conhecimento, ele tem o direito de ser informado e esclarecido, principalmente a respeito das
precauções essenciais. O ato médico não implica num poder excepcional sobre a vida ou a
saúde do paciente. O dever de informar é imperativo como requisito prévio para o
consentimento. O consentimento pleno e a informação bem assimilada pelo paciente
configuram numa parceria sólida e leal sobre o ato médico praticado.
Por outro lado, o paciente também tem o direito de não querer ser informado, ou seja, a informação
é um direito e não uma imposição para o paciente. Nesse cenário, cabe ao profissional médico
questionar quais as pessoas eleitas para o conhecimento dos fatos. Sob um prisma legal, todas as
informações devem ser registradas no prontuário, e o consentimento informado deve ser traduzido em
um termo escrito e devidamente assinado. Portanto, a tomada de decisão, dentro de uma relação
médico-paciente, depende da postura do profissional e do grau de envolvimento do paciente.
Em regra geral, os médicos trabalham com três níveis de participação dos pacientes: baixo, médico
e alto. No nível baixo, verificamos as situações de urgência e emergência e também nos momentos de
inconsciência, em que os médicos assumem a decisão dos atos a serem praticados, sob pena de
impor um risco maior à vida das pessoas. No nível médio se localizam as situações rotineiras do
atendimento médico, cabendo a ele o esclarecimento e a definição das opções diagnósticas ou
terapêuticas, com a participação do paciente nesse processo decisório, de maneira equilibrada entre
as partes. No nível alto, encontramos os tratamentos de longo prazo em situações limite, nas quais a
vontade do paciente diante de uma doença crônica e terminal tem valor maior.
Independentemente do grau de envolvimento e participação do paciente, cabe ao médico, detentor
do conhecimento e profissional capacitado, utilizar aquilo que Aristóteles já indicava em seu livro
Phronesis, a prudência, que qualifica como a virtude que facilita a escolha dos meios corretos para
um bom resultado.

Código de ética médica


O Código de Ética Médica [8] funciona na prática como um contrato de trabalho onde estão definidos
os princípios da nossa profissão, bem como os direitos dos médicos e os seus deveres para com a
sociedade. No seu Capítulo V, que trata da relação do médico com os pacientes e familiares, temos
que é vedado ao médico:
Art. 31. Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente
sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de
morte.
Art. 32. Deixar de usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento, cientificamente
reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente.
Art. 33. Deixar de atender paciente que procure seus cuidados profissionais em casos de
urgência ou emergência, quando não haja outro médico ou serviço médico em condições de
fazê-lo.
Art. 34. Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos
do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse
caso, fazer a comunicação a seu representante legal.
Art. 35. Exagerar a gravidade do diagnóstico ou do prognóstico, complicar a terapêutica ou
exceder-se no número de visitas, consultas ou quaisquer outros procedimentos médicos.
Art. 36. Abandonar paciente sob seus cuidados.
§1° Ocorrendo fatos que, a seu critério, prejudiquem o bom relacionamento com o paciente ou
o pleno desempenho profissional, o médico tem o direito de renunciar ao atendimento, desde
que comunique previamente ao paciente ou a seu representante legal, assegurando-se da
continuidade dos cuidados e fornecendo todas as informações necessárias ao médico que lhe
suceder.
§2° Salvo por motivo justo, comunicado ao paciente ou aos seus familiares, o médico não
abandonará o paciente por ser este portador de moléstia crônica ou incurável e continuará a
assisti-lo ainda que para cuidados paliativos.
Art. 37. Prescrever tratamento ou outros procedimentos sem exame direto do paciente, salvo
em casos de urgência ou emergência e impossibilidade comprovada de realizá-lo, devendo,
nesse caso, fazê-lo imediatamente após cessar o impedimento.
Parágrafo único. O atendimento médico a distância, nos moldes da telemedicina ou de outro
método, dar-se-á sob regulamentação do Conselho Federal de Medicina.
Art. 38. Desrespeitar o pudor de qualquer pessoa sob seus cuidados profissionais.
Art. 39. Opor-se à realização de junta médica ou segunda opinião solicitada pelo paciente ou
por seu representante legal.
Art. 40. Aproveitar-se de situações decorrentes da relação médico-paciente para obter
vantagem física, emocional, financeira ou de qualquer outra natureza.
Art. 41. Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal.
Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os
cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou
obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua
impossibilidade, a de seu representante legal.
Art. 42. Desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre método contraceptivo,
devendo sempre esclarecê-lo sobre indicação, segurança, reversibilidade e risco de cada
método.
Outros capítulos do Código trazem normas que se aplicam na prática da relação com os pacientes,
como o direito do paciente ao sigilo de sua condição, seja na sua forma de confidencialidade de sua
história, seja como na privacidade de sua imagem. Na essência os artigos deontológicos reprisam os
conceitos bioéticos, como a autonomia, o respeito à dignidade das pessoas, a responsabilidade
profissional, a beneficiência, a solidariedade, a equidade, entre outros.

Relação médico-paciente na era da internet


Uma grande transformação nas relações humanas ocorreu com o advento da internet. Dentro do
conceito de aldeia global, as pessoas têm possibilidades cada vez maiores de manter contato com
outras culturas e fazer busca de conteúdos específicos. A chamada globalização trouxe uma
democratização das informações e a saúde, como grande fonte de interesse, não se distancia dessa
lógica. Temos de nos acostumar com essa nova postura segundo a qual o paciente tem uma atitude
mais ativa na consciência de sua saúde. As ferramentas de busca na internet, para acessar conteúdo
em saúde, são realidade para 86% dos brasileiros, porém 25% admitiram que não verificaram a
fonte, conforme pesquisa encomendada pela seguradora britânica Bupa.
Um trabalho da Universidade do Sul de Santa Catarina avaliou a interface entre a internet e a
relação médico-paciente. Ponderou-se que o acesso à informaçaõ técnico-cientı́fica, principalmente
por meio da internet, aliado ao aumento do nível educacional das populações tem feito surgir um
paciente que busca informações sobre sua doença, sintomas, medicamentos e custos de internaçaõ e
tratamento. Na Conclusão do trabalho, a opiniaõ médica é de que a internet ajuda na relaçaõ médico-
paciente em 56,9% dos casos, atrapalha em 15,5% e naõ interfere em 27,6%, sendo uma forma
importante para o conhecimento da doença e adesão ao tratamento. [9]
De maneira crítica, a grande preocupação é a fonte da informação e os possíveis desdobramentos
de um conteúdo inadequado. A internet não tem o filtro necessário para selecionar o que realmente
tem embasamento científico e que pode servir como auxílio para os pacientes. A possibilidade de
autodiagnóstico e automedicação são dificuldades que devem ser enfrentadas com a conscientização
da sociedade e nisso o médico tem papel fundamental. Nesse contexto, o médico precisa estar à
disposição para exercer esse filtro e auxiliar os pacientes nas dúvidas. Cabe uma orientação para
que se acessem os diversos sites das Associações Médicas, Sociedades de Especialidade e de
Conselhos de Medicina, que trazem informação comprometida com a boa técnica e a saúde das
pessoas.
Conclusão – a dimensão da relação médico-paciente
É imprescindível que o médico entenda que uma relação ética estabelecida com seu paciente é a
principal arma de que dispõe para alcançar o interesse primário da medicina, que é salvaguardar a
saúde das pessoas.
Outros interesses que não esse, se colocados à frente, podem estabelecer conflitos que geram mais
sofrimento. Infelizmente a saúde, como projeto de estado, está se desvirtuando, pois a medicina virou
um bem de mercado em que o lucro simboliza os fins. As regras do capital não devem influenciar as
decisões do médico no que se refere à vida de outra pessoa.
Essa é a grande preocupação, ou seja, que os pacientes sejam considerados meios aos propósitos
da medicina. Nesse contexto, onde a dignidade da pessoa humana é o foco central, o bioeticista
Roberto Andorno, da Universidade de Zurique, deixa uma mensagem a ser seguida: Não é o homem
que foi feito para servir à medicina; é a medicina que foi feita para servir ao homem. [10]
Referências bibliográficas
[10] ANDORNO, R. La notion de dignite humaine est-elle superflue en bioethique? Revue Générale de Droit Médical, n. 16, p. 95-
́ ́
102, 2005.
[3] BEAUCHAMP, T. L.; CHILDRESS J. F. Principles of biomedical ethics. 4. ed. New York: Oxford University Press, 1994.
[9]
CABRAL, R.V.; TREVISOL, F. S. A influência da internet na relação médico-paciente na percepção do médico. Revista da
AMRIGS, Porto Alegre, v. 54, n. 4, pp. 416-420, out./dez. 2010.
[8] CÓDIGO de Ética Médica. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1931/2009.
[4] COSTA S. I. F.; OSELKA, G.; GARRAFA, V. Iniciação à bioética. Conselho Federal de Medicina, 1998.
[7] EMANUEL, E.; EMANUEL, L. Four models of the physician-patient relationship. JAMA, v. 267, n. 16, pp. 2221-22, 1992.
[6] http://www.bioetica.ufrgs.br/relacao.htm
[1] REICH, W. T. Encyclopedia of bioethics. 2. ed. New York: MacMillan, 1995. v. XXI.
[2] SCHRAMM, F. R. Bioética para quê? Revista Camiliana da Saúde, ano 1, vol. 1, n. 2, pp. 14-21, jul./dez. de 2002.
[5] VEATCH, R. M. Models for ethical medicine in a revolutionary age. Hastings Cent Rep, v. 2, n. 3, pp. 5-7, 1972.

Alexandre Gustavo Bley


Médico pela Universidade Federal do Paraná. Residência Médica em Cirurgia Vascular no Hospital Nossa Senhora das Graças.
Conselheiro do CRM-PR 2003-2013, onde atuou como corregedor, vice-presidente e presidente. Presidente da Unimed Curitiba gestão
2014-2018.
A forma como médicos e pacientes vêm se relacionando tem mudado mais nas últimas décadas do
que nos vinte séculos anteriores. O modelo paternalista do médico e a figura passiva e receptora do
paciente já não se enquadram no modelo atual. Atualmente, o paciente participa das decisões
sugeridas pelo médico, fazendo indagações, questionamentos, e emitindo opiniões em conjunto com
ele. [1]
A medicina moderna tem um papel fundamental nessa mudança, particularmente em decorrência do
uso das novas tecnologias, em especial a internet, que permite que os pacientes acessem informações
a qualquer momento e em qualquer lugar, ampliando o conhecimento sobre suas doenças e, portanto,
modificando a percepção da medicina.
Desde o primeiro instrumento médico para exploração clínica, o estetoscópio primitivo de René
Laennec (1781-1815), a tecnologia médica tem avançado rapidamente. Dispomos hoje de uma ampla
gama de instrumentos que permitem que os diagnósticos e tratamentos sejam cada vez mais precoces
e eficazes. [3] Assim, temos o computador, a telemedicina e a robótica, todos incorporados no
chamado e-health (electronic health), termo utilizado para denominar todas as tecnologias digitais
relacionadas aos cuidados de saúde. [2] [9] Mas será que essa integração entre o ser humano,
sociedade e máquina está ameaçando a relação médico-paciente?
Para responder a essa pergunta serão abordadas a seguir as principais tecnologias médicas que
tenham maior impacto na relação médico- paciente, como o computador, a internet, o correio
eletrônico (ou e-mail) e a telemedicina. Já os blogs, microblogs e as redes sociais, por serem
ferramentas que têm impacto maior no âmbito da propaganda médica, não farão parte deste escopo.
[16]

O computador
A incorporação do computador como um terceiro elemento envolvido em uma consulta médica é
cada vez mais frequente. Os estudos mostram que a integração dos computadores na consulta médica
tem sido positiva para médicos e pacientes, facilitando a comunicação e colaboração entre ambos.
As preocupações iniciais sobre uma possível deterioração na satisfação do paciente não se
materializaram. [2]
No entanto, a maneira como o médico se comporta ao usar o computador é que determina a
satisfação do paciente. [12] Assim, se o médico mantém o foco no paciente e passa a idéia para ele de
que o computador é apenas uma ferramenta a mais no auxílio ao seu cuidado e não o ator principal do
encontro, fará com que o paciente aumente sua satisfação com o uso dessa ferramenta na consulta.
Manter um bom contato visual, realizar pausas curtas durante a entrevista, mostrar a tela do
computador para dax explicações sobre a doença ou sua evolução podem auxiliar na comunicação.
O computador também facilita o fluxo de trabalho do médico por melhorias na documentação
(prontuário eletrônico), facilidade de acesso à informação ou através da consulta rápida a
ferramentas de tomada de decisão, permitindo assim que o médico tenha mais tempo para se dedicar
ao paciente. [13] [14] [15]
Para incentivar o uso dessa ferramenta, o Conselho Federal de Medicina em parceria com a
Sociedade Brasileira de Informática elaboraram uma cartilha de orientação de como o médico deve
proceder ao migrar de um prontuário de papel para um prontuário 100% digital, levando em
consideração a segurança, confiabilidade e sua validação ética e jurídica. [10]

A internet
Até a década de 1980, os médicos eram a fonte máxima de informação sobre medicina. Davam
explicações sobre a doença, como preveni-la, qual poderia ser sua evolução, como combatê-la e
frequentemente reforçavam alguma informação com a distribuição de panfletos cartilhas ou folhetos
explicativos.
O paciente, por sua vez, poderia ainda receber informações adicionais da família e amigos,
usualmente na forma de anedotas sobre pessoas que haviam passado por situações similares. Com o
surgimento da internet, no entanto, o cenário se modificou radicalmente e hoje qualquer um pode
visitar uma gama imensa de sites para encontrar a informação que precise. [5] [15] As estatísticas
mostram que o uso da internet para consultar informações sobre saúde é muito frequente,
principalmente entre jovens, com melhor grau de instrução e renda. O Google é o principal motor de
busca e os endereços mais visitados são os vinte primeiros. A navegação é feita de maneira
aleatória, chamando mais a atenção a estética do site, a facilidade de navegação, o prestígio do autor
e velocidade da conexão. [2]
Toda essa facilidade de acesso à informação fez com que o paciente adquirisse uma atitude mais
participativa nas decisões diagnósticas e terapêuticas, modificando sua postura anterior, que era a de
um receptor passivo das decisões que o médico tomava em seu nome. Isso tornou a relação com seu
médico menos vertical e mais horizontalizada.
Em um primeiro momento, o médico adotou uma postura mais defensiva, olhando para a internet
como uma excelente ferramenta tecnológica para ele, mas potencialmente maléfica para seu paciente,
quando este saísse à procura de informações médicas, já que as estatísticas mostram que a grande
maioria das informações coletadas pelos pacientes carece de um adequado teor científico, podendo
potencializar preocupações desnecessárias. Assim, por exemplo, uma paciente portadora de lúpus
eritematoso sistêmico há 7 anos que tenha sua doença bem controlada com a medicação poderá ficar
muito preocupada ao encontrar na internet que o lúpus poderá cursar com vasculite do sistema
nervoso central e que a medicação que está usando tem uma série de efeitos colaterais, entre eles a
cegueira. Na visão mais otimista, ela marcará uma visita com o seu médico para esclarecimentos,
mas na visão mais pessimista a paciente poderá abandonar seu tratamento e até procurar tratamentos
alternativos que poderão expô-la a risco de vida.
Cabe ao médico assumir uma postura de orientação para com seu paciente, tranquilizando-o,
filtrando as informações corretas, transmitindo conhecimento e confiança. Outra estratégia
interessante é oferecer uma lista útil e confiável de endereços na web sobre saúde, para que o
paciente encontre informações sobre sua doença, provocando motivações para mudanças de estilo de
vida e facilitando a aderência ao tratamento proposto. Tudo isso solidificará a relação com o
paciente.
Dessa maneira, se por um lado os pacientes deverão compreender bem suas limitações no uso da
internet, por outro lado os médicos deverão ser tolerantes e pacientes para aceitar a oposição e a
decepção, sem se sentir desafiados, mas compreendendo que a postura do paciente mudou, sendo
agora mais participativa. [2] [5] [21]

O correio eletrônico
Historicamente, a comunicação entre pacientes e médicos foi baseada em encontros pessoais ou
visita tradicional e através de documentos escritos. A invenção do telefone, em 1876, desenvolveu
uma nova forma de comunicação graças à onipresença e facilidade de uso, e introduziu uma mudança
radical no acesso dos pacientes aos seus médicos a partir da década de 1960. O fax também
constituiu outra forma de comunicação, embora não tão difundida e que cumpre com suas funções,
mas de maneira mais limitada. Desde a década de 1970, nos Estados Unidos, começou-se a utilizar
outra forma de comunicação (o correio eletrônico), porém restrita apenas ao âmbito universitário.
Nos dias de hoje, o correio eletrônico se difundiu em larga escala e já constitui uma forma bem
conhecida de comunicação, sendo depois da internet o segundo serviço mais utilizado pelos usuários
da rede. [7]
Noventa porcento dos pacientes que acessam a internet gostariam de consultar seu médico por e-
mail. [6] Os médicos, por sua vez, têm sido lentos em adotar a comunicação eletrônica com seus
pacientes. [2] Em uma pesquisa recente, apenas 20% dos médicos usaram alguma vez o e-mail para se
comunicar com seus pacientes e somente 3% costumam usá-lo frequentemente para estes fins. [6] As
barreiras em adotar essa tecnologia por parte dos médicos são variadas: falta de reembolso, cultura
médica, questões éticas e legais, preocupações sobre sigilo e responsabilidade, bem como receio em
aumentar sua carga de trabalho e diminuir seu tempo livre. Para minimizar essas barreiras, têm
surgido diversas estratégias como formas de reembolsos, normativas de uso, utilização de
tecnologias confiáveis e seguras através de codificações, senhas, uso de servidores seguros, entre
outros, porém nem sempre estão disponíveis essas soluções em nosso meio, fazendo com que os
médicos ainda se sintam mais confortáveis em fornecer o telefone do que se comunicar por e-mail. [8]
Atualmente, as normativas do uso do e-mail entre médicos e pacientes diferem entre os países. [7]
Ainda não temos uma clara recomendação do seu uso e, portanto, deve ser usado com cautela. Na
prática, tanto o médico quanto o paciente usam mais ou menos essa ferramenta dependendo do grau
de conforto, que aumenta à medida que é utilizada. É importante, porém, que ambos estejam de
acordo em como vão fazê-lo (ver Tabela). [7] [8]
Esse meio de comunicação não parece adequado para qualquer situação, porém constitui um
complemento importante na consulta se bem utilizado. Dúvidas rápidas, como “haveria um substituto
para a medicação que estou usando, pois está em falta no mercado?”, poderiam facilitar a
comunicação entre ambos, evitando um desperdiço de tempo entre a secretária receber o recado,
passar para o médico e este retornar a ligação. Ou então, outra situação, o médico solicitar para o
paciente que envie por e-mail o resultado do anátomo-patológico do pólipo que retirou há 2 anos
para atualizar o prontuário e ver se haverá necessidade de solicitar uma nova colonoscopia na
próxima consulta.
No entanto, é importante o bom senso, para que o paciente não sobrecarregue o médico com
mensagens triviais ou faça perguntas que só poderão ser resolvidas numa consulta presencial.

Tabela – Aspectos a serem considerados pelos médicos e pacientes sobre o uso do correio
eletrônico

Combinar o tempo médio de espera em resposta às mensagens.


Não utilizá-lo para temas urgentes.
Especificar o tipo de comunicação (agenda, dúvidas rápidas, exames laboratoriais, etc.) e a
sensibilidade destas (HIV, doenças mentais, etc.).
Colocar no assunto da mensagem um título indicativo da categoria deste (tratamento, laboratório,
agenda, etc.) que se tenha combinado previamente e centrar o conteúdo ao tema da mensagem.
Informar que os dados do correio eletrônico serão tratados com o máximo sigilo, incluindo-os na
história clínica.
Configurar o programa de correio com notificação de recepção de mensagem.
Recomendar utilizar sempre a mesma conta de correio para a comunicação para garantir o sigilo,
assegurando-se de que somente o paciente ou pessoa responsável autorizada tenha acesso.
Combinar o que fazer no caso de ausência.
Sempre é recomendável proporcionar o nome completo, data de nascimento e dados de contato de
maneira clara.

A telemedicina
A telemedicina é uma prestação de serviços de saúde via remota através das telecomunicações
(incluindo o correio eletrônico exposto anteriormente, telefone, videoconferência, cabo, satélite, etc.)
e inclui a transmissão da palavra escrita ou falada, imagens e sons. Pode ocorrer de maneira tão
simples, quando dois profissionais discutem um caso clínico por telefone, como de maneira
sofisticada, ao se realizar uma cirurgia à distância através da robótica. [7]
Historicamente, a aplicação de tecnologias de comunicação na medicina datam do início do século
XX, quando em 1910, na Inglaterra, demonstrou-se o primeiro estetoscópio elétrico que funcionava
por telefone. O grande impulso, porém, se deu no final do anos 1960, quando a agência espacial
norte-americana (NASA) enviou sinais fisiológicos dos seus astronautas em órbita para os centros
espaciais da Terra.
Com o recente desenvolvimento tecnológico através da internet, bem como com a disseminação dos
smartphones e tablets, a telemedicina sofre um verdadeiro renascimento, incrementando a eficiência
e qualidade dos serviços, agilizando os resultados, economizando tempo e diminuindo custos.
Através da telemedicina é possível, por exemplo, treinar médicos via teleconferência em locais de
difícil acesso, evitando deslocamentos. Ou então, digitalizar uma imagem e discuti-la com um médico
radiologista localizado em um centro de referência. Analogamente, podemos fazer o mesmo com um
eletrocardiograma, com uma lesão na pele, no acompanhamento das feridas, na discussão de uma
lâmina de patologia ou na realização de uma consulta ou interconsulta, tanto entre dois profissionais
de centros universitários quanto com agentes de saúde comunitários de lugares remotos. Todas essas
aplicabilidades podem ocorrer ou não em tempo real. O monitoramento ambulatorial contínuo
através de chips que coletam os sinais vitais, níveis de glicose e o uso da realidade virtual na
simulação de procedimentos médicos são promissores.
Mas e como fica a relação médico-paciente com tudo isso? Deve-se salientar que o médico que
atende o paciente de maneira presencial é o responsável por ele. O que muda, na verdade, é a forma
de trabalho entre os médicos, que podem ter consultoria especializada à distância e sem
deslocamentos. [11] É importante pedir o consentimento do paciente, devendo-se tomar todos os
cuidados de segurança para preservar o sigilo, e, assim como foi dito sobre o computador, a
telemedicina deve ser um instrumento a mais no atendimento ao paciente e não o ator principal da
consulta. [17] [18] [19] [20]
Não se deve confundir telemedicina com consulta à distância entre médico e paciente sem a
intermediação de outro médico de maneira presencial. Isso não é permitido e já está bem
regulamentado pelo Conselho Federal de Medicina. [16]

Conclusão
As novas tecnologias têm transformado a vida das pessoas, e sua repercussão na relação entre o
médico e o paciente é cada vez mais crescente, pois produzem efeitos não somente entre os usuários,
mas também no entorno social em que se encontram. [7]
Seguramente não é a tecnologia que ameaça essa relação, mas sim a maneira como ambos a
utilizam. [2] [3] É como comparar o bisturi, que foi um avanço tecnológico na sua época, como uma
potencial ferramenta de fazer o mal, quando na verdade o médico que maneja o bisturi é quem poderá
fazer o bem ou mal, dependendo da forma como o utilize.
Por fim, no uso dessas tecnologias, é importante a leitura periódica das publicações feitas pelas
organizações científicas, órgãos reguladores da profissão ou conselhos profissionais, que não têm
medido esforços em criar normativas que se ajustem à ética e às leis vigentes.
Referências bibliográficas
[6] BAER, D. Patient-physician e-mail communication: the kaiser permanente experience. J Oncol Pract., v. 7, pp. 230-233, 2011.

[21] BOWES, P.; STEVENSON, F.; AHLUWALIA, S.; MURRAY, E. I need her to be a doctor: patients experiences of presenting
health information from the internet in GP consultations. Br J Gen Pract., v. 62, pp. e732-8, 2012.
[10] CARTILHA sobre Prontuário Eletrônico. Conselho Federal de Medicina, fev. 2012.
[17] DECLARAÇÃO de Tel Aviv. Sobre responsabilidades e normas éticas na utilização da telemedicina, 1999.
[19] FRANÇA, G. V. Comentários ao código de ética médica. 3. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2000.
[15] HARTZBAND, P., GROOPMAN, J. Untangling the Web-patients, doctors, and the Internet. N Engl J Med., v. 362,
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[5] MARIN-TORRES, V.; VALVERDE ALIAGA, J.; SANCHEZ MIRO, I.; SAENZ DEL CASTILLO VICENTE, M. I.;
POLENTINOS-CASTRO, E.; GARRIDO BARRAL, A. Internet as an information source for health in primary care patients and its
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[2] MIRA SOLVES, J. J.; LLINAS SANTACREU, G.; LORENZO MARTINEZ, S.; PEREZ-JOVER, V. FAQs on the effects of e-
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[11] MONTEIRO, A. Telemedicina, uma realizadade brasileira. Cons. Reg Med do Paraná, 2011.
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minute. Fam Pract., v. 25, pp. 202-208, 2008.
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[15] REGRAS para publicidade médica. Resolução 1.974/11. Conselho Federal de Medicina, 2011.
[20] RESOLUÇÃO CFM nº 1643/2002 do Conselho Federal de Medicina - CFM, 2002.
[3] RESTREPO, F. J. La tecnologia amenaza la relación médico-paciente? Rev Colomb Cir., v. 27, pp. 97-98, 2012.
[13] SHIELD, R. R.; GOLDMAN, R. E.; ANTHONY, D. A.; WANG, N.; DOYLE R. J.; BORKAN, J. Gradual electronic health
record implementation: new insights on physician and patient adaptation. Ann Fam Med., v. 8, pp. 316-326, 2010.
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UFMG, 2006.
[9] WEINER, J. P. Doctor-patient communication in the e-health era. Isr J Health Policy Res., v. 1, pp. 33, 2012.

Ivan Bartolomei Paredes


Especialista em Clínica Médica pelo Hospital Evangélico de Curitiba (HUEC) e pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Especialista em Educação em Saúde pela Faculdade Evangélica do Paraná (FEPAR). Coordenador da Disciplina de Semiologia Médica
I e II do curso de Medicina da Faculdade Evangélica do Paraná (FEPAR).
Agradecimentos
Agradeço a todos os colaboradores pela qualidade dos textos.
Um agradecimento especial ao Departamento de Clínica Médica da Universidade Federal do
Paraná, pelo incentivo e apoio para transformar este projeto em realidade.
Finalmente, aos estudantes e alunos do curso de Medicina, para os quais especialmente fizemos este
livro.
Dados Internacionais para Catalogação na Publicação (CIP)
(Mônica Catani M. de Souza , CRB-9/807, PR, Brasil)

R382 A relação médico-paciente : experiências para o médico / organização Alexandre Alessi. — Curitiba : Orange Monkey, 2014.

ISBN 978-85-68387-00-9

1. Medicina – Orientação profissional. I. Alessi, Alexandre. CDU 616

© texto: Alexandre Alessi (Org.), 2014

© ilustrações: Bruno Palma e Silva, 2014

Direitos de publicação
© 2014 Orange Monkey

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1ª edição

Curitiba, 2014

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