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O Sonho que nos Sente a Realidade: María Zambrano, o Sonho e Bernardo

Soares", Actas do Congresso RELIPES III: 18, 19 e 20 de Abril de 2007, Ed. Gabriel
Magalhães, Universidade da Beira Interior, Covilhã, 2007, pp. 295-304.

O sonho que nos sente a realidade:


María Zambrano, o sonho e Bernardo Soares

Apesar de em alguns mortais felizes poesia e


pensamento filosófico terem podido dar-se ao mesmo
tempo paralelamente, e de em outros, mais felizes
ainda, poesia e pensamento terem podido unir-se numa
única forma expressiva, a verdade de que pensamento
filosófico e poesia se enfrentam seriamente em diversos
graus que chegam até à exclusão total, ao longo da
nossa cultura, rompendo-a, parece impor-se por si
mesma. Um rompimento da cultura, da tradição. Pois
cada uma destas duas formas de saber e de expressão –
filosofia, poesia – quer para si inteiramente a alma
onde habita e é causa de tantas vocações malogradas,
de angústia sem limite afogada na esterilidade, de
alienação.

María Zambrano
A Metáfora do coração e outros escritos

I
(do real e do irreal)

Perguntava Platão pela boca de Sócrates – Vive em sonhos ou na realidade quem


acreditar que há coisas belas mas não acreditar que existe a beleza em si?
Menos que a resposta, importa-nos a pergunta – é sabido, encontra-se a
formulação exacta de uma pergunta apenas quando se alcança a sua resposta. E não a
resposta nominal – a saber, que sim, que vive em sonhos quem acredita que há coisas
belas sem crer na existência do belo em si –, mas sobretudo a resposta latente na
pergunta. Por isso, importa-nos a pergunta. E com efeito, no que Platão interroga

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consagra-se um “princípio de irrealidade” dos sonhos, como se os sonhos, sendo lugar
de vida, fossem vida irreal, fantasma que, ainda assim sendo, é apenas assombramento
de outro lugar, o da vida real.
A contrapartida resulta paradoxal, pois dessa outra vida, a que não é fantasma,
só teríamos prova num “princípio de realidade” que não é mais do que frustração,
realidade que, para lá do irreal sonho que se vê frustrado, apenas tem por substância a
desilusão ela mesma. Mas, substancialmente, será a realidade tão-só poder de dizer não?
Poderá isso satisfazer? O paradoxo ressalta com evidência – a vida real ser negação não
pode dispensar um quê aí negado, ou seja, a vida frustrada e, por contraste,
forçosamente afirmada, vida real pois. A esse quê aí, vivo, María Zambrano chamou
sonho.
O sentimento de realidade não se satisfaz, porém, com este minimalismo da
negação e da resistência ou da imagem ontologicamente degradada que Platão semeou
entre as coisas concretas que habitamos. Haveria que encontrar mecanismos de
compensação, um mundo das Ideias, o exterior de uma caverna, uma memória oculta,
ou um inconsciente ainda por descobrir, mas já inventado, antes mesmo da própria
consciência.
A insatisfação do sentimento de realidade, seguramente também por aqui,
tornou-se ela mesma o sentimento da realidade. Sentimos como real o que nos resiste.
Ficou célebre o dizer de Ortega y Gasset de que «o carácter da realidade é resistência».
Zambrano aceita esta ideia, mas apenas como ponto de partida.
Em contexto psicanalítico, o princípio de realidade foi-nos proposto por Freud e
justamente com o mesmo sentido de resistência, para contrastar com o princípio do
prazer, diferindo aquele a imediata satisfação deste, mediando-a pelo caminho árduo da
frustração e da renúncia. Mas o contraste vai mais fundo, não poderia deixar de fixar
uma irrealidade como pólo oposto. E se a realidade elevada a princípio é a realidade
exterior, se é essa que frustra, então o lugar próprio em que vive o prazer freudiano
irrealiza-se, numa ambiguidade que abeira o humano do absurdo ontológico. A
representação platónica das duas vidas, a do sonho e a da realidade, continua em Freud
pelos princípios de prazer e de realidade.
Naturalmente, é também Freud quem afirma a realidade dos sonhos. Essa é a
ambiguidade de que falava. E Zambrano reconhece-o explicitamente – «Nisto, Freud
tinha razão.» (O sonho criador, p. 22) Mas o carácter da sua realidade ficou por pensar,
«realidade independente de nós e, no entanto, (…) mais nossa por ser a mais imediata e

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a mais espontânea» (Ibidem). Dito de outro modo, mesmo quando é a realidade dos
sonhos que se afirma, essa realidade é ainda pensada como resistência – o sonho resiste-
nos; ergo é real.
Mas, se não pela sua resistência, se não essencialmente por isso, em que termos,
então, Zambrano pensa o carácter de realidade? A resposta é conseguida através de dois
ângulos de pensamento que convergem.
Primeiro, e no que respeita estritamente ao sonho, tal como compreender a
realidade da percepção requer uma fenomenologia do perceber, também a realidade do
sonho não dispensa uma sua fenomenologia. Atender directamente ao conteúdo do
sonho, diz Zambrano, «é pretender conhecer o valor e o significado dos sonhos sem ter
perguntado pelo sonho – o que é o sonho e em que é que se diferencia da vigília?»
(Idem, p. 23) Falta, pois, perguntar pelo que seria precioso antes de qualquer análise de
conteúdo do sonho, e precioso porque, mais fundamentalmente, é perguntar sobre o que
é o real e sobre o que diferencia o real do irreal.1
Depois, em segundo lugar, trata-se para Zambrano de esclarecer,
privilegiadamente pelo sonho, uma outra apreensão do carácter da realidade, já não
realidade que resiste, não isso essencialmente, mas realidade que se encontra com o
sentimento de estar já aí antes do encontro. E privilegiadamente pelo sonho por duas
razões. O sonho esclarece esse encontro em precedência porque nele, na sua forma de
ser, tal é particularmente evidenciável; e o sonho é também o nome dessa precedência,
digamos agora precedência metafísica – não é o sonho que sobrevém à vigília, mas a
vigília ao sonho, «abandonamos o sonho pelo vigília e não o inverso». (Ibidem)

II
(fenomenologia do sonho)

1
A Interpretação dos sonhos de Freud leu no sonho o símbolo de uma vida inconsciente que a vigília
evitava, mas precisamente sob o seu permanente efeito. E por aqui, todo o Séc. XX fez transitar o sonho
das margens da experiência para o centro da atenção, a científica e a artística, também a literária e a
filosófica. Mas esta interpretação simbólica dos sonhos, se traduziu uma atenção ao conteúdo dos sonhos,
nem por isso captou a atenção do sonho, a sua forma, o seu carácter próprio, a sua realidade. Mais do que
a experiência do sonho, importou a Freud o seu conteúdo, sentido para uma vigília, e também para o seu
voyeurismo. Por isso, a importância psicanalítica dos sonhos é sobretudo uma importância mundana, não
obstante a sua metafísica (há sempre alguma) aqui ancorada na substancialidade de uma libido.

3
Naturalmente, tudo isto reclama por esclarecimento, cuja sede própria será a
fenomenologia da forma-sonho que Zambrano desenvolve. No que intitula ‘Esquema de
uma fenomenologia do sonho’, a pensadora aclara dois aspectos essenciais dessa forma
que a fenomenologia do sonho espreita: a brusquidão do sonho e a ausência de
estranheza do sonhador. Detenhamo-nos neste dois aspectos.
O regime de passagem no sonho é um regime de brusquidão, não tanto no
sentido de uma aspereza, mas sobretudo de uma passagem sem conciliação do seu
movimento – «as figuras e, inclusivamente os acontecimentos, passam rapidamente para
dar lugar a outras coisas com as quais se misturam; este passar bruscamente tem uma
característica que a poesia de todos os tempos expressou nas metáforas nascidas do
sonho: desvanecem-se». (Idem, p. 24)
Trata-se pois de um regime de irrupção e desvanecimento sem plano de unidade
ou continuidade que permita modalizar o plano da passagem. Na verdade, esta ausência
de desdobramento de planos mais não significa que uma ausência de tempo. É que não
basta ao tempo haver movimento, haver passagem. Há que temporalizá-los, o que
requer a diferenciação entre o que dura e o que muda, planos desdobrados. Mas,
segundo María Zambrano, isso é precisamente o que escapa ao sonho – «Em sonhos não
existe tempo; quando sonhamos não temos tempo. Ao acordar devolvem-nos o tempo».
(Idem, p. 26) Carlos Varona Narvión, escrevendo sobre os sonhos e o tempo da
pensadora – ‘El sueno en María Zambrano: viaje entre los ínferos y la aurora’ –, cita,
em epígrafe, Novalis: «Quando se sonha que se sonha aproxima-se o despertar»;
justamente, o desdobramento do sonho termina-o.
É esta mesma ausência de tempo, de temporalização, que se mostra, por outro
aspecto do sonho, como ausência de estranheza do sonhador. Chegasse ele a estranhar e
o sonho logo cessaria. Isto porque estranhar, questionar, interrogar de dentro o sonho é
romper a sua atemporalidade, para no instante da sua interrupção usar do tempo. No
sonho, esclarece Zambrano, não há «aparecimento do instante, desse instante único,
privilegiado; o instante nosso, no qual estranhamos e perguntamos, o instante vazio de
acontecimento. O uso do tempo, o tempo propriamente humano, nasce de um vazio, de
um poro no decorrer temporal.» (Idem, p. 26, itálico da autora) Por isso, diz-nos ainda a
autora, «aquele que sonha não se surpreende que se desvaneça uma figura ou um
acontecimento do seu sonho; não se surpreende que persista monotonamente; não
estranha o suficiente para se colocar em questão.» (Idem, p. 24) Fazê-lo, principiando o
pensar, suscita o instante e o passado e o futuro, suscita a descontinuidade do que em

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sonho era compacidade, possibilita a sucessão e a medida que eram impossíveis no
sonho. Aí, na vigília, o tempo humaniza-se, torna-se possibilidade de exercício e de
ponto de vista; movemo-nos na temporalidade como se a sobrevoássemos, em vez de
nela estarmos por inteiro imersos; manipulamos o seu curso, usamo-lo; em suma, temos
poder. Nas palavras de Zambrano, admitindo-se um tempo no sonho, tratar-se-á, por
contraste, de «um tempo sem dono».
Mas a ausência do poder de pensar e de manipular, temporalizando, não
significa ausência de apercebimento e de consciência. Quem sonha ainda é uma
consciência, que assiste de mãos, caso as tivesse, atadas, consciência em passividade,
passibilidade. A sua posição é verdadeiramente a de um espectador de si mesmo,
espectador em absoluto, pois sem reacção, sequer íntima. Nenhuma acção tem lugar ou,
na expressão feliz de Zambrano, tem-se a “imobilidade de um movimento” – «O sonho
é o aparecer estático da vida. Mas como a vida psíquica é em si mesma movimento,
acontecimento, o sonho é paradoxalmente a imobilidade de um movimento, o absoluto
de um movimento.» (Idem, p. 27, itálico da autora)
A ressonância eleata do tema é evidente e não passou despercebida a Zambrano.
O tempo do sonho não é tempo que possamos penetrar; na sua compacidade “sem
poros” manifesta atributos do Ser de Parménides: unidade, indivisibilidade,
imobilidade. Sugerindo o trocadilho, a tessitura aporética do sonho parece encontrar a
sua contrapartida num âmago onírico das aporias. E Zambrano alimenta esta sugestão
ao afirmar que as «aporias» (entre umas aspas) de Zenão de Eleia «têm a sua realização
no sonho». (Idem, p. 27) Mais do que isso, o próprio sonho, atendendo agora a uma das
suas espécies, apresenta frequentes vezes um conflito – ou o conflito como enigma ou o
conflito já resolvido, mas nunca resolvendo-se, passando de um lado ao outro, pois não
há acção no sonho.

III
(o sonho é a realidade do real)

Como se aludiu atrás, esta fenomenologia do sonho, aqui apenas esboçada,


exprime pelo sonho o carácter de realidade, mas também, e no próprio sonho, uma
realidade mais originária. Com efeito, diz-nos Zambrano: «É uma ajuda do mundo dos
sonhos ao problema do carácter da realidade, já que em sonhos parece mais evidente:

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Aquilo que aparece e é aceite como real percebe-se como o que está já aí antes de ser
percebido.» (Idem, p. 31) Quando se sonha, a imagem que aparece, a figura, é percebida
como real porque esse “encontrado” não provém da nossa percepção. E assim teria de
ser, dada a passividade do sonhador, que o demite da possibilidade de pôr o que, antes,
se lhe impõe. No sonho a realidade é encontrada, já aí, «independente de mim, não
proveniente de mim, proveniente desse fundo inominável de onde sentimos que surge o
real» (Ibidem).
É, pois, a forma própria do sonho que põe a nu, para lá da suspeição que o poder
da vigília permite, a positividade do real, do seu carácter de realidade, em estado puro,
longe da expressão meramente frustrante, dilusória, em permanente diferimento, do
princípio de realidade. Em menos palavras, o carácter de realidade com Zambrano deixa
de ser, essencialmente, resistência, mas encontro. E este “encontrar” cala fundo, até à
vulnerabilidade. Com ele, não é só achar gratuitamente, nem irmos ao encontro de algo,
o que pressuporia algum movimento nosso. A imobilidade do sonho e a passibilidade do
sonhador revelam o encontro como o que se nos impõe. Mais que encontrar, o sonhador
é encontrado. Qualquer mediação ou acção limitaria logo o encontro, qualquer vigília
esbate, pois, o encontro. A consequência derradeira afigura-se clara: se o encontro
expõe o sonhador ao carácter da realidade, então a vigília, sendo seu esbatimento, será
tempo de irrealização do real. Eis subvertida a lógica de Platão – é preciso sonhar como
se só assim se nutrisse a realidade com o seu carácter real.
Ganham agora sentido, até metafisicamente, as afirmações de Zambrano de que
é a vigília que sobrevém ao sonho e não o contrário, de que se chega à vigília
abandonando o sonho e não o contrário, de que este é, realmente, a pré-história daquela.
O fundo último donde provêm as figurações no sonho, esse indeterminado original, é a
fonte do carácter de realidade de que toda a realidade sentida, seja no sonho seja na
vigília, é herdeira. Regressando às origens da filosofia, antes de Platão e de Sócrates,
Zambrano nomeia a realidade como o apeiron de Anaximandro.2

IV
(o sonho criador)

2
«Aquilo que se entende por realidade em sentido paradigmático é o senti-la vir de um fundo último a
que se poderia chamar apeiron, aceitando assim o primeiro conceito filosófico do real de Anaximandro»
(O sonho criador, p. 27)

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Mas se o encontrar do sonho é anterior ao pensar do sonhador, se este, que
sonha, é passividade na sua consciência sonhadora – «nesta gruta do sonho e do sonhar
parece que o homem se sente mais observado que nunca, e que ali o persegue o juízo»
(Idem, p. 51) –, nem por isso, avisa Zambrano, a nudez pode valer como metáfora de
um tal encontro3. O sonho faz o seu sujeito de sonho ser personagem, como se «andasse
à procura de uma figura; de uma figura e de mais alguma coisa, de argumento e
personagía, de um drama e de uma história» (Idem, p. 50).
O sujeito do sonho mascara-se, ou melhor, aparece já mascarado e algo está a
desenrolar-se, ou melhor, fixado numa imobilidade, dir-se-ia instantâneos de um
movimento, que é trama e história, e no qual a própria palavra só comparece como
palavra realidade, palavra também já aí em precedência que, «se se dá dentro do sonho é
como um aviso que chega de longe e que desfaz esse tramar» – «palavras que visitam.
E que se apresentam quando o sujeito não está em situação de falar»; «palavras
reveladoras ainda que a sua revelação não se entenda (…) podem ser simplesmente
reveladoras da própria palavra». (Idem, pp. 91-92)
Estes são só alguns dos momentos que fazem o carácter do sonho tal qual
Zambrano o vê, suficientes, creio, para que se compreenda a maneira como pode a
Literatura, a obra literária, ser continuação do sonho por outros meios, ou o sonho
impregnando a vigília, para nela se realizar. É que os sonhos tendem a realizar-se: «Na
literatura há obras que têm o carácter de sonhos; são obras trágicas, a tragédia grega, e
na literatura moderna obras como O Processo de Kafka, ou toda a obra de Dostoievski.»
(Idem, p. 24)
Porquê a tragédia? Porque nela o protagonista ignora a sua condição e o que lhe
sucede não é escolha sua, mas fatalidade que termina com o desmascaramento, fim
trágico que vale como um nascimento, e tudo o que se passou antes não sendo, pois,
mais que sua profecia sonhada. Édipo Rei exemplifica a situação: «A tragédia dá-se
nesse instante em que a história fatal – a história ainda sob o sonho – se abre. A máscara
cai e aparece um ser. Acontecimento que declara uma vez mais que na tragédia se trata
de nascimento.» (Idem, p. 145)

3
«Surpreendido durante o sono (…), o sujeito humano não se apresenta nu, como seria de acreditar de
acordo com certos tópicos. E não deixa de ser revelador a respeito deste não estar nu, a imagem que
aquele que sonha tem de si próprio. Revestido sempre de qualquer coisa, envolto sempre; às vezes
metamorfoseado noutra criatura, como imagem, como corpo.» (Idem, p. 50)

7
À tragédia, Zambrano contrapõe o romance, outra realização onírica, mas bem
distinta – agora o protagonista escolhe-se e na escolha é movido pelo sonho da
liberdade. Há já sujeito, nascimento adquirido, no romance. Metafísicas diferentes
justificam esta diferença aos olhos de Zambrano, a Grega por um lado, a do
racionalismo europeu clássico por outro. O protagonista da tragédia é sonhado, o do
romance, além disso, é sonhador.
E, por fim, Zambrano detém-se nos romances que não são assim, mas regressam
ao trágico – Dostoievski e Kafka, já vimos. Desmoronamento da metafísica moderna,
do poderoso cogito e sua liberdade – «Parábolas proféticas de um tempo que
proporcionou o máximo desfalecimento da liberdade» (Idem, p. 144). Sobre K., em O
castelo de Kafka, e só a título de brevíssima ilustração, escreve María Zambrano:

«O umbral impossível de transpor congelou totalmente a liberdade de K. e


impede-o de efectuar um único movimento real, um único que não pareça
ser uma cópia, sombra ou consequência fatal de qualquer coisa já
acontecida. A situação trágica impede que flua o tempo próprio do
romance. K, diante do umbral infranqueável, fica prisioneiro do seu
passado, e o seu passado avança sobre ele e envolve-o como uma
fatalidade em sonhos.»4

V
(vida-sonho, sonho-vida)

María Zambrano diz-nos muito mais sobre os sonhos, mas é esta forma-sonho,
na sua generalidade atemporal, descobrindo uma pré-história da vigília, que nos importa
trazer ao Bernardo Soares. A sua “metafísica da sensação”, aludindo a um célebre título
de José Gil, descobre-se também ela como uma pré-história da vigília consciente. E a
tragicidade da vida nasce aí, na sensação que precede a consciência. O Pessoa
encarnado em o Bernardo Soares de Livro do desassossego define esse aí como sonho.
Alguma semelhança com o sonho trágico de Zambrano afigura-se, ainda que no poeta o
trágico seja escolha e exercício, quase método – há que não ser senão sonhador, há que
suspender a crença. Diz-nos Bernardo Soares em “Maneira de bem sonhar” – «cuidarás
primeiro em nada respeitar, em nada crer, em nada». E em ‘Educação sentimental’,
espécie de didáctica da sua metafísica, é-nos dito que o primeiro passo para quem faz do
sonho a vida «é o sentir as coisas mínimas extraordinária e desmedidamente». E isto

4
O sonho criador, p 166.

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mesmo em vigília, já não a vigília consciente, sequer a que sonha – como quem se perde
nos seus devaneios –, mas uma vigília sonhada, exemplificada no «saber pôr numa
chávena de chá a volúpia extrema que o homem normal só pode encontrar nas grandes
alegrias que vêm da ambição subitamente satisfeita toda ou das saudades de repente
desaparecidas, ou então nos actos finais e carnais do amor». E o segundo passo dessa
vida-sonho, tão comentado, é o do falseamento do sentir que atinge sua expressão mais
subtil no fingimento de um outro, para reencenar todos os dispositivos do sentir. A
semelhança ressurge, agora com as máscaras do sonho de María Zambrano – «…a
mentira congénita em que a criatura humana parece ter necessidade de se envolver, tal
como envolvemos as criaturas; aconchegando-as» (Idem, p. 49).
Por fim, terceiro momento da educação sentimental de Bernardo Soares: «passar
a sensação imediatamente através da inteligência pura, coá-la pela análise superior, para
que ela se esculpa em forma literária e tome vulto e relevo próprio.» Há, pois, uma
técnica do sonho que positiviza o carácter da realidade e há, uma vez mais, uma
realização poética do sonho.
Em Bernardo Soares, como em María Zambrano, procura-se a atenção do sonho:
no semi-heterónimo uma vida-sonho que é sensação (Pessoa sem raciocínio nem
afectividade); em María Zambrano um sonho-vida que é atemporalidade. Em ambos,
ainda que com matizes muito próprios, o sonho mostra-se metafisicamente e nesse
mostrar o que se percebe é o próprio carácter da realidade.
Em ambos, sonhar aproxima-nos de um real que se positiviza; em ambos, a
linguagem do sonho é fingimento; em ambos, o sonho realiza-se poeticamente. Mas, o
sonho pessoano só parcialmente recobre o sonho de Zambrano e, no essencial, a sua
vocação é outra, estesiológica, não tanto chamamento de um fundo silencioso; as
máscaras do sonho da pensadora espanhola, por seu turno, só parcialmente recobrem a
despersonalização tão celebrizada em Pessoa; mesmo a realização poética do sonho não
é entre ambos coincidente: em Zambrano, o trágico que não se escolhe e o romanesco
que se escolhe; em Pessoa, uma escolha, de facto, mas pelo seu ascetismo da sensação.
Talvez se vá abordando o mesmo. Não saberia ser conclusivo, nem o pretendo, neste
ponto. E menos ainda quanto a haver uma idiossincrasia onírica da modernidade ibérica.
Mas gostaria de concluir, pelo menos para mim, que esta modernidade, ibérica de facto,
traz esperança sobre os escombros da representação, da representação da liberdade e do
seu poder, enfim das ontologias que o Século desmoronou, regressando, pelo sonho, a
um sentimento da realidade de tantas maneiras irrealizado. Mesmo que declinem o

9
verbo ‘sonhar’ diferentemente, para Zambrano, como para Pessoa, sonhar, creio, é
devolver ao real a sua realidade.

Bibliografia:
Zambrano, María, O Sonho criador. Trad.: Maria João Neves. Lisboa: Assírio & Alvim,
2005.
Zambrano, María, A Metáfora do coração e outros escritos. Trad.: José Bento. Lisboa:
Assírio & Alvim, 2000 (2.ª ed.)
Zenith Richard (Edição), Livro do desassossego de Bernardo Soares. Lisboa: Assírio &
Alvim, 2003 (4.ª ed.).

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