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conceituais e metodológicos*
Claude Dubar**
O ponto de vista aqui apresentado defende que igual importância seja dada às
categorias institucionais, determinando "posições objetivas" (escolares,
profissionais...), e às categorias de linguagem utilizadas por indivíduos em
situação de entrevista de pesquisa. Para o sociólogo, tomar a sério falas sobre
si mesmo vindo de um sujeito incitado "a se narrar" e entrando num diálogo
particular, verdadeiro "exercício espiritual" (Bourdieu 1993), com um
pesquisador capacitado para escutar, talvez constitua uma condição sine qua
non para um uso sociológico da noção de identidade.
Esta última parte será essencialmente programática, uma vez que poucas
pesquisas conseguiram relacionar, de modo convincente, os dois
procedimentos acima sem instrumentalizar um à lógica do outro. Existem
tentativas de se relacionar análises de "percursos típicos" (Dubar et alii, 1987;
Nicole-Drancourt 1990; Demazière 1992), mas a articulação das duas análises
continua problemática: quer a análise estatística prévia sirva somente para
selecionar uma pequena amostra de casos, cuja análise constitui a seguir o
essencial dos resultados (lógica da restituição), quer as entrevistas sirvam
apenas para exemplificar tipos obtidos pela análise estatística puramente
nominalista (lógica da ilustração). Estabelecer relações entre esquemas
discursivos de relatos biográficos e processos estruturais de determinação
social continua sendo um exercício essencialmente virtual.
Esta insuficiência empírica não impede que certos escritos teóricos postulem
uma correspondência íntima, e até uma estrita dependência causal, entre as
"formas de discurso" vinculadas a sistemas de opiniões, de atitudes ou de
disposições e as "trajetórias objetivas" mais típicas. Ora, trata-se de hipóteses
simplificadoras que devem ser submetidas a observações empíricas
suscetíveis, quando não para "validá-las", pelo menos para torná-las críveis.
Para que tal credibilidade tenha fundamentos, é preciso que os dados
quantitativos, permitindo a determinação das "trajetórias objetivas", e os dados
qualitativos, gerindo a produção de relatos típicos de percursos biográficos,
isso é, de "trajetórias subjetivas", sejam ao mesmo tempo comparáveis e
produzidos de modo autônomo. Para serem comparáveis, é preciso que as
"classes de trajetórias objetivas" sejam interpretáveis de modo compreensível e
que os "discursos típicos" incidam mesmo sobre a compreensão do sentido
da biografia socialdos sujeitos (esta noção remete ao ponto de vista sociológico
sobre uma biografia singular, mas também à interpretação biográfica de uma
"trajetória social objetiva"). Para que a confrontação surta efeitos, é preciso
também que os agrupamentos de "relatos" ou de seus esquemas não recorram
às categorias oriundas da análise estatística: caso contrário, só encontraremos
na análise do "qualitativo" o que nela colocamos a partir do "quantitativo" (é a
postura "ilustrativa" tão comum na utilização das entrevistas em sociologia). É
preciso também que os dados de entrevistas sejam analisados e condensados
em, salientando "ordens categoriais" que possam ser confrontadas com as
classes de nomenclaturas estatísticas e não simplesmente retranscritas e
entregues, tal qual, à perspicácia do leitor (esta é a postura "restitutiva" quase
tão freqüente quanto a precedente).
Podemos agora perceber melhor as dificuldades envolvidas nessa operação.
De fato, a tentação de se associar os quatro grandes tipos de "trajetórias
objetivas" (cf. § 2) às quatro "formas identitárias" (cf. § 3) esbarra em inúmeras
objeções metodológicas dizendo respeito aos modos de produção desses
conceitos tipológicos e sua dependência para com contextos de pesquisa.
Parece mesmo que as poucas tentativas organizadas para relacionar a
distribuição estatística de amostras de indivíduos, segundo sua "forma
identitária dominante" (isso é, na realidade, a forma à qual se pode vincular
este discurso proferido em circunstâncias determinadas e, portanto,
contingentes) e sua "classe de trajetória" estatisticamente demarcada com a
ajuda de indicadores considerados "objetivos", não deixa transparecer fortes
correlações (Dubar 1992; Demazière 1992). Mesmo se as "identidades fora do
trabalho", associadas às "ameaças de exclusão", parecem mais
freqüentemente o destino de indivíduos tendo trajetórias sociais descendentes
ou de rigidez socioprofissional (mas, também, de operários idosos sem
diplomas), e as "identidades de rede", o fado de pessoas tendo trajetórias de
"contramobilidade" (mas igualmente dos jovens diplomados que se consideram
profissionalmente desclassificados), não se pode concluir haver uma
determinação forte das trajetórias "objetivas" sobre as "formas identitárias"
associadas a formas de discurso biográfico expressando as "trajetórias
subjetivas". Contudo, temos de ser muito cautelosos nesse ponto: as pesquisas
não nos permitem afirmar nada de modo convincente.
À guisa de conclusão
A distinção inicial das duas faces dos processos identitários, para as quais
Kaufman propunha um aprofundamento conceitual, revelou-se fecunda para
manter uma autonomia, mas também reivindicar uma articulação entre dois
procedimentos tão importantes quanto diferentes. Um permite esclarecer de
que maneira os "quadros sociais de identificação" - traduzidos em categorias
estatísticas e em conceitos operatórios permitindo analisar as "trajetórias
objetivas" - condicionam os percursos individuais. O outro almeja compreender
os discursos biográficos como "processos identitários individuais", por meio dos
quais as crenças e as práticas dos membros de uma sociedade contribuem
para inventar novas categorias, modificar as antigas e reconfigurar
permanentemente os próprios "quadros de socialização". Isto quer dizer que as
"formas identitárias" não podem ser consideradas como formas estáveis, que
seriam preexistentes às dinâmicas sociais que as constróem. Elas não passam
de ferramentas de análise, de formas provisórias de inteligibilidade que o
sociólogo constrói para "dar conta da maneira segundo a qual os membros dão
conta de suas práticas" (Garfinkel 1967).
Será o termo "identidade" realmente necessário para tanto? Não acarretaria ele
o risco permanente de uma deriva essencialista, associando-o a "tipos de
personalidade", a "formas estáveis de percurso" atualizando uma determinação
inicial (seja ela de origem biológica, cultural ou mística)? Pode ser. De fato, seu
interesse é de ordem problemática e programática: era preciso salientar a
questão das relações entre esses dois processos, dizendo respeito a
procedimentos de pesquisa diferentes como os processos biográficos
individuais e as dinâmicas institucionais coletivas ("históricas") que mantêm e
fazem evoluir as categorias sociais ao delimitar as formas de mobilidade. Essas
relações parecem-me incontornáveis uma vez que os discursos biográficos
recorrem, necessariamente, a categorias lingüísticas vinculadas a
categorizações sociais e que as dinâmicas institucionais passam por indivíduos
com biografias determinantes. Isso sem falar dos inúmeros obstáculos de
método e de terminologia que dificilmente serão superados. Seria isso
suficiente para nos fazer desistir?
ABSTRACT: The analysis of social trajectories faces two aspects of the life
process. The "objective trajectory" is defined as the sequence of social
positions taken during one's life, measured by statistical categories and
summarised in a general tendency (ascending, descending, stable etc.). By
contrast, the "subjective trajectory" is expressed by several biographical
accounts, measured by native categories that point out to "social worlds",
summarised in heterogeneous identity forms. It is necessary to confront both
analysis as we try to understand the social identity as a process both
biographical and institutional. Does the concept of "configuration", as presented
by Elias, enable us to combine typical biographical processes (subjective
accounts) to objective trajectories (statistical categories)?
Bibliografia
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