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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

CLAUDIA MOREIRA DOS SANTOS

A DISCRIMINAÇÃO NO DISCURSO: A CATEGORIZAÇÃO DA MULHER SOB O


ENFOQUE DA LINGUÍSTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL

MESTRADO EM LINGUÍSTICA APLICADA E ESTUDOS DA LINGUAGEM

SÃO PAULO
2011
CLAUDIA MOREIRA DOS SANTOS

A DISCRIMINAÇÃO NO DISCURSO: A CATEGORIZAÇÃO DA MULHER SOB O


ENFOQUE DA LINGUÍSTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL

Dissertação apresentada em atendimento à


exigência parcial para obtenção do título de
MESTRE em Linguística Aplicada e Estudos
da Linguagem à Banca Julgadora da
Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo.

Orientadora: Profª. Drª. Sumiko Nishitani Ikeda

PUC - SP
2011

ii
BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________

____________________________________________________

____________________________________________________

iii
Aos meus pais,
pelo exemplo digno de vida,
e ao meu marido, Robinson,
pela compreensão e apoio permanentes.

iv
AGRADECIMENTOS

Esta dissertação é uma construção coletiva, fruto de várias representações.


Desta forma, presto a minha gratidão:

A Deus, Ser supremo, que conduz nossos passos.

À orientadora, Prof.ª Dr.ª Sumiko Nishitani Ikeda, pela paciência e


compreensão de minhas limitações, pelas orientações assertivas, e co-autoria neste
projeto. Seu exemplo como educadora perdurará em toda minha vida profissional..
Sinto-me honrada de ter tido a oportunidade de ter sido formada por essa grande
profissional. Deixo aqui gravado o meu respeito e admiração.

À Prof.ª Dr.ª Ângela B. C. T. Lessa (PUCSP), integrante da Banca de


Qualificação, por aceitar gentilmente o convite e apontar ajustes fundamentais para
a concretização teórica da pesquisa.

À Prof.ª Dr.ª Leiko Matsubara Morales (USP-SP), também integrante da


Banca de Qualificação, por sua orientação especial e sugestões valiosas para a
análise dos dados.

Ao meu marido Robinson Rosário Pitelli, pela confiança, discussões tão


enriquecedoras e contribuições pontuais que tornaram o meu sonho realidade.
Também por estar ao meu lado em todos os momentos, acompanhando-me nas
horas difíceis com palavras de carinho e força.

À minha grande amiga, Eliane Alves de Sousa, pelo apoio constante, em


momentos críticos.

À Leila, por abrir a primeira porta, apresentando-me à minha orientadora.

v
A todas as minhas colegas de curso, especialmente, Ângela, Rosânia e
Fernanda pelo carinho, companheirismo e com as quais tive a honra de partilhar
medos, alegrias e sonhos.

Se por acaso deixei de citar alguém, deixo os meus sinceros agradecimentos.

vi
EGÍGRAFE

Chega mais perto e contempla as palavras.


Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
(ANDRADE, 1964)

vii
CLAUDIA MOREIRA DOS SANTOS

A DISCRIMINAÇÃO NO DISCURSO: A CATEGORIZAÇÃO DA MULHER SOB O


ENFOQUE DA LINGUÍSTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL

RESUMO
Não é incomum e nem causa estranheza se, no trânsito de uma avenida, ouvirem-se
frases como: 'Lugar de mulher é na cozinha' ou 'Vá pilotar no fogão', como se a
mulher estivesse invadindo um terreno que não lhe pertencesse. Sempre me intrigou
essa diferença na consideração da mulher, quanto às suas atividades e seus
deveres, em contraposição aos do homem. Se imaginarmos que o mundo é uma
vasta coleção de coisas e de pessoas, poder-se-ia pensar que as pessoas teriam
direito a essas coisas. Assim, ao entrar em contato com as ideias de Fowler (1991)
sobre 'categorização' e 'grupo', decidi-me a pesquisar o assunto. A comunicação
humana, segundo Fowler (1991), envolve sistemas de crenças, sistemas de
categorias, ‘graus de discriminação’, que representam o mundo de acordo com as
necessidades das sociedades em que ocorre a comunicação. Na medida em que
categorizamos uma pessoa, continua o autor, como tendo atributos ou
comportamentos fortemente previsíveis, a categoria pode enrijecer-se em um
estereótipo. Segundo o autor, a categorização é a base discursiva para práticas de
discriminação. O autor é um dos idealizadores da ‘Linguística Crítica’, segundo a
qual, a análise feita com instrumentos linguísticos próprios e com referência a
contextos históricos e sociais relevantes pode trazer a ideologia, normalmente
escondida pela habitualização do discurso, à superfície para inspeção. Como em
nossos dados constam também algumas imagens que apareceram na página do
jornal em questão, apoiamo-nos em Macken-Horarik (2004), que analisa a
contribuição complementar entre imagens (ilustrações) e palavras (do texto), no
processo da construção de significados. O objetivo desta pesquisa é comparar, à luz
da Linguística Crítica (Fowler, 1991), com apoio metodológico da Linguística
Sistêmico-Funcional (Halliday, 1985; 1994), a categorização da mulher e a do
homem na primeira página, do jornal Folha de S. Paulo. Para tanto, a pesquisa deve
responder às seguintes perguntas: (a) Com que frequência a mulher ou o homem
são citados na primeira página do jornal Folha de S. Paulo? (b) Que tipo de atividade
exercem homens e mulheres citados nessa página? (c) Que escolhas léxico-
gramaticais revelam a ideologia subjacente à figura da mulher e à do homem? O
corpus desta pesquisa compõe-se das primeiras páginas das 30 edições do mês de
abril de 2010 do jornal Folha de S.Paulo. Na LSF, considero a TGR (Teoria de
Gêneros e Registro), proposta por Eggins e Martin (1997), bem como contribuições
mais recentes que a teoria tem recebido, tais como a Avaliatividade de Martin (2000)
e os conceitos de papel desempenhado e papel projetado, de Thompson e Thetela
(1995), além de outros recursos retóricos, como a chamada 'política do apito do cão'
(dog whistle politics) (COFFIN & O'HALLORAN, 2006) ou o 'contrabando' de
informação (LUCHJENBROERS; ALDRIDGE, 2007).

Palavras-chave: categorização da mulher e do homem; análise do discurso crítica;


Linguística Sistêmico-Funcional; Appraisal (Avaliatividade).

viii
CLAUDIA MOREIRA DOS SANTOS

THE DISCRIMINATION IN DISCOURSE: THE CATEGORIZATION OF WOMEN


UNDER THE LIGHT OF SYSTEMIC FUNCTIONAL LINGUISTICS

ABSTRACT

It isn’t neither uncommon nor surprising when we hear on the streets male drivers
crying to a female driver: ‘Go to the kitchen!’ or ‘Cooking is what you should be
doing!’ as if women who dare drive had invaded a man’s territory. I have always felt
puzzled by such attitude towards women’s chores against men’s duties. If we picture
the world as a vast collection of things and people one could understand such rights.
Therefore, getting acquainted with Fowler’s ideas on women’s categorization and
groupings made me decide to go deep inside it. Human communication, according to
Fowler, involves belief systems, labeling arrangements and degrees of
discrimination, which all together represent the world according to the needs of the
societies where communication takes place. As we proceed with categorization of
people, we go on assigning persons specific attributes and associating them with
strongly predictable behaviors in a way that the categories end up turning into
stereotypes. According to Fowler, categorization is a discursive basis for
discrimination. He is one of the creators of Critical Linguistics which says that
analysis made with appropriate linguistic tools and related to relevant social and
historical contexts may reveal the ideology hidden under the surface of ordinary
discourse and display it for inspection. Because there are also images which we
picked up from the newspaper and included in this study, we refer to Macken-Horarik
(2004) to account for the complementary contribution of image (artwork) and
verbiage (text panel) to the meaning-making process. The objective of this study is to
compare the categorization of women and men on the first page of Folha de S. Paulo
newspaper, under the light of Critical Linguistics (Fowler 1991), with the support of
Systemic Functional Linguistics (Halliday, 1985; 1994). For this purpose, the study
shall answer the following questions: (a) How often are women or men cited on the
first page of Folha de S. Paulo newspaper? (b) What type of activities do women and
men cited on these pages are engaged in? (c) Which lexico-grammatical choices
does the ideology behind the image of woman and man reveal? The corpus of this
research is composed by the first pages of the thirty editions of Folha de S. Paulo in
April 2010. From Systemic Functional Linguistics, I consider the TGR (Theory of
Genres and Register), proposed by Eggins and Martin (1997), as well as more recent
contributions that such theory has received, such as Martin´s Appraisal Theory
(2000) and the concepts of Thompson and Thetela´s enacted and projected roles
(1995), and some other rhetoric features as well as the so-called ‘dog whistle politics’
(COFFIN & O'HALLORAN, 2006) or smuggling of information (LUCHJENBROERS;
ALDRIDGE, 2007).

Keywords: categorization of women and men; Critical Discourse Analysis; Appraisal

ix
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 - Relação processos/participantes.............................................. 13
Quadro 2 - As três metafunções (fonte: HALLIDAY, 1994) ....................... 14
Quadro 3 - Exemplo de análise de N-Rema (fonte: FRIES,1995).............. 15
Quadro 4 - Oferecimento e pedido, bens & serviços ou informação
(fonte:HALLIDAY, 1994)........................................................... 19
Quadro 5 - Funções da fala e respostas (fonte: HALLIDAY, 1994)............ 20
Quadro 6 - Avaliação (Fonte: Martin, 2000)................................................ 23
Quadro 7 - Análise de Afeto (fonte: MARTIN, 2000a)................................ 25
Quadro 8 - Análise de Julgamento (fonte: MARTIN, 2000a)...................... 25
Quadro 9 - Análise de Apreciação (fonte: MARTIN, 2000a)....................... 26
Quadro 10 - Atividades exercidas por homens e por mulheres.................... 37
Quadro 11 - O contexto social/situacional do texto 1................................... 40
Quadro 12 - Relação processos/participantes.............................................. 40
Quadro 13 - Análise do sistema da Transitividade da notícia 1............... 41
Quadro 14 - Análise da metafunção interpessoal da notícia 1..................... 42
Quadro 15 - Análise da metafunção textual da notícia 1.............................. 43
Quadro 16 - Análise da questão visual da notícia 1..................................... 44
Quadro 17 - Notícia veiculada na primeira página do jornal em 15/04/10.... 45
Quadro 18 - O contexto social/situacional da notícia 2................................ 45
Quadro 19 - Análise do sistema da Transitividade da notícia 2............... 45
Quadro 20 - Análise da metafunção interpessoal da notícia 2..................... 46
Quadro 21 - Análise da metafunção textual da notícia 2.............................. 48
Quadro 22 - O contexto social/situacional da notícia 3................................. 49
Quadro 23 - Análise do sistema da Transitividade da notícia 3.................... 50
Quadro 24 - Análise da metafunção interpessoal da notícia 3..................... 51
Quadro 25 - Análise da metafunção textual da notícia 3.............................. 52
Quadro 26 - Análise da questão visual da notícia 3..................................... 52
Quadro 27 - Notícia veiculada na primeira página do jornal em 01/04/10.... 53
Quadro 28 - O contexto social/situacional da notícia 4................................. 53
Quadro 29 - Análise do sistema da Transitividade da notícia 4.................... 53
Quadro 30 - Análise da metafunção interpessoal da notícia 4..................... 54
Quadro 31 - Análise da metafunção textual da notícia 4.............................. 56

x
LISTA DE TABELAS E FIGURAS

Tabela 1 - Frequência de citação de homens e mulheres............................. 36

Figura 1 - Gráfico de citação explícita de homens e mulheres..................... 36


Figura 2 - Total de atividades exercidas por homens e mulheres................ 37
Figura 3 - Notícia publicada na primeira página do jornal em 01/04/2010... 39
Figura 4 - Notícia veiculada na primeira página do jornal em 02/04/2010... 49

xi
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO............................................................................................. 1
1.1. Justificativa.......................................................................................... 5
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA................................................................... 6
2.1. A Análise do Discurso, segundo Fairclough..................................... 7
2.2. A Linguística Crítica............................................................................ 8
2.2.1. A discriminação............................................................................ 10
2.3. A relação entre língua e ideologia...................................................... 11
2.4. A Linguística Sistêmico-Funcional.................................................... 12
2.4.1. O Novo-Rema.............................................................................. 15
2.4.2. Língua e contexto........................................................................ 15
2.4.3. Teoria de Gêneros e Registros.................................................... 17
2.4.4. A Metafunção interpessoal........................................................... 19
2.4.4.1. A modalização.................................................................... 21
2.4.5. A Avaliatividade (Appraisal).......................................................... 23
2.4.5.1. Token de Atitude................................................................ 27
2.4.5.2. O Fenômeno da Propagação Avaliativa............................ 28
2.5. A abordagem intertextual ou translinguística................................... 29
2.5.1. Intertextualidade, coerência e sujeitos......................................... 30
2.6. A comunicação visual......................................................................... 30
2.6.1. As ferramentas............................................................................. 32
3. METODOLOGIA.......................................................................................... 33
3.1. Dados.................................................................................................... 33
3.2. Procedimentos de análise dos dados................................................ 34
4. ANÁLISE...................................................................................................... 35
4.1. Frequência de citação de homens e mulheres................................. 35
4.2. Atividade exercida por homens e por mulheres............................... 37
4.3. A avaliação do homem e da mulher: As escolhas léxico-
gramaticais........................................................................................... 38
4.3.1. Texto I: Beijinho, Beijinho, Tchau, Tchau..................................... 39
4.3.2. Texto II: Ex-performer erótica assessora governo do Pará......... 45
4.3.3. Texto III: Solteira e vaidosa, líder da greve dos professores vai
adotar menina.................................................................................. 49

xii
4.3.4. Texto IV: Campanha tem início com ‘scripts’ fáceis de antever... 53
5. DISCUSSÃO DOS RESULTADOS.............................................................. 56
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................... 58
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................. 61

xiii
Introdução − 1

A DISCRIMINAÇÃO NO DISCURSO: A CATEGORIZAÇÃO DA MULHER SOB O


ENFOQUE DA LINGUÍSTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL

1. INTRODUÇÃO

Não é incomum e nem causa estranheza se, no trânsito de uma avenida,


ouvirem-se frases como: 'Lugar de mulher é na cozinha' ou 'Vá pilotar no fogão',
como se a mulher estivesse invadindo um terreno que não lhe pertencesse.
Também todos achariam normal que, se uma criança começasse a chorar por algum
motivo (isso aconteceu comigo durante as férias da família), alguém dissesse: 'Onde
está a mãe desta criança?' em vez de dizer: 'Onde está o pai desta criança?'.
Sempre me intrigou essa diferença na consideração da mulher, quanto às
suas atividades e seus deveres, em contraposição aos do homem. Se imaginarmos
que o mundo é uma vasta coleção de coisas e de pessoas, poder-se-ia pensar que
as pessoas teriam direito a essas coisas. E, na realidade, podem ter, pelo menos em
termos gerais. Tanto é que (aproveitando o exemplo acima), hoje, talvez haja até
mais mulheres do que homens dirigindo veículos, já que a elas cabe levar as
crianças à escola, ao curso de línguas, de natação, de balé, além de fazer compras
no supermercado e a suprir tantas outras necessidades da família. Também há
muitas mulheres em cargos de chefia, mulheres na política, na polícia, nos hospitais
e assim por diante. Mas há sempre a sensação de serem elas casos de 'exceção', e
sabemos que essas mulheres enfrentam dificuldades. Disse uma reitora de uma
universidade: "A mulher precisa antes de tudo provar que existe para, só depois,
merecer algum respeito à sua pessoa".
Nesse sentido, um editorial do jornal O Estado de São Paulo, de 26.10.04,
publica o resultado de uma pesquisa do Datafolha, referente aos candidatos Marta
Suplicy e José Serra, em que "metade dos entrevistados a considera 'autoritária', ou
'desequilibrada emocionalmente' (ante 33% e 22%, respectivamente, no caso de
Serra). Notemos que, em nosso cotidiano, a avaliação de desequilíbrio emocional -
um forte fator para desclassificar um ser humano - é quase sempre uma condição
atribuída à mulher, dificilmente a um homem. E o editorial continua: "No caso da
prefeita, preconceituoso foi o seu atual aliado Paulo Maluf, insistindo, na campanha
Introdução − 2

de 2000, em chamá-la de "dona Marta", na expectativa de atiçar contra ela o


machismo que, sem dúvida, ainda perpassa a sociedade em graus variados."
Porém, em muitos casos, é a própria mulher que recua diante de uma
possibilidade melhor de colocação profissional, julgando-se incapaz para o cargo. E
há outras que "regam a árvore de marido e filhos", como se prega o dito popular,
nada exigindo para si, pois acreditam que a dedicação à família preencha os anseios
de uma mulher. Por que isso? Por que encher-se de culpa quando se percebem
pensando em seu bem estar, na realização de algum sonho, de algum desejo fora
da área caseira? Foi nesse contexto que, nas aulas de linguística, entrei em contato
com as ideias de Roger Fowler, ao ler seu livro Language in the news, de 1991.
Fowler sugere que as mulheres são constituídas no discurso como um grupo
especial com suas características peculiares, separadas da população como um
todo por meio de avaliação específica. "Irrationality, familial dependence,
powerlessness and sexual and physical excess" (FOWLER, 1991, p. 95) são esses
os aspectos do paradigma para esse grupo, diz o autor, como tem sido relatado por
escritores sobre sexismo na língua. A força do discurso em facilitar e manter esse
tipo de discriminação contra membros de um grupo é tremenda. Pode não ser
discriminatória na intenção, continua ele, ou, estritamente falando, na forma
linguística; o ponto é simplesmente que o uso repetido de expressões que implicam
um gênero apenas reforça as categorias de gêneros (masculino ou feminino)
distintos, fazendo-os parecer que sejam normais. Esse não é especificamente um
ponto linguístico, mas um ponto sobre discurso: o aparecimento no discurso de
grande número de expressões mencionando categorias sociais poderosas,
referindo-se a homens como seus portadores, sugere implicitamente que essa seja a
ordem natural das coisas, e assim, por extensão, reforça a resistência da admissão
da mulher a certas posições e atividades. A questão é que se a língua fornece
nomes para as categorias, contribuindo para o estabelecimento de limites e
relações, o discurso permite que esses nomes sejam ditos e escritos
frequentemente, assim contribuindo para a aparente realidade e atualidade das
categorias. É esse o fato que me fez examinar um jornal de grande circulação, que
garantiria a frequência das categorias na formação da opinião pública.
Para Fowler, o mundo que acreditamos como sendo o mundo em que
vivemos é mais um conjunto de categorias organizado culturalmente do que uma
coleção de indivíduos únicos. Ao considerarmos uma pessoa como exemplo de um
Introdução − 3

tipo, as nossas relações com essa pessoa são simplificadas, pois pensamos nela
em termos das qualidades que atribuímos à categoria já pré-existente em nossas
mentes. Mais adiante esclarecemos as noções de 'categoria' e 'grupo', segundo o
autor.
Fowler é um dos idealizadores da ‘Linguística Crítica’, segundo a qual a
análise feita com instrumentos linguísticos próprios e com referência a contextos
históricos e sociais relevantes, pode trazer a ideologia, normalmente escondida pela
habitualização do discurso, à superfície para inspeção. Segundo ele, nas ciências
sociais e nas humanidades, ‘crítica’ é em geral usada para referir-se a perspectivas
teóricas e metodologias que têm como objetivo alterar a ordem social e política
existentes. A Linguística Crítica, portanto, envolve a análise ideológica do conteúdo
textual em geral implícito, e baseia-se na visão de que os textos não são neutros
como parecem; isso porque os processos sociais que levam a escolhas conscientes
são escondidos ou feitos opacos na codificação linguística.
Em termos metodológicos, concordamos com Fowler e também com
Fairclough (1992), que, da sua posição de linguistas críticos, elegem a Linguística
Sistêmico-Funcional (LSF), proposta por Halliday (1985; 1994) e seus seguidores
para servir de base de sua análise, pois acreditam que essa teoria lance luzes sobre
a relação língua e contexto, através de dois ramos do contexto social: (a) o contexto
cultural ou gênero, pois o reconhecimento de um gênero permite regular a leitura
sobre um sistema de expectativa, inscrevê-la numa trajetória previsível (VIGNER,
1988); (b) o contexto situacional ou registro e suas variáveis de Campo, Relações e
Modo; e (c) o contexto ideológico, já que esse afeta a semântica e estrutura do
texto – fato que Campo, Relações e Modo não são suficientes para caracterizá-la
(BANKS, 2005).
Assim, segundo Li (2010), uma premissa básica a todas elas, apesar das
várias abordagens referentes à análise crítica, é que o uso da língua no discurso
implica significados ideológicos, bem como a existência de restrições discursivas
nesse uso e nos significados implicados (VAN DIJK, 1993; FOWLER, 1996;
FAIRCLOUGH, 1995). A visão funcional da LSF - das escolhas linguísticas como
índices de significados - cruza com a análise crítica, afirma Li. Com seu foco na
seleção, categorização e ordenação do significado nas micro-estruturas no nível da
oração mais do que no macro-nível do discurso, a LSF é especialmente útil para
uma análise sistemática, que enfoca os traços linguísticos no micro-nível dos textos
Introdução − 4

do discurso, fornecendo intravisões críticas na organização dos significados do


texto. A LSF tem recebido contribuições que ampliaram seu poder analítico, e que
serão úteis em nossa análise. Propostas como as de Martin (2000, 2003) detiveram-
se no exame da metafunção interpessoal, da LSF, através das noções de
Avaliatividade e dos tokens de Atitude.
Como em nossos dados constam também algumas imagens que apareceram
na página do jornal em questão, apoiamo-nos em Macken-Horarik (2004), que
analisa a contribuição complementar entre imagens (ilustrações) e palavras (do
texto) no processo da construção de significados. O fenômeno do texto composto ou
multimodal é um desafio para analistas do discurso, diz a autora, particularmente
para os que trabalham com ferramentas linguísticas moldadas para o texto verbal.
Porém, com apoio da Linguística Sistêmico-Funcional e, em especial, na análise da
Avaliatividade (MARTIN, 2000, 2003) e praticada na Sydney School Linguistics, ela
propõe uma avaliação da imagem e da verbiagem mais rica do que é feito
atualmente em análises desses modos em separado.
O objetivo desta pesquisa é comparar, à luz da Linguística Crítica, com apoio
metodológico da Linguística Sistêmico-Funcional, a categorização da mulher e a do
homem no jornal Folha de S. Paulo. Para tanto, a pesquisa deve responder às
seguintes perguntas: (a) Com que frequência a mulher ou o homem são citados na
primeira página do jornal Folha de S. Paulo? (b) Que tipo de atividade exercem
homens e mulheres citados nessa página? (c) Que escolhas léxico-gramaticais
revelam a ideologia subjacente à figura da mulher e à do homem?
No Brasil, o VII Congresso Internacional da ABRALIN (fev.2011) apresentará
trabalhos sobre a categorização da mulher, parte deles sob o enfoque da AD, de
linha francesa. São eles: Costa/UFBA (ser mãe e ser pai), Antonio/UNIFRAN (sexo
na terceira idade), Silva et al/USP (conflitos da mulher), Oliveira e
Possenti/UNICAMP (a mulher cristã), Monnerat/UFF (perfil da mulher carioca),
Paniago/USP (disciplina do corpo feminino), Andrade/UNEB (Revista Boa Forma),
Santos e Coito/UNIOESTE (imagem do corpo), Vinhas/UFFS (controle do corpo),
Pisa/UFSCAR (identidades no Orkut), Soares/UEA (contextos esquecidos). A minha
pesquisa, enfocando o tema comum a esses trabalhos, ou seja, a categorização da
mulher no discurso, adota como instrumento de análise a metodologia da LSF.
Introdução − 5

1.1 JUSTIFICATIVA

A formação de um leitor crítico deve ser o objetivo da escola. Para isso, faz-se
necessária a adoção de um conceito de leitura que privilegie a negociação e a
construção de interpretações "situadas"; um conceito de leitura como prática social,
que dê conta dos vários tipos de conhecimento que interagem nos processos
interpretativos: conhecimento linguístico-textual, conhecimento prévio do mundo, de
práticas sociais gerais e discursivas (FAIRCLOUGH, 1992; BAYNHAM, 1995 E
MOITA LOPES, 1996).
Sou professora de Língua Portuguesa tanto na rede pública quanto na
particular, e tenho constatado que o texto jornalístico tem sido o motivador de muitas
aulas de compreensão da escrita em nossas salas de aula, em praticamente todos
os níveis de ensino. Ora, a estrutura de um texto jornalístico, sob pressão das
circunstâncias sociais da comunicação, incorpora valores e crenças, já que, como
diz Fowler (1987, p. 67), "Não há representação neutra da realidade". Dizer que a
voz de um jornal é um construto institucional, e, por conseguinte, impessoal na
origem, não é dizer que não seja pessoal no estilo. A linguagem empregada será a
versão do jornal da linguagem do público para quem é endereçada, continua o autor.
Padrões de vocabulário mapeiam os registros e seus usuários; enfatizam
preocupações especiais, projetam valores sobre o assunto do discurso; a sintaxe
analisa ações e estados, moldando as pessoas com papéis e atribuindo a elas
responsabilidade; afirmam-se ou implicitam-se temas recorrentes e generalizações.
Se o leitor do jornal julgar que o modo coloquial de discurso é-lhe familiar e
confortável, acaba considerando a ideologia que sua estrutura incorpora como um
'senso comum', e a aceita.
Nesse sentido, Macken-Horarik (2003) menciona o trabalho de Bakhtin (1953
[1986]), que conscientizou os linguistas para o caráter profundamente ‘endereçador’
dos textos tratados como monológicos, e fala em textos que ensinam implicitamente,
em especial itens de conteúdo de certos valores éticos, que assim engajam os
leitores no processo da leitura.

O trabalho, como resposta em diálogo, orienta-se em direção à resposta do


outro (outros), em direção à sua compreensão responsiva ativa que pode
tomar diversas formas: influência educacional dos leitores, persuasão do
Fundamentação Teórica − 6

tema, respostas críticas, influência em seguidores e sucessores, etc.


(BAKHTIN, 1953 [1986]:76)

Diante desse fato, Fowler (1991) julga justificável praticar um tipo de


linguística direcionada para a compreensão de tais valores, conhecida como
Linguística Crítica. O leitor crítico, diriam Fowler et al. (1979), deve saber que
qualquer aspecto da estrutura linguística carrega significação ideológica. Seleção
lexical, opção sintática, etc., todos têm sua razão de ser. Há sempre modos
diferentes de dizer a mesma coisa, e esses modos não são alternativas acidentais.
Diferenças de expressão trazem distinções ideológicas e assim diferenças de
representação. A LC procura, estudando detalhes da estrutura linguística à luz da
situação social e histórica de um texto, trazer para o nível da consciência os padrões
de crenças e valores que estão codificados na língua – e que estão subjacentes à
notícia, para quem aceita o discurso como 'natural'. É o que tentamos mostrar aos
nossos alunos.

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Apresento, a seguir, as teorias que embasam a minha pesquisa. Inicio com


uma visão ampla sobre a análise do discurso (FAIRCLOUGH, 1992), seguida da
visão mais ligada à língua - a Linguística Crítica (FOWLER, 1991) e examino a
Linguística Sistêmico-Funcional (LSF) (HALLIDAY, 1985; 1994), que, de acordo com
Fairclough e Fowler é uma abordagem que reúne a teoria e metodologia que mais
se adequam à análise crítica. Além disso, a LSF tem sido alvo de revisões e
ampliações, que interessam a esta pesquisa. Uma dessas contribuições refere-se à
à noção de Appraisal (Avaliatividade) (MARTIN, 2000; 2003), que, com a noção de
‘token’ de Atitude, examina a avaliação implícita no discurso, e assim ajudam a
entender a imagem da mulher e do homem projetadas pela mídia, no caso, o jornal
Folha de S. Paulo. Também tratarei a abordagem intertextual ou translinguística na
visão de Bakhtin (1966). Por outro lado, finalizo a parte teórica com Macken-Horarik
(2004), segundo a qual, a LSF também dá conta da análise da contribuição
complementar entre imagens (ilustrações) e palavras (do texto), no processo da
construção de significados.
Fundamentação Teórica − 7

2.1 A Análise do Discurso, segundo Fairclough

Discurso, para Fairclough (1992), refere-se ao uso de linguagem como forma


de prática social e não como atividade puramente individual ou reflexo de variáveis
situacionais. Essa definição tem várias implicações. Primeiro: discurso é um modo
de ação, uma forma em que as pessoas podem agir sobre o mundo e especialmente
sobre os outros, como também um modo de representação. Segundo, implica uma
relação dialética entre o discurso e a estrutura social, existindo mais geralmente tal
relação entre a prática social e a estrutura social. Por outro lado, o discurso é
socialmente constitutivo.
Podemos distinguir três aspectos dos efeitos constitutivos do discurso. O
discurso contribui, em primeiro lugar, para a construção do que variavelmente é
referido como 'identidades sociais' e 'posições de sujeito' para os 'sujeitos' sociais e
os tipos de 'eu'. Segundo, o discurso contribui para construir as relações sociais
entre as pessoas. E, terceiro, o discurso contribui para a construção de sistemas de
conhecimento e crença.
Esses três efeitos, continua Fairclough, correspondem respectivamente a três
funções da linguagem e a dimensões de sentido que coexistem e interagem em todo
discurso - o que ele denomina funções da linguagem 'identitária', 'relacional' e
'ideacional'. A função identitária relaciona-se aos modos pelos quais as identidades
sociais são estabelecidas no discurso; a função relacional ao modo como relações
sociais entre os participantes do discurso são representadas e negociadas; e a
função ideacional aos modos pelos quais os textos significam o mundo e seus
processos, entidades e relações. As funções identitária e relacional são reunidas por
Halliday (1978) como função interpessoal. Halliday distingue também uma outra
função, a textual, que pode ser utilmente acrescentada à lista e diz respeito ao modo
como as informações são trazidas ao primeiro plano ou relegadas a um plano
secundário; tomadas como dadas ou apresentadas como novas; selecionadas como
Tópico ou Tema; e como partes de um texto se ligam a partes precedentes e
seguintes do texto, e à situação social fora do texto.
É importante, diz Fairclough (1992), que a relação entre discurso e estrutura
social seja considerada como dialética para evitar os erros de ênfase indevida: de
um lado, na determinação social do discurso e, de outro, na construção do social no
discurso. A constituição discursiva da sociedade não emana de um livre jogo de
Fundamentação Teórica − 8

ideias nas cabeças das pessoas, mas de uma prática social que está firmemente
enraizada em estruturas sociais materiais e concretas, orientando-se para elas.

2.2 A Linguística Crítica

A Linguística Crítica (LC) é uma abordagem desenvolvida por um grupo da


Universidade de East Anglia na década de 1970 (FOWLER et al., 1979; KRESS;
HODGE, 1979). Eles tentaram casar um método de análise linguística textual com
uma teoria social do funcionamento da linguagem em processos políticos e
ideológicos, recorrendo à teoria linguística funcionalista associada com Halliday
(1978; 1985) e conhecida como Linguística Sistêmico-Funcional.
Enquanto o foco da análise do discurso tradicional está nos significados
estabelecidos entre sentenças e enunciados, na LC o foco está na seleção que é
feita na construção de textos, em fatores que restringem e determinam essas
escolhas (i.e. sua causa), e em seu efeito. Isso porque, da perspectiva da LC, todos
os enunciados são potencialmente restringidos - e, realmente, determinados - pelas
relações sociais que existem entre os participantes.
O ponto teórico principal na análise de Fowler é de que qualquer aspecto da
estrutura linguística carrega significação ideológica - seleção lexical, opção sintática,
etc. – todos têm sua razão de ser. Há sempre modos diferentes de dizer a mesma
coisa, e esses modos não são alternativas acidentais. Diferenças em expressão
trazem distinções ideológicas (e assim diferenças de representação).
Desse modo, na medida em que há, sempre, valores implicados no uso da
língua, deve ser justificável praticar um tipo de linguística direcionada para a
compreensão de tais valores, afirma Fowler. Esse é o ramo que se tornou conhecido
como ‘Linguística Crítica'.
A LC está interessada no questionamento das relações entre signo,
significado e o contexto sócio-histórico, que governam a estrutura semiótica do
discurso, usando um tipo de análise linguística.
Para Fowler (1987, p. 67), "não há representação neutra da realidade".
Porém, diz ele, não temos como escapar de compreender a realidade ou o mundo
se não for através da língua, porque a realidade é sempre estruturada ou
reconstruída através da língua. A LC fez-nos entender que a realidade não é
Fundamentação Teórica − 9

construída apenas em termos do léxico usado, mas que a nossa escolha das
estruturas linguísticas para representar (aspectos de) eventos, processos ou estados
é tão significativa do ponto de vista das ideologias que eles refletem e assim
constituem.
Continuando, diz Fowler, a comunicação humana envolve sistemas de
crenças, sistemas de categorias, ‘graus’ de discriminação, que representam o
mundo de acordo com as necessidades das sociedades em que ocorre a
comunicação. A língua, entre os meios humanos de comunicação, é uma forma
altamente efetiva de codificar representações de experiência e valores. O léxico (o
dicionário mental) estoca ideias em compartimentos estruturados de acordo com
certas relações lógicas, isto é, de posição, de complementaridade, de inclusão, de
equivalência (e.g., ‘homem: mulher’, ‘pais: filho’; ‘legal: ilegal’; ‘moderado;
extremado’, etc.), desenvolvendo princípios em direção a conceitos-chave e
relações. Além disso, continua o autor, não é somente a estrutura taxonômica do
vocabulário-chave que é importante para que a categorização fique evidente; é
também vital que os sistemas de significados sejam conservados vivos e familiares,
através de enunciação regular em contextos apropriados.
Portanto, diz o autor, a língua fornece nomes para as categorias e assim
ajuda a estabelecer seus limites e relações; e o discurso permite que esses nomes
sejam falados e escritos frequentemente, contribuindo assim para a aparente
realidade e atualidade de uma categoria. O vocabulário é taxonomicamente
organizado: as relações de sentido entre palavras efetuam a classificação da
experiência e ideias apropriadas à ideologia da comunidade do discurso. A força do
discurso, facilitando e mantendo a discriminação contra 'membros' de 'grupos', é
notável, segundo Fowler. O autor julga que o uso da língua pode ser sexista,
respondendo a paradigmas ideológicos no discurso que atribui a mulheres em
especial o status preconceituoso em certos aspectos. Nesse sentido, a
representação em um meio semiótico como a língua é inevitavelmente um processo
estruturador, e valores e proposições implícitos são continuamente articulados de tal
forma, que o discurso é sempre uma representação de um certo ponto de vista.
À medida que categorizamos uma pessoa como tendo atributos ou
comportamentos fortemente previsíveis, diz Fowler, a categoria pode enrijecer-se em
um estereótipo, um modelo mental extremamente simplificado que não consegue ver
os traços individuais, mas apenas valores que acreditamos ser apropriados para
Fundamentação Teórica − 10

determinado tipo. Vemos, assim, um processo ideológico básico em ação, afirma o


autor. A categorização é a base discursiva para práticas de discriminação, que afeta
os indivíduos, através de desigualdade de oportunidades de trabalho, educação,
dinheiro, atenção pela polícia e punição pela lei, distribuindo a estima de maneira
desigual.
Um modelo de mundo socialmente construído é projetado sobre os objetos da
percepção e da cognição, de tal modo que essencialmente as coisas que vemos e
sobre as quais pensamos são construídas de acordo com um esquema de valores, e
não com as entidades diretamente percebidas. A concretude da referência individual
é enfatizada, pelo fornecimento de detalhes como idade, residência, profissão
aparência pessoa - com o uso liberal de fotografias.

2.2.1 A discriminação

Fowler (1991) mostra que a categorização é uma base discursiva para a


discriminação. A discriminação é uma prática que afeta sujeitos individuais,
implicando oportunidades desiguais de emprego, educação, dinheiro, atenção pela
polícia, punição ilegal, resultando em desigualdade de estima. E, segundo o autor, a
'justificativa' para essas práticas, quando oferecidas, não é dada em termos do
indivíduo, mas em termos de algum grupo ao qual a pessoa pretensamente
pertence; e o estereótipo que a cultura atribui convencionalmente ao grupo é
aplicado ao indivíduo de modo preconceituoso. O estereótipo, diz ele, pode ser
expresso como um conjunto de proposições 'de senso comum', que a cultura
processa, mas raramente expressa, como, por exemplo: "Não podemos aceitar a
sra. X para essa posição, embora seja qualificada, pois ela é uma jovem casada e
todos sabemos que elas terão um filho um ano ou dois depois de ter quitado os
móveis da casa”.
Os princípios que regem a categorização são difíceis de serem discernidos
num sistema tão abstrato e tão bem camuflado como os conglomerados de ideias
políticas, tais como, ‘consenso’ ou ‘lei e ordem’, diz Fowler. A categorização pelo
vocabulário é uma parte integral da reprodução da ideologia nos jornais e é,
particularmente, a base da prática da discriminação quando trata dos chamados
‘grupos’ de pessoas. Grupo é um instrumento para manipular a discriminação, para
Fundamentação Teórica − 11

justificar a desigualdade, e que adquire solidez ao ser negociado no discurso. Fowler


mostra que grupos tais como 'jovem mulher casada', 'imigrantes', 'professora',
'capitalistas', 'minorias étnicas', são imaginários, são conceitos socialmente
construídos, quase tão fictícios quanto princesas em torres (FOWLER, 1991, p. 94).

2.3. A relação entre língua e ideologia

Para explicar a relação que se estabelece entre língua e ideologia, Li (2010)


recorre às ideias de Van Dijk (1993, 1997). Este autor desenvolve uma abordagem
da Análise do Discurso Crítica, que procura ligar o texto com o contexto, integrando
a análise textual com processos de produção e interpretação do discurso.
Analisando a estrutura do discurso de textos de reportagem, Van Dijk (1985)
oferece um modelo analítico de três níveis. O primeiro nível, a superestrutura,
refere-se a esquemas de gênero, que desempenham um papel importante na
compreensão e na produção de textos, por meio da organização geral em termos de
temas e tópicos; no segundo nível, estão as formas linguísticas concretas do texto
(escolhas lexicais, variações sintáticas ou fonológicas, relações semânticas entre
proposições e traços retóricos e estilísticos). Essas formas linguísticas no nível
superficial implicam significados no terceiro nível, a estrutura profunda. Aqui, o
analista crítico examina, o papel de certas estruturas sintáticas como, por exemplo,
as construções passivas que podem expressar posições ideológicas subjacentes ao
omitir ou ao desenfatizar agentes da posição de sujeito ou como escolhas retóricas
específicas podem atribuir maior poder a certos indivíduos ou grupos sociais.
A abordagem de Van Dijk tenta relacionar a noção macro da ideologia às
noções micro dos discursos e das práticas sociais de membros de grupo,
estabelecendo um elo entre o social e o individual, o macro e o micro, o social e o
cognitivo. Essa abordagem da análise da ideologia e do discurso é especialmente
útil no exame do modo como o discurso é usado por diferentes grupos a fim de
comunicar ideologias específicas para membros do grupo ou fora do grupo. Além
disso, essa abordagem permite ao analista ver como os membros de diferentes
grupos sociais podem articular discursivamente e defender suas ideologias para
servir aos interesses do grupo. Por meio dessa análise, podemos entender como
diferentes grupos sociais são construídos e diferenciados na mídia do TR com base
Fundamentação Teórica − 12

na língua e na ideologia, bem como os grupos e seus membros adquirem e


reproduzem ideologias através da compreensão do discurso.
A abordagem de Van Dijk da TR recorre a uma metodologia que se apoia na
gramática-da-oração para entender as ideologias específicas e identidades de grupo
no nível profundo por meio dos traços do texto na estrutura superficial. Li (2010) faz
uso da gramática-da-oração, no enquadre da Linguística Sistêmico-Funcional (LSF)
de Halliday (1994). Assim, a língua é entendida como uma "rede de opções
entrelaçadas" (HALLIDAY, 1994, p. xiv). A LSF é uma gramática do significado, ou
seja, ela vê a língua como um sistema de significados realizados por meio de
funções dentro do rico recurso de opções gramaticais disponíveis ao usuário da
língua. O significado envolvido na língua emerge em relação a escolhas específicas
feitas pelos seus usuários. Essas escolhas gramaticais são descritas em termos
funcionais para que sejam significativas semântica e pragmaticamente. As funções
da gramática, de acordo com Halliday, consistem de três distintos sistemas de
metafunções, embora interrelacionados: o Textual, o Interpessoal e o Ideacional.
Essas metafunções tratam da forma como a informação está estruturada e
apresentada, como os significados sobre as várias interações são expressas, e os
tipos de experiência, percepção e consciência incorporadas na língua, nos níveis da
oração e da frase para compreender os significados sociais e ideológicos envolvidos
em determinadas escolhas linguísticas e retóricas.

2.4 A Linguística Sistêmico-Funcional

A Linguística Sistêmico-Funcional (LSF) é uma teoria iniciada por Halliday


(veja Halliday, 1994), linguista britânico, radicado há muitos anos na Austrália.
Segundo essa teoria, a linguagem é formada por muitos sistemas, cada um
representando um tipo de escolha (geralmente inconsciente) de sentido feito pelos
falantes (daí o nome ‘sistêmico’); além disso, essas escolhas servem para os
falantes realizarem coisas com a língua (daí o nome ‘funcional’).
Segundo Eggins (1994), os sistemicistas, partindo da descrição de como a
língua é usada em textos autênticos, examinam a questão de como ela está
estruturada para esse uso. Os usuários da língua não interagem apenas para trocar
sons uns com outros, nem palavras ou sentenças, mas para construir significados
Fundamentação Teórica − 13

(três simultâneos, os já referidos: ideacional (experiencial + lógico), interpessoal e o


textual) a fim de entender o mundo e o outro. A finalidade principal da língua é,
portanto, semântica, para a LSF.
Na LSF, entende-se que há três funções primordiais que os falantes exercem
com a linguagem, chamadas de metafunções, porque elas sintetizam muitas outras:

 Metafunção ideacional: refere-se ao conteúdo, assunto ou tópico de que as


pessoas tratam.
 Metafunção interpessoal: refere-se às relações entre pessoas expressas na
linguagem.
 Metafunção textual: refere-se à maneira como as pessoas organizam a fala e a
escrita de acordo com seu propósito e as exigências do meio sócio-histórico-
cultural.

Essas metafunções agem juntas: cada palavra que dizemos realiza as três
metafunções. Em sendo assim, tudo que expressamos linguisticamente quer dizer,
simultaneamente, três coisas: alguma coisa (ideacional) dita a alguém (interpessoal)
de algum modo (textual).
Veja como o exemplo: 'Ele estudou inglês no passado', seria analisado nessas
metafunções, conforme apresenta o Quadro 2. Mas, antes apresentamos o Quadro
1, que mostra o sistema da Transitividade, pertencente à metafunção ideacional, que
representa os eventos das orações em termos de fazer, sentir ou ser, envolvendo: (i)
participantes; (b) processos; e (c) circunstâncias. Os integrantes das demais
metafunções podem ser visualizados no mesmo quadro.

Processo Participantes
Material Ator, Meta, Extensão, Beneficiário
Comportamental Comportante, Comportamento, Fenômeno
Mental Experienciador, Fenômeno
Existencial Existente
Relacional Identificativo: Característica, Valor
Atributivo: Portador, Atributo
Verbal Dizente, Receptor, Verbiagem-receptor-alvo
Quadro 1: Relação processos/participantes
Fundamentação Teórica − 14

Ele estud- -ou inglês no passado


Ideacional Ator processo material Meta Circunstância
Interpessoal Mood Resíduo Mood Resíduo
Sujeito Predicador Finito Complemento Adjunto adverbial
Textual Tema Rema
Quadro 2: As três metafunções (fonte: HALLIDAY, 1994)

Em relação à metafunção ideacional, o verbo ‘estudar’ expressa um processo


material, ‘Ele’ um participante ‘Ator’, ‘inglês’ um participante ‘Meta’ e ‘no passado’
uma Circunstância de tempo. Esses elementos representam a Transitividade da
oração.
Em relação à metafunção interpessoal, é uma sentença declarativa, na qual
‘Ele’ realiza o Sujeito, a terminação ‘-ou’ (da forma verbal ‘estudou’) o Finito, e
‘estud-‘ (da forma verbal ‘estudou’) o Predicador. ‘Ele’ ainda realiza o Mood e o
restante da frase forma o Resíduo.
Em relação à metafunção textual, ‘Ele’ realiza o Tema da frase e o restante, o
Rema. O Tema é o ponto de partida da mensagem e indica uma posição importante
na frase, ajudando a estruturar o discurso e a dar proeminência aos elementos que o
compõem.
Essa fusão dos três significados é possível, diz Halliday (1994), porque a
língua possui um nível intermediário de codificação: a léxico-gramática. É este nível
que possibilita à língua construir três significados concomitantes, e eles entram no
texto através das orações. Daí porque Halliday dizer que a descrição gramatical é
essencial à análise textual.
A partir de cada metafunção, são realizadas muitas outras funções, cada uma
em um sistema diferente. Cada realização, por sua vez, é uma escolha. A escolha é
entendida aqui como um ato normalmente inconsciente, guiado por motivos
individuais, segundo nossas intenções, vontades, afetividade, subjetividade, mas
também por razões sociais, históricas e culturais, ditadas pelo contexto. Sendo
assim, a LSF é uma teoria que tenta explicar o funcionamento da linguagem por
meio da descrição de como as pessoas falam e escrevem e quais escolhas fazem
nesse processo.
Abrimos, aqui, um parêntesis, para apresentar a noção de Novo-Rema
(Hasan e Fries, 1995), que terá participação na análise dos dados.
Fundamentação Teórica − 15

2.4.1 O Novo-Rema

Hasan e Fries (1995) dizem que para a LSF, Rema é tudo menos o Tema. O
que significa que existe muita coisa dentro do Rema, mas não significa que tudo que
esteja aí tenha a mesma função. Assim, Fries (1995) destaca o Novo dentro do
Rema, (unindo, assim, o sistema do Tema/Rema com o sistema da informação
Dado/Novo), chamando esse elemento de N-Rema (e o que resta do Rema ele
chama de Outros). O que seria esse N-Rema? Vamos analisar um exemplo, dado
por ele:

Adeus às armas

Tema (= negrito) N-Rema (=itálico e sublinhado)

1. No fim do verão daquele ano, moramos numa casa de uma vila que se via
através do rio e da planície próximos da montanha.
N-Rema (Prev s) N-Rema (Skip 3)

2a. No leito do rio havia seixos e pedras, secos e brancos ao sol,


2b. e a água era clara e se movia suavemente e era azul nos canais.
3a. Os rebanhos passavam diante da casa e desciam pela estrada,
3b. e a poeira que eles que levantavam polvilhavam as folhas das árvores.
N-Rema
4a. Os troncos das árvores também estavam empoeirados
4b. e as folhas caíram cedo naquele ano
4c. e vimos os rebanhos marchando pela estrada
5a. A planície era rica de plantações, [...]

Quadro 3: Exemplo de análise de N-Rema (fonte: FRIES,1995)

No exemplo, o N-Rema rio é o que o escritor quer que o leitor se lembre


quando ler 2a e 2b (rio, no leito do rio e água formam uma cadeia de semelhança).
(Notar que as folhas das arvores e as folhas formam uma cadeia de identidade).
Não é o Rema todo que deve funcionar nesse sentido, mas apenas o N-Rema,
segundo a proposta de Fries. E ele é chamado N-Rema da oração anterior (=Prev S,
ou seja, previous sentence). Por outro lado, planície deve ser lembrado pelo leitor
em 5a. (3 sentenças abaixo) e, portanto, é chamado N-Rema Skip 3.

2.4.2 Língua e contexto

A LSF explica o modo como os significados são construídos nas interações


linguísticas do dia-a-dia, e por isso leva em conta o contexto cultural e social em que
Fundamentação Teórica − 16

ocorrem a fim de entender a qualidade dos textos: por que um texto significa o que
significa, e por que ele é avaliado como o é. Língua e contexto estão
interrelacionados, tanto que sem um contexto não somos capazes, em geral, de
dizer que significado está sendo construído. Portanto, ao fazermos perguntas
funcionais, não é suficiente enfocarmos somente a língua, mas a língua usada em
um contexto. Mas quais as feições desse contexto afetam o uso da língua? Para
responder a essa questão, os sistemicistas lançam mão de dois conceitos: registro
e gênero. Hoje, a ideologia também participa desse contexto, como veremos.

(a) Gênero

O gênero descreve a influência das dimensões do contexto cultural sobre a


língua. Dessa forma o texto não é utilizado somente para explorar as formas
gramaticais isoladas, mas tem-se o objetivo de analisá-lo com uma dimensão
textual-discursiva, concepção sócio-interacionista de linguagem centrada na
interlocução. Na LSF, Martin (1985, p. 25) oferece uma definição mais
operacionável: "gênero é uma atividade organizada em estágios, orientada para uma
finalidade na qual os falantes se envolvem como membros de uma determinada
cultura". Menos tecnicamente (MARTIN, 1985, p. 248), diz que gêneros são como as
coisas são feitas, quando a linguagem é usada para efetivá-las.

(b) Registro

O registro descreve a influência das dimensões do contexto situacional


imediato sobre a língua. Halliday (1978, 1985) sugere que os elementos do contexto
que influem no uso da língua sejam somente três: (a) Campo (o assunto sobre o
que a língua está sendo usada); (b) Relação (a relação entre os interlocutores) e (c)
Modo (o papel que a língua exerce na interação). As três variáveis contextuais de
registro são organizadas, respectivamente, pelas metafunções ideacional,
interpessoal e textual da linguagem (HALLIDAY, 1978).
Fundamentação Teórica − 17

(c) Ideologia

A ideologia ocupa um nível superior de contexto. Refere-se a posições de


poder, a vieses políticos e suposições sobre os valores, tendências e perspectivas
que os interlocutores trazem para seus textos. A ideologia tem chamado a atenção
dos sistemicistas, na medida em que, em qualquer registro, em qualquer gênero, o
uso da língua será sempre influenciado pela nossa posição ideológica.
Embora a ideologia tenha importância atestada, apenas algumas áreas do
conhecimento humano e do estudo da linguagem tentam analisar aspectos
ideológicos (C.f. VAN DIJK, 1999), dentre as quais se destaca a Análise de Discurso
Crítica (ADC), que engloba uma variedade de abordagens em torno da análise social
do discurso (FAIRCLOUGH; WODAK, 1997; PÊCHEUX, 1982; WODAK; MEYER,
2001). A ADC oferece uma contribuição significativa da Linguística para debater
questões da vida social, como o racismo, o sexismo (a diferença baseada no sexo),
o controle e a manipulação institucional, a violência, as transformações identitárias,
a exclusão social, entre outros. (MAGALHÃES, 1986).
A LSF faz menção ao contexto ideológico, sem, porém, oferecer detalhes
sobre sua influência no discurso. Quem o faz é Banks (2005), que, analisando dois
textos do fim do séc. XVII: “Newton’s Opticks”, de Newton (em inglês) e o “Traité de
la lumière”, de Huygens (em francês), verifica que embora abordem o mesmo
assunto - a teoria das luzes e cores - os autores das obras operam sob ideologias
diferentes: Newton se apoia no paradigma empírico e Huygens é cartesiano. Esse
fato tem um efeito na semântica e na léxico-gramática dos dois textos, diz o autor, e
prova que a ideologia atravessa diretamente o nível do contexto afetando a
semântica e estrutura do texto – e que Campo, Relações e Modo não são suficientes
para pinçá-la. Advém dessa constatação a preocupação do linguista moderno
buscar a ideologia nas metafunções, através da léxico-gramática, pois, uma vez que
ela é anterior e ulterior ao texto, é essencialmente detectada no nível semântico e
nunca poderia ser dimensionada nos níveis de Gênero e Registro.

2.4.3 Teoria de Gêneros e Registros

Com base nessas noções, Eggins e Martin (1997) propõem a Teoria de


Fundamentação Teórica − 18

Gêneros e Registros, que explicamos a seguir. Os textos têm estruturas geradas por
escolhas sistêmicas em três planos de comunicação semiótica: gênero (contexto
cultural), registro (contexto situacional) com suas variáveis de Campo, Relações e
Modo. De um lado, o texto constrói significados Ideacionais sobre a realidade. Além
disso, o texto diz algo sobre a atitude do autor em relação ao tópico e seu papel no
relacionamento com os leitores. Este é o significado Interpessoal. Finalmente, o
texto, através do significado Textual, diz algo sobre como ele é organizado como um
evento linguístico (isto é, que é um texto escrito, e deve ser lido como tal).
A relação entre os componentes da linguagem - as metafunções ideacional,
interpessoal e textual - e as variáveis de contexto - campo, relações e modo -,
respectivamente, é chamada de realização. Lido da perspectiva do contexto, a
realização se refere ao modo como os diferentes tipos de campo, relações e modo
condicionam os significados ideacional, interpessoal e textual; lido da perspectiva da
linguagem, a realização se refere ao modo como as diferentes escolhas ideacionais,
interpessoais e textuais constroem diferentes tipos de campo, relações e modo.
São essas noções de significado no texto e sua correlação com as dimensões
contextuais, que dão à abordagem da TGR dois temas comuns.

• Primeiro, o foco na análise detalhada da variação dos traços linguísticos do


discurso: isto é, há especificações explícitas, idealmente quantificáveis de
padrões gramaticais e semânticos do texto.

• Segundo, a abordagem TGR procura explicar a variação linguística pela


referência à variação contextual: isto é, há elos explícitos entre traços do
discurso e variáveis críticas do contexto social e cultural empregados para
explicar o significado e a função da variação entre textos.

Como resultado da aplicação dessa descrição delicada do sistema linguístico


a uma série de textos, desenvolveu-se um novo modo de caracterizar Campo,
Relações e Modo. Por outro lado, é importante a noção de escolha da LSF. Quando
se faz uma escolha no sistema linguístico, o que se escreve ou o que se diz adquire
significado contra um fundo em que se encontram as escolhas que poderiam ter sido
feitas.
O que distingue a Linguística Sistêmica, diz Eggins (1994), é que ela procura
Fundamentação Teórica − 19

desenvolver uma teoria sobre a língua como um processo social e uma metodologia
que permita uma descrição detalhada e sistemática dos padrões linguísticos.
Além dos contextos sociais acima mencionados, gênero e registro, outro
contexto foi mencionado - o ideológico -, que não foi elaborado e nem recebeu
propostas de análise. Nesse sentido, Banks (2005) mostra, sem descartar o
embasamento teórico da LSF, como as ideologias afetam diferentemente as
metafunções semânticas dos textos. Sua pesquisa focaliza áreas de escolhas
linguísticas que refletem os diferentes modos pelos quais os escritores constroem
um assunto. O autor tenta provar que a análise de Campo, Relações e Modo levaria
a uma ideia equivocada dos textos, já que há textos idênticos tomados nesses
aspectos, porém diferentes do ponto de vista ideológico.

2.4.4 A Metafunção interpessoal

Segundo Halliday, a oração está organizada como um evento interativo,


envolvendo falante (ou escritor), e audiência. Os tipos fundamentais de papel de fala
são apenas dois: (i) dar, e (ii) pedir. O falante ou está dando ou está pedindo algo
para o ouvinte (uma informação, por exemplo). Portanto, um 'ato' de fala é algo que
poderia ser mais apropriadamente chamado de uma 'interação': é uma permuta, na
qual dar implica receber e pedir implica dar em resposta. Juntamente com essa
distinção básica está uma outra distinção, igualmente fundamental, que se relaciona
com a natureza do produto que está sendo permutado. Este pode ser (a) bens e
serviços ou (b) informação. Veja o quadro 4 abaixo:

Produto
permutado → (a) bens & serviços (b) informação

Papel na
permuta ↓
(i) oferta 'oferecer' 'afirmação'
Você quer um café? Ela lhe oferece um café.
(a) pedido 'ordem' 'pergunta'
Me dá um café! O que você quer?
Quadro 4: Oferecimento e pedido, bens & serviços ou informação
(fonte:HALLIDAY, 1994)
Fundamentação Teórica − 20

Se você me diz algo, diz Halliday, com a finalidade de conseguir que eu faça
algo para você, tal como 'beija-me!' ou 'desapareça!', ou que eu lhe dê algum objeto,
como em 'me passa o sal!', o produto permutado é estritamente não-verbal: o que
está sendo pedido é um objeto ou uma ação, caso em que a língua serve para
ajudar no processo. Essa é uma troca de bens & serviços. Mas se você me diz algo
com a finalidade de conseguir que eu lhe diga algo, como em 'É terça-feira'? ou
'Quando foi a última vez que viu seu pai? ', o que está sendo solicitado é uma
informação: a língua é o fim bem como o meio, e a única resposta que se espera é
verbal. Veja quadro 5 abaixo:

Iniciação Resposta esperada Alternativa contrária


DAR bens & serviços oferta aceitação rejeição
PEDIR bens & serviços ordem realização recusa
DAR informação afirmação entendimento contradição
PEDIR informação pergunta resposta negação
Quadro 5: Funções da fala e respostas (fonte: HALLIDAY, 1994)

Destas, apenas a última é essencialmente uma resposta verbal, continua o


autor; as outras podem ser não-verbais. Mas em geral, em situações da vida real, as
quatro respostas são verbalizadas, com ou sem acompanhamento de alguma ação
não-verbal.
Quando a língua é usada para permuta de informação, a oração toma a forma
de PROPOSIÇÃO. O autor continua a usar os termos 'proposição' no seu sentido
usual para se referir a afirmações e perguntas. Mas julga ser útil introduzir um termo
paralelo para a referência a oferecimentos e ordens: PROPOSTA. A função
semântica da oração como permuta de informação é uma proposição; a função
semântica da oração como permuta de bens & serviços é uma proposta.
Thompson e Thetela (1995), porém, julgam necessária uma distinção no
interior da metafunção interpessoal, já que, Halliday postula a modalidade como
sendo envolvida pelo modo (mood), quando esses elementos têm, segundo os
autores, funções distintas no enunciado: (i) pessoal, ou o posicionamento pessoal do
escritor (modalidade) e (ii) interacional, a interação entre escritor e leitor (modo),
respectivamente. Eles examinam os seguintes papéis:
Fundamentação Teórica − 21

a) desempenhados, realizado pelo ato de fala por si, ou seja, o participante não
pode desempenhar esses papéis (aqui eles examinam as perguntas e as
ordens);
b) projetados, em que tratam da questão da (i) rotulação dos falantes/ouvintes
(aqui eles examinam os elementos de tratamento (senhor, você) e (ii) da
atribuição dos papéis que exercem na transitividade (ator, meta etc).

Os autores, ao tratarem dos papéis projetados - a rotulação dos participantes


e a atribuição dos papéis no sistema da Transitividade -, dizem que é aí que o
componente interpessoal se sobrepõe ao ideacional do modelo de Halliday, já que,
se o escritor projeta os papéis, a pessoa sobre quem o papel é projetado é
simultaneamente um participante no evento linguístico e um participante na oração.
Assim, esclarecem uma característica importante para a minha análise, qual seja a
da simultaneidade das duas metafunções, já prevista, mas não detalhada, por
Halliday. Também Fowler (1991: 85) afirma essa sobreposição, dizendo, que "é da
essência da representação ser sempre a representação de algum ponto de vista
ideológico, conforme tratada pela inevitável força de estruturação da Transitividade e
da categorização lexical".

2.4.4.1 A modalização

A seguir, devido ao interesse que representa para o meu estudo, incluo a


modalidade, elemento da metafunção interpessoal, que tem sido enfocada sob
vários ângulos. Aqui a trazemos na visão de Kress (1988).
Em qualquer enunciado proposicional, o produtor deve indicar o que Hodge e
Kress (1988: 123) chamam de um grau de 'afinidade' com a proposição; portanto,
qualquer enunciado desse tipo tem a propriedade da modalidade, ou é 'modalizado'.
A modalidade na gramática era tradicionalmente associada com os verbos
auxiliares modais ('dever' - obrigação moral; 'poder' - permissão, possibilidade;
'poder' - capacidade, 'dever', etc.), que são um meio importante de realizar a
modalidade. Entretanto, a abordagem 'sistêmica' da gramática a que Hodge e Kress
(1988) recorrem enfatiza o fato de que os auxiliares modais são apenas um aspecto
da modalidade entre muitos (cf. Halliday, 1985: 85-89). O tempo verbal é outro: o
Fundamentação Teórica − 22

presente do indicativo ('é') realiza uma modalidade categórica. Outro aspecto é o


conjunto de advérbios modais, como 'provavelmente', 'possivelmente', 'obviamente' e
'definitivamente', com seus adjetivos equivalentes (por exemplo, ‘é provável/possível
que a terra seja plana’). Além dessas possibilidades, existe ainda uma gama um
tanto difusa de formas de manifestação de vários graus de afinidade:
indeterminações ('uma espécie de', 'um pouco', 'ou uma coisa assim'), padrões de
entonação, fala hesitante, e assim por diante.
A modalidade pode ser subjetiva, no sentido de que a base subjetiva para o
grau de afinidade selecionado com uma proposição, pode ser explicitado:
‘penso/suspeito/duvido’ que a terra seja plana’. Ou a modalidade pode ser objetiva,
em que essa base subjetiva está implícita: ‘a terra ‘pode’ ser/é ‘provavelmente’
plana’.
É comum que a modalidade se realize em múltiplos aspectos de um
enunciado ou frase simples. Por exemplo, em ‘penso que ela estava um pouco
bêbada, não estava?’, a baixa afinidade é expressa no marcador de modalidade
subjetiva ('penso'), na indeterminação ('um pouco') e na adição de uma pergunta
final à asserção ('não estava?').
Porém, na modalidade há mais do que o comprometimento do falante ou do
escritor com suas proposições. Os produtores indicam comprometimento com as
proposições no curso das interações com outras pessoas, e a afinidade que
expressam com as proposições é frequentemente difícil de separar de seu sentido
de afinidade ou solidariedade com os interagentes. Por exemplo, ‘ela não é bonita!’
ou ‘ela é bonita, não é!’ são formas de expressar alta afinidade com a proposição
‘ela é bonita’, mas também formas de expressar solidariedade com a pessoa com
quem se fala.
A modalidade é um ponto de intersecção no discurso, entre a significação da
realidade e a representação das relações sociais – ou, nos termos da Linguística
Sistêmica, entre as funções ideacional e interpessoal da linguagem. Além dos
exemplos específicos, há mais propriedades gerais associadas com a modalidade
nas práticas da mídia. A mídia geralmente pretende tratar de fatos, da verdade e de
questões de conhecimento. Ela sistematicamente transforma em 'fatos' o que
frequentemente não passa de interpretações de conjuntos de eventos complexos e
confusos. Em termos da modalidade, isso envolve uma predileção por modalidades
categóricas, asserções positivas e negativas e, portanto, pouco uso de
Fundamentação Teórica − 23

modalizadores. Há também predileção por modalidades objetivas que permitem que


perspectivas parciais sejam universalizadas.

2.4.5 A Avaliatividade (Appraisal)

Na Linguística Sistêmico-Funcional (LSF), de Halliday (1994); Halliday;


Matthiessen (2004), diz Martin (2000), que o sistema interpessoal têm sido
gramatical em sua base, funcionando no nível da oração. A tradição-baseada-na-
gramática tem focalizado o diálogo como uma troca de bens e serviços ou de
informação.
O que tendeu a ser omitido pelas abordagens da LSF, segundo o autor, é a
semântica da avaliação, isto é, o modo como os interlocutores estão se sentindo, os
julgamentos que eles fazem, o valor que eles atribuem a vários fenômenos de sua
experiência. Nos exemplos do Quadro (6), diz ele, é evidente que, em diálogos como
esses, a interação envolve mais que uma simples troca de bens e serviços ou de
informação, mas, também, afeto, julgamento ou apreciação. Assim, juntamente com
modelos baseados-na-gramática, precisamos elaborar sistemas lexicalmente-
orientados que tratem também desses elementos.

AFETO – emoções
RITA Eu adoro esta sala. Eu adoro aquela janela. E você gosta também?
FRANK O quê?

JULGAMENTO – ética (avaliando comportamento)


FRANK E é o seguinte, entre você, eu e as paredes, eu sou na verdade um professor péssimo.
Na maioria das vezes, veja, nem interessa realmente – dar aulas péssimas está bem
para a maioria dos meus alunos péssimos.

APRECIAÇÃO – estética
RITA Sabe, a Rita Mae Brown, que escreveu Rubyfruit Jungle? Você leu esse livro? Ele é
fantástico.

Quadro 6: Avaliação (Fonte: Martin, 2000)

Martin examina o léxico avaliativo, que expressa a opinião do escritor (ou do


falante) a respeito do parâmetro bom/mau. O autor está interessado em mostrar que
a avaliação é complexa para operar, mas que pode ser reduzida a um pequeno
Fundamentação Teórica − 24

número de conjuntos básicos de opções: ou seja, o que parece ser, a princípio, um


grupo variado intratável de itens lexicais, poderia ser sistematizado.
Assim, Martin desenvolveu um sistema reticular de descrições de opções
semânticas para avaliar pessoas, coisas e fenômenos. Ele e seus colaboradores
estavam interessados em uma série ampla de recursos interpessoais e adotaram o
termo APPRAISAL (doravante: Avaliatividade) para esse estudo. O grupo,
trabalhando dentro do enquadre geral da LSF (HALLIDAY, 1967, 1985, 1994;
MARTIN, 1992), estava interessado na função social desses recursos, não
simplesmente para expressar sentimentos, mas, em termos de sua habilidade em
construir comunidades, para alinhar pessoas na negociação em curso, na vida em
comunidade.
A Avaliatividade é constituída por três principais sistemas: (1) ATITUDE, que
envolve três sub-sistemas, a saber: Afeto, Julgamento e Apreciação; (2)
COMPROMISSO, que foi detidamente estudado por White (2003), e que distingue
entre enunciados heteroglóssicos ou dialógicos (nos quais se sinaliza uma posição
que explicitamente mostra diversidade de opiniões, com implicação de conflito e luta
entre as vozes;) e enunciados monoglóssicos (em que o escritor se posiciona,
construindo a audiência como partilhando a mesma visão de mundo); e, finalmente,
(3) GRADAÇÃO, que trata dos recursos para intensificar ou minimizar a força da
avaliação, conforme exemplificaremos mais adiante.

(a) A Atitude

Martin (2000a) sugere que cada tipo de Atitude envolve sentimentos positivos
e negativos e que JULGAMENTO e APRECIAÇÃO podem ser interpretados como
institucionalizações de AFETO, que evoluiu para socializar os indivíduos em vários
sentidos de comunidades de sentimento – Julgamento como um Afeto
recontextualizado para controlar o comportamento (o que devemos ou não fazer),
Apreciação como um Afeto recontextualizado para dirigir o gosto (que coisas são
dignas).
Fundamentação Teórica − 25

Afeto - Para Martin (2000a), há uma série de possíveis realizações linguísticas do


Afeto:

(a) Afeto como qualidade


adjunto adnominal um menino feliz Epíteto
predicativo o menino estava feliz predicativo
modo do processo o menino brincava feliz circunstância

(b) Afeto como processo


comportamento Ela sorriu para ele
disposição mental Ela gostou do presente
relacional Ela se ficou feliz com ele

(c) Afeto como comentário


Felizmente, conseguimos descansar Adjunto modal

Quadro 7: Análise de Afeto (fonte: MARTIN, 2000a)

Julgamento - Pesquisas na área da mídia (lEDEMA et al., 1994, apud MARTIN,


2000a) sugerem que o Julgamento seja dividido em dois grupos: estima social
(normalidade, capacidade e tenacidade) e sansão social (veracidade e propriedade
[ética]). Esses tipos relacionam-se à Modalidade (HALLIDAY, 1994): veracidade
relaciona-se com probabilidade; normalidade com frequência; propriedade com
obrigação; tenacidade com inclinação; e capacidade com habilidade.

JULGAMENTO
Estima social Positivo (admira) Negativo (critica)
Normalidade afortunado, elegante azarado, retrógrado
Capacidade Vigoroso fraco
Tenacidade Heróico covarde
Sanção social Positivo (elogia) Negativo (condena)
Veracidade honesto, confiável manipulativo
Propriedade generoso, ético corrupto, mau
Quadro 8: Análise de Julgamento (fonte: MARTIN, 2000a)

Apreciação - O sistema de Apreciação está organizado tendo em conta 3 variáveis:


reação, composição e avaliação. A reação refere-se ao grau de impacto que o texto
Fundamentação Teórica − 26

causa ao leitor; composição refere-se à percepção de proporcionalidade (equilíbrio)


e avaliação refere-se, como diz o nome, à avaliação do significado social do texto.

APRECIAÇÃO
Positiva Negativa
Reação: impacto atraente aborrecido
Reação: qualidade Belo repulsivo
Composição: equilíbrio harmonioso discordante
Composição: complexidade preciso, detalhado insignificante
Avaliação profundo, desafiador reacionário
Quadro 9: Análise de Apreciação (fonte: MARTIN, 2000a)

(b) O Compromisso

Diz White (2003) que, para examinar e descrever adequadamente a


funcionalidade comunicativa desses recursos léxico-gramaticais, é necessário vê-los
como fundamentalmente dialógicos ou interativos. Em termos amplos, o autor
distingue entre enunciados monoglóssicos (afirmações não-dialogizadas e
enunciados heteroglóssicos ou dialogísticos (nos quais se sinaliza algum
compromisso com posições alternativas/voz). Além disso, o termo 'compromisso
heteroglóssico' envolve duas amplas categorias: dialogicamente expansivos
(possibilitam alternativas) ou dialogicamente contráteis (restringem as
possibilidades).

(c) A Gradação

A Gradação trata dos recursos para intensificar ou minimizar a força


(intensifica [i.e. completamente devastado] ou diminui [i.e. um pouco chateado] a
avaliação) e o foco (aguça [i.e. um policial de verdade] ou suaviza [i.e. cerca de
quatro pessoas] a avaliação.
Fundamentação Teórica − 27

2.4.5.1 Token de Atitude

Diz Martin (2000) que os sistemas de Avaliatividade também se ligam a outros


sistemas, no sentido de ‘redundar’ com outras partes da léxico-gramática, cobrindo a
mesma área semântica com o uso de diferentes recursos linguísticos. Assim, por
exemplo, o significado avaliativo (metafunção interpessoal) em: O filme era muito
triste, está próximo, em termos semânticos, ao do processo mental1 de afeição
(metafunção ideacional): O filme me comoveu até as lágrimas.
Continuando, diz Martin que, quando a avaliação é realizada explicitamente, é
fácil analisar uma atitude sobre um evento como positiva ou negativa. Mas, há casos
em que a avaliação não é realizada de maneira explicita como em: Maria confrontou
a autoridade. Diz ele que, em casos como esse, a decisão pela Avaliatividade de
Afeto - se positiva, se negativa - depende da posição de leitura.
Esse fato levou Martin a postular uma distinção importante entre
Avaliatividade inscrita (explícita) e evocada (implícita). Ele explica que a avaliação
evocada é feita através do que ele chama de token de Atitude em que um significado
ideacional, portanto neutro em termos avaliativos, pode se investir de função
interpessoal. Nesse sentido, o autor propõe a noção de token de Atitude para
denominar o modo pelo qual o significado experiencial pode ser “saturado” em
termos avaliativos, ou seja, interpessoais. A propósito, Martin (2003: 173) adverte: “o
apego a categorias explícitas significa que uma grande quantidade de atitude
implícita pelos textos será perdida”.
Os tokens de Atitude são também sujeitos à influência do contexto, continua o
autor, e uma estratégia importante no estabelecimento de posicionamento
interpessoal num texto é colocar avaliações inscritas e evocadas de tal modo que o
leitor partilha da interpretação do escritor sobre os tokens do texto. É assim que,
evocado por uma descrição de um token, um Julgamento, por exemplo, pode se
tornar tão naturalizado numa dada situação cultural que é provável que seja
considerado como Julgamento explícito em vez de implícito.
Nesse sentido, Coffin e O'Halloran (2006), com base na noção de
Avaliatividade, referem-se à frase dog-whistle politics, cunhada recentemente para

1
Halliday (1994), em vez de considerar a divisão dos verbos em transitivos e intransitivos, chama-os
de processos e os classifica em seis tipos: materiais, mentais, relacionais, comportamentais,
existenciais e verbais.
Fundamentação Teórica − 28

capturar a forma de avaliação implícita. A comunicação política usa significados


aparentemente neutros, mas que devem ser ‘entendidos’ como uma mensagem
negativa pela comunidade alvo (Manning 2004). Dizem elas que se pode verificar
que a avaliação direta de um fenômeno de um intra-texto prévio condiciona o leitor
para uma avaliação indireta do mesmo fenômeno; o mesmo ocorre com a avaliação
direta de fenômeno relacionado num inter-texto prévio. É o que se chama de
logogênese - construção dinâmica do significado conforme o texto se desenvolve
(HALLIDAY, 1992, 1993; HALLIDAY; MATTHIESSEN 1999).
As autoras estudam um artigo jornalístico - alertando o povo inglês para o
perigo do desemprego devido à vinda dos europeus orientais graças à política da
Comunidade Europeia - mas o faz sem empregar nenhum termo de avaliação
negativa. São enunciados que – se descontextualizados – não carregam mensagem
negativa - mas que, naquele contexto estavam carregados de Avaliatividade
negativa, constituindo-se no dog whistle politics.
Por seu lado, Luchjenbroers e Aldridge (2007) falam em frames, conjuntos de
informação aceitos culturalmente, que acompanham qualquer termo lexical. A
adequação do frame escolhido é também muito importante para ‘contrabandear
uma informação’, um termo usado quando uma informação (negativa) é
subrepticiamente inserida, por exemplo, nas declarações de uma testemunha.
Nesse contexto, alguns significados se acrescentam àqueles proporcionados
pela metafunção ideacional, graças à avaliação direta de fenômeno relacionado a
um intertexto prévio, num processo chamado de logogênese [construção dinâmica
do significado conforme o texto se desenvolve], segundo Halliday (1992, 1993) e
Halliday & Matthiessen (1999).

2.4.5.2 O Fenômeno da Propagação Avaliativa

Segundo Lemke (1998), se considerarmos os avaliadores como operadores


semânticos, e perguntarmos o seu escopo, i.e., até onde precisamente a avaliação
se estende, veremos que em geral eles se propagam ou se ramificam através do
texto, seguindo elos gramaticais e lógicos que o organizam como um texto
estruturado e coesivo, em oposição a uma mera sequência de palavras e orações
desconectadas.
Fundamentação Teórica − 29

Dentro da oração, a avaliação em relação a um elemento estrutural


(participante, processo, circunstância) pode-se transferir para outro elemento. Se
excluirmos os avaliadores explícitos que trabalham desse modo (Atributos
atitudinais/Epítetos que avaliam seu portador/coisa, Auxiliares que modalizam seu
verbo principal, e Nomes-Processos derivados de verbos de avaliação explícita), há
ainda vários outros fenômenos. É interessante que a Polaridade dessas avaliações
pode ser revertida durante a propagação (o Grau normalmente se propaga sem
mudança) por meio de várias locuções (Veja Halliday, 1994; Martin, 2000; 2003).

2.5 A abordagem intertextual ou translinguística

"Não pode haver enunciado que não re-atualize outros" (Foucault). O termo
'intertextualidade' foi cunhado por Kristeva no final dos anos 1960, ao tratar da obra
de Bakhtin. Embora o termo não seja de Bakhtin, o desenvolvimento de uma
abordagem intertextual (ou 'translinguística', segundo ele) para a análise de textos
foi o maior tema de seu trabalho e estava estreitamente ligado à sua teoria de
gênero.
Bakhtin (1966) destaca a omissão pelos ramos principais da linguística do fato
de os textos e os enunciados serem moldados por textos anteriores aos quais eles
estão 'respondendo', e (moldados) por textos subsequentes que eles 'antecipam'.
Para Bakhtin, todos os enunciados são orientados retrospectivamente para
enunciados de falantes anteriores e prospectivamente para enunciados antecipados
de falantes seguintes. "Cada enunciado é um elo na cadeia da comunicação".
Fairclough (1992) diz que a rápida transformação e a reestruturação de
tradições textuais e ordens de discurso [mistura de gêneros] são um extraordinário
fenômeno contemporâneo, o qual sugere que a intertextualidade deve ser um foco
principal na análise de discurso. A intertextualidade é a fonte de muita da
ambivalência dos textos. Se a superfície de um texto pode ser multiplamente
determinada pelos vários textos que entram em sua composição, então tal mistura
de elementos pode tomar seu sentido ambivalente: diferentes sentidos podem
coexistir, e pode não ser possível determinar 'o' sentido.
A intertextualidade implica uma ênfase sobre a heterogeneidade dos textos e
um modo de análise que ressalta os elementos e as linhas diversos e
Fundamentação Teórica − 30

frequentemente contraditórios que contribuem para compor um texto, continua o


autor. Por exemplo, o texto de um outro pode estar claramente separado do resto do
texto por aspas e verbo dicendi, ou pode não estar marcado e estar integrado
estrutural e estilisticamente (que constitui a representação de discurso).
Se as vozes de pessoas e grupos poderosos na política, na indústria, etc. são
representadas em uma versão da fala cotidiana (mesmo simulada e parcialmente
irreal), então as identidades, as relações e as distâncias sociais entram em colapso.
Os poderosos são representados com se falassem na linguagem dos leitores, o que
é um meio de fazê-los aceitar os sentidos daqueles.

2.5.1 Intertextualidade, coerência e sujeitos

Para Fairclough (1992), a intertextualidade tem importantes implicações para


uma questão de interesse central: a constituição de sujeitos nos textos e a
contribuição de práticas discursivas em processo de transformação para mudanças
na identidade social. A intertextualidade complica substancialmente os processos de
interpretação textual. Por outro lado, a coerência depende de suposições que os
intérpretes trazem para o processo de interpretação, incluindo suposições de
natureza ideológica.

2.6 A comunicação visual

Vimos que a concretude da referência individual é enfatizada, pelo


fornecimento de detalhes como idade, residência, profissão aparência pessoa - com
o uso liberal de fotografias. Em nossos dados, retirados da primeira página do jornal
Folha de S. Paulo, alguns dos títulos, acompanhados de seus respectivos textos,
apresentam também fotografias ilustrativas do seu conteúdo linguístico. Assim,
embora o foco não tenha sido, inicialmente, o estudo do elemento visual dos nossos
dados, tentaremos, dentro do possível, abordar também essas imagens.
O fenômeno do texto composto ou multimodal é um desafio para analistas do
discurso, diz Macken-Horarik (2004), particularmente os que trabalham com
ferramentas linguísticas moldadas para o texto verbal. A autora analisa a
Fundamentação Teórica − 31

contribuição complementar entre imagens (ilustrações) e palavras (do texto), no


processo da construção de significados. Apoiando-se principalmente na análise da
Avaliatividade (MARTIN, 2000, 2003) e praticada na Sydney School linguistics, ela
propõe uma avaliação da imagem e da verbiagem mais rica do que é feito
atualmente em análises desses modos em separado. Uma gramática semiótica
nesses moldes foi desenvolvida por Gunther Kress e Theo Van Leeuwen (1996), em
Reading Images, em que, amparados pela Linguística Sistêmico- Funcional,
fornecem um enquadramento teórico consistente para a análise de textos visuais, e
transformam o paradigma linguístico em que trabalham.
Primeiramente, diz Macken-Horarik (2004), lidamos com textos multimodais
diariamente, sempre que lemos jornais, assistimos à televisão, jogamos videogame
ou até mesmo quando lemos um livro. Nosso enquadre semiótico de análise deveria
permitir-nos compreender mais sobre a contribuição dos diferentes modos nas
nossas práticas da semiótica em mutação. Segundo, a multimodalidade está cada
vez mais incorporada ao currículo escolar, e precisamos abordá-la em nosso
trabalho educacional. A maior parte dos jovens alunos são mais hábeis do que seu
pais na utilização tecnologia da informática nos contextos de lazer e na escola. Além
do conhecimento prático, todavia, eles precisam ter acesso a ferramentas analíticas
que tornam as potencialidades e os limites dessas modalidades mais aparentes e
mais suscetíveis a desafios e ao seu redesenho onde necessário. Nossos
programas de letramento precisam facilitar o trabalho metasemiótico aos nossos
alunos.
Na pesquisa que faz, a autora notou que os espectadores em geral mudam
entre imagem e verbiagem quando reagem a cada obra. Muitos deles olham para as
imagens por um tempo, leem o painel de texto e depois voltam à imagem. Como
eles, a autora também usava a escrita como um meta comentário da imagem, uma
oportunidade de ver a obra do ponto de vista do artista. Ela reagia, num primeiro
momento, frequentemente de modo difuso à imagem e, depois, a re-enquadrava à
luz do painel de texto, que dirigia seu olhar a certas qualidades da obra. Quando
voltava à imagem, havia mais significado do que antes. Esse o efeito da relação
imagem/verbiagem.
Fundamentação Teórica − 32

2.6.1 As ferramentas

A fim de desenvolver uma gramática semiótica adequada para a análise do


discurso multimodal, temos de começar de algum lugar, afirma Macken-Horarik. A
gramática sistêmico funcional, mais conhecida como Linguística Sistêmico-Funcional
(LSF), de Halliday (1985, 1994, 2004), tem se revelado útil em vários aspectos.
Primeiramente, continua a autora, a LSF tenta relacionar as estruturas
linguísticas ao contexto social em que são produzidas. Halliday e seus
colaboradores partem do pressuposto de que a 'língua é como é devido às funções
que serve na vida das pessoas... [e] precisamos proceder de fora para dentro,
interpretando a língua com referência ao seu lugar no processo social' (HALLIDAY,
1978, p. 4). A relação das estruturas linguísticas com os processos sociais faz da
LSF um recurso útil para o estudo mais amplo de diferentes modos semióticos. O
foco na relação entre estruturas sociais e linguísticas tem lhe dado uma face 'de
aplicação' poderosa em relação a outras gramáticas, levando a pesquisas influentes
na educação entre outras áreas institucionais.
Segundo, como uma gramática, a LSF permite mapear não apenas palavras,
mas também a combinação de palavras, a que Halliday chama de 'wordings', e
interpreta esses sintagmas linguísticos em termos funcionais. Até agora, tem havido
pouquíssimas análises sistemáticas de estruturas análogas em comunicação visual.
Como Kress et al. (1997, p. 260) afirmam, a análise de imagens tem se detido em
itens de conteúdo, ou 'léxico', e não na estrutura interna de imagens, ou 'sintaxe'.
Essa é uma tarefa importante se quisermos desenvolver uma 'gramática' que nos
possibilite a relação entre as estruturas linguísticas e não linguísticas.
Em terceiro lugar, a LSF é uma gramática orientada para escolhas em vez de
regras. As escolhas linguísticas são modeladas em termos de sistema de redes –
uma gama de opções relacionadas a diferentes significados, que são realizadas por
uma seleção léxico-gramatical (tipos de oração e frases). Embora não seja
apropriado para todos os tipos de estrutura de significado (prosódia, gradação e
intensidade), o sistema é um recurso útil de representação para a exibição de
opções discretas de sentido em diferentes contextos semióticos (fala, escrita e, a
partir de agora, imagem).
Em quarto lugar, a LSF incorpora três tipos de significados na análise da
comunicação humana. Essas metafunções incluem: o significado interpessoal
Metodologia − 33

(relações sociais e de identidade que atuam e são usadas nos textos); ideacional (a
representação empírica da realidade experiencial (ou, melhor, realidades) nos
textos; e significados textuais (os modos pelos quais os textos são feitos coerentes
e relacionados ao seu contexto). O princípio das metafunções forneceu aos
semioticistas categorias abstratas e gerais para a análise de diferentes sistemas
semióticos.
Kress and Van Leeuwen (1996) consideram três sistemas principais para
análise do significado nas imagens interativas, que incluem: o sistema de contato,
através do qual a imagem age sobre o expectador de alguma maneira (exigindo uma
resposta ou oferecendo uma 'informação' visual); o sistema de distância social,
através do qual o espectador é convidado a aproximar-se dos participantes
representados (distância social íntima), mantida a uma distância razoável (distância
social) ou 'na posição de afastamento' (distância impessoal); e dois grupos de
sistemas dentro de atitude: dimensão horizontal, que cria envolvimento dos
espectadores (por meio da frontalidade) ou afastamento (através da lateralidade), e
da dimensão vertical, que cria a relação de poder entre o espectador e participantes
representados (hierárquico ou solidário). Esses recursos visuais correspondem mais
ou menos aos sistemas linguísticos, tais como, os atos de fala, modo, pessoa e
recursos como a avaliação.

3. METODOLOGIA

3.1 Dados

O corpus deste trabalho constitui-se de trinta primeiras páginas do jornal


Folha de S.Paulo, do mês de abril de 2010, e 5 notícias publicadas na primeira
página desse período. Julgo que a primeira página do jornal, pela importância que
confere aos assuntos nela contidos, será um sinalizador por excelência da
valorização ou não do papel da mulher na sociedade. É ela que chama a atenção
dos leitores, mesmo a do passante não leitor do jornal. A primeira página atinge a
grande massa.
Metodologia − 34

3.2 Procedimentos de análise dos dados

Tendo em vista as perguntas de pesquisa:

a) Com que frequência a mulher ou o homem são citados na primeira página do


jornal Folha de S. Paulo?
b) A que tipo de atividade liga-se a citação da mulher ou do homem?
c) Que escolhas léxico-gramaticais revelam a ideologia subjacente à figura da
mulher e à do homem?

Os seguintes passos serão observados na análise, sempre sob o crivo da


Linguística Crítica:

1. Farei uma contagem das notícias que mencionam explicitamente a mulher e ao


homem na primeira página do jornal Folha de S. Paulo. Os ambos - casos de
palavras como 'pesquisadores' envolvendo homens e mulheres - não serão
levados em consideração.

2. Serão apontadas as atividades relacionadas a homens e mulheres. Nesse item,


não serão levadas em consideração as atividades citadas tanto para homens
quanto para mulheres.

3. As escolhas lexico-gramaticais referentes a homens e a mulheres terá sempre


como pano de fundo o contexto, caracterizado segundo a TGR (Teoria de
Gêneros e Registro), caracterizada a seguir. Esta fase é importante, pois a
interpretação dada ao texto depende do contexto em que os enunciados
aconteceram.

a) Campo: assunto
b) Relações: o jornal e seus leitores
c) Modo: estruturação linguística do conteúdo

As referidas escolhas serão feitas com base na LSF, considerando-se as três


Análise − 35

metafunções:

i. Metafunção ideacional
• Verificação do sistema da Transitividade.

ii. Metafunção interpessoal


• Verificação dos papéis interacionais (desempenhados e projetados
[este envolvendo os de rotulação e os de atribuição].
• Verificação da Avaliatividade, incluindo os tokens de Atitude [envolve
as modalizações, a propagação avaliativa, o intertexto].

iii. Metafunção textual


• Verificação da ocupação da posição de Tema ou do Rema, incluindo o
Novo-Rema.

A análise será seguida de um Comentário, ocasião em que será explicitada a


análise feita nos itens acima.

4. ANÁLISE

4.1 Frequência de citação de homens e mulheres

Iniciamos a análise, apresentando o gráfico de frequência de citação explícita


de homens e mulheres nas primeiras páginas dos jornais do mês de abril de 2010. A
seguir, uma tabela para uma visualização mais detalhada.
Análise − 36

Frequência de citação de homens e mulheres


Mulheres Homens

Total de citações = 257

23%

77%

Figura 1: Gráfico de citação explícita de homens e mulheres

No mês de abril de 2010, na primeira página do jornal Folha de São Paulo,


portanto, em 30 páginas, homens e mulheres foram citados, conforme mostra a -
Tabela 1.

Categoria HOMEM MULHER TOTAL


Em no. 199 58 257
Em % 77 23 100
Tabela 1: Frequência de citação de homens e
mulheres

A Tabela 1 mostra que o homem é citado três vezes mais que a mulher, o
que parece demonstrar que a participação da mulher na vida pública é tímida.
Esse fato ou (a) é uma justificativa de que seu papel se restrinja em geral aos
afazeres domésticos, ou (b) inversamente, que, devido a um tipo de
categorização, a própria mulher esteja convencida de que esse é o seu papel.
Isso nos convida a verificar o papel que é atribuído a homens e mulheres.
Análise − 37

4.2 Atividade exercida por homens e por mulheres

Dando continuidade ao trabalho, apresentamos o gráfico, para facilitar a


visualização, com as atividades exercidas por homens e mulheres. Na sequência, o
Quadro 10, com exemplos de atividades, a título de exemplificação.

Total de Atividades Distintas Citadas

90
Total de Atividades Distintas Citadas = 103

79
80

70

60

50

40

30
24
20

10

0
Atividades atribuídas a Mulheres Atividades atribuídas a Homens

Figura 2: Total de atividades exercidas por homens e mulheres

De um total de 103 atividades diferenciadas, foram citados 24 tipos de atividades


exercidas por mulheres e 79 por homens.

HOMEM MULHER

Atividades equivalentes
aluno, assessor, candidato, candidato à assessora de gabinete, candidata à
presidência, chefe da casa civil, pai, presidente presidência, estudante, mãe, ministra-chefe
do país, senador, cantor, ministro [10] da casa civil, presidente do país, senadora,
cantora, ministra [10]

Atividades diferentes
advogado, analista, aposentado, arcebispo, atriz, conselheira da secretaria, guia,
artista, bispo, cardeal, chefe do STF, ciclista, jogadora de vôlei, mulher-bomba,
cirurgião, deputado, governador, juiz, padre, ombudsman, performer, psicóloga,
poeta, presidente do BC, chanceler, jogador de presidente de associação civil, rebelde,
futebol, papa, pároco, pedreiro, prefeito, relator, roqueira, sexóloga, visitante [...] (13)
secretário de estado, segurança, traficante, vice-
presidente do país [...] (69)
Quadro 10: Atividades exercidas por homens e por mulheres
Análise − 38

As atividades estão em ordem alfabética. Salta à vista a diferença entre o


número das atividades citadas, e também a diferença nos tipos dessas atividades,
sugerindo a existência de distinção grupal nesse setor. Fica, também, a impressão
geral de que a mulher se torna notícia se se revela contrária à maioria, saindo do
seu papel usual de dona de casa.

4.3 A avaliação do homem e da mulher: As escolhas léxico-gramaticais

Iniciamos a análise de ‘Beijinho, Beijinho, Tchau, Tchau’ publicado na primeira


página do jornal Folha de S. Paulo, no dia 01/04/2010. Como já vimos, o registro
descreve a influência das dimensões do contexto situacional imediato sobre a
língua, por meio de: (a) Campo (o assunto sobre o que a língua está sendo usada);
(b) Relação (a relação entre os interlocutores) e (c) Modo (o papel que a língua
exerce na interação). Essas variáveis registro são organizadas, respectivamente,
pelas metafunções ideacional, interpessoal e textual da linguagem. Assim, como a
interpretação dos fatos relatados por meio da língua depende do contexto em que
ocorreram, devemos esclarecer o Campo, as Relações e o Modo, que envolvem
esses relatos, conforme item (i) do Quadro 11.
Análise − 39

4.3.1 Texto I: Beijinho, Beijinho, Tchau, Tchau

Beijinho, Beijinho, Tchau, Tchau

José Serra (no alto) recebe beijo da mulher, Mônica, após discurso em que (Serra)
fez balanço e (Serra) se despediu do cargo de governador; Dilma Rousseff, que
deixou a casa civil, (Dilma) cumprimenta a cigana Mirian Stanescon, conselheira
da Secretaria da Igualdade Racial. [FSP, 01/04/2010]

Figura 3: Notícia publicada na primeira página do jornal em 01/04/2010


Análise − 40

(i) O CONTEXTO: VARIÁVEIS DE REGISTRO

Campo: Despedida dos pré-candidatos de seus respectivos cargos no


governo
Relações: Folha de S.Paulo e leitores do Caderno A
Modo: Língua e visual se complementam para organizar os conteúdos de
Campo e Relações

Quadro 11: O contexto social/situacional do texto 1

(ii) AS ESCOLHAS LÉXICO-GRAMATICAIS

A seguir, para responder à terceira pergunta de pesquisa, verificaremos as


escolhas léxico-gramaticais feitas pelo editorial, e para tanto recorremos ao sistema
de Transitividade da LSF. Repetimos o Quadro 1, para facilitar o entendimento da
análise abaixo:

Processo Participantes
Material Ator, Meta, Alcance, Beneficiário
Comportamental Comportante, (Alcance)
Mental Experienciador, Fenômeno
Existencial Existente
Relacional Identificativo: identificado, Identificador
Atributivo: Portador, Atributo
Verbal Dizente, Receptor, Verbiagem, Alvo
Quadro 12: Relação processos/participantes
Análise − 41

● A METAFUNÇÃO IDEACIONAL

(1) Serra (no alto) recebe beijo da mulher, Mônica, após discurso em que
Meta Material Ator

(Serra) fez balanço e (Serra) se despediu do cargo de governador;


Ator Material Ator Material

(2) [...] Dilma Rousseff, que deixou a casa civil, (Dilma) cumprimenta
Ator Material Ator Material

a cigana Mirian Stanescon, conselheira da Secretaria da Igualdade Racial.


Meta

Comentário

O exame da metafunção ideacional - o significado construído pela língua referente


a eventos das orações em termos de fazer, sentir, ser - não revela diferença na
escolha do Processo (material) que envolve Participantes semelhantes (Ator e
Meta).

NOTA: A diferença está no fato de que Serra é Meta (Serra é beijado por Monica,
sua esposa) e Dilma é Ator (Dilma cumprimenta a cigana Mirian), mas essa
questão pertence à Metafunção Textual.

Quadro 13: Análise de do sistema da Transitividade da notícia 1


Análise − 42

● A METAFUNÇÃO INTERPESSOAL

(1) Serra (no alto) recebe beijo da mulher, Mônica, após discurso em que
Papel projetado de nomeação: esposa
Avaliat: token de Atitude

(Serra) fez balanço e (Serra) se despediu do cargo de governador;

(2) [...] Dilma Rousseff, que deixou a casa civil, (Dilma) cumprimenta

a cigana Mirian Stanescon, conselheira da Secretaria da Igualdade Racial.


Papel projetado de nomeação: cigana
Avaliat: token de Atitude

Comentário

Na análise da metafunção interpessoal, vamos considerar o jornal Folha de S.


Paulo dirigindo-se a seus leitores, um público em geral exposto frequentemente às
opiniões do jornal. Nesse contexto, alguns significados se acrescentam àqueles
proporcionados pela metafunção ideacional, graças à avaliação direta de
fenômeno relacionado a um intertexto prévio, chamado de logogênese [construção
dinâmica do significado conforme o texto se desenvolve], segundo Halliday (1992,
1993) e Halliday & Matthiessen (1999).
Consideremos, segundo Thompson e Thetela (1995), o papel projetado de
nomeação 'esposa' para Mônica, e 'cigana' para Mirian, termos ideacionais, pois
descrevem o que Mônica e Mirian são na vida real, mas que podem dar origem a
dois tipos de imagem: positiva para Mônica e negativa para Mirian, devido ao frame
[conhecimento de mundo] que o leitor tem em sua mente e que interage com o
texto.
Quanto aos papéis projetados de atribuição, no caso de Serra, ele, além de ser
o 'marido beijado por sua esposa Mônica' no evento linguístico, - fato que lembra
coisas como 'família bem constituída', é também Meta na oração 'recebe beijo (= é
beijado), situação em que as metafunções interpessoal e ideacional se sobrepõem.
Nesse contexto, até expressões como 'despediu-se do cargo de governador' X
'deixou a casa civil' parecem favorecer Serra.

continua
Análise − 43

continuação
A esse tipo de avaliação implícita - Avaliatividade evocada, para Martin (2000;
2003) - em que um significado ideacional pode ser “saturado” em termos avaliativos,
ou seja, interpessoais, é chamado pelo autor de token de atitude; mais
recentemente, foi chamado de dog whistle, o uso de significados aparentemente
neutros em termos avaliativos, mas que devem ser ‘entendidos’ como uma
mensagem negativa pela comunidade alvo [evidentemente já exposta
constantemente a certo tipo de avaliação] (MANNING, 2004, apud COFFIN e
O'HALLORAN, 2006).

Quadro 14: Análise da metafunção interpessoal da notícia 1

● A METAFUNÇÃO TEXTUAL

(1) Serra (no alto) recebe beijo da mulher, Mônica, após discurso em que
Tema

(Serra) fez balanço e (Serra) se despediu do cargo de governador;


Tema Tema

(2) [...] Dilma Rousseff, que deixou a casa civil, (Dilma) cumprimenta
Tema Tema

a cigana Mirian Stanescon, conselheira da Secretaria da Igualdade Racial.

Comentário

Segundo a LSF, a metafunção textual trata do modo como são dispostos


linguisticamente as metafunções ideacional e interpessoal, e assim os textos são
feitos coerentes e relacionados ao seu contexto. Notemos como, para enfocar a
pessoa de Serra ('Serra recebe beijo'), usou-se um verbo de sentido passivizante
(equivalente à passiva 'é beijado'). Assim, o Participante Meta (Serra) ocupa o lugar
de Tema da oração [aquilo de que se fala na oração (HALLIDAY, 1994), embora
esse lugar é na maioria das vezes ocupado por Ator.

Quadro 15: Análise da metafunção textual da notícia 1


Análise − 44

A QUESTÃO DO VISUAL

No caso, vamos aproveitar a ocasião para analisar o elemento visual proporcionado


pela fotografia dos candidatos no momento em que se preparavam para o
lançamento de suas candidaturas. A fim de desenvolver uma gramática semiótica
adequada para a análise do discurso multimodal, temos de começar de algum lugar,
afirma Macken-Horarik (2004). A gramática sistêmico funcional (LSF) de Halliday
tem se revelado útil em vários aspectos, pois a relação das estruturas linguísticas
com os processos sociais faz da LSF um recurso útil para o estudo mais amplo de
diferentes modos semióticos.

A metafunção textual vê a oração dividida em Tema (aquilo de que fala) e Rema


(aquilo que se fala do Tema). Numa oração, a parte final do Rema é chamada de
Novo-Rema (Hasan; Fries, 1995), a parte do conteúdo que deve permanecer na
mente do leitor e que será repetida no texto. Por outro lado, considerando o final de
uma oração, Du Bois (1987) fala em dois fatores: 'peso no final' e 'foco no final',
significando com isso que é nessa parte da oração que se localizam a verdadeira
mensagem de um texto. Conclui-se que a relação Tema-Rema serve para não só (a)
enfocar um elemento da oração, mas também (b) marcar parte da informação como
a mensagem que, de fato, o autor quer que perdure na lembrança do leitor.

Transportando o que é válido na língua, para o meio visual, o que se poderia dizer
em relação à foto em foco é que:

(a) O Tema é Serra, sendo beijado por Mônica, na despedida de cargo oficial,
que traz 'aquilo de que se trata nas fotos'.
(b) Porém, a mensagem que o jornal tem para os leitores é a avaliação negativa
da candidata Dilma, a mensagem que está em foco, que tem peso, e que
deve permanecer na mente dos leitores.

Quadro 16: Análise da questão visual da notícia 1


Análise − 45

4.3.2 Texto II: Ex-performer erótica assessora governo do Pará

Ex-performer erótica assessora governo do Pará

Famosa em Belém por fazer cenas eróticas com cobras e atuar como DJ, a atriz
Elida Braz – atualmente com o pseudônimo de Lady Green, “a musa da
sustentabilidade” – será assessora especial no gabinete da governadora do Pará,
Ana Júlia Carepa (PT). O salário é de cerca de R$ 1.500. [FSP, 15/04/2010]
Quadro 17: Notícia veiculada na primeira página do jornal em 15/04/2010

(i) O CONTEXTO: VARIÁVEIS DE REGISTRO

Campo: Divulgação da nova assessora do governo do Pará


Relações: Folha de S.Paulo e leitores do Caderno A
Modo: Língua organiza os conteúdos de Campo e Relações

Quadro 18: O contexto social/situacional da notícia 2

(ii) AS ESCOLHAS LÉXICO-GRAMATICAIS

● A METAFUNÇÃO IDEACIONAL

Ex-performer erótica assessora governo do Pará

[EB é] Famosa em Belém por fazer cenas eróticas com cobras e atuar como [EB
Relacional Material Meta Material
é] DJ,
Relacional Atributo

a atriz Elida Braz – atualmente com [EB tem] o pseudônimo de Lady Green,
Portador Relacional Atributo

[EB é] “a musa da sustentabilidade” –


Relacional Atributo

será assessora especial no gabinete da governadora do Pará,


Relacional Atributo

Ana Júlia Carepa (PT). O salário é de cerca de R$ 1.500


Portador Relacional Atributo

continua
Análise − 46

continuação
Comentário

A análise da Transitividade mostra que o texto é construído quase inteiramente com


Processo Relacional de atribuição, ou seja, o texto descreve a Portadora Elida Braz.
Embora todos os atributos sejam de fato características da pessoa descrita, as
escolhas léxico-gramaticais chamam a atenção em termos interpessoais, como
veremos a seguir.

Quadro 19: Análise do sistema da Transitividade da notícia 2

● A METAFUNÇÃO INTERPESSOAL

Ex-performer erótica assessora governo do Pará

Famosa em Belém por fazer cenas eróticas com cobras e atuar como DJ,
Avaliat:Julgamento positiva Avaliat: Julgamento negativa

a atriz Elida Braz –

atualmente com o pseudônimo de Lady Green, “a musa da sustentabilidade” –


Avaliat: token de Atitude (negativa) Avaliat: token de Atitude (negativa)

será assessora especial no gabinete da governadora do Pará,


Avaliat:Julgamento positiva Avaliat: Apreciação positiva

Ana Júlia Carepa (PT).


Avaliat: Apreciação positiva

O salário é de cerca de R$ 1.500.


Avaliat: Apreciação positiva

Comentário

1. Papéis desempenhados:
Elida Braz recebe o papel desempenhado de nomeação: assessora do governo e
papel de portadora de atributos do processo relacional do sistema da Transitividade.
A seguir, veremos o desdobramento desses papéis analisando a Avaliatividade.
continua
Análise − 47

continuação
Downing (2003) trata do processamento de texto como um evento dinâmico em que
tanto o autor quanto o leitor desempenham papéis ativos, em que a negociação é
um elemento crucial de interação, já que antecipa e determina a natureza do
discurso que se desenrola. Nesse processo, o receptor reconstrói o mundo
projetado no discurso de acordo com seu próprio conhecimento cultural e pessoal, a
partir de pistas linguísticas e visuais apresentadas pelo autor.

Diante disso, as avaliações que envolvem a figura da performer são em geral de


caráter positivo, mas não encontram essa acolhida no frame que o leitor traz para o
texto. Assim, 'ser famosa' acaba adquirindo avaliação negativa diante de 'fazer
cenas eróticas com cobras', numa avaliação por propagação ou logogênese.

O mesmo acontece com 'atualmente com o pseudônimo de Lady Green, “a musa da


sustentabilidade”, em que 'sustentabilidade', de avaliação positiva em contexto
sobre ecologia, é Julgada negativa graças ao intertexto prévio desencadeado
nessas circunstâncias. É o que se chama de token de Atitude (ou dog whistle),
quando escolhas de natureza ideacional na origem assumem valores interpessoais,
mostrando ao leitor o posicionamento do autor do texto.

E, assim, por Avaliatividade propagada, escolhas como 'assessora especial',


'governadora do Pará', 'salário de 1.500' e até o 'PT', são avaliados negativamente.

Quadro 20: Análise da metafunção interpessoal da notícia 2


Análise − 48

● A METAFUNÇÃO TEXTUAL

[Ela] Ex-performer erótica assessora governo do Pará

[Ela é] Famosa em Belém por [Ela] fazer cenas eróticas com cobras e [Ela] atuar
como DJ, a atriz Elida Braz – atualmente com o pseudônimo de Lady Green, “a
musa da sustentabilidade” – [Ela] será assessora especial no gabinete da
governadora do Pará, Ana Júlia Carepa (PT). O salário [dela] é de cerca de R$
1.500.

[Ela: tema]

Comentário

De acordo com as metafunções já analisadas, fica evidente a intenção do jornal em


caracterizar (negativamente) a atriz Elida Braz, e para tanto o exame da
metafunção textual revela que a coloca em posição de Tema [aquele de quem se
fala] em todas as orações.
Quadro 21: Análise da metafunção textual da notícia 2
Análise − 49

4.3.3 Texto III: Solteira e vaidosa, líder da greve dos professores vai adotar menina

Solteira e vaidosa, líder da greve dos professores vai adotar menina

Figura 4: Notícia veiculada na primeira página do jornal em 02/04/2010

(i) O CONTEXTO: VARIÁVEIS DE REGISTRO

Campo: Adoção de menina pela professora M.Izabel Noronha,


presidente da APEOESP.
Relações: Folha de S.Paulo e leitores do Caderno Ilustrada
Modo: Na página de Mônica Bergamo: Língua e visual (foto da professora)
complementam-se para organizar os significados de Campo e
Relações.

Quadro 22: O contexto social/situacional da notícia 3


Análise − 50

(ii) AS ESCOLHAS LÉXICO-GRAMATICAIS

● A METAFUNÇÃO IDEACIONAL

[M.I.N.1] Solteira, vaidosa, líder da greve dos professores, vai adotar


Ator Material

uma criança
Meta

com o aposto: MIN é solteira - MIN é vaidosa - MIN é líder da greve dos professores

com 3 processos Relacionais (é) ligados a Portador (MIN) e a Atributos (solteira, vaidosa, líder...)

Comentário
O exame do sistema de Transitividade, da metafunção Ideacional, mostra a profa.
Maria Izabel Noronha, solteira, vaidosa e líder de greve como participante Ator, no
processo Material (adotar), tendo como Meta a menina adotada. O Ator recebe 3
Atributos: solteira, vaidosa e líder de greve dos professores.

Quadro 23: Análise do sistema da Transitividade da notícia 3

1
Para os propósitos da análise, vamos chamar Maria Izabel Noronha pela sigla MIN.
Análise − 51

● A METAFUNÇÃO INTERPESSOAL

[M.I.N.] Solteira, vaidosa, líder da greve dos professores, vai adotar


Avaliat: token de Atitude Avaliat:token de Atitude Avaliat: token de Atitude

uma criança

Comentário
1. Papéis desempenhados:
MIN recebe o papel desempenhado de nomeação: líder da greve dos professores
2. Avaliatividade: A avaliatividade deve levar em conta o contexto ou a posição
de leitura do leitor (MARTIN, 2000). Assim, levando em conta a adoção de uma
criança, temos o seguinte quadro:
Escolhas léxico-gramaticais Avaliatividade Poderia ser Mas no contexto de adoção de criança
pode ser
'solteira' token de Atitude positiva negativa
'vaidosa' token de Atitude positiva negativa
'líder da greve dos profs.' token de Atitude positiva negativa

Assim, de acordo com o frame - o conhecimento de mundo - que o leitor traz na


sua interação com o texto, os Atributos acima podem constituir o que se chama
de 'contrabando de informação', a inserção subreptícia de avaliação negativa,
além da logogênese, o significado - no caso negativo - que é construído no
desenrolar do texto.

Com base nisso, notemos que as escolhas linguísticas de avaliação explícita por
meio desses Atributos podem ser consideradas de avaliação de apreciação
positiva, porém, também constituem tokens de Atitude nesse contexto.

Assim, poder-se-ia julgar que alguém com esses Atributos não seria a pessoa
mais indicada para a adoção de uma criança, já que provavelmente muito
ocupada com movimentos grevistas. E, é claro, há ainda boa parte da população
que não considera adequada uma mãe ser 'solteira' e 'vaidosa'. De qualquer
forma, parece perdurar a impressão de novidade, de inesperado, na informação
do texto, o que tem como base a categorização que sofre a mulher nesta
sociedade.

Quadro 24: Análise da metafunção interpessoal da notícia 3


Análise − 52

● A METAFUNÇÃO TEXTUAL

Solteira, vaidosa, líder da greve dos professores, vai adotar uma criança
Tema

Comentário
Notemos que os Atributos 'solteira', 'vaidosa' e 'líder em posição temática' ocupam
a posição de Tema da oração, revelando o posicionamento da autora em relação
àquilo que informa: parece que a colunista julga ser um fato inusitado alguém com
essas características adotar uma criança, assumindo o papel de mãe.

Quadro 25: Análise da metafunção textual da notícia 3

A questão do visual

Tomando por base o que Du Bois (1987) fala sobre 'peso no final' e 'foco no final',
significando com isso que é nessa parte da oração que se localizam a verdadeira
mensagem de um texto. Vimos que a relação Tema-Rema serve para não só
enfocar um elemento da oração, mas também marcar parte da informação como a
mensagem que, de fato, o autor quer que perdure na lembrança do leitor. A partir
disso, pela análise da foto, podemos depreender em relação à foto que
acompanha a notícia é que a mensagem que está em foco, que tem peso, e que
deve permanecer na mente dos leitores é o fato da presidente da APEOESP ser
solteira e vaidosa.

Tema: Solteira e vaidosa, líder da greve dos professores


Rema: a imagem da líder da greve dos professores

Quadro 26: Análise da questão visual da notícia 3


Análise − 53

4.3.4 Texto IV: Campanha tem início com ‘scripts’ fáceis de antever

Campanha tem início com ‘scripts’ fáceis de antever

A campanha eleitoral começou da forma mais previsível. Dilma Rousseff pendurou-


se, com direito a lágrimas e tudo, no presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Natural.
Já José Serra, também de acordo com um “script” fácil de antever, fugiu do
plebiscito. [FSP, 01/04/2011]

Quadro 27: Notícia veiculada na primeira página do jornal em 0104/2010

(i) O CONTEXTO: VARIÁVEIS DE REGISTRO

Campo: Descrição do comportamento dos candidatos Dilma e Serra


na campanha eleitoral
Relações: Folha de S.Paulo e leitores do Caderno A
Modo: Na primeira página do Jornal, uma linguagem enxuta organiza os
conteúdos de Campo e Relações.

Quadro 28: O contexto social/situacional da notícia 4

(ii) AS ESCOLHAS LÉXICO-GRAMATICAIS

● A METAFUNÇÃO IDEACIONAL

A campanha eleitoral começou da forma mais previsível.


Existente Existencial Circunstância

Dilma Rousseff pendurou-se, com direito a lágrimas e tudo, no presidente Luiz


Ator Material Circunst. Meta

Inácio Lula da Silva. Natural.

Já José Serra, também de acordo com um “script” fácil de antever, fugiu


Ator Material

do plebiscito.
Circunstância

continua
Análise − 54

continuação
Comentário

Na análise da Transitividade, podemos ver que o autor fez uso de processos


materiais - pendurou-se para o Participante Ator Dilma, e fugiu - para o Participante
Ator – José Serra. Podemos perceber que não há diferença quanto aos papéis
projetados de atribuição, pois ambos estão no evento da oração como Ator (Dilma e
Serra). Entretanto, a diferença consiste nas escolhas lexicais dos processos.
Apesar de serem materiais no sistema da Transitividade, e denotarem significado
negativo tanto para Dilma quanto para José Serra, sugerindo um tratamento
analítico igual para os dois, veremos que há distinção de tratamento. É o que
veremos na análise da metafunção interpessoal.

Quadro 29: Análise do Sistema da Transitividade da notícia 4

● A METAFUNÇÃO INTERPESSOAL

A campanha eleitoral começou da forma mais previsível.


Avaliat: Gradação - força Avaliat: token Apreciação

Dilma Rousseff pendurou-se, com direito a lágrimas e tudo,


Avaliat: token de Atitude (negativo) Avaliat: token de Atitude (negativo)

no presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Natural.


Avaliat: token de Atitude (negativo)

Já José Serra, também de acordo com um “script” fácil de antever,


Avaliat: token de Atitude
fugiu do plebiscito.
Avaliat: julgamento negativo

Comentário

No exame da metafunção interpessoal, percebemos a fusão da metafunção


ideacional com a interpessoal, pela escolha dos processos no sistema da
Transitividade.
Considerando o enfoque da Avaliatividade de Martin (2000), notemos que ambos

continua
Análise − 55

continuação
os itens lexicais ‘pendurou-se’ (destinado à Participante – Ator, Dilma) e ‘fugiu’
(destinado ao Participante – Ator, José Serra) constituem processo material de
apreciação negativa – o que os colocam a princípio em condição de igualdade em
termos de Avaliatividade. Porém, a escolha do termo ‘pendurou-se´ do sistema da
Transitividade caracteriza por um token de atitude.
Luchjenbroers e Aldridge (2007) falam em frames, conjuntos de informação aceitos
culturalmente, que acompanham qualquer termo lexical. Os autores afirmam que
adequação do frame escolhido é também muito importante para ‘contrabandear
uma informação’, um termo usado quando uma informação (negativa) é
subrepticiamente inserida. Com base nisso, podemos observar que o termo
‘pendurou-se’ em relação ao termo ‘fugiu’, revela uma posição tendenciosamente
machista, encavalando outras informações além de negativa. Nesse contexto,
alguns significados se acrescentam àqueles proporcionados pela metafunção
ideacional, graças à avaliação direta de fenômeno relacionado a um intertexto
prévio, num processo chamado de logogênese [construção dinâmica do significado
conforme o texto se desenvolve], segundo Halliday (1992, 1993) e Halliday &
Matthiessen (1999).
O termo ‘pendurou-se’ carrega, socialmente, em determinados contextos, uma
conotação pejorativa: aquele que não tem personalidade própria, que se submete,
que está na dependência de, que está agarrado ou grudado. Isso revela a atitude
de julgamento por parte do autor, ao apresentar uma imagem estereotipada do
homem e da mulher.
Aproveitando a ocasião, White (2003), desenvolvendo o subsistema de
Compromisso na teoria da Avaliatividade de Martin, postula a distinção entre
enunciados monoglóssicos (afirmações não-dialogizadas) e enunciados
heteroglóssicos ou dialogísticos (nos quais se sinaliza algum compromisso com
posições alternativas/voz). Com base nisso, convém notar que o autor sinaliza sua
posição de afinidade em relação àquilo que informa, ao fazer uso de o adjunto de
modalização de frequência ‘natural’, reforçando o fato de ser comum e frequente a
pré-candidata “pendurar-se” no Presidente - o que demonstra uma atitude pouco
lisonjeira à Dilma.
Quadro 30: Análise da metafunção interpessoal da notícia 4
Discussão dos Resultados − 56

● A METAFUNÇÃO TEXTUAL
Campanha tem início com ‘scripts’ fáceis de antever

A campanha eleitoral começou da forma mais previsível. Dilma Rousseff pendurou-


Tema Tema

se, com direito a lágrimas e tudo, no presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Natural.

Já José Serra, também de acordo com um “script” fácil de antever, fugiu do


Tema

plebiscito.

Comentário

Como a análise da metafunção textual organiza o modo como as metafunções


ideacional e interpessoal estão dispostas linguisticamente, vemos que o autor dispõe
Dilma e Serra em posição temática, a fim de colocá-los coerentemente sob o
enfoque de avaliação de suas campanhas eleitorais.
Quadro 31: Análise da metafunção textual da notícia 4

5. DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

A análise à luz da Linguística Crítica, cujos proponentes indicam Linguística


Sistêmico-Funcional (LSF), como a metodologia mais indicada para a análise crítica,
mostra-nos dois fatos importantes:

a) A LSF, por ser uma abordagem multidimensional, permite o exame do


funcionamento de três significados simultâneos (HALLIDAY, 2004).
b) A relação das estruturas linguísticas com os processos sociais faz da LSF um
recurso útil para o estudo mais amplo de diferentes modos semióticos
(MACKEN-HORARIK, 2004).

Os resultados mostram que a mulher frequenta apenas em ¼ do espaço da


primeira página do jornal Folha de S.Paulo, enquanto o homem ocupa o restante do
espaço, ou seja, ¾, portanto, 75% das ocasiões, em comparação à mulher. A
primeira página de um jornal é o lugar em que acontece o resumo dos fatos mais
importantes do Brasil e do mundo. Nesta pesquisa, não verifiquei se essas
presenças referiam-se ao noticiário nacional ou ao internacional.
Discussão dos Resultados − 57

Quanto às atividades, embora alguns importantes cargos já estejam ocupados


por mulheres, para a par com os homens, conforme nos mostra a parte superior do
Quadro 10 'Atividades Equivalentes', ainda assim, vê-se a consequência da
frequência reduzida dela nessa página. Novamente, ¼ de referência a atividades
ocupadas pela mulher (13 x 69), que sugere que alguns cargos ainda sejam
'femininas', ou seja, possíveis de ser ocupados por elas (atriz, conselheira da
secretaria, guia, jogadora de vôlei, psicóloga, presidente de associação civil,
sexóloga).
As escolhas léxico-gramaticais mostram a ideologia do jornal, de maneira, em
geral, implícita, ou seja, sem o uso de palavras claramente avaliativas, ou quando o
jornal o faz, são escolhas que - se merecem a avaliação positiva em alguns
contextos - acabam sugerindo avaliação negativa, devido à adequada colocação
sintática no texto. Essa relação entre a macro-estrutura da ideologia e a micro-
estrutura das escolhas léxico-gramaticais é possibilitada, como diz Li (2010), pelo
caráter multifuncional da LSF.
A análise mostra-nos também o que afirmam Luchjenbroers & Aldridge
(2007), que juntamente com cada enunciado que produzimos, podemos - ativa ou
inconscientemente - deixar pistas para a audiência sobre como percebemos as
pessoas, ações e eventos no mundo que nos cerca. Mais ainda, cada escolha lexical
ativa que fazemos revela mais diretamente como encorajamos os outros a pensar
sobre determinadas pessoas, ações e eventos.
Por outro lado, o termo ‘contrabandear informação’ (cf. Luchjenbroers 1993,
1997a) é usado para quando uma informação é subrepticiamente inserida no texto.
Por força do intertexto prévio, algumas escolhas lexicais podem fazer desencadear
na mente do leitor situações negativas relacionadas ao termo selecionado. É o que
acontece na categorização da mulher no discurso, conforme nos mostra a análise.
Considerações Finais − 58

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chego ao final desta dissertação com a plena sensação de que a pesquisa


me proporcionou uma compreensão melhor dos recursos incríveis que o sistema
linguístico possibilita tanto para o falante leigo, mas muito mais para o especialista
que trabalha na mídia e que é o formador da opinião pública.
O contato com a Linguística Crítica e a Linguísitca Sistêmico Funcional foi de
grande importância, pois partindo da análise detalhada da língua e do contexto
social e cultural pudemos enxergar significados ideológicos subjacentes e
compreender como identidades, ideologias e discriminações são constantemente
construídas ou reproduzidas pelo discurso do jornal. No caso, na Folha de S.Paulo.
foi possível verificar o tipo de ideologia que subjaz à categorização da mulher.
A avaliação implícita ou a avaliação explícita com valor positivo, mas que
oculta avaliação negativa, por força do frame que o leitor traz na sua interação com
o texto, são noções imprescindíveis para a formação de um cidadão consciente, que
pode posicionar-se criticamente diante das situações por que passa uma nação e
participar ativamente dos destinos de seu país. Agora que esses fatores estão mais
claros para mim, poderei, evidentemente, proporcionar aos meus alunos um ensino
de leitura e de redação, embasado por sólida teoria.

Com relação às perguntas de pesquisa, podemos afirmar que foram


respondidas, como esclarecemos a seguir:

a) Primeira pergunta: com que frequência a mulher ou o homem são citados na


primeira página do jornal Folha de S. Paulo?

As 30 páginas do jornal do mês de abril de 2010 mostram que a primeira página


da FSP menciona o homem três vezes mais que a mulher nesse período,
sugerindo diferença de oportunidade. Diante de tal resultado, concentramos- nos
na verificação das atividades exercidas pelos dois gêneros.

b) Segunda pergunta: que tipo de atividade exercem homens e mulheres citados


nessa página?
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Revela-se, pelos resultados, que há também uma diferença significativa tanto no


que se refere à quantidade de atividades exercidas pelas mulheres (24) e pelos
homens (79), quanto à diferença nos tipos de atividades: mulheres (atriz,
conselheira da secretaria, guia, jogadora de vôlei, mulher-bomba, ombudsman,
performer, psicóloga, presidente de associação civil, rebelde, roqueira, sexóloga,
visitante); homens (advogado, analista, aposentado, arcebispo, artista, bispo,
cardeal, chefe do STF, ciclista, cirurgião, deputado, governador, juiz, padre,
poeta, presidente do BC, chanceler, jogador de futebol, papa, pároco, pedreiro,
prefeito, relator). Como se pode observar, esse resultado sugere a existência de
distinção grupal nesse setor.

c) Terceira pergunta: que escolhas léxico-gramaticais revelam a ideologia


subjacente à figura da mulher e à do homem?

Fica evidente, pelos resultados da pesquisa, a questão das escolhas que a língua
- como um sistema semiótico - permite fazer, em que determinada escolha
adquire significado contra as que deixaram de ser feitas, a saber:

• As escolhas de léxico que refletem papéis projetados de nomeação podem


desencadear - por força do frame que o leitor traz para o texto – vários tipos de
imagem: vimos isso com o exemplo de imagem positiva para Mônica (esposa) e
negativa para Mirian Satenscon (cigana), conforme mostrou a análise do quadro
13.

• Escolhas dos processos no sistema da Transitividade aparentemente neutros


podem se revestir de caráter interpessoal, situação em que as metafunções
interpessoal e ideacional se sobrepõem, construindo significados ideológicos. É o
que Martin (2000) chama de token de atitude ou de dog whistle, o uso de
significados aparentemente neutros em termos avaliativos, mas que devem ser
‘entendidos’ como uma mensagem negativa pela comunidade alvo. A título de
ilustração, vimos que até expressões como 'despediu-se do cargo de governador'
X 'deixou a casa civil', pareciam favorecer Serra, ou, 'conselheira da Secretaria da
Igualdade Racial' poderia não ser aceita como enaltecedor de Dilma, nem da
Secretaria. Também podemos perceber o caráter interpessoal do autor com a
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escolha léxico-gramatical de José Serra como Meta no processo da Transitividade


(ele é beijado pela esposa, sugerindo família bem constituída). Isso pode sugerir
um reforço da categorização da mulher.

• Escolhas lexicais de atributos explícitos como “musa” ou “famosa”, aparentemente


favoráveis, podem se revestir de julgamento negativo, numa avaliação por
propagação ou logogênese (intertexto prévio).

• Adjuntos de modalização de frequência como ‘natural’ podem sinalizar a posição


de afinidade do autor em relação àquilo que informa, conforme vimos na teoria de
White (2003), com os conceitos de enunciados monoglóssicos e heteroglóssicos.

• Com relação ao elemento visual que acompanha as notícias, a LSF se mostrou


mais uma vez útil, conforme apontou Macken-Horarik (2004). Vimos que a
metafunção textual vê a oração dividida em Tema (aquilo de que fala) e Rema
(aquilo que se fala do Tema). Numa oração, a parte final do Rema é chamada de
Novo-Rema (Hasan; Fries, 1995), a parte do conteúdo que deve permanecer na
mente do leitor e que será repetida no texto. Considerando o final de uma oração,
Du Bois (1987) fala em dois fatores: 'peso no final' e 'foco no final'. Desta forma,
constatamos que as escolhas das imagens das notícias analisadas mostraram o
posicionamento dos autores, ficando coerente com as avaliações transmitidas por
eles. Como foi o exemplo da notícia do texto III “Solteira e vaidosa, líder da greve
dos professores vai adotar menina”. A escolha da figura da líder sindical estava
coerente com a intenção da autora em reforçar a ideia de “Solteira e vaidosa”.

Portanto, à luz da LC e da metodologia da LSF foi possível verificar o tipo de


ideologia que subjaz à categorização da mulher na mídia, no caso, na Folha de
S.Paulo. Por outro lado, o fato de as constatações apresentadas nesse trabalho
serem restritas ao corpus, posso dizer que o trabalho aguçou a minha vontade de
aprofundar os conceitos e avançar nas pesquisas vislumbrando um doutorado.
Referências Bibliográficas − 61

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