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BELO HORIZONTE
2013
Patrícia Simone do Prado
BELO HORIZONTE
2013
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
CDU: 291.7
Patrícia Simone do Prado
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Francirosy Campos Barbosa Ferreira - USP
It is proposed in this research to check the implications that the term fundamentalism when
applied as identity classifier causes to Islam followers. Working with an empirical and
bibliographical reference base, the hypothesis has been assumed that naming the group or
some Islam follower as a fundamentalist stigmatizes and sets a kind of identity. In THE
WORLD NAMES US: Religious fundamentalism in Islam and the categorization of a
performative identity the concept of identity in which it works on is that of construction, and
for that reason it is flexible and it is changing. From this research, an understanding of the
nominations and categorizations applied to followers of Islam is sought, as much as much as
the implications of such in the construction of identity. It is stated that such categories and
nominations interfere in the image and social relationships between the nominated and
nominator ones generating distinct reactions. Structured in three chapters, it was necessary to
comprehend the concept of identity and to study the types of categorization in order to check,
through interviews, how they were understood and perceived. The interviews composing the
empirical reference base of this research were done with Muslims belonging to a Shiite
branch in the city of Curitiba and in Foz do Iguaçu. Making use of unstructured interview
technique, the interviews were guided by three thematic axes: religion, the use of the term
fundamentalism, and the implications that the term cause to Islam followers. It could be
noticed in this study that like identity, the nomination and categorization of certain groups or
people is a contextual process in which distinct intentions and ideologies find themselves
connected in movements that will sometimes tend to resistance, and sometimes to
radicalization. It was concluded that Muslims identify themselves as fundamentalists, but
since this term started being associated with terrorism, they believe it should not be used to
name them.
1 INTRODUÇÃO..................................................................................................................10
3 A NOMEAÇÃO DA IDENTIDADE.................................................................................54
3.1 Nomear e dominar............................................................................................................54
3.1.1 A nomeação do Islã.........................................................................................................59
3.1.2 As prisões conceituais e o risco do reducionismo na análise........................................63
3.2 Sobre os pilares da unidade identitária cultural...........................................................67
3.2.1 A tradição cultural e o fortalecimento da identidade coletiva.......................................71
3.2.2 A ummah como ideal de identidade coletiva no Islã.....................................................75
3.3 Fundamentalismo, radicalismo, resistência....................................................................79
3.3.1 A Revolução Iraniana xiita e o despertar de um novo tipo de resistência....................84
3.3.2 O desenvolvimento do pensamento radical e suas consequências................................90
5 CONCLUSÃO...................................................................................................................135
REFERÊNCIAS .................................................................................................................136
ANEXOS..............................................................................................................................145
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1 INTRODUÇÃO
Estigmas e imagens que falam que não falam apenas de uma religião e seus
seguidores, mas falam de uma forma de vida. Para os seguidores do Islã a religião é mais que
uma escolha de fé é um modo de vida. Sobre os pilares da religião a vida é ordenada, as
escolhas são designadas, as vivências são estruturadas. Seguir o Islã é ser identificado como
muçulmano. É ser submisso, entregue à Deus. Logo, como pensar em um indivíduo que tem
no compromisso diário uma vida entregue aos preceitos e vontades de Deus como sendo um
fundamentalista, um terrorista?
Esta é uma das visões que se criou sobre a identidade muçulmana, uma imagem
vinculada ao terror. Ser muçulmano tornou-se, principalmente após o 11 de setembro, para
muitos que não professam e não conhecem a fé islâmica, sinônimo de fundamentalista, de
terrorista.
Depois desta data, islamismo e barbárie identificaram-se, e a satanização do bárbaro
consolidou-se numa imagem universalmente aceita e inquestionável.
Fundamentalismo religioso, atraso, alteridade e exterioridade cristalizaram a nova
figura da barbárie e, com ela, o cimento social e político trazido pelo medo.
(CHAUÍ, 2004, p.149).
E é por isso que se diz que a identidade é performática. Como em um palco em que os
atores interpretam distintos papéis, no palco social as identidades se encontram e dividem
suas ações dentro dos fatos sociais. “[...] o indivíduo se apresenta diante dos outros, seu
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não há, como se vê, encaixe perfeito da coisa nos nomes. Eles dizem de menos, por
um lado, e dizem demais, por outro. A coisa surge como um conjunto de
signfiicações que inverte seu sentido conforme, na troca de nomes, se muda de
ângulo ou se vira ao objeto. Cada nomeclatura revela um aspecto, projeta uma face,
deforma de um jeito. Mesmo quando a intenção não é desqualificar, o que enrijece o
uso é o sistemático descuido em tomar a parte pelo todo e supor que os termos são
intercambiáveis, sinônimos. Não são. Eles se cruzam, se entrelaçam, mas não se
recobrem indomável. (PIERUCCI, 1999, p.199-200).
Quando o assunto é identidade, percebe-se que a nomeação é uma forma de fixar uma
imagem, uma ideia sobre a identidade: ao se dizer “ele é fundamentalista” ou “todo
muçulmano é fundamentalista” uma ideia sobre o ser muçulmano, a partir do que se
compreende como fundamentalismo vai sendo construída. Essa pode ser real ou imaginada,
abrindo precedente assim, para a construção de estigmas.
O Islã, como uma religião que carrega no próprio nome o sentido de paz tem sido
categorizado, por alguns, como a religião que leva o terror. Essa imagem que influencia na
construção da identidade, desde os eventos do 11 de setembro de 2001 parece ter ganhado
mais força e a mídia seria uma das responsáveis por isso.
uma das grandes responsáveis pela fixar do termo. Além desta outras questões que tiveram
como eixo o fundamentalismo religioso, a religião do Islã e as consequências do uso do termo
fundamentalismo aplicado como categorizador de identidade aos seguidores do Islã nortearam
as entrevistados com os muçulmanos pertencentes a comunidade xiita de Foz do Iguaçu e
Curitiba. A técnica utilizada neste trabalho foi a de entrevistas não estruturadas - não houve
perguntas previamente formuladas; a entrevista foi guiada por eixos temáticos (conforme
Anexo B).
A escolha por esta vertente do Islã não se encontrava nos objetivos iniciais que se
baseava em compreender as noções que o conceito identidade apresentava; estudar alguns
tipos de categorizações e perceber como o termo fundamentalismo aplicado aos seguidores do
Islã era percebido e recebido por eles. A vertente xiita surgiu como uma opção dentre outras.
Com o desenvolvimento dos estudos percebeu-se que ao optar por esta vertente tornou-se
uma das escolhas mais acertadas, pois o termo fundamentalismo, dentro do contexto histórico,
começa a ser aplicado como categoria ao Islã em um dos maiores eventos contemporâneos
vivenciados por esta vertente: a Revolução Iraniana de 79. Objetivar a análise de um termo a
partir do grupo que primeiro o recebeu contribuiu para a organização das ideias que seriam
trabalhadas, além de facilitar a compreensão do que se propunha a pesquisar.
Pontuar tal diferença nesta pesquisa, a da presença do xiismo, é importante ao se pensar
que os estudos sobre este ainda são pequenos e a expectativa é que o estudo que ora é
apresentado surja como uma contribuição neste campo de pesquisa. Contudo é importante
frisar que esta pesquisa não é sobre xiismo, mas traz a contribuição do xiismo que poderá ser
encontrada nas entrevistas com seus seguidores e na análise de alguns fatos que ocorrem
dentro desta vertente, como por exemplo, a Revolução Iraniana de 79.
E assim, o que se espera com esta pesquisa é analisar e esclarecer algumas categorias que
são aplicadas ao Islã e seus seguidores e como essas podem influenciar a construção da
imagem identitária sobre o outro. A relevância deste tipo de estudo encontra-se não somente
no esclarecimento sobre os termos, mas acima de tudo na possibilidade de abertura para um
diálogo que se baseie no respeito à diferença e na convivência pacífica entre os “outros” e
“eles”.
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Falar sobre identidade não é uma tarefa simples. Giddens (2005) diz que, ao abordar
esse tema na Sociologia, encontrar-se-ão vários conceitos em distintas abordagens. Neste
trabalho optou-se pelo que compreenda a identidade como uma construção que começa a
partir do nascimento e se estende por toda a vida do indivíduo1, pois a identidade é uma
construção social e individual. Claude Dubar (2009, p.13), representante da Sociologia
francesa diz que a identidade
1
Os termos “pessoa”, “indivíduo” e “sujeito” serão usados nesta pesquisa a partir das noções utilizadas pela
Sociologia e Antropologia. A categoria “pessoa”, por exemplo, será a que conduz ao sentido vinculado a
consciência, aos processos biológicos e ao seu reconhecimento como ser humano. O conceito de “pessoa” surge
dentro de um processo histórico (Mauss) o qual se encontra nos dias atuais como sinônimo de individualidade,
que marca a identidade subjetiva do ser . Na construção do conceito identidade esta referência se faz presente
juntamente com a de indivíduo e sujeito. O indivíduo pode ser compreendido como o ser situado no direito. A
pessoa “existe” antes do indivíduo pois, “ao indivíduo cabe a ordem dos direitos, dos deveres, da moralidade, é
a parte em nós que transita em comum acordo com as regras e instituições sociais, a parte flexível, maleável,
adaptável ao sistema. Ele é o alvo dos direitos universais, políticos e culturais promovidos pelas instâncias
públicas, constituindo-se como a parte formada, modelada socialmente.” (VERONESE; LACERDA, 2011,
p.422). O sujeito, por sua vez, entende-se aqui como “[...] a parte íntima de cada ser que possui como movimento
a resistência, o confronto, o debate. [...] é o elemento sujeito de cada ser que luta pelos direitos adquiridos para
indivíduos.” (VERONESE; LACERDA, 2011, p.421-422).
15
2
O outro refere-se ao olhar externo, a uma exo-identidade que diz sobre a auto-identidade.
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Então, antes de ser “eu” é preciso que o outro diga o que “sou socialmente”. Um dizer
que se confunde muitas vezes com os papéis sociais3 e que revela um aprisionamento do
sujeito que somente modifica quando esse, não aceita e assim resiste às nomeações. E será
nesse momento, de resistência do eu, que a autoidentidade se imporá. Todavia é preciso
pensar que esse processo não é fixo, pois assim como a identidade a autoidentidade é um
processo situacional e intencional.
Identidades por sua vez, constituem fontes de significados para os próprios atores,
por eles originadas, e construídas por meio de um processo de individuação. Embora
[...] as identidades também possam ser formadas a partir de instituições dominantes,
somente assumem tal condição quando e se os atores sociais as internalizam,
construindo seu significado com base nessa internalização. Na verdade, algumas
autodefinições podem também coincidir com papéis sociais, por exemplo, no
momento em que ser pai é a mais importante autodefinição do ponto de vista do
ator. Contudo, identidades são fontes mais importantes de significado do que papéis,
por causa do processo de autoconstrução e individuação que envolvem.
(CASTELLS, 1991, p.23).
3
Por papéis sociais compreende-se como “[...] expectativas socialmente definidas que uma pessoa segue numa
dada posição social. O papel social do médico, por exemplo, agrupa um conjunto de comportamentos que
deveriam ser representados por todos os médicos individualmente, sem levar em consideração suas opiniões ou
perspectivas pessoais.” (GIDDENS, 2005, p.43). Ao trabalhar a conceituação sobre “papéis sociais” Giddens faz
uma crítica ao pensamento funcionalista que entende os papéis sociais como algo fixo e imutável na cultura. Um
pensamento contrário a visão de identidade como construção.
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mas dá margem para inferir que a relação, que se dá de forma psicosocial, é estreita e um dado
originário da ordem natural entre os fatos e o ser.
Estas imagens que se formam a partir do modo como uma sociedade se vê refletida
pelos olhos do outro não são, tampouco, imagens estáticas, imunes a mudança. São
exatamente estas imagens refletidas a partir do outro que permitem alterações, tanto
na minha auto-imagem (sic) como na minha conduta, e este termo deve ser aqui
tomado em seu sentido literal, alter/ações – as ações que assumo em função do
outro. [...] No jogo de espelhos, cada imagem refletida corresponde a uma
possibilidade de atuação. A avaliação desta atuação pelo grupo leva à formação de
uma nova imagem, que, por sua vez, possibilitará uma nova atuação. (NOVAES,
1993, p.108-109).
Desta forma é possível dizer que a cultura reflete as construções identitárias. Ou seja,
quando se olha para uma determinada sociedade a identificação cultural traz consigo a marca
da identidade social de quem a construiu. Isso seria um ponto fácil de compreender se não
surgisse a questão: e quando a sociedade é multicultural? Geertz (2001, p.219) parece ter a
resposta para esta questão quando diz que:
4
O conceito de cultura e suas relações na construção identitária serão abordados de forma mais ampla no
capítulo 3 desta dissertação.
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construção contextual que se forja no campo social e que tem como premissa demarcar a
diferença.
Nessa construção simbólica e imaginada que toma forma e é ativada pelo convívio
social, as marcas identitárias vão surgindo, se formando através das relações de agentes
distintos. Um desses agentes é o Estado. Uma entidade “abstrata” e que por isso leva a
perguntar: qual seria sua contribuição efetiva para a formação identitária do indivíduo? Há
cooperação nessa relação – indivíduo / Estado ou esse binômio é mais um que se conflita no
social? O Estado é um agente de transformação ou de formação de um tipo de identidade?
Todo ser humano ao nascer recebe um nome, um signo linguístico que traz a marca de
uma origem, de uma escolha dos que o nomeiam, de uma intencionalidade. O nome é a
primeira identificação que a pessoa recebe diante dos seus e dos outros; uma forma de
identificação individual e ao mesmo tempo social que “[...] são partes, em primeiro lugar, dos
interesses e definições de outras pessoas em relação ao indivíduo cuja identidade está em
questão”. (GOFFMAN, 1975, p.116).
5
Essa demarcação do indivíduo, que começa na linguagem e se estende pelo corpo
leva ao início de uma compreensão da identidade como sendo algo que nasce na coletividade
e se funde a subjetividade, permitindo assim uma diferenciação do indivíduo. A subjetividade
[...] sugere a compreensão que temos sobre o nosso eu. O termo envolve os
pensamentos e as emoções conscientes e inconscientes que constituem nossas
concepções sobre “quem nos somos”. [...] Quaisquer que sejam os conjuntos de
significados construídos pelos discursos, eles só podem ser eficazes se eles nos
recrutam como sujeito. Os sujeitos são assim sujeitados aos discursos e devem eles
próprios, assumi-lo como indivíduos que dessa forma, se posicionam a si próprios.
As posições que assumimos e com as quais nos identificamos constituem nossas
identidades. (WOODWARD, 2004, p.55).
5
O corpo é o veículo da identificação cultural. Através de gestos, formas de vestir, entre outras expressões, o
corpo descreve aos outros corpos uma identidade individual e ao mesmo tempo, social. “[...] pelo corpo se lê a
sociedade, se lê o indivíduo, pois o corpo é revelador das sensações e dos sentidos que nele se inscrevem.”
(FERREIRA, 2007, p.315).Um exemplo está nas decorações corporais, como por exemplo,a tatuagem que “[...]
pode ser um enunciado poderoso de auto-identidade, e ainda assim ser um sinalizador de uma identidade social
que os outros reconhecerão”. (GIDDENS, 2005, p.44).
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diverge de Wooward (2004), pois eles percebem que na construção do sujeito há poderes
pertencentes ao sujeito, que resiste, e no discurso que o interpela, em ações que tem como
resultado a manifestação da identidade.
A partir dessa interação os discursos produzidos sobre o sujeito vão sendo filtrados em
uma relação que o promove ao status de sujeito de direito. Na resistência do sujeito a
individualização surge em um processo de codepêndencia. E é nesse sentido que se diz que a
identidade é um processo onde pessoa, sujeito e indivíduo se encontram presentes. “O
indivíduo se situa na ordem do direito, enquanto seu duplo, o sujeito, na ordem da experiência
concreta. [...] Assim, é o elemento sujeito de cada ser que luta pelos direitos adquiridos para
indivíduo.” (VERONESE; LACERDA, 2011, p.422).
Nesse embate, que envolve comunidade social e indivíduo, a luta pela demarcação
identitária perpassa pelo desejo de que o “eu” seja visto como “nós”. Para tanto há de se
encontrar traços comuns que o identifiquem com o grupo e o Estado participa nessa ação que
se estende nas relações construídas entre os indivíduos em sua trajetória de vida. “A pessoa
humana, como cidadão, existe para o corpo político, e o corpo político existe para a pessoa
humana como pessoa. O Estado existe para o homem.” (AZAMBUJA, 2001, p.22).
Assim, o papel do Estado na construção identitária será o de garantir aos indivíduos os
seus direitos, isso significa, que as demandas que a identidade produz podem estar na
contramão do que o Estado pode e deve fazer. Essa questão é compreensível quando se pensa
que as demandas respondidas pelo Estado estão na ordem da comunidade social e não do
sujeito que é “[...] singular, peculiar, íntimo de cada ser; e o indivíduo é massificado,
categorizado, coletivizado.” (VERONESE; LACERDA, 2011, p.422).
Quando se diz que “o indivíduo é massificado, categorizado, coletivizado” a ideia de
pertença nacional ajuda na compreensão destas categorias que se fixam no indivíduo. O
nascimento já demarca isso, pois, ao nascer a pessoa não decide de onde será, mas outros sim,
decidem por ela .Além disso, o lugar onde se nasce o transforma em cidadão e isso tem como
consequências a garantia de direitos e deveres além de compartilhar, também, da carga
ideológica externa que recaí sobre a nação.
[...] altamente contestado. Sempre que se ouvir essa palavra, pode-se estar certo de
que está havendo uma batalha. O campo de batalha é o lar natural da identidade. Ela
só vem à luz no tumulto da batalha e dorme e silencia no momento em que
desaparecem os ruídos da refrega. [...] A identidade é uma luta simultânea contra a
dissolução e a fragmentação; uma intenção de devorar e ao mesmo tempo uma
recusa a resoluta a ser devorado.
Desta forma, pode se inferir que a identidade vai se construindo em espaços sociais
demarcados por poderes que atuam de forma a garantir a perpetuação de uma identidade
6
Um dos exemplos é o conflito étnico ocorrido em Ruanda e Burundi, países localizados na África, entre as
etnias Tutsi e Hutus. A partir do controle de nações imperialistas as fronteiras naturais foram destruídas
colocando dois sistemas étnicos distintos em um mesmo espaço gerando o confronto que teve como
consequência um dos maiores genocídios da história mundial. “A “disseminação da democracia” agravou
conflitos étnicos e produziu a desintegração de países em regiões multinacionais, tanto depois de 1918 quanto
depois de 1989, o que nos dá uma perspectiva desanimadora.” (HOBSBAWM, 2007, p.118-119).
22
7
O conceito de identidade nacional é um conceito imaginado que se forja a partir de uma ideologia, de um
desejo, de um projeto que é ensinado e é aprendido. “A idéia de ‘identidade’, e particularmente de ‘identidade
nacional’ não foi ‘naturalmente’ gestada e incubada na experiência humana, não emergiu dessa experiência
como um ‘fato da vida’ auto-evidente. Essa idéia foi forçada a entrar na Lebenswelt de homens e mulheres
modernos – e chegou como uma ficção. [...] A ideia de “identidade” nasceu da crise do pertencimento e do
esforço que esta desencadeou no sentido de transpor a brecha entre o ‘deve’ e o ‘é’ e erguer a realidade ao nível
dos padrões estabelecidos pela idéia – recriar a realidade à semelhança da idéia”. (BAUMAN, 2005, p.26).
8
A etnicidade está além da questão racial e da nacionalidade. A etnicidade envolve os agrupamentos, as
escolhas que os indivíduos fazem em comum, como por exemplo, a religião, a comunidade política ou a língua.
Um conceito que consegue incluir o estrangeiro e ao mesmo tempo demarcar uma identidade própria do grupo
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Partindo então deste ponto de análise, o da etnicidade, pode-se dizer que, por estar
inserido em um processo dinâmico que são as relações sociais, tanto a identidade, como a
etnicidade estão em construção. Em ambas, há algo que permanece, mas também que se
modifica dentro de uma dinâmica e perspectiva própria que relaciona interação, diferenciação,
identificação. Poutignat e Streiff-Fenart (1998, p.11), citando o pensamento de Barth
esclarecem e confirmam isso:
Barth substituiu uma concepção estática da identidade étnica por uma concepção
dinâmica. Ele entendeu muito bem e faz entender que essa identidade, como
qualquer outra identidade coletiva (e assim também a identidade pessoal de cada
um), é construída e transformada na interação de grupos sociais através de processos
de exclusão e inclusão que estabelecem limites entre tais grupos, definindo os que
integram ou não.
que é reconhecida pelos outros. “[...] os grupos étnicos são vistos como uma forma de organização social.”
(BARTH, 1998, p. 193). “As definições dos grupos étnicos que agora têm autoridade referem-se explicitamente
à antiga ‘concepção francesa’ da etnia, colocando assim o foco na dimensão intelectual e subjetiva do grupo
étnico. De Vos define-os como ‘um grupo que se percebe como unido por um conjunto de tradições de que os
seus vizinhos não compartilham e cujos membros utilizam subjetivamente de maneira simbólica ou emblemática
aspectos de sua cultura, de modo a se diferenciar dos outros grupos” (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 1998,
p.83).
24
Assim a identidade étnica cria uma manutenção dos ideais comuns garantindo a
continuidade de uma identidade escolhida. Dentro dessa dinâmica que envolve tradição e
transmissão surge a questão: como pensar a identidade étnica em grupos que estão na terceira
geração, por exemplo, em diásporas? Não estaria já, essa nova geração, em processo de
assimilação tão avançado a ponto de sua identificação étnica de origem ter se modificado ou
perdido?
Sobre essa questão, Poutignat e Streiff-Fenart (1998, p.163) dizem que:
Desta forma, pode-se pensar que os grupos que se organizam dentro da dinâmica da
etnicidade antes de buscar uma identificação cultural estão a se agrupar na busca de garantir
sua legitimidade como diferente nesse novo espaço de vivencia. “[...] as comunidades étnicas
podiam ser formadas de organizações eficientes para resistência ou conquista de espaços, em
suma, que eram formas de organização política. Descobriu-se que a etnicidade podia ser uma
linguagem.” (CARNEIRO, 2009, p.237).
A compreensão de que dentro da fluidez e mobilidade que a própria identidade étnica
permite “sofrer” visto que, é através desse fenômeno metamórfico e performático 9 que a
identidade se adéqua e garante sua continuação nos espaços de disputa, leva a possibilidade de
uma releitura sobre a identidade a partir de um prisma diferente do até então proposto e
entendido.
Se antes a identidade étnica era compreendida em termos raciais hoje se compreende
que, o que une um grupo como étnico diz mais respeito a identificação ideológico-cultural que
a questão propriamente sanguínea. Cohen (apud OLIVEIRA, 1976, p.85) exemplifica bem ao
dizer que:
Diferenças entre Chineses e Hindus, consideradas dentro de seus respectivos países,
seriam diferenças nacionais, mas não étnicas. Mas quando grupos de imigrantes
chineses e Hindus interatuam numa terra estrangeira enquanto chineses e Hindus,
eles podem ser referidos como grupos étnicos. Etnicidade é essencialmente a forma
de interação entre grupos culturais operando dentro de contextos sociais comuns.
9
A compreensão de performance nesta pesquisa é a que entende as ações humanas como atos encenados no
palco do mundo social. A base para o uso nesta perspectiva encontra-se nos trabalhos de Erving Goffman que
utiliza o termo performance como metáfora “[...] com sentido exclusivo de referência a ‘desempenho de papéis’
enquanto um tipo de comportamento ‘ritual’ dos atores sociais na vida cotidiana.” (SILVA, 2005, p.42).
25
em atributos pensados dentro de uma história e cultura específica impedindo assim uma
reformulação ou contextualização10 do Sagrado.
Logo, a proposta mais plausível seria o abandono da definição por um conceito aberto.
E por isso, devido à complexidade do termo, optou-se, nesse estudo mapear os possíveis
conceitos sobre religião a fim de aproximar-se de uma interpretação que fosse objetiva e
cientifica, pois como bem pontua Hock (2010) os termos utilizados para designar o que é
religião são limitados ou abrangentes demais para abarcar em um só conceito o seu
significado.
Nesse sentido, um primeiro conceito ou interpretação do fenômeno a ser visto seria o
relacionado aos teóricos da linha marxista. Para esses a religião é um tipo de sistema
ideológico e que falseia a consciência social. Hainchelin ao citar Engels (1963, p.37) diz que
“a religião não é mais do que o reflexo fantástico, no cérebro humano, dos poderes exteriores
que dominam a existência cotidiana, reflexo no qual os poderes terrestres assumem a forma de
poderes supra-terrestres.”
Nesta visão a religião seria compreendida como um mecanismo de alienação e
opressão que tem como objetivo a perpetuação de um tipo de dominação, a dominação das
classes burguesas sobre a operária. Dentro dessa perspectiva de análise a única maneira de
mudar essa dinâmica excludente seria através da revolução, da transformação prática do
mundo e não de sua interpretação, como tenta fazer as religiões.
Para a antropologia interpretativa11 a religião está entrelaçada à cultura, por isso para
compreendê-la é preciso ver a sociedade como “textos” disponíveis a leitura, mas que
precisam ser contextualizados antes de qualquer tentativa de compreensão.
10
Nesse sentido os novos movimentos religiosos, ou mais conhecidos como Nova Era estejam a fazer essa
contextualização, pois ao incorporar elementos de distintas teologias estão a trazer um novo conceito ou
definição sobre “Deus”. Deus passa a ser uma categoria plural e não apenas singular (Deus é).
11
Século XX anos 60. Clifford Geertz fundador da teoria interpretativa em antropologia.Trabalha a ideia de uma
leitura, do meio em análise, a partir da “leitura” dos nativos. Tem como característica o uso do método
hermenêutico, na compreensão dos fatos que devem ser descritos de maneira densa a fim de que possa ser feito
uma leitura da cultura. A Antropologia interpretativa ou Hermenêutica percebe a sociedade como textos, um
texto que não fora escrito pelo que lê por isso precisa das “lentes” do nativo para compreender, dentro de um
contexto próprio, o que o “texto” social está a revelar, dizer.
27
Geertz (1989) também descreve a religião como um sistema simbólico que atua de
maneira a gerar motivação e disposições que permanecem. Nessa interpretação a religião se
revela como algo poderoso que ao estabelecer conceitos sobre o ordenamento da vida cria
uma disposição do indivíduo mais próxima à realidade que do simbolismo. Ela gera sentido
ao significar o mundo.
Contrária à ciência, que busca a causa e o efeito das coisas, a religião é o discurso do
sentido. Utilizando-se de uma linguagem simbólica sua ação é do tipo comunitário e está “[...]
orientada para este mundo. As ações religiosas ou magicamente exigidas devem ser realizadas
‘para que vás muito bem e vivas muito bem e muitos anos sobre a face da terra’. [...] é
precisamente em sua forma primordial, uma ação racional, pelo menos relativamente.”
(WEBER, 2000, p. 279).
A partir dessas incursões teóricas um “conceito” pode se formular, conceito esse que
perpassa pela noção de grupo social que se orienta por um discurso simbolicamente
construído a partir de uma imagem que nasce do próprio meio. A religião pode ser entendida
então, como um reflexo do mundo social em imagens que misturam o real e o imaginado
trazendo sentido àquele que crê.
Como elemento que agrega a religião tem um papel importantíssimo na reconstrução
do mundo ideal, pois a sua linguagem simbólica traz elementos que respondem a anseios e
expectativas que se não forem para esta vida será no porvir.
12
A diferença que se faz aqui é a de religião e experiência religiosa. A religião como instituição daria mais do
que o arcabouço simbólico para a vivência da experiência com o Sagrado, ela entraria também, na vivência
cotidiana e social influenciando diretamente nas tomadas de decisões frente aos acontecimentos sociais.
28
pensar que a religião atua como um agente político e como tal estará em uma disputa
constante com outros agentes sociais. A Igreja como um tipo de instituição religiosa
intermediária
[...] pode ter consequências sociais diretas, pois leva o indivíduo a entender sua
função pública de acordo com a concepção que a Igreja tem do mundo e a agir em
público conforme outros membros das comunidades de sentido e de convicção. Este
papel da Igreja tem naturalmente grande importância num Estado democrático.
(BERGER; LUCKMANN, 2005, p.23).
Nesse sentido, é que se pode dizer da religião como ideológica que ao agregar
indivíduos sobre a base de um determinado ethos altera não apenas sua forma de pensar a
vida, mas de viver a vida coletiva.
Interessante é que a separação entre Estado e vida privada, que pode ser lida também
como religião, é uma característica dos tempos modernos, um tempo que trouxe as chaves que
abriram as portas da individualização, da liberdade dos pensamentos opressores, como os
produzidos pela religião cristã medieval. Porém, ao propor a emancipação da sociedade
colocando-se, agora, à frente de todos os domínios da ação, a modernidade não conseguiu
responder a todas as suas demandas resultando em uma crise de sentido.
E é nesse momento, em que as incertezas produzidas pela crise vêm a tona, que as
instituições de cunho religoso-moral reaparecem no cenário social como resposta a essa crise.
Produtoras e distribuidoras de sentido, essas instituições agregarão indivíduos distintos em
movimentos que poderão ser de respostas por demandas pessoais ou coletivas. A importância,
assim, da religião no mundo moderno talvez possa ser dita que se encontra no fato de que ela
colabora para o minimizar da crise de sentido ao (re)encantar o mundo.
A linguagem pela qual os sujeitos manifestam sua identidade ou identidades pode ser
“escrita” ou “lida” de diversas formas: no corpo, seja pela maneira de vestir, comportar ou
tatuar; nas artes em suas diversas formas de expressão, nos símbolos propriamente ditos, nos
diversos escritos, ou seja, nas mais distintas formas de expressão.
Para Gellner (1995) a linguagem é uma das formas pelo qual o mundo passa a existir.
Para ele o mundo passa a ser no momento em que os indivíduos o conceituam, e esse
conceituar é apenas uma das formas de trazer a existência parte das possibilidades, pois “um
mundo é um sistema de possibilidades inteligíveis [...] As linguagens são ricas, mas a
humanidade também o é em possíveis tipos alternativos de linguagem.” (GELLNER, 1995,
p.60).
Na construção da imagem do mundo a linguagem faz a mediação entre o real e o
imaginado. Toda construção teórica, mítica é codificada em símbolos que expressarão não
apenas uma ideia, uma crença, mas a identidade daqueles que creem. Logo, a linguagem
representa o mundo de quem o nomeia algo que demarca o poder de quem o faz sobre o que
faz.
A apreensão dessa linguagem se dá por conhecimento. “O signo não espera
silenciosamente a vinda daquele que pode reconhecê-lo: ele só se constitui por um ato de
conhecimento.” (FOUCAULT, 1981, p.74). Isso significa que os signos são maleáveis e
propensos a mudanças à medida que o conhecimento sobre ele avança. Ao interpretar um
signo apreende-se o significado dentro de um arcabouço social especifico e sobre ele lançar-se
ações concretas.
Linguagem é construção humana que tem no signo linguístico sua base expressiva. E
ao dizer que a identidade é construída no discurso e através dos discursos, a linguagem, como
símbolo dessa, deve ser verificada a fim de compreender que tipo de identidade está a se
30
constituir. Não se está a tratar aqui de linguagem como campo palavra, signo, mas como o
conjunto de significantes que ganha vida no discurso intencional.
A construção simbólica pretende, então, trazer ao campo do real uma mensagem que
parece “oculta”. Mesmo não tendo uma ligação direta com a mensagem que carrega, o
símbolo consegue manifestar uma realidade que se dá a partir da aprendizagem de seu
significado, ou seja, a linguagem simbólica é culturalmente aprendida e apreendida. Logo, ela
é um símbolo carregado de poder, tanto cultural quanto ideológico.
Além da língua outros símbolos carregam essa tarefa de decodificar o mundo ou, em
alguns casos, como os dos símbolos que carregam o status de “sagrado”, uma compreensão
do mundo, um sentido deste. Nos símbolos sagrados é possível encontrar uma “[...]
mensagem mesmo quando deixa de ser compreendido, conscientemente, em sua totalidade,
pois um símbolo dirige-se ao ser humano integral, e não apenas à sua inteligência.” (ELIADE,
1992, p.65).
Geertz (1989) ao analisar os símbolos considerados sagrados entende-os como um
meio pelo qual se estabelece comunicações entre o mundo visível e o invisível expressando
assim não apenas a crença sobre uma “verdade”, mas a própria maneira como se vivencia e
experiencia essa verdade que tem algo de moral e metafísico. Para ele
Os símbolos, sejam eles sagrados ou não, são uma maneira de metaforizar a prática
social e decodificá-los de maneira contextual leva aquele que se aproxima de determinado
grupo a uma leitura do que estão a viver, do que esperam. No caso da religião, essa se
organiza a partir de um ideal imagético de mundo. Seus ritos, mitos, símbolos são uma
manifestação de um desejo que não se alcançou ainda nesse mundo real, mas que é o
31
desejado. Dessa forma, os símbolos sagrados dizem que visão de mundo ideal tal grupo
entende ser.
Nesse sentido pode-se inferir que, para que haja coesão é preciso que haja
identificação e essa só é possível quando os envolvidos se tornam um e não múltiplos. O
problema é que a identidade é justamente forjada na diferença! É porque existe um nós e eles
é que se pode dizer sobre identidade. Identidade é o que diferencia.
Sendo assim, como pensar a identidade a partir de pressupostos como individualidade
e comunidade? Por ser móvel, aprendida, construída pode-se pensar em um tipo de identidade
que seja fixa? O que permanece e o que modifica na construção identitária?
A análise do fenômeno religioso revela que em seu escopo os ritos e mitos ditam
normas e formas de vivenciar a fé além de representar uma ordem específica do mundo
sensível e suprassensível. Por estar inclusa na trama que constrói o arcabouço de uma
determinada sociedade a religião entra como categoria de análise em que a busca está na
compreensão de suas ações que são capazes de produzir sentido e identidades distintas.
Segundo Hall (2006, p. 15-16) “a identidade é um lugar que se assume, uma costura de
posição e contexto, e não uma essência ou substância a ser examinada” logo, ao trazer o
elemento “religião” como fator constituinte na construção identitária é preciso compreender
como se dá essa troca que envolve a mudança e a fixação de um tipo de imagem identitária.
Quando Weber (2000, p. 283) trabalha a ideia referente a influência do Sagrado sobre
os costumes e os interesses dos indivíduos que se dá justamente sobre a sua invariabilidade,
“o sagrado é o especificamente invariável” faz surgir uma questão: como pensar a
possibilidade da construção de uma identidade performática em um espaço religioso? Se o
Sagrado possui uma identificação que se apresenta fixa, imutável, como seus agentes podem
levar para o espaço sagrado a invariabilidade? Que tipo de identidade se é construída na
vivência religiosa de um sagrado invariável?
É possível compreender essa dimensão dialética que ocorre no ser a partir do que
Ricouer propõe ao pensar identidade nos conceitos de idem (mesmo) e ipseidade (próprio).
Para Paul Ricouer (1991, p.45) há algo de fixo na identidade que permanece o mesmo (idem)
preso no tempo e que pode ser entendido como a tradição; ao mesmo tempo há algo que se
modifica que se reconstrói (ipse). “[...] a questão do si está oculta, por princípio, pela do
mesmo, no sentido do idem. O que importa para a identificação não ambígua é que os
33
interlocutores designem a mesma coisa. A identidade é definida como mesmidade e não como
ipseidade.”
Um bom exemplo para se compreender essa dialética talvez seja analisar os ritos que
ocorrem em um fenômeno religioso. No caso do Islã13, por exemplo, ao vivenciar o rito o
indivíduo retoma o tempo mítico fixando um passado que se torna cíclico devido a sua
marcação em um calendário que é religioso e social. O idem (mesmo) pode ser entendido
como a repetição que se dá interna e externamente, ou seja, no corpo do praticante e no
espaço onde o rito se repete. Mas há algo de próprio (ipse) que se revela na maneira como
cada indivíduo revive o rito. Sobre isso, Ferreira (2007, p.222) ajuda na compreensão quando
diz que,
Essa dualidade só é possível de ser imaginada porque o mundo social permite e exige
que os indivíduos atuem em distintos papéis. Utilizando-se dos elementos simbólicos
encontrados na própria cultura, os atores sociais escrevem e descrevem suas realidades que se
encontram em distintas relações sociais. A religião é uma dessas relações que permite através
de suas práticas representar os dramas sociais de seus atores no reviver do mito.
A proposta de Ricouer, ao dizer que há algo fixo (idem) e móvel na identidade, parece
se aproximar do que Castells (1999) chama de identidade primária que seria uma identidade
que estruturaria as demais. Para Castells a questão primordial nem é se a identidade é
construída, mas sim entender como, porque, para que e a partir de quê tal fato acontece.
Há nessa relação identitária algo de ideológico, ou seja, a identidade é forjada,
também, a partir de ideologias14, ideologias que nascem em um mundo onde o que há em
13
Optou-se pela grafia do nome da religião islâmica utilizada no Brasil: Islã. Outras formas possíveis para o uso
da palavra seriam Islão (usada em Portugal) e Islam que segundo Khalil e Nasser Filho (2003, p.17) “[...]
corresponde à exata transliteração do vocábulo escrito no alfabeto árabe – é formada pelas letras ‘s’ (sin), ‘l’
(lam) e ‘m’ (mim).”.
14
Segundo Geertz “hoje em dia há duas abordagens principais ao estudo dos determinantes sociais da ideologia:
a teoria do interesse e a teoria da tensão. Para a primeira, a ideologia é uma máscara e uma arma; para a segunda,
34
comum é o desespero e essas surgem como uma resposta a esse mal estar social. “[...] a
ideologia é uma reação padronizada às tensões padronizadas de um papel social. Ela fornece
uma ‘saída simbólica’ para as perturbações emocionais geradas pelo desequilíbrio social”.
(GEERTZ, 1989, p. 174).
Mas, é preciso compreender como os agentes que estão inclusos em um espaço de
identidade religiosa manifesta e vivencia ideologias tão distintas, que se apresentam em uma
dupla identidade social nesse indivíduo: a do grupo religioso e a da sociedade a qual está
inserido. Pensar nessa dialética identitária leva a inferência de que o ser humano é
fragmentado em seu próprio ser revelando múltiplas identidades que se organizam conforme
os papeis sociais que ele possui.
Como dito, há algo de fixo na identidade e a religião tem um papel central nessa
constituição fixa que esta ligada a tradição. A dificuldade, no que tange a identidade como
um sintoma e um remédio. Na teoria do interesse, os pronunciamentos ideológicos são vistos contra o pano de
fundo da luta universal por vantagens; na teoria da tensão, contra um pano de fundo do esforço crônico para
corrigir o desequilíbrio sócio-psicológico.” (GEERTZ, 1989, p.171). Nesse estudo, optou-se por pensar a
ideologia sob a ótica da teoria da tensão, por compreender que a religião, imbuída de pressupostos ideológicos,
“luta” para dar aos seus seguidores, respostas que venham de encontro a suas ânsias e decepções, mesmo que
essas respostas estejam em um porvir.
35
construção, talvez seja pensar a religião como invariável em ambientes variáveis, ou melhor,
pensar determinada religião que fora construída dentro de um aspecto cultural específico
como um projeto a ser aplicado invariável e universal, pois “as identidades são diversas e
cambiantes, tanto nos contextos sociais nos quais elas são vividas quanto nos sistemas
simbólicos por meio dos quais damos sentido a nossas próprias posições.” (WOODWARD,
2000, p.33).
Dentro desse questionamento é possível pensar que a própria religião, como elemento
de identidade, passa por algum tipo de metamorfose, que pode ser forçada pelos embates
ideológicos gerados pelas tensões distintas. A ideia de identidade fixa, então, seria mais uma
ideia de segurança, de preservação de um ideal do que propriamente a realidade do que se
vive. Afinal, até a tradição, que pode ser considerada um ponto fixação da identidade, passa
por processos de transformações.
Assim, infere-se que o conceito de identidade é um conceito imaginado que nasce em
um território real que é o social, e se estende em uma teia de relações com diferentes atores.
Nessa relação quais os processos que podem ser desencadeados na construção da identidade?
Por ser uma construção que nasce da imagem e do discurso é possível dizer que todas as
representações identitárias serão reconhecidas?
15
A imagem virtual aqui refere-se a uma idealização do “outro” sobre o “eu” que pode vir ou não a ser
confirmada pela imagem real ao ser conhecida. Pode-se inferir que a imagem virtual é a primeira imagem
construída pelo outro sobre “eles”.
36
A identidade então pode ser entendida como construção e também fabricação. Quando
o outro diz quem sou há nessa construção uma fabricação imagética que não necessariamente
diz sobre o eu verdadeiro. A interação entre os diferentes permitirá essa verificação e ao
verificar reclassificar, renomear ou nomear. O interessante é que toda fabricação imagética ou
não, tem um modelo, um padrão a que se segue, o que coloca a identidade diante de intenções
distintas.
Mesmo que o sujeito seja livre para aceitar ou não essa “construção” representativa de
si, sua liberdade encontrará desafios. Por estar no núcleo complexo, o social, a construção da
identidade se dará através dos embates entre o psico e o social. Nascer em um determinado
grupo marca o caminho identitário que se espera, mas trilhá-lo requer aprendizado e
aceitação.
A identidade não deve ser considerada senão como prática e discurso inseridos em
uma ‘matriz organizadora de relações pessoais’ e, portanto, determinada
contextualmente. Neste sentido, a identidade é performativa, pois por um lado ela é
produzida, e por outro ela produz relações pessoais variadas e intercambiáveis. [...] a
identidade performativa se inscreve num campo de forças simbólicas que
determinam valores, normas, estereótipos, estigmas, categorias, práticas e discursos
estabelecendo as relações de poder ordenadoras da realidade social. (REZENDE,
2000, p.62).
[...] as lutas em torno da identidade étnica ou regional, quer dizer, luta em torno de
propriedades (estigmas ou emblemas) ligadas à origem através do lugar de origem e
as fronteiras duráveis que lhes são correlativas, como o sotaque, são um caso
particular de lutas de classificações [auto-adscrições (sic) e categorizações]. São
lutas pelo monopólio do poder de fazer ver e fazer crer,de fazer conhecer e fazer
reconhecer, de impor a definição legítima das divisões do mundo social, e por ela,
de fazer e desfazer os grupos: estes possuem a capacidade de manipular o poder de
impor uma visão do mundo social através dos princípios de di-visão que, quando são
impostos ao conjunto de outro grupo, formam o sentido e consenso sobre o
significado e, em particular, sobre a identidade e unidade coletiva [para ambos os
grupos em interação]. (BOURDIEU apud REZENDE, 2000, p.46).
Percebe-se que nesse jogo de diferença e igualdades o que se procura é demarcar uma
posição de dominação. Ao se pedir que todos sejam iguais não seria tal ideal, além de uma
utopia, uma forma de anular enfraquecer a diversidade? Não estaria por trás dos discursos da
igualdade uma ideologia totalitária? E quando não se responde a essa ideologia que tipo de
imagem se fará sobre os que não se adéquam a igualdade? É possível manter a diferença sem
ser categorizado negativamente?
Pensar na questão identiária a partir de uma marcação de diferença é dizer que existem
dois grupos: os “iguais” e os “diferentes”. Tal classificação revela uma disputa ideológica que
tem como palco a arena social. Nesse embate o grupo dos “iguais” é legitimado pela maioria,
geralmente, restando aos “diferentes,” o conviver com as marcas provocadas pelos estigmas
ou resisti-las.
Essa classificação iguais/ diferentes revela a inclusão e exclusão de indivíduos a partir
de uma ideia que se estabelece sobre certos atributos herdados ou adquiridos, pertencimentos,
classe, cor, etnia, ou seja um amplo campo de diferenciações inerentes ou construídas pelo
sujeito. Estes atributos ou características podem ser entendidas como
16
Em 2009 a Suíça proibiu a construção de minaretes levantando uma discussão entre países favoráveis e contra.
Em 2004 na França ficou proibido o uso de objetos religiosos pelos alunos das escolas públicas. Em 2010
ocorreu a promulgação de uma nova lei desta vez proibindo o porte de vestimentas que cobrissem o rosto em
espaços públicos. A lei restringia assim, o uso do Niqab e a Burca, dois tipos distintos usados por determinados
grupos de mulheres muçulmanas. Nos dois exemplos citados a hipótese levantada sobre os motivos que geraram
tais ações referem-se ao aumento do número de imigrantes nesses países e a imagem que de hostilidade e terror
que recaí sobre o Islã. Os fatos citados estão disponíveis em: CHADE (2009) e CARRANCA (2011).
39
invisíveis, atributos que quase sempre se acham fora do controle dos próprios
indivíduos por eles identificados, mais ainda, cujo significado positivo ou negativo
também escapa do controle individual apesar do eventual empenho em afastar a
valoração negativa aderida ao traço coletivamente partilhado, marca sensível, o mais
das vezes visível, de uma diferença significativa. (PIERUCCI, 1999, p.105).
Essa forma de demarcar o outro a partir de sua diferença pode vir a criar estigmas.
Estigma na visão Erving Goffman (1975, p.6) é um “[...] atributo profundamente
depreciativo”. A grande questão que envolve a construção do estigma é que ele em si não diz
muito, não diz uma verdade, mas se constrói uma “verdade” sobre ele. Ou seja, as marcas
diferenciais nos indivíduos, que são visibilizadas, em primeiro lugar, pela linguagem, só se
tornam estigmas porque alguém assim categoriza e uma vez categorizado ganha o índice
valorativo.
Enquanto o estranho está à nossa frente, podem surgir evidências de que ele tem um
atributo que o torna diferente de outros que se encontram numa categoria em que
pudesse ser - incluído, sendo, até, de uma espécie menos desejável - num caso
extremo, uma pessoa completamente má, perigosa ou fraca. Assim, deixamos de
considerá-lo criatura comum e total, reduzindo-o a uma pessoa estragada e
diminuída. Tal característica é um estigma, especialmente quando o seu efeito de
descrédito é muito grande - algumas vezes ele também é considerado um defeito,
uma fraqueza, uma desvantagem - e constitui uma discrepância específica entre a
identidade social virtual e a identidade social real. Observe-se que há outros tipos de
discrepância entre a identidade social real e a virtual como, por exemplo, a que nos
leva a reclassificar um indivíduo antes situado numa categoria socialmente prevista,
colocando-o numa categoria diferente, mas igualmente prevista e que nos faz alterar
positivamente a nossa avaliação. Observe-se, também, que nem todos os atributos
indesejáveis estão em questão, mas somente os que são incongruentes com o
estereótipo que criamos para um determinado tipo de indivíduo. (GOFFMAN, 1975,
P.6).
Assim como na identidade, o estigma é uma construção discursiva que tem como
consequência direta a mudança interna e externa do estigmatizado. Os estigmas apontam a
diferença e apontar, indicá-la não necessariamente deve ser negativo, pois “um atributo que
estigmatiza alguém pode confirmar a normalidade de outrem, portanto ele não é em si mesmo,
nem honroso nem desonroso”. (GOFFMAN, 1975, p.13). O estigma, também, entra no jogo
do poder da nomeação.
Por ser performativa a identidade é construída pelos pares “eu” “ele” ou “eles” “nós” o
que significa dizer que mesmo quando há uma categorização negativa sobre determinado
grupo ou pessoa, essa foi possível porque de alguma forma o “eu” ou o “nós” emitiram algum
sinal, alguma mensagem que despertou no outro essa imagem.
O interessante é compreender que o estigma pode ser uma produção também do
estigmatizado. Quando esse reafirma atributos socialmente deslegitimados, que vai contra a
40
fixar uma determinada identidade como norma é uma das formas privilegiadas de
hierarquização das identidades e das diferenças. A normalização é um dos processos
mais sutis pelos quais o poder se manifesta no campo da identidade e da diferença.
Normalizar significa eleger – arbitrariamente – uma identidade especifica como
parâmetro em relação ao qual as outras identidades são avaliadas e hierarquizadas.
(SILVA, 2004, p.83).
E desta forma, sobre o corpo do outro, os estigmas vão sendo revelados e um tipo de
identidade nomeada. O corpo individual que é também social, desde o seu nascimento, vai se
transformando sobre as distintas formas discursivas. As categorias de bom/ruim, feio/bonito/,
bom/mau não são natas, mas são aprendidas e apreendidas a partir de um sistema valorativo
construído pelo social. Essas categorias, que são antes de tudo linguísticas, se agregam a
ideias e uma vez lançada sobre um grupo ou indivíduo tendem a fixar um tipo de imagem
identitária.
Através do corpo as emissões das mensagens que identificam um determinado grupo
ou indivíduo começam a ser percebidas pelo outro e os discursos começam a ser construídos.
Goffman (1975, p.53) nomeia tais mensagens como “informação social”.
Há algo na reflexão acima de Goffman que deixa uma lacuna que abre precedente a
crítica: nem todos os símbolos podem transmitir uma imagem segura sobre o outro, pois se
assim o fosse, de onde se basearia a normalização do signo? Não seria uma forma de
segregação cultural, pois é sabido que determinados símbolos sofrem mutação ao entrar em
contato com outra cultura justamente pelas imagens estigmatizadas que foram construídas
sobre eles? Como é possível então dizer que os símbolos completam “a imagem que temos
dele de forma redundante e segura”?
Apesar de ser uma fala problemática o fato é que Goffman parece ter razão, pois o
mundo é dividido em classes que se apresentam ao social em hierarquias, logo alguns
símbolos, legitimados pela classe dominante, serão considerados “seguros” e a interpretação
válida será a que advêm da classe que detêm o poder de categorizar, de nomear.
Pode-se dizer, então, que a divisão do social revela uma disputa incansável e porque
não dizer, eterna, da perpetuação de uma determinada ideologia, de um determinado grupo no
poder. Por isso, os símbolos serão colocados em lugar de prestígio17 ou de estigma,
dependendo de quem falará sobre eles.
Assim, ao se pensar que categorias valorativas são também construções surge o
questionamento: na contemporaneidade, onde as sociedades tendem a cada dia se organizar
com um número cada vez maior de diferenças do tipo nacionais, étnicas, culturais, como tais
categorias valorativas são percebidas e compartilhadas entre estes? A linguagem consegue
abarcar e traduzir de forma não estigmatizada, no sentido negativo da palavra, a diferença?
Tal questionamento revela um problema quando se pensa na categorização de uma
identidade à partir dos signos lingüísticos: a apreensão e compreensão dos termos. Para
Wittgenstein (1994) a compreensão de uma língua se dá a partir da vivência, logo somente os
inseridos dentro de um modo de vida podem apreender o significado que o signo traz.
Qualquer outra forma de compreensão vinda fora da vivência é tentativa de compreensão.
“[...] as interpretações por si só não determinam o significado.” (WITTGENSTEIN, 1994,
p.112). Logo, os símbolos lingüísticos como transmissores de sentido e marcadores de
identidade podem se tornar arbitrários e trazer uma mensagem confusa e complexa pois os
signos não são a “coisa” mas falam sobre a “coisa”.
17
“Símbolos de prestígio podem ser contrapostos a símbolos de estigma, ou seja, signos que são especialmente
efetivos para despertar a atenção sobre uma degradante discrepância de identidade que quebra o que poderia de
outra forma, ser um retrato global coerente, com uma redução conseqüente em nossa valorização do indivíduo.”
(GOFFMAN, 1975, p.53).
42
Toda essa conversa sobre presença, adiamento e diferença serve para mostrar que se
é verdade que somos, de certa forma, governados pela estrutura da linguagem, não
podemos dizer, por outro lado, que se trate exatamente de uma estrutura que segura.
Somos dependentes, neste caso, de uma estrutura que balança. O adiamento
indefinido do significado e sua dependência de uma operação de diferença significa
que o processo de significação é fundamentalmente indeterminado, sempre incerto e
vacilante. Ansiamos pela presença – do significado, do referente (a coisa à qual a
linguagem se refere). Mas na medida em que não pode, nunca nos fornecer essa
desejada presença, a linguagem é caracterizada pela indeterminação e pela
instabilidade. (SILVA, 2004, p.80).
A reflexão sobre essas questões sugerem que a maneira mais “segura” então, de
apreender o conteúdo e interpretação de um símbolo, seria a convivência. Como na
construção linguística, é preciso conviver para compreender efetivamente, pois o mesmo
símbolo pode ser usado por distintos grupos, mas cada um deles o classificará e colocará
sentidos diferentes.
Por serem contextuais, os discursos carregam a intencionalidade que se fundamenta
em uma ideologia. Nesse jogo de linguagem que resulta em uma demarcação no social, que
tipo de ação pode ser utilizado na desconstrução de uma imagem identitária arbitrária? É
possível resistir a uma categorização? Quem e como se resiste?
A discussão levantada até o momento permite dizer que a vivencia social é uma luta
diária pela sobrevivência das identidades que vão se organizando, modificando a fim de
manter-se no status da diferença que é uma marca. “[...] crucial no processo de construção das
posições de identidade”. (WOODWARD, 2000, p.39).
Esse é um dado importante ao se pensar na fragmentação identitária provocada pelas
modificações oriundas da contemporaneidade. Se outrora os Estados podiam se sustentar e se
identificar por um tipo de identidade cultural, hoje as identidades que permeiam esses Estados
são multiculturais, híbridas. E o resultado desta transformação, pela qual as sociedades
complexas passam, no que tange a configuração populacional/cultural, influencia diretamente
no tipo de construção identitária e suas relações com o social.
Nos três tipos de identidades propostos por Castells é possível perceber o contexto em
que o mundo hoje vive e de como os atores sociais se movimentam nesse grande tabuleiro.
Por não haver garantias a crise se instaura desestabilizando aspectos da vida deixando assim
espaço para os contra-discursos da identidade que nos dias atuais surge com o som da
resistência.
O surgimento desta identidade de resistência em determinada sociedade é um forte
sinalizador de mudanças nos padrões de hierarquia e organização governamental. Segundo
Castells (1999) a identidade de resistência nasce nos grupos estigmatizados, nas minorias
como uma forma de sobrevivência. Nesses casos o projeto do grupo está acima dos modelos
impostos. Uma identidade de resistência pode vir a se tornar uma identidade legitimadora e
quando isso ocorre geralmente os governos tendem a ser ditatoriais.
Por estarem imbuídos de um espírito de resistência que sempre tende a se defender,
seus agentes podem trazer um discurso pesado e excludente. Outra característica presente
nessas identidades é a identidade social em detrimento da autoidentidade, pois “[...] a busca
44
Mas há algo que permanece em meio a esse caleidoscópio que reflete várias cores para
a identidade: a tradição. Então seria a tradição o elemento que garantiria a permanecia de uma
identidade? A tradição religiosa, por exemplo, como detentora de uma tradição não apenas
cultural, mas mística, poderia forjar uma identidade de resistência? Qual o significado da
identidade religiosa para os seguidores do Islã?
O percurso teórico feito até o momento revela que a identidade é uma construção
contextual e interacional que tem como característica a demarcação da diferença. A religião,
como um dos elementos que perpassa essa construção, entra neste momento da pesquisa como
categoria de análise a fim de compreender que tipo de identidade será formada através dela.
Para tanto se centrará em uma religião, o Islã e em uma de suas vertentes, o xiismo.
Nascido no século VII na península Árabe, as raízes do Islã encontram-se na cidade de
Meca atual Arábia Saudita no Oriente Médio. Uma tradição religiosa conhecida como árabe,
mas que abarca uma multiplicidade de etnias e povos o que lhe confere um status de
universal. Com um número de adeptos estimados em 1,5 bilhões, o Islã tem se tornado “a
denominação mais numerosa da Terra”. (PINTO, 2010, p.21).
45
18
Para os muçulmanos Deus é Uno e Único, diferente do Cristianismo onde Deus é Único e Trino. A proposta
da mensagem islâmica é restaurar o monoteísmo estrito que estivera presente nas tradições anteriores- judaísmo
e cristianismo. Nesse sentido é que se diz que o Islã é a última das Revelações e seu caráter não é o de exclusão
das tradições monoteístas, mas complementa-las. “A tradição muçulmana supõe que Allah revelou sua
mensagem através dos tempos a diferentes profetas e mensageiros, em diferentes línguas e épocas, e que a
revelação alcorânica, longe de instaurar um novo sistema ou anunciar uma nova mensagem, tem poder
restaurador que recolhe aquilo que foi apontado nos livros que lhe precederam, selando a mensagem divina e a
profecia.” (MONTENEGRO, 2000, p.28).
46
19
Considerado pelos muçulmanos como o Selo da profecia Muhammad Bin Abdullah Bin Abdul Mutalib Bin
Hachim Bin Abd Manaf Bin Kussay ou Maomé (em português) nasceu em 570 d.C. em Meca e foi o profeta da
religião do Islã além de líder político da comunidade que surgiu à partir de suas pregações. Faleceu em Medina
no ano 632 DEC (Depois da Era Comum). Após sua morte houve uma disputa interna a fim de nomearem seus
sucessores. Um grupo entendia que os descentes sanguíneos do Profeta deveriam ser os sucessores em
contrapartida outros entendiam que a escolha deveria ser de forma eletiva. O primeiro grupo que defendia a
sucessão familiar ficou conhecida como xiitas e os segundo, como sunitas, o maior grupo na disputa pela
sucessão.
47
questão, Montenegro (2001, p. 23-24 grifo nosso) pensa não ser possível falar de identidade
islâmica, pois,
[...] quando falamos de identidade estamos também falando de um conjunto de
comportamentos construídos teoricamente em relação dialógica com o
comportamentos construídos por algum “outro”. [...] Por isso, partimos do postulado
de que não há como considerar que exista como dado natural uma dada
identidade islâmica.
Se não se pode dizer “identidade islâmica” como uma unidade homogênea pode-se,
entretanto, dizer de elementos constituintes da tradição que são identificáveis e aplicáveis na
construção e vivencia da religião islâmica em contextos distintos. Uma vez identificados esses
elementos a identidade étnica religiosa é formada e reconhecida. Isso permite que o Islã seja
universal, no sentido de agregar distintas identidades e etnias em um mesmo ponto que se
fundamenta em uma mensagem única.
A compreensão de mensagem única relaciona-se com a mensagem em si, dada por
Allah ao Profeta Muhammad e ao que surge como comum em todas as vertentes: “1)
conceitualização da religião como Din ou sistema, 2) a crença no Islam como restaurador do
monoteísmo estrito, 3) a centralidade do Alcorão como texto sagrado, 4) a adesão aos
chamados pilares da fé e da prática”. (MONTENEGRO, 2000, p.29). Esses quatro elementos
formam a identidade étnica religiosa do Islã, através deles a fixação de uma identidade ocorre
e permite a sua transmissão da tradição.
Dentro desta perspectiva surge a indagação: o Islã, como sistema, fixa um tipo de
identidade? De que tipo? É possível pensar no Islã como uma religião que fixa e modela um
tipo de identidade sem anular a ideia de identidade como construção?
O Islã como religião é caracterizado pela crença em um Deus Único, Allah em árabe,
o qual enviou Sua mensagem à Terra através de Seu Arcanjo, Gabriel, que a revelou a um
homem, Muhammad a partir do ano 610 DEC (Depois da Era Comum)20. Considerado a
última mensagem de Deus aos povos e como mensagem de Deus, Sagrado, o Alcorão mudou para
sempre a história não somente dos povos daquela região, mas de toda a humanidade.
A importância do Alcorão encontra-se na sua capacidade de ser uma mensagem de
cunho transcendente e ao mesmo tempo imanente. “[...] o Alcorão tornou-se um dos
20
A revelação do Alcorão ou Corão, em língua árabe à Muhammad se deu em um espaço de 23 anos (de 610 à
623 DEC., ano em que o Profeta faleceu) e em lugares como Meca e Medina. As revelações eram transmitidas à
Muhammad através do Arcanjo Gabriel .Em principio, Muhammad revelou as visões e mensagem apenas a sua
família. Somente após o ano de 612, quando o Profeta recebe a ordem de Deus para anunciar, é que as
mensagens se tornam públicas.
48
principais elementos constitutivos da tradição islâmica, pois ele oferece categorias, normas e
valores religiosos, legais e morais, assim como paradigmas existenciais e comportamentais, e
metáforas ricas em significado”. (PINTO, 2010, p.53). Além do Alcorão alguns ditos do
Profeta (hadith) são aceitos pelos muçulmanos como normativos em complemento ao texto
corânico, mas a autoridade primeira é do Alcorão.
O Alcorão, com efeito, tal como se escreveu com real fundamento, contém nesse
sentido a formulação de uma visão ético-religiosa da qual se fazem descer os
princípios reguladores da vida social e política da comunidade, princípios
submetidos à prova já pelo Profeta no exercício do seu carisma. Princípios,e não
pormenorizadas análises de casuística de ordem jurídica. (PACE, 2005, p.64).
Para os seguidores do Islã a religião é mais que uma escolha de fé é um modo de vida.
Sobre os pilares da religião a vida é ordenada, as escolhas são designadas, as vivências são
estruturadas. A conversão ou reversão21 a essa fé, se dá através da crença em um só Deus que
é manifestada na declaração pública, a Shahada22 ou testemunho.
Seguir o Islã é ser identificado como muçulmano23. O muçulmano é aquele que se
entrega que submete sua vida aos preceitos e práticas desta religião que diz sobre uma
identidade e sobre uma forma de vida. “[...] ser muçulmano é conjunto de alma mais corpo,
isto implica na teoria e na prática é preciso acreditar na fé e nos cinco pilares da prática”.
(JIHAD apud FERREIRA, 2007, p.317). É ser entregue a Deus.
A submissão a Allah é a primeira prerrogativa aquele que segue o Islã, logo sua
construção identitária, tanto individual quanto social, será pautada neste preceito. “A crença
islâmica define-se por um sentido de relação que inclua o ser humano e seu Criador, além da
relação do ser humano consigo mesmo, do ser humano com seus semelhantes e destes com o
universo que os cerca.” (YASSIN, 2007, p.22).
21
O termo “reversão” carrega um dado interessante que o distingue do termo usual “conversão”. Normalmente o
ato de conversão é compreendido como um processo de “troca” de escolha por outro sistema de crença ou pela
filiação, quando não há ligação anterior com alguma outra. Diz-se que o indivíduo converteu à religião. A
palavra “reversão”, utilizada para designar a filiação de um indivíduo ao Islã tem a conotação de retorno a um
lugar de origem. Segundo Ferreira (2009, p.96) “O revertido é aquele que volta, retorna ao Islã, pois na crença
islâmica todos nascem muçulmanos, mas muitos se afastam. Esse retorno a Deus, portanto, é considerado uma
reversão.” O termo reversão é uma terminologia nativa; consegue abarcar toda complexidade do sentido que a
religião islâmica dá a esse processo de encontro ou retorno a Deus, sendo por isso uma terminologia preferida
para falar sobre o Islã, como pontua Ferreira (2009).
22
A Shahada “lā 'ilaha 'illāl-lāh an Muhammadur rasūlu llāhi – Não há divindade além de Allah e Muhammad é
Seu mensageiro” é o primeiro pilar da religião do Islã. Nesta frase encontram-se os dois pontos básicos da fé
islâmica: a unicidade e a crença em Muhammad como profeta e mensageiro de Deus.
23
Muslim (muçulmano) é uma palavra derivada do verbo salima-a (salãmah) (salãm) que entre seus significados
encontram-se o de: “estar em paz; entregar-se; tornar-se muçulmano” (NASR, 2007, p.130). O muçulmano então
é aquele que se entrega “[...] que se submete incondicionalmente a vontade divina, revelada por intermédio dos
profetas [...]” (KHALIL; NASSER FILHO, 2003, p.17). Uma submissão e entrega que terá como consequência a
paz em sua plenitude.
49
Essa capacidade de abarcar a vida como um todo caracteriza o Islã não apenas como
uma religião, mas um sistema que organiza e rege a vida. Montenegro (2000) diz que a ideia
de religião e fé, como geralmente se concebe a definição, não são identificáveis no Islã.
Segundo seus seguidores, essas categorias além de limitadas são vinculadas à cristandade. Ao
definir sua vivencia religiosa, os muçulmanos a descrevem como din (sistema), pois,
como DIN ou sistema, o Islam não se constitui como esfera separada da vida
humana, mas como sistema totalizante que implica cinco dimensões: econômica,
política, social, moral e penal. O sistema como um todo goza de uma série de
propriedades, a saber: universalidade, abrangência, completude, perfeição,
compreensibilidade, praticabilidade, e é ao mesmo tempo, considerada
intrinsecamente compatível com a lógica e a ciência. (MONTENEGRO, 2000, p27-.
28).
Percebe-se, desde o significado das palavras que sustenta o arcabouço da religião até
as práticas que constituem os pilares da fé24, que o Islã como um sistema religioso forja um
tipo de identidade onde a vida como um todo se submete aos seus preceitos: “ Deus está
presente onipresente na comunidade e não é tido como uma simples questão de crença
pessoal, como ocorre no Ocidente. As implicações disso são imensas.” (ALLEN, 2007, p.36).
A ideia de religião como sistema pode sugerir certo essencialismo, o que reduziria a
análise do fenômeno. Mesmo no caso do Islã, onde a religião e vista e compreendida como
sistema, há algo que move e se move, muda. Castro (2007) ajuda nessa compreensão ao
observar que além da identidade religiosa os indivíduos que se consideram muçulmanos
possuem outras identidades25 que se encontram na construção identitária religiosa.
Este é um ponto interessante: o Islã é um sistema que permite a construção de
identidades distintas e ao mesmo tempo consegue manter a sua identidade como sistema.
Pensar essa possibilidade para um sistema de fé que é vivido em sociedades complexas revela
um poder que desafia a proposta contemporânea da secularização. Não apenas a vida social se
submete aos preceitos no Islã, mas também, a subjetividade do indivíduo. O Islã é assim, um
sistema religioso e identitário.
24
Os cinco pilares do Islã são: Shahâdah (confissão de fé), a Salat (oração), Zakat (imposto/doação voluntária) ,
o Sawm ( o jejum no mês do Ramadan), o Hajj (peregrinação). Alguns autores como Peter Antes (2003) incluem
o jihad como um adendo aos pilares do Islã.
25
Gênero, classe, etnia, etc. são alguns dos exemplos dessas identidades que conferem a universalidade da
mensagem, e também a construção de identidades distintas fundamentadas sobre um único sistema.
50
Ao estudar o Islã, percebe-se que este apresenta pontos bem definidos em sua
construção que permite uma identificação digamos mais “universal”, mesmo quando esta se
encontra entre culturas distintas. A crença na unicidade de Deus, em Muhammad como o Selo
da profecia e o Alcorão como o livro Sagrado são pontos comuns que podem ser descritos
como aqueles que demarcam a identidade religiosa islâmica de forma universal. Independente
da vertente que se segue todo muçulmano crê nestes pontos.
Os ritos também são parte importante nesse processo da construção identitária. Além
da dimensão pedagógica o rito reatualiza o tempo mítico e assim faz a união entre os homens
e o transcendente novamente. Diariamente, o muçulmano reatualiza o tempo mítico: as
orações diárias são feitas direcionadas à Meca, o local sagrado; a língua árabe entra no
processo ritualístico como idioma sagrado no rito; o corpo se move em direções e formas
específicas. A vivencia do rito permite o fortalecimento individual da fé e o da comunhão
com o coletivo.
Assim, pode se dizer que os pontos que demarcam a unidade da identidade religioso
no Islã encontram-se centrados na base da crença, isto significa que, é possível se ter uma
identidade étnica, no que tange a cultura, e ao mesmo tempo uma identidade religiosa
islâmica universal26.
O Islã como um tipo de sistema molda um tipo de identidade que é religiosa e ao
mesmo tempo social. Mas como pensar essa identidade dentro da diversidade interpretativa?
Se o Islã, como sistema religioso consegue se manter e forjar uma identidade apesar da
26
A Ummah, que designa a sociedade muçulmana espalhada pelo mundo é um tipo de ideal que se apoia na ideia
de sobrepor a identidade religiosa sobre critérios étnicos ou nacionais. Este assunto será trabalhado no capítulo
seguinte.
51
diversidade étnica que o permeia, pode-se dizer o mesmo quando a questão da diferença está
na construção teológica e ideológica? As divisões internas contribuem para a riqueza da
pluralidade no sistema e o avanço da mensagem universal ou os divide, separa, estigmatiza?
Quando Maomé morreu, houve um momento de confusão entre seus seguidores. [...]
Havia três grupos principais entre os seguidores de Maomé: os primeiros
companheiros que haviam feito a hégira com ele, um grupo interligado por
endogamia; os homens importantes de Medina, que tinham feito a aliança com ele
lá; e os membros das principais famílias de Meca, basicamente conversão recente.
Numa reunião de íntimos colaboradores e líderes, escolheu-se um do primeiro grupo
como sucessor do Profeta (Khalifa, de onde a palavra “califa”): Abu Bakr, um
seguidor da primeira hora, cuja filha ‘A’isha era esposa de Maomé. (HOURANI,
2006, p.43).
Neste momento de divisões internas surgiram dois grandes grupos27 que passaram a
ser nomeados como sunitas (os que seguem a tradição, a sunna do Profeta) e xiitas (os do
partido de Ali ou seguidores da casa do Profeta). Segundo dados do site The Pew Forum on
Religion & Public Life o “mundo” muçulmano é hoje dividido em 10-13% de seguidores da
vertente xiita e 87-90% de sunitas. Entre os xiitas a maioria encontra-se em países como Irã,
Paquistão, Índia e Iraque.
Após três sucessões Ali ibn Abi Talib, o representante da corrente xia, primo e genro
do Profeta, assumiu o lugar de líder da comunidade muçulmana. Mas sua liderança não fora
longa, pois pouco tempo depois Ali morre assassinado por Najaf, um de seus seguidores, que
dissidente, forma o grupo dos Cariditas.
Com a morte de Ali a liderança retornou ao grupo sunita com o coraixita Mu’awiya,
porém, ainda havia o grupo dos partidários de Ali, os xias, que acreditavam que a sucessão
deveria ir para os filhos Hassan e Hussein. Mas assim como seu pai, Hassan foi assassinado e
Yazid filho de Mu’awiya assumiu a posição de califa da comunidade.
27
Dentro do Islã há outras divisões, mas neste estudo limita-se nas duas maiores – xiitas e sunitas – dando maior
atenção ao xiismo que fará parte das análises a serem apresentadas no último capítulo
52
A história dos xiitas é marcada por traição e martírio. Hussein, o filho caçula de Ali
assim como seu pai e irmão, fora assassinado por Yazid, filho de Mu’awiya. Símbolo da
resistência e do martírio, a morte de Hussein é lembrada todos os anos pelos xiitas em uma
cerimônia conhecida como Ashura28. Sua entrega em prol da justiça alimenta o ideal
revolucionário até os dias atuais.
Na visão xiita o líder da comunidade muçulmana é conhecido como Imã que além de
governante da comunidade tem a chave para interpretação do texto sagrado. O Imã é infalível
e sem pecado. É um escolhido por Deus e existe sempre um no mundo. Os sunitas, por sua
vez, acreditam que o líder, o califa, é um governante sujeito a lei e que pode ser destituído de
sua função caso contrarie a lei islâmica.
Além das divisões entre os grupos partidários, dentro dos grupos há outras divisões. O
xiismo, por exemplo, se divide em três vertentes: Duodécimos, Ismaelitas e Zaiditas .Os
primeiros acreditam que há doze Imãs infalíveis e estes seriam descendentes de Ali, o primo e
genro do Profeta Muhammad. Os Ismaelitas, que parece ter surgido como um movimento
secreto, acreditam que há sete Imãs em uma sucessão distinta da dos Duodécimos seguindo
Ism’ail ibn Já’far, filho do sexto Imã. Os Zaiditas, por sua vez seguem o quinto Imã.
A maior corrente é a dos Duodécimos. Para este grupo, de Ali ibn Abi Talib, saíram
doze Imãs os quais onze morreram martirizados e o último está oculto, mas voltará nos finais
28
Comemorado no décimo dia do mês de Muharram no calendário islâmico xiita, a celebração da Ashura tem
como objetivo relembrar o martírio do Imam Hussein em Karbala no ano 680. “[...] no mundo xiita existe uma
enorme variedade de formas de celebração da Ashura, o período de dez dias no início do ano lunar do calendário
islâmico que marca o martírio de Karbala [...]”. (PINTO, 2010, p.26).
53
dos tempos como mahdi29 . Esse será o momento em que um reino de justiça e felicidade
universal será inaugurado.
Dentro deste breve relato sobre os fatos que levaram as duas maiores divisões no Islã,
percebe-se que dentre todos, a morte de Hussein marcou de forma significativa a ideologia
dos partidários de Ali, os xias. O martírio em Karbala “[...] entrou na memória coletiva dos
xiitas como o episódio mítico de ruptura com os sunitas.” (PINTO, 2010, p.76).
Talvez pudesse ser colocado, sobre este fato, um tempo – antes e depois da morte de
Hussein – como um marcador de mudanças. As rupturas que Pinto (2010) descreve
contribuíram para o florescimento de duas identidades dentro de um mesmo sistema. Apesar
de serem tidos por alguns sunitas como hereges, os xiitas, mesmo sendo um grupo
minoritário, conseguiram desenvolver uma identidade própria, com ritos, doutrinas e
instituições distintas, sem, contudo, perder sua base referencial que os identificam como
muçulmanos, como seguidores do Islã.
Esses movimentos que ocorrem entre as vertentes, revelam que, a identidade religiosa
ao se fragmentar dentro de seu espaço constitutivo, recria-se em novas manifestações que a
identidade religiosa primeira permite. O xiismo e o sunismo demonstram isso: ao mesmo
tempo em que há elementos que os identificam e os colocam em uma classificação no social
como “muçulmanos” dentro de seu círculo de vivencia e manifestação há elementos que os
colocam em outros lugares, em outras referências.
Isso significa que não se pode dizer de uma “única” identidade religiosa islâmica, mas
variadas formas de manifestação da identidade islâmica que se converge em pontos centrais
da tradição.
Pode-se dizer que unidade e fragmentação aparecem como dos dois lados da mesma
moeda. De fato, o Islam como religião profundamente universal é um só e oscila na
tensão dessa unicidade e suas manifestações particulares. Assim, falar de
diversidade supõe, ao mesmo tempo, levar em consideração o aspecto unificado
desta religião. (MONTENEGRO, 2000, p.75).
29
Mahdi – “O Guiado”. Para os muçulmanos xiitas o mahdi oculto retornará e juntamente com Jesus – que para
os muçulmanos é um Profeta – livrará o mundo da injustiça e do erro.
54
nomeações das distintas identidades que surgem dentro do Islã são arbitrárias? Quem legitima
essas nomeações?
3. A NOMEAÇÃO DA IDENTIDADE
O capítulo que se segue tem como objetivo verificar como a nomeação advinda do
“outro” pode se tornar uma ação de dominação e poder através das imagens que o discurso
nominativo gera. Neste percurso estudar alguns tipos de categorização da identidade e os
contra-discursos gerados por essas categorizações será o caminho proposto para análise e
reflexão neste capítulo. Além disso, serão trabalhados os pontos que convergem na
identificação a partir do ideal da ummah como um catalizador de identidades religiosas
islâmicas distintas.
E Ele ensinou a Adão todos os nomes dos seres; em seguida, expô-los aos anjos e
disse: ‘Informai-Me dos nomes desses, se sois verídicos’. Disseram: ‘Glorificado
sejas! Não temos ciência outra senão a que nos ensinastes. Por certo, Tu és O
Onisciente, O Sábio.’ Ele disse: ‘Ó Adão! Informa-os de seus nomes. ’ E, quando
este os informou de seus nomes, Ele disse: ‘Não vos disse que, por certo, sei do
Invisível dos céus e da terra, e sei o que mostrais, e o que ocultáveis? [...] Depois
que formou da terra todos os animais do campo e todas as aves do céu, o Senhor
Deus os trouxe ao homem para ver como este lhes chamaria; e o nome que o
homem desse a cada ser vivo, esse seria o seu nome. (Surata Al-Baqarah 2 versos
31-33; Gênesis capítulo 2 versículo 19 grifo nosso)
poder a outro para nomear, o que pode ser entendido que, toda nomeação passa pela
autorização, pelo aval de alguém que controla e domina as categorias. Nasr (s/d, p.9-10 grifo
nosso) ao comentar sobre o trecho descrito no Alcorão, a Surata Al-Baqarah diz:
Somente ao homem foi conferida a faculdade de expressão oral; por isso, Deus
ensinou-lhe os nomes de todos os seres, com os quais pôde designá-los. Daí, o
homem passou a ter a chave do conhecimento e tornou-se a criatura superior ,
por excelência, acima de todas as criaturas de Deus, inclusive dos anjos.
Nas duas narrativas uma ação foi empregada: ensino através da apresentação das
coisas, do mundo. A partir destas imagens descritivas, pode se inferir que, a linguagem sobre
o mundo e suas coisas é algo aprendido. As narrativas sagradas mostram isso e os estudos
sobre a linguagem também. Segundo Foucault (1981, p.74-75 grifo nosso) a partir do século
XVII o signo deixa sua posição de algo dado e compreendido para entrar na categoria de certo
e provável, o que significa que para que o signo exista ele precisa passar pelo conhecimento.
Ele se constitui signo significado quando se torna conhecido.
É aqui que o saber rompe seu velho parentesco com a divinatio. Esta supunha
sempre signos que lhe eram anteriores: de sorte que o conhecimento se alojava
inteiramente na vaga de um signo descoberto, ou afirmado, ou secretamente
transmitido. Tinha por tarefa fazer o levantamento de uma linguagem prévia
distribuída por Deus no mundo; é nesse sentido que, por implicação essencial, ele
adivinhava, e adivinhava o divino. Doravante, é no interior do conhecimento que o
signo começará a significar: é dele que tirará a sua certeza ou sua probabilidade. E,
se Deus utiliza ainda signos para nos falar através da natureza, serve-se de nosso
conhecimento e dos laços que se estabelecem entre as impressões, para instaurar no
nosso espírito uma relação de significação.
Se o signo e seu significado são aprendidos, na cultura esse processo encontra seu
lugar. A linguagem, que se constitui de signos e símbolos, é construída culturalmente e por
isso sua compreensão primeira se dará pelos que a criaram revelando uma identificação e
identidade própria. Através da linguagem discursiva os signos passam a ter valor
representativo e normativo. “A linguagem é um aspecto da cultura que pode ser usado para
representar praticamente todo o conjunto da vida cultural, ainda que nesse processo as suas
formas convencionais devam permanecer distintas.” (WAGNER, 2010, p.181).
Nesta perspectiva, nomear pode ser tanto um ato legítimo quanto arbitrário. Percebe-se
a arbitrariedade quando ao usar um determinado signo para nomear reduz seu significado de
forma que anula suas múltiplas formas de compreensão. “[...] o arbitrário está na ‘discrição’, a
única a fundar a possibilidade da relação equacional do signo, de tal modo que: isto = isto, e
não significará mais nada.” (BAUDRILLARD, 1972, p.186).
56
Entre o signo e a coisa que ele significa existe um caminho que é percorrido pela
subjetividade, de quem utiliza o signo, e pela estrutura erguida sobre o significado pertencente
ao próprio signo. O que o signo carrega é parte do significado de uma realidade objetiva - o
signo não é a coisa, mas diz sobre a coisa -, logo, ao entrar na linguagem discursiva pode se
tornar arbitrário no momento em que o utiliza para significar uma coisa diferente do
fragmento objetivo que o signo carrega.
Desta forma, pode se dizer que as coisas e seus signos carregam uma dupla função: a
social, ligada a transmissão de um significado e a ideológica. A função ideológica pode ser
compreendida quando se usa um signo em detrimento de outro, basta pensar, por exemplo,
que as palavras historicamente foram construídas dentro de um contexto para nomear um fato
ocorrido, um reconhecimento de algo. Deslocar essa palavra para um novo fato pode ser
arbitrário, pois ao usá-la para este evento desconsidera-se a novidade do fenômeno no
presente e assim o generaliza a partir do fato ocorrido no passado.
Por outro lado, essa mesma ação pode levar o signo a uma metamorfose, ou seja, ao
colocar um significado distinto sobre o significante se dará uma nova análise reinventando
assim o signo. Em ambos os casos sempre se haverá o risco do arbitrário.
[...] ‘o que é arbitrário, é que tal signo, e não outro, seja aplicado a tal elemento da
realidade e não a outro. [...] Expulsar o arbitrário para fora do signo nunca é outra
coisa senão deslocar o problema, e julgar poder ‘ver-se livre dele’ é dar-lhe uma
solução que, longe de ser ‘provisória’ e metodológica, se arrisca fortemente a
reconduzir a eterna solução metafísica do problema. (BAUDRILLARD, 1972,
p.189).
Outra ação que requer cuidado é a de compreender o signo sobre ele mesmo.
Wittgenstein (1994, p.160) faz uma crítica sobre isso. Para ele a interpretação dos fenômenos
a partir do conceito das palavras é um ato vago, pois não passa pelo crivo do fenômeno
intrínseco no sentido da palavra. Agindo assim, “os nominalistas cometem o erro de
interpretar todas as palavras como nomes, portanto, de não descrever realmente o emprego,
mas sim de dar, por assim dizer uma indicação em papel de uma tal descrição”. Em outras
57
palavras, ao apenas ler o signo como nome retira-se o poder ideológico que se encontra
ligados a elas.
Todas estas reflexões que envolvem o signo faz surgir os seguintes questionamentos:
se a linguagem é uma construção, em que os signos são parte constituinte desta, seria possível
pensar na apreensão do símbolo linguístico como universal? Todos os signos podem ser
empregados conceitualmente da mesma forma para todos os grupos?
Said (2007, p.34) acredita que não. Para ele não há universalidade no conceito que
carrega o signo, mas uma dominação eurocêntrica sobre este.
Numa sociedade não totalitária, portanto, certas formas culturais predominam sobre
outras, assim como certas ideias são mais influentes que outras; a forma dessa
liderança cultural é o que Gramasci identificou como hegemonia, um conceito
indispensável para qualquer compreensão da vida cultural no Ocidente industrial. É
a hegemonia, ou antes o resultado da hegemonia cultural em ação, que dá ao
Orientalismo a durabilidade e a força de que tenho falado até o momento.” (SAID,
2007, p.34).
Neste sentido é possível pensar que alguns termos e conceitos serão arbitrariamente
deslocados em função de uma busca pela fixação hegemônica de uma ideia. Exemplo do que
se esta a dizer pode ser percebido na reflexão sobre a ideia do Orientalismo30 que Edward
Said (2007, p.52) trabalha em seu livro Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente.
Para ele os discursos produzidos sobre o chamado “Oriente”, que para Said (2007) também é
uma invenção, revelam que,
[...] sobre o discurso e o intercâmbio cultural dentro de uma cultura, que aquilo que
comumente circula não é a ‘verdade’, mas uma representação. Não precisa ser mais
uma vez demonstrado eu a própria língua é um sistema altamente organizado e
codificado que emprega muitos esquemas para expressar, indicar, trocar mensagens
e informações, representar e assim por diante. [...] .A exterioridade da representação
é sempre regida por alguma versão do truísmo de que , se o Oriente pudesse
representar a si mesmo, ele o faria; como não pode, a representação cumpre a tarefa
para o Ocidente e, faute de mieux, para o pobre Oriente.
30
Em síntese o Orientalismo é o modo como o ocidente compreende e descreve o oriente. Essa compreensão
leva a uma imagem fragmentada e propensa a criação de estereótipos. E.Said (2007, p.115) é um dos críticos
desse movimento. Para ele, o orientalismo “[...] é o termo genérico que tenho empregado para descrever a
abordagem ocidental do Oriente; Orientalismo é a disciplina pela qual o Oriente era (e é) abordado de maneira
sistemática, como um tópico de erudição, descoberta e prática. Mas, além disso, tenho usado a palavra para
designar o conjunto de sonhos, imagens e vocabulários disponíveis para quem tenta falar o que existe a leste da
linha divisória.”
58
indexação e armazenamento mediante a qual o nomeante apenas tem que acender ao ficheiro
da sua memória para buscar o nome certo para personagem que pretende nomear.” (PINTO,
2002, p.83). A linguagem desta forma, diz sobre o mundo, diz sobre o outro, diz sobre a
identidade, mas não é o outro, não é o mundo, não é a identidade a qual se nomeia. Na busca
pela compreensão da(s) identidade(s) “[...] somos sempre o outro de alguém, o outro de um
outro”. (AGIER, 2001, p.9).
Compreender esta lacuna que ocorre na linguagem é fundamental, pois neste percurso
que envolve conhecimento e fixação de conceitos é possível se desfazer os equívocos
produzidos pela linguagem ao se nomear, categorizar. No caso do Islã, onde se encontra o
cerne desta investigação, as imagens que se criaram através da linguagem sobre esta religião
demarcam não apenas uma ideia sobre, mas o objetivo pelo qual tal a ideia sobre este foi
concebida.
A ação repetitiva da ideia fixa assim, o conceito e no caso do Islã, não é difícil
perceber isso. Além da análise linguística a história ajuda a verificar essas construções, ideias
sobre o Islã, que com o tempo foram fixadas através do discurso linguístico. Ao se dizer O
Oriente e o Ocidente uma imagem já começa a surgir: os árabes muçulmanos e “eles”; uma
demarcação de identidades e diferenças dentro de uma disputa de poder ideológico e material.
Assim, tanto quanto o próprio Ocidente, o Oriente é uma ideia que em uma história
e uma tradição de pensamento, um imaginário e um vocabulário que lhe deram
realidade e presença no e para o Ocidente. As duas entidades geográficas, portanto,
sustentam e, em certa medida, refletem uma à outra. (SAID, 2007, p. 31).
Mas seria ingenuidade pensar que o fixar de uma ideia não encontra a resistência de
quem o recebe. Se, na nomeação surge uma ideia sobre o “outro” e esta ideia, uma vez fixada,
59
gera uma imagem identitária e possível pensar que neste momento ocorre “[...] um problema
de ajuste, simultaneamente social na sua definição e individual em sua experiência”. (AGIER,
2001, p.10).
Said (2007, p. 25) parece compreender que esta demarcação sobre o outro surge de
forma agressiva e com o intuito de descaracterizar as diferenças e por isso, deve ser resistida
não necessariamente com o revisitar da tradição, mas através da força que está na diferença
que fundamenta as pessoas e os grupos a fim de que o ciclo de nomeação-dominação seja
desfeito.
Se o nome diz sobre a coisa, como diria Wittgenstein, então à compreensão do que
seja o Islã deve começar pelo seu nome, pela nomeação que deram a este sistema religioso e
ao mesmo tempo civilizatório.
Islã31 nome de uma das religiões que compõe a tríade monoteísta traz na sua estrutura
linguística a marca de sua busca: paz. Mas o que seria a paz no sentido em que busca o Islã e
porque sobre esta religião, a religião que traz na própria identificação o nome de “a religião da
paz”, da entrega, da obediência a Deus, seja categorizada por alguns como “a religião da
31
Da mesma raiz de Salam – que em árabe significa paz – Islã, segundo Nasr (2007, p.130) significa “Entrega;
obediência completa a Deus; a religião do Islã; Islamismo.” Sobre o que significa Islã, Khalil e Nasser Filho
(2003, p.20) explicam que “etimologicamente, nos idiomas semitas, como o árabe, um conjunto de palavras
nasce de uma raiz comum, no geral triliteral. Por exemplo, taslim, que significa “submissão” e salam, que
significa “pacificação” ou “paz”, são formadas pela raiz “s”, “l” e “m”. Analiticamente, o Islam é o amor, a
vontade, a orientação de Deus Altíssimo para a humanidade. [...] O Islam, é a mensagem destinada aos homens
para que conheçam a Deus, ao universo e a si mesmo. ”
60
guerra e do terror”? A compreensão destas e de outras perguntas que surgem sobre o Islã deve
passar pelo crivo de sua história e dos elementos que a constituem além de suas
especificidades culturais.
O Islã, como as demais religiões monoteístas funda-se na doutrina da revelação a qual
Deus, entre os anos de 610 a 623 DEC ( Depois da Era Comum) reafirmou sua mensagem a
humanidade através seu Profeta Muhammad.
A partir desta época, Maomé começou a comunicar àqueles que o seguiam uma
sucessão de mensagens que acreditava terem sido reveladas por um anjo de Deus. O
mundo ia acabar . Deus todo-poderoso, que criara os seres humanos, iria julgá-los a
todos; os prazeres do Céu e as dores do Inferno eram descritos em cores vívidas. Se,
durante a vida, se submetessem à Vontade de Deus, podiam confiar na misericórdia
d’Ele quando fossem a julgamento; e era Vontade de Deus que agora mostrassem
sua gratidão com a prece regular e outras observâncias, e com benevolência e
contenção sexual. O nome dado a Deus era “Alá”, já em uso para um dos deuses
locais ( e hoje usado por judeus e cristãos de língua árabe como o nome de Deus).
Os que se submeterem à Vontade d’Ele acabaram tornando-se conhecidos como
muçulmanos; o nome da religião, Islã, deriva do mesmo radical linguístico.
(HOURANI, 2006, p.36).
32
A tradição (turãth em árabe) é compreendida como aquilo que permanece sem alteração. Abed al-Jabri (1999,
p.13) traduz esse temo como “[...] na consciência árabe, o turãth não é apenas uma ‘coleção de rastros do
passado’ mas antes um todo cultural que compreende ‘uma fé, uma Lei, uma língua, uma literatura, uma razão,
uma mentalidade, um apego ao passado, uma projeção para futuro, etc’. o turãth não é a herança de um pai
morto para o filho, mas sim um pai sempre presente, vivo no filho. Todo avanço, toda superação deve, pois, ser
precedida de um trabalho de exumação dessa presença latente, para alcançá-la sob uma forma nova enquanto
agentes e não mais enquanto pacientes.” É preciso pontuar que a crítica que Mohammed Abed al-Jabri (1999)
faz está relacionada ao pensamento árabe e não ao pensamento islâmico como um todo. Sua crítica é importante
pois o Islã nasce dentro de um pensamento e tradição árabe e com o tempo se reinventa em outras tradições, algo
que será trabalhado nas páginas seguintes.
62
Eis a relação e o poder que a nomeação gera sobre o outro. Mesmo sendo às vezes,
uma imagem arbitrária esta só existe porque há relação entre o que nomeia e o nomeado; a
identificação passa a existir porque o que recebe se identifica e ao se identificar traz para si
todo o arsenal de conceitos que o outro impôs sobre ele. E um dos motivos, no caso do
Oriente e Ocidente talvez esteja no fato de que “as relações culturais, materiais e intelectuais
entre a Europa e o Oriente passaram por inúmeras fases, mas em geral foi o Ocidente que se
moveu para o Oriente, e não vice-versa.” (SAID, 2007, p.115).
Seguindo esses pressupostos, de como se dá a nomeação e porque se dá, poderia se
dizer que a história já está fechada e acabada e a resistência sobre a dominação que se faz
através do discurso já não tem razão de ser. Mas, a mesma história que revela uma
complacência do nomeado diante do nomeador diz também que “ [...] a história é feita por
homens e mulheres, e do mesmo modo ela também pode ser desfeita e reescrita, sempre com
vários silêncios e elisões, sempre com formas impostas e desfiguradamentos tolerados, de
modo que o ‘nosso’ Leste, o ‘nosso’ Oriente possa ser redigido e possuído por ‘nós’”. (SAID,
2007, p.14). Isso se torna possível porque há o encontro das diferenças.
A nomeação sobre o outro pode gerar não apenas pré-conceito, mas também estigmas;
uma ação ligada diretamente ao reducionismo e generalização da ideia sobre o outro. As
imagens criadas pelo discurso fixam uma ideia e aprisionam assim a identidade sob um
conceito. E como se livrar desse reducionismo? Quais as consequências deste? De que forma
pode se livrar destas prisões conceituais?
63
A ideia de Agier (2001) baseia-se na dinâmica das relações sociais que ocorre em um
movimento de troca constante envolvendo elementos da tradição e da realidade. Nesse
contexto, a tradição não se perde, ela se encontra ainda lá, resguardada na memória cultural
aguardando o momento em que seja necessária sua manifestação. Desta forma, pode se dizer
que a manifestação da tradição será situacional e seletiva.
A complexidade crescente das realidades locais torna mais necessário do que nunca
a abordagem situacional das culturas e das identidades como um instrumento de
compreensão das lógicas observadas diretamente, e também como um princípio de
vigilância antiexótica da antropologia. A atenção principal do observador deve se
colocar antes sobre as interações e as situações reais nas quais os atores se engajam,
do que nas representações formuladas a priori das culturas, tradições ou figuras
ancestrais em nome das quais se supõe que eles agem. É a partir dos contextos e das
questões em jogo nas situações de interação que a memória é solicitada
33
A tradição neste contexto remete a ideia descrita na nota 32 página 61.
64
Nas cidades este fenômeno é algo real e próprio de um tempo onde às mudanças
contextuais aliadas as remoções das fronteiras – territoriais ou não – requer dos sujeitos não
apenas adaptação mas também (re) construções. Não é difícil perceber isso: nos outdoors, nas
marcas, nos produtos expostos nas prateleiras, nos canais pagos da TV uma mistura de cores,
de formas, de idiomas, de etnias trafegam de um lado ao outro do planeta. Não se pode mais
dizer quem se é pelo fenótipo. Se outrora a língua era um diferencial hoje se fala, muitas
vezes melhor, o idioma estrangeiro que o nativo. E assim as identidades vão se revelando
múltiplas facetas em trânsito.
Esta forma de relacionar vida e tradição, que parece ser uma resposta apropriada a
modernidade, abre precedente para as seguintes questões: a tradição, como responde a essas
mudanças que, conforme descrita por Agier (2001), parecem ser algo dinâmico e constante?
Quais as consequências para a tradição e que papel lhe é legado dentro do fenômeno de
transformação cultural?
Para Pierucci (1999, p.151) “[...] quem diz tradição, diz passado e diz também
costume, particularidade, saber local. Diz cultura. Diz diferença cultural.” Todos esses
elementos estão ligados a transmissão que se dá através dos indivíduos que vivenciam as
transformações da cultura. As tradições são específicas, logo em uma sociedade complexa
haveria várias delas.
A permanência de uma tradição se dá pela manutenção do grupo que a vive. Logo, ao
pensar que são esses indivíduos que vivem a metamorfose identitária os responsáveis pela
transmissão as novas gerações, torna-se mais fácil a compreensão sobre a modificação, o
delinear da cultura através das identidades que perpassam por ela.
como uma reinterpretação da tradição e não uma fixação da tradição. Os movimentos são
distintos, mas possuem algo em comum: a tentativa de perpetuar a tradição. Fixando ou
reinterpretando sempre haverá uma manutenção desta.
34
Paul Hilu (2001) coloca como exemplo dessa variação do ser muçulmano a prática do sufismo. Em algumas
regiões essa prática é proibida -Arábia Saudita é um desses lugares. Na Síria é o contrário, o sufismo está ligado
à prática e entendimento do Islã. Ou seja, a própria vivencia da fé islâmica passa por adaptações e o “ser
muçulmano” se adéqua a elas.
66
Mas se o Islã é heterogêneo em sua forma e manifestação porque para alguns ele
parece refletir algo de hegemônico? O que há no Islã que o remete a ideia de homogeneidade?
Talvez a resposta para estas perguntas esteja na compreensão de alguns elementos que se
repetem no Islã. Quando se pensa na questão do uso da língua árabe como guardiã da
sacralidade textual, por exemplo, ou no uso de alguns símbolos, ou nos próprios ritos35, isso
parece fixar uma imagem sobre o Islã, mas ainda assim é uma fixação que olhando mais de
perto é flexível.
Esta dinâmica, que é própria das relações sociais, a de ver e descrever o outro a partir
de sua diferença, não seria problemático se esta fosse construída a partir da visão contextual e
temporal. O reducionismo da análise sobre o outro leva a um pré-conceito que tem como
consequência a estigmatização. Ao se dizer sobre o Islã muitos reduzem a análise do
fenômeno religioso a partir de um prisma e assim à visão que grande parte ainda carregará é
de um Islã que reflete uma identidade tribal, retrógrada.
Para Edward Said (2007) essa imagem construída sobre o Islã tem ligação direta com
os projetos colonizadores do passado que ainda reflete na contemporaneidade. O Islã sempre
esteve entre esses projetos no lugar de opositor, de resistente. Ao se dominar36 uma nação
majoritariamente islâmica uma das primeiras investidas era contra a religião
35
Um dos exemplos da flexibilidade ou adaptação do rito seria o da Ashura. Em alguns lugares como na Síria o
luto pela morte de Hussein é expresso apenas por choro dos participantes. Já entre os muçulmanos xiitas de
Trinidad y Tobago “[...] a Ashura tornou-se uma celebração festiva. Os tambores da procissão são
acompanhados de danças e consumo de bebidas alcoólicas por parte da população local.” (DEEB, KOROM,
NORTON, RICHARD apud PINTO, 2001, p.27).
36
Ainda hoje é possível perceber que o Islã é um incomodo a algumas nações. Para Said (2007) os motivos
podem ser encontrados em fatores como a luta entre árabes e o sionismo israelense, aliados ao distanciamento
cultural que reforçam os estereótipos e as percepções negativas sobre os árabes em grande parte do mundo
ocidental. Um exemplo das investidas contra a religião na contemporaneidade pode ser descrito nas ações
promovidas pelo xá Reza Pahlevi no Irã. “Em outubro de 1962, o gabinete do governo do xá aprovou um projeto
de lei para os conselhos das cidades e províncias. O projeto era laico e ‘pluralista’. O xá proibiu o uso do véu
pelas mulheres, fazendo muitas delas, desacostumadas com tal situação, vivessem confinadas em suas casas. A
censura do clero e a invasão a uma escola religiosa, onde setenta estudantes foram mortos pelas forças do
xá[...]”(COGGIOLA, 2008, p.45).
67
A questão se torna mais complexa quando se pensa que estes pré-conceitos atinge um
grupo como todo anulando assim a ideia de que a identidade, mesmo a identidade religiosa, é
uma construção local e temporal. A tradição assegura a transmissão para outras gerações desta
identidade, mas a apreensão e a resposta que cada geração dará ao “outro” sobre esta tradição
não se pode afirmar.
Sendo assim, como categorizar uma identidade se ela é forjada nos encontros de
distintas tradições e culturas? A tradição como parte da cultura de um povo, pode ser a
segurança da perpetuação de um tipo de identidade específica?
[...] significar duas coisas em particular. Primeiro “cultura” designa todas aquelas
práticas como artes de descrição, comunicação e representação, que têm relativa
autonomia perante os campos econômico, social e político, e que amiúde existem
sob formas estéticas, sendo o prazer um de seus principais objetivos. [...]. Em
segundo lugar, quase imperceptível, a cultura é um conceito que inclui um elemento
de elevação e refinamento, o reservatório do melhor de cada sociedade, no saber e
no pensamento [...].
O que se compreende desse processo é que nenhuma cultura é igual a outra; podem
possuir elementos constitutivos parecidos, próximos, mas cada cultura possui o seu próprio
reservatório, a sua maneira de pensar, construir significados, aprender, compreender. Essas
68
[...] etnicidade é melhor entendida como uma questão de organização social, e [...]
não há uma relação simples entre pertencer a um grupo étnico e a distribuição de
itens culturais entre populações. Normalmente, o pertencimento a um grupo étnico,
do ponto de vista da identidade social, poderia ser uma coisa ou outra; estar dentro
ou estar fora. Nesse caso, o limite estaria claramente demarcado, envolvendo, na
maior parte das vezes, formas culturais selecionadas, dicotomicamente distribuídas e
compreendidas como emblemáticas da condição de membro do grupo. Mas é
importante perceber que nem todas as distribuições de cultura entre pessoas e
relações têm de seguir as mesmas linhas. (HANNERZ, 1997, p.15).
Pensando na cultura islâmica pontua-se que esta, desde sua origem, conseguiu manter-
se presente, no meio de outras culturas, através de aspectos como a arquitetura, a língua, os
ritos e mitos nos mais diversos espaços sociais e geográficos: uma mesquita nos Estados
Unidos pode ser diferente de uma construída em Meca, mas ainda assim é capaz de carregar
traços da cultura que as distingue e as identificam em qualquer espaço do mundo. “A
grandeza, a simetria e a nobreza da arquitetura islâmica ajudam a criar um sentido de orgulho
e de identidade entre os muçulmanos.” (AHMED, 1992, p.240).
69
Para Berger e Zijderveld (2012, p.85) a pluralidade produz a modernidade e uma das
características desta é a fragmentação da ideia de pertença única em favor da unidade em
torno do discurso do pluralismo e da diversidade. Se por um lado esta favorece o diálogo entre
as múltiplas identidades por outro se caminha em direção ao relativismo e a perda do
significado da tradição. Afinal, no encontro das identidades sempre há o remodelar da cultura
e consequentemente da tradição.
Esta pluralidade que hoje se encontra presente, se não em todos, em quase todos os
Estados-nação faz surgir o multiculturalismo37, que para Gupta e Ferguson (2000, p.33) “é, ao
mesmo tempo, um débil reconhecimento do fato de que as culturas perderam suas amarras a
lugares definidos, e uma tentativa de subsumir essa pluralidade de culturas na moldura de uma
identidade nacional”.
Desta forma os lugares passam a ser, como as identidades, lugares imaginados: o
Marrocos dos livros não é o mesmo Marrocos do cotidiano de quem vive lá; nem a Índia é o
lugar onde vive somente indianos como muitas vezes os mapas geográficos, com sua
separação de territórios por cores ilusoriamente dão a ideia de fronteiras perfeitas. E, diante
desta dinâmica produzida pelo trânsito de identidades e culturas em espaços delimitados seria
possível encontrar uma identidade ou uma cultura que não fosse híbrida?
[...] um observador casual sabe que nem só americanos vivem nos EUA, e está claro
que a própria questão do que é um “americano verdadeiro” é controvertida. No
entanto, até mesmo os antropólogos ainda falam de “cultura americana”, sem clareza
do que isso significa, porque supomos uma associação natural de uma cultura (“a
cultura americana”), um povo (os “americanos”) e um lugar (os “Estados Unidos da
América”). Tanto o naturalismo etnológico como o nacional apresentam as
associações de povo e lugar como sólidas, criteriosas e pacíficas, quando são, na
verdade, contestadas, incertas e fluídas. (GUPTA; FERGAUSON, 2000, p.37-38).
37
Multiculturalismo pode ser entendido como o entrelaçamento de culturas dentro de um mesmo espaço
forjando assim, um tipo de identidade social. É a influência de várias culturas formando uma nova cultura.
Brasil, Estados Unidos entre outros são exemplos de espaços onde a cultura se constitui multicultural. Apesar de
se entrelaçarem sempre haverá nessa construção os elementos de subordinação e dominação que pode ser
percebido nas relações e suas consequências sobre as culturas nativas e culturas do colonizador.
70
Hannerz (1997, p.12) diz algo interessante: por serem processos as culturas
permanecem porque estão em movimento. Logo, pensar o hibridismo a partir desta análise
direciona a um ganho e não perda da tradição ou melhor a uma reinvenção da tradição a fim
de que ela se mantenha viva na tradição e como tradição. “E, para manter a cultura em
movimento, as pessoas, enquanto atores e redes de atores, têm de inventar cultura, refletir
sobre ela, fazer experiências com ela, recordá-la (ou armazená- la de alguma outra maneira),
discuti-la e transmiti-la.”
O mundo a cada dia parece realmente caminhar para ser um mundo sem fronteiras e
assim “à medida que as culturas nacionais tornam-se mais expostas a influências externas, é
difícil conservar as identidades culturais intactas ou impedir que elas se tornem enfraquecidas
através do bombardeamento e da infiltração cultural”. (HALL, 2003, p.74).
A crise de sentido se tornou um termo comum e a cada dia recorre-se às velhas
práticas, as velhas crenças que assim como a identidade e a cultura, passam pelo renovar
provenientes das novas releituras de mundo. Essa crise, proveniente da perda de credibilidade
no sistema moderno faz surgir um novo movimento que busca respostas na reconstrução da
identidade através de estados que sejam “[...] unificados tanto em termos étnicos quanto
religiosos, e criar entidades políticas em torno de identidades culturais homogêneas”. (HALL,
2003, p.93).
O Islã parece lutar bravamente em favor de sua cultura identitária religiosa e um dos
lugares da perpetuação de sua identidade são as mesquitas. A mesquita é mais que o local de
oração é o local onde política e vida social se encontram. Neste ambiente “[...] são
perpetuados os valores do costume, estabelecidas estratégias de acção (sic) e exploradas as
questões políticas e sociais da atualidade.” (AHMED, 1992, p.231).
Mas a mesquita pode ser um lugar de tensão, justamente pela questão identitária. A
presença de revertidos brasileiros é um fator de preocupação para ambos: descentes de árabes,
libaneses como para os nacionais.
A recente presença de brasileiros nas mesquitas que até então eram compostas
fundamentalmente por um grupo étnico que se vê e é visto como árabe, tem sido
sentida por este último como uma ameaça à tentativa de preservação cultural do
grupo. Conflitos ideológicos, tensões e negociações têm feito parte da realidade de
várias destas instituições. [...] O Islã nasceu entre os árabes e no Brasil é seguido
fundamentalmente por imigrantes e descendentes que se identificam com esta etnia,
atrelando sua origem étnica à tradição religiosa. [...] Os brasileiros convertidos
reconhecem sua ‘subordinação’ atual a uma estrutura religiosa marcada por aspectos
culturais árabes bastante manifestos, mas não perdem as esperanças de ver a religião
islâmica assumir uma face mais brasileiras no país, com o aumento do número de
conversões. (CASTRO, 2007, p.141-142).
71
[...] a noção que se depreende é que a tradição cultural serve, por assim dizer de
reservatório onde se irão buscar, à medida das necessidades no novo meio, traços
culturais isolados do todo, que servirão como sinais diacríticos para uma
identificação étnica. A tradição cultural seria, assim, seletivamente reconstruída, e
não uma instância determinante. (CARNEIRO, 2009, p.226).
não é tão fácil de se dizer onde e como começa ao contrário da segunda que já permite este
apontamento. O interessante nesta análise, que ele propõe, é que a tradição inventada tem seu
nascedouro em uma tradição genuína e dentro desta perspectiva poderia se dizer, então, que o
Islã é uma tradição do tipo inventada 38
[...] o Islam não é visto como começando a partir da revelação divina , mediada por
Muhammad, pois, como “sistema”, ele é perpétuo e inerente a tudo que é criado.
Essa naturalização da história obviamente tende a relativizar o surgimento histórico
do islamismo. [...] A tradição muçulmana supõe que Allah revelou sua mensagem
através dos tempos a diferentes profetas e mensageiros, em diferentes línguas e
épocas, e que a revelação alcorânica, longe de instaurar um novo sistema ou
anunciar uma nova mensagem, tem poder restaurador que recolhe aquilo que foi
apontado nos livros que lhe precederam, selando a mensagem divina e a profecia.
(MONTENEGRO, 2000, p.28).
A rigidez do elemento de coesão pode fixar a tradição, mas não garante sua
continuidade. É o que acontece entre mito e rito. Este permanece fixo porque está
38
O Islã é uma tradição que data do século VII que bebeu de fontes cristã e a judaica. Seus textos, mesmo
quando se utiliza o discurso da Revelação, da Sacralidade, são a continuidade dos escritos das citadas tradições e
suas práticas rituais revelam o mesmo. Logo, dizer que o Islã é uma tradição inventada significa que ele é uma
releitura das tradições monoteístas em um discurso de resistência à apostasia e idolatria dos crentes de sua época
para trazer uma reformulação da fé e dos valores morais e culturais.
39
O exemplo que Hobsbawn (1997, p.11) trabalha em seu livro A invenção das tradições elucida bem o que seja
costume. Ao fazer distinção entre o uso prático de um acessório e o seu uso dentro de uma imagem
interpretativa, o autor delimita o espaço do costume. “ O uso de bonés protetores quando se monta a cavalo tem
um sentido prático assim como o uso de capacete protetores [...]. Mas o uso de um certo tipo de boné em
conjunto com um casaco vermelho de caça tem um sentido completamente diferente. Senão, seria fácil modificar
o costume ‘tradicional’ dos caçadores de raposa como mudar o formato dos capacetes do Exército [...] caso o
novo formato garantisse maior proteção [...].”
73
40
Devido o crescente número de convertidos que não são falantes da língua árabe, algumas mesquitas já
traduzem seus sermões .A oração, porém, deve ser recitada em árabe por todos. A preservação da língua árabe
está ligada ao entendimento da sacralidade, uma ação que pode ser também, classificada como resistência pela
perpetuação da tradição.
74
Esse tipo de preservação molda uma identidade de resistência, que tem nos grupos
41
étnicos sua força de ação. Inseridas em espaços e contextos diferentes esses revelam a luta
não somente pela preservação de uma determinada tradição, mas acima de tudo de uma
ideologia que se pauta justamente na invariabilidade da tradição. Para Manuela Carneiro
(2009, p.239)
41
“[...] grupos étnicos são formas de organização que respondem às condições políticas e econômicas
contemporâneas e não vestígios de organizações passadas. Elas se servem do arsenal cultural não para conservá-
los como um todo [...] mas para selecionar traços que servirão de sinais diacríticos para se exibir a afiliação a um
grupo.” (CARNEIRO, 2009, p.231).
75
[...] o pensamento teórico numa dada sociedade e numa dada época constitui uma
unidade particular, dotada de sua armação própria, na qual se fundem, por assim
dizer, as diferentes correntes e tendências. Deste ponto de vista, o todo é que é
significativo, e não os elementos. [...] neste sentido que também podemos falar de
um pensamento árabe-islâmico-medieval apesar da aparente pluralidade, das
aparentes diferenças que o marcam. [...] A unidade de um pensamento, em nossa
perspectiva, não se define em razão do fato de seus autores pertencerem a uma
mesma comunidade (nacional, religiosa, linguística...), nem em razão da identidade
dos assuntos tratados, ou da inscrição desse pensamento num mesmo perímetro
espácio-temporal. A unidade do pensamento significa muito simples unidade da
problemática.
42
Unidade da problemática seria a identificação com um problema a partir das relações desenvolvidas com a
comunidade. Ao se identificarem como comunidade os indivíduos passam a dividir os mesmos problemas que
nesse caso se encontram entrelaçados e não isolados. Ao pensar a questão do “Renascimento árabe” (nahda) por
exemplo, “[...] o que preocupava os pensadores árabes da ‘época do Renascimento’ não era um problema
singular, mas sim um entrelaçamento de problemas [...] impossível de se resolver isoladamente ou mesmo
impossíveis de se analisar cada um por si, sem ligá-los aos outros (invasão européia, o despotismo turco, a
miséria, o analfabetismo, a educação, a língua, a condição feminina, a ausência de unidade nacional etc.) (ABED
AL-JABRI, 1999, p.66).
76
algo que se tornou possível por estar dentro de um sistema43 e não de uma hierarquia
eclesiástica.
Segundo Hourani (2006, p.37) a ideia de “comunidade” surge em Medina em um
momento de confronto entre poder político e defesa da fé, uma característica que
acompanhará posteriormente a história e desenvolvimento do Islã. Nesse momento de embate
ideológico e pragmático o sistema (din) ganha seus contornos finais e a mensagem profética o
tom da universalidade.
Por definição, todo muçulmano pertence à Ummah, onde quer que ele se encontre.
Desse modo, a noção de Ummah não se refere a uma comunidade específica, mas a
uma supracomunidade integrada por todos os muçulmanos. [...] Em abstrato, nessa
acepção, a comunidade deve-se fundamentar exclusivamente na crença religiosa.
Não obstante, nem todas as comunidades muçulmanas particulares se definem
apenas a partir do vínculo religioso, algumas destacam uma origem étnica comum,
como ser descendentes de árabes, ou possuir uma língua árabe comum.
(MONTENEGRO, 2000, p.41).
43
Relembrando o conceito trabalhando no capítulo anterior, o Islã é concebido como “sistema” (din) o que
significa que ser seguidor do Islã implica em submeter, entregar a vida sob a regência deste sistema que é eterno
vindo do próprio Deus (Allah). Tal sistema engloba as dimensões econômica, política, social, moral e penal. Ou
seja, toda a vida social passa pela regulação deste sistema (din).
44
Este é um aspecto importante e que fortalece a coesão do grupo, pois ao se pensar que o Islã é uma religião
com diversas interpretações, no ideal da ummah estas divergências interpretativas ficam em segundo plano, pois
há algo mais forte que os une: a crença religiosa. Por crença religiosa entende-se ser a crença: na unicidade de
Deus , em Muhammad como o Mensageiro de Deus e no dia do Juízo Final. (KHALIL; NASSER FILHO, 2003).
77
formaliza um pensamento, uma ideologia. Esta ação produzida por agentes individuais, com
impactos na coletividade, dão a forma singular a religião expressando uma interpretação da
realidade de forma distinta.
Ao pensar a ummah como um ideal de coletividade dentro do Islã esbarra-se em uma
questão: como é pensada a ummah, como coletividade muçulmana, entre grupos com
interpretações de cunho radicais e terroristas? Se a questão que os une, como grupo identitário
é o credo religioso e não a interpretação, todos os muçulmanos, independente de suas ações
que muitas vezes são frutos da interpretação, são membros da ummah universal45? Seria a
ummah na verdade um ideal utópico?
A resposta para as perguntas acima não é de toda simples, mas, podem ser construídas
a partir do pensamento sobre a ética. Segundo Houtart em seu livro Sociologia da Religião
(1994, p.33) um dos elementos “[...] dos sistemas religiosos é a ética. [...] A ética não é mais
do que o conjunto de comportamentos, tanto individual como social que pode ser muito
diferente de acordo com cada caso. [...]”. Sendo assim, antes de dizer que todos são
muçulmanos porque possuem um mesmo credo religioso é preciso também dizer que a crença
está ligada a prática, pois se o pensamento religioso no Islã é compreendido como sistema, as
práticas seriam a forma visível da crença.
No caso das práticas radicais e terroristas há certo consenso entre os muçulmanos de
que estas não são práticas aceitas e próprias do Islã46 - como se verá no tópico seguinte deste
estudo e no capítulo final onde haverá algumas entrevistas sobre esta temática. No conceito da
ummah é possível distinguir os grupos que são pertencentes e não pertencentes a comunidade
universal. Pois a ummah é entendida como:
45
Esta é uma pergunta importante de se fazer, pois a identidade coletiva de um grupo é criada a partir de sua
identificação entre os outros e os seus. Uma pergunta que talvez não se encontre a reposta de imediato, mas que
se tentará, neste texto, através do diálogo com alguns autores, esboçar uma ideia sobre esta pergunta a fim de
clarear e quem sabe encontrar uma resposta para as mesmas.
46
“Com respeito a alguns grupos sectários, como os talibans e o GIA (Grupo Islâmico Armado), da Argélia, é
importante esclarecer que não têm o reconhecimento da imensa maioria dos países islâmicos e de nenhum dos
grandes centros tradicionais de estudos [...].” (KHALIL; NASSER FILHO, 2003, p.103).
78
A ummah como uma comunidade imaginada se torna “real” pela força do discurso
apreendido no trânsito religioso que se manifesta seja nas distintas áreas fronteiriças de uma
nação, seja no encontro dos distintos fiéis em uma das maiores manifestações coletivas: a
peregrinação à Meca. Ali, no umbigo do mundo a identidade coletiva religiosa se faz presente
em meio às diferenças.
No ano 632 em sua última visita à Meca, Muhammad deixa uma mensagem que se
tornaria lema entre os seus “Sabei que todo muçulmano é irmão do outro, e que os
muçulmanos são irmãos” (HOURANI, 2006, p.39). A conduta e o zelo pela fé que o Profeta
demonstrara diante da comunidade organizada por ele serviu de exemplo para as gerações
79
posteriores tornando-se um ideal a ser alcançado. Mas apesar de terem em comum a crença
religiosa e no exemplo do Profeta o referencial de prática e fé, grupos sectários surgem em
meio ao Islã revelando uma distorção do ideal desta comunidade universal.
Diante destes fatos estaria na verdade a ummah vivenciando uma reestruturação de
seus ideais? Os distintos fenômenos que ocorrem em meio ao Islã como radicalismo,
resistência e os tantos revivalismos de cunho fundamentalista religioso seriam uma resposta à
secularização e a perda dos referencias primeiros que fundamentaram a ummah dos tempos do
Profeta? Ou seria apenas respostas possíveis a modernidade?
A busca pela unidade em meio à diversidade tem sido um dos caros anseios dos
grupos étnicos, das comunidades em geral. Diante do multiculturalismo e do pluralismo que
se manifesta em várias esferas ideológicas permanecer fiel aos princípios tem sido um desafio
em meio à modernidade que para Giddens (2002, p.11) reflete “[...] uma cultura do risco”.
Para entender, basta pensar que ao propor uma nova forma que se pauta na mobilidade
e mutabilidade das instituições “a modernidade reduz o risco geral de certas áreas e modos de
vida, mas ao mesmo tempo introduz novos parâmetros de riscos, pouco conhecidos ou
inteiramente desconhecidos em épocas anteriores” (GIDDENS, 2002, p.11) gerando assim,
um misto de certezas e incertezas.
Neste cenário onde os diversos atores revezam seus discursos a fim de adaptarem a
nova realidade, a ideia sobre o Sagrado passa também pela prova da adaptação que tem como
resultado o fortalecimento dos novos movimentos religiosos que se apresentam de forma
sincrética, em detrimento das grandes narrativas míticas. Os grandes deuses voltaram para sua
morada e deixam assim os pequenos deuses em seu lugar.
[...] a crença num Deus pessoal (com atributos do Deus judaico e cristão) vem
regularmente sofrendo uma erosão. O fato mais marcante não é o recuo do crer, mas
sua disseminação individualista, à margem dos grandes “códigos do crer” definidos
pelas instituições religiosas. Numa sociedade em que a autonomia dos indivíduos
afirma-se em todos os setores, a crença religiosa não constitui exceção. Os
80
47
“O enraizamento é talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida da alma humana. É uma das
mais difíceis de definir. O ser humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e natural na existência de
uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro. Participação
natural, isto é, que vem automaticamente do lugar, do nascimento, da profissão, do ambiente. Cada ser humano
precisa ter múltiplas raízes. Precisa receber quase que a totalidade de sua vida moral, intelectual, espiritual, por
intermédio dos meios de que faz parte naturalmente” (WEIL apud LOREZON, 2009, p.59).
81
O termo fundamentalismo tem sido vastamente utilizado nos últimos anos e muitas
vezes de maneira imprecisa, pois tem servido para justificar atitudes religiosas
fanáticas, um retorno à sociedade pré-moderna ou mesmo práticas violentas. É
imprescindível que esse termo seja usado no plural, porque existem diferentes
fundamentalismos. Se sua origem histórica se encontra no universo religioso, sua
abrangência na sociedade atual ultrapassa esse universo e ocupa o espaço da política
e da economia, carregando consigo um traço claramente ideológico. Ter consciência
de sua pluralidade é resguardar as várias especificidades que o fenômeno vem
produzindo.
48
As entrevistas analisadas no capítulo seguinte revelam que a ideia de fundamentalismo não é estranha entre os
muçulmanos e eles se identificam com ela, o que confirma a necessidade da contextualização e compreensão dos
distintos significados e aplicações que este termo permite fazer.
49
O fundamentalismo como uma reação que se caracteriza pelo fechamento em um modo de pensar único
reflete uma ideologia conservadora e se apresenta em distintas esferas da sociedade tais como a política, a
econômica e religiosa.
50
“Utilizando-se do método histórico-crítico os defensores da Teologia liberal, acreditavam que o cristianismo
deveria buscar os valores positivos da modernidade, como o conhecimento cientifico, o racionalismo moral e a
democracia política. Para esses teólogos a utilização de métodos como o histórico-crítico e as modernas ciências
humanas era necessário a fim de purificar o texto sagrado das mitologias que sedimentavam com o tempo no
texto; para os teólogos conservadores essa ação alteraria a integridade da verdade do escrito por isso se opunham
a tais métodos”.(PRADO, 2010, p.1164).
82
Pace e Stefani (2002, p.36) chama à atenção para um novo tipo de fundamentalismo
ou neo-fundamentalismo que faria ponte entre a questão religiosa e política com sua atenção
voltada para a questão moral apresentando-se assim,
[...] não só como um movimento de tipo religioso, mas também, como verdadeiro
sujeito político cuja intenção é reagir contra a presumível perda de valores da
sociedade [...] contra a degeneração da democracia, inquinada pela tolerância laxista
da moralidade, pela fragilização do papel tradicional da família [...]. (PACE;
STEFANI, 2002, p.36)
Trazendo a análise do termo para a tradição islâmica pode-se dizer que não é um
termo de todo incorreto, pois além de estar ligado ao literalismo tem ligação com a atuação
política, algo muito presente principalmente no Islã de vertente xiita. Para Fabio Bacila (2011,
p.114) o “[...] fundamentalismo islâmico, surgiu em oposição à influência modernizante e
ocidentalizante difundida a partir do imperialismo europeu no século XIX, assumindo a forma
de resistência cultural”.
A leitura sem contextualização é uma característica dos fundamentalistas. No caso dos
textos Sagrados árabe esse tipo de leitura influenciara não somente a apreensão do texto mas
também a maneira como a tradição será vivida. Assim, o texto atua como regulador da vida e
da razão.
Essa língua, que permaneceu a mesma durante mais de catorze séculos forja a
cultura e o pensamento sem ser, em contrapartida, forjada por eles. Assim, ela
permanece o elemento mais enraizado na tradição e na autenticidade. Daí seu caráter
sacral. Porque exerce sobre ele um domínio sacral e porque faz parte de seus tabus, a
língua absorve o leitor. Por isso, adulto, quando ler um texto nessa língua, ele terá
mais a língua do que o texto. (p57)
51
Segundo Pierucci (1999, p.177-178) o termo fundamentalismo começou a ser aplicado ao Islã em 1979 com a
Revolução Iraniana. “A confusão terminológica veio a tona quando o aiatolá Khomeini derrubou o Xá. [...] Para
desafio das classificações correntes na mídia e nas ciências sociais, o clero tomara poder político central de um
país estratégico do Oriente Médio, e além disto, para apertar ainda mais na peculiaridade, eram clérigos.
intransigentes [...] as categorias ocidentais correntes no comentário político não conseguiam dizer bem o que era
aquilo que a muitos de nós parecia um enorme retrocesso”. A demarcação do 11 de setembro no presente texto
não está ligada ao deslocamento do termo para o Islã mas ao crescimento de aplicação nesta religião.
83
52
Intregrismo foi um movimento que nascera em meio aos católicos e que não será tratado neste trabalho.
53
ayyatollah – “sinal de Deus”. No xiismo iraniano, titulo dos mais altos mujtahids (legista religioso que tem
autoridade para enunciar interpretações pessoais).
84
[...] resistência trata-se do conflito armado conduzido por nacionais contra uma força
de ocupação estrangeira. Tem por objetivo restabelecer as garantias de sobrevivência
da população, a integridade territorial, a unidade política, a soberania e/ou a
independência, total ou parcialmente comprometida pela intervenção externa.
[...] em termos práticos, terrorismo constitui, tão somente, qualquer forma sub-
reptícia de intimidação psicológica. [...] o Oxford English Dictionary define
terrorista como ‘quem quer que tente impor um sistema de intimidação coercitiva’.
Todavia, esse ‘conceito’ é politicamente inconveniente e juridicamente inútil, pois
amplia de forma irrestrita o corpo de ações e atores passíveis de serem terroristas.
Muitos autores já reconhecem que a busca por um conceito formal de terrorismo não
pode se restringir ao dogmatismo acadêmico, pois coloca em evidência uma série de
paradoxos. (VISACRO, 2009, p.223;282).
Apesar de admitir que o termo é abrangente, e por isso passível de se ocorrer erros em
seu uso, Visacro (2009) classifica de “terrorismo religioso” a Revolução Iraniana o que leva a
perguntar: quem tem as categorias analíticas próprias para categorizar como fundamentalista,
terrorista ou resistência uma ação? Até que ponto uma revolução realizada pelo povo pode ser
considerada um ato de terror? A Revolução Iraniana foi um ato de terror ou de resistência?
54
Alguns autores, como cita Castro (2007, p.103) , “defendem o uso do conceito ‘Political Islam’ no lugar do
termo ‘fundamentalismo islâmico’[...] ”O motivo da mudança do termo estaria na fragilidade que o mesmo
carrega no que tange a significação e aplicação.
55
Por resistente entende-se ser todo aquele que dentro de seu estado nacional luta pela libertação da opressão de
governos internos ou externos. Sua atuação limita-se ao território de origem. Os alvos nunca são civis. Os
terroristas, por sua vez, agem em lugares distintos e seus alvos são aleatórios: civis, crianças, soldados todos são
inimigos de uma causa pouco clara e compreendida. Esta classificação é presente nos discursos dos muçulmanos
entrevistados para este trabalho e parece ter legitimidade quando se pensa que não há consenso na definição
internacional sobre o termo refletindo assim, na classificação ou não destes grupos por outras nações. Por
exemplo, o grupo Hezbollah é classificado como terrorista pelos EUA e Canadá, mas não pela União Europeia.
Sobre essa informação ver: VONDRA (2009).
85
grande revolução nasceria de um campo que pensavam ter enfraquecido: “A aspiração por um
mundo melhor muda de tom e passa do domínio secular para o religioso.” (GILLES, 1991,
p.30).
E é nessa aspiração que um dos maiores marcos da história do século XX ocorrerá: a
56
Revolução Iraniana de 1979. Uma revolução que chegou a ser categorizada como
“islâmica57, mas que para autores como Pinto (2010, p.156) não é de todo correto denominar
assim, pois tal revolução “[...] não teve um caráter uniformemente islâmico, mas se constituiu
em uma série de revoltas contra o regime autoritário e corrupto do Xá [...] Os comunistas, os
camponeses e as minorias étnicas, como os curdos, tiveram um papel central na mobilização
revolucionária.”
Pensando sobre isso, talvez pudesse ser dito que o caráter islâmico estivesse na
linguagem comum – a linguagem religiosa islâmica - que conseguiu unir diferentes grupos
étnicos e vertentes religiosa em um mesmo ideal: a retirada do xá Mohammed Reza Pahlevi
do poder e o fim da interferência política e econômica dos EUA sobre a nação. Nesse busca, o
rememorar do martírio, um dos temas centrais na Teologia xiita, trouxe uma releitura dos
fatos e legitimaram ações e reações; a identificação com o martírio de Imam Hussein e seus
companheiros em Karbala58 gerava resistência e o sentimento de que luta era legítima e
clamava por justiça.
56
A escolha em analisar este movimento específico encontra-se no fato de que a partir dele o uso do termo
fundamentalismo fora aplicado ao Islã, como visto no tópico anterior.
57
“Ao qualificarmos de ‘iraniana’ uma revolução que o mundo acostumou-se, ideologicamente, a chamar de
‘islâmica’ (apresentando-a assim como um evento basicamente reacionário), sublinhamos suas múltiplas raízes
históricas e políticas, que o obscurantismo ‘racionalista’ pretende ocultar mediante uma simplificação absoluta,
posta hoje, a serviço de uma cruzada mundial contra o ‘terrorismo islâmico’, último álibi político-ideológico do
velho imperialismo capitalista”. (COGGIOLA, 2008,p.17-18).
58
Karbala no Iraque foi palco do martírio do Imam Hussein e seus 72 companheiros. Todos os anos esse martírio
é relembrado na Ashura.
86
sendo nem socialista, nem capitalista, mas revolução iraniana. (KHOMEINI, 2007) um
movimento, aos olhos do mundo ocidental, fadado a não sobreviver, pois “a própria noção de
uma revolução religiosa, como a de um governo islâmico moderno, parecia contradição em si
mesma”. (ARMSTRONG, 2005, p.354).
Entre dúvida e temor, os países ocidentais viram a vertente minoritária do Islã
conquistar o respeito e admiração entre os seus, fazendo com que a ideia do sucesso da
resistência xiita se estendesse a outras vertentes reavivando a luta pela libertação do
imperialismo e o fortalecimento da fé. “[...] a Revolução Iraniana foi o zênite do islã político,
pois pela primeira vez um movimento revolucionário tomou o poder e constituiu um Estado
islâmico”. (PINTO, 2010, p.158).
Dentro deste contexto de luta e resistência grupos de cunho nacionalista a religioso
ganhavam espaço em uma arena que tinha como pano de fundo o fim da guerra fria e a busca
por independência econômica e política. O discurso da reislamização, utilizado por alguns
destes grupos, em sua grande parte oriunda das correntes sunitas, vão se estruturando no
chamado ao jihad59, um conceito caro ao Islã e que vai se alterando em leituras propositais da
tradição.
A análise dos fenômenos que estavam a ocorrer neste período é sobre grupos que
professam uma mesma fé, o islamismo, e uma resposta possível para explicar o porque suas
ações diferem de grupo para grupo, apesar de professarem a mesma fé e terem como base de
regra e prática o mesmo texto Sagrado, encontra-se no tipo de leitura e quem faz esta leitura.
Algo extremamente importante para a compreensão e nomeação dos fenômenos.
Sobre esta questão, pode se dizer que na Revolução Iraniana o clero foi o responsável
pelo conclamar da população em uma leitura do tipo histórico-crítica da atual situação: se o
povo precisou ser liberto da opressão de Faraó no Egito os iranianos também tinham que fazer
o mesmo diante da opressão que estavam a viver sob o regime do xá. Já os demais grupos de
vertentes distintas a xiita ficavam por sua própria razão a interpretação e aplicação do texto, o
que pode explicar o porquê se conclama o jihad islâmico e não a uma revolução.
59
A palavra jihad traduzida geralmente como “guerra santa” tem como significado prático o esforço individual e
coletivo que o crente muçulmano deve empreitar em sua jornada como fiel. Esse esforço se divide em grande
(grande jihad) e pequeno (pequeno jihad) . O grande jihad pode ser compreendido como aquele que se tem
diariamente na busca por uma melhor observância da vida religiosa e como crente em Deus; e o pequeno jihad
seria aquele que se faz quando a ummah é ameçada. Contra a opressão e o opressor são convocados todos os
muçulmanos ao pequeno jihad e se preciso for a vida dar nesta busca pela justiça e integridade da comunidade
islâmica. O pequeno jihad ou a luta armada seria em último caso ou seja, quando a vida estivesse em jogo.
87
60
“Em outubro de 1925, Reza Khan deu um golpe militar e instaurou uma ditadura, fazendo com que o
parlamento o nomeasse xá da Pérsia, transformando-se no fundador de uma nova dinastia, a Pahlevi. Treinado
nas brigadas cossacas, Reza, à frente de um grupo de oficiais de sua confiança, passou a governar com mão-de-
ferro, como seu ídolo Kemál Ataturk, o modernizador da Turquia. Assim como o líder turco, reprimiu a religião
e estimulou o culto à sua personalidade. Aplicou sua vontade pelo terror exemplar, por castigos públicos, mas
por outro lado, diminuiu a influência estrangeira, proibindo a venda de terras a não-iranianos, e revogou a
concessão britânica para produzir moeda nacional”. (COGGIOLA, 2008, p.34).
88
O desafio no estudo sobre as diversas faces que um movimento religioso político pode
apresentar está em coloca-lo dentro de estruturas analítica que abarque não apenas o campo
religioso, mas o político e o cultural em um discurso que seja alter. Na atual conjuntura seria
um erro classificar todos os movimentos como únicos apenas porque seus integrantes se
identificam como aqueles que professam uma determinada fé.
Neste sentido, ao valorizar a análise parcial dos fatos pode se dizer que o
fundamentalismo esta não apenas no discurso religioso, mas no discurso acadêmico que tende
a generalizar determinados fenômenos a partir de uma leitura a-histórica da própria ciência,
pois, se os fenômenos mudam as categorias de análise devem acompanhar estas mudanças.
O que vale para tudo nesse mundo vale, também, para o objeto ‘religião’: o que já
não se move está morto. A história das religiões contém milhares de provas disso. O
‘-ismo’ de uma religião morta e enterrada em livros permanece inalterado até o fim
do mundo ou, pelo menos, enquanto houver bibliotecas. Livros sobre religiões vivas,
porém, mostram seu objeto como uma fotografia mostraria uma criança, adulto ou
idoso. Mostram a religião na perspectiva de um determinado autor. São
representações momentâneas, embora os momentos da vida de uma religião possam
demorar uma época ou ainda mais tempo. Religiões vivas mudam sem cessar. [...] o
equilíbrio entre passado e presente, dado pela mudança, é importante e mantém
vivas as religiões. (GRESCHAT, 2005, p.27).
61
Assim como ocorreu a Revolução Iraniana que buscava a saída de uma situação sociopolítica ocorreu em
outros pontos do mundo oriental, pequenas “revoluções” de cunho moral e político, como a Tabligh na Índia,
que traz uma nova configuração de revolução: a revolução dos grupos étnicos diaspóricos. Logo, dizer que todos
os fenômenos são iguais é de todo incorreto e perigoso. O Tabligh que “ [...] se desenvolveu pelo mundo, até se
tornar a organização islâmica transnacional mais importante, o que ocorreu na década de 80. [...] e movimentos
semelhantes respondem a uma necessidade de caráter social que está muito além das dimensões doutrinais.
Presidindo a estruturação comunitária dos grupos de “fiéis verdadeiros” que romperam com a sociedade local e
suas bases “infiéis”, ofereceram espaços protegidos aos indivíduos que não achavam mais suas próprias marcas,
seus sinais, nas reviravoltas dadas pelas sociedades marcadas pela erupção de solidariedade tradicionais. A
reislamização “por baixo” é antes, de tudo, uma maneira de reconstruir uma identidade num mundo que ficou
indecifrável, desestruturado e alienado.” (KEPEL, 1991, p.51).
89
Dentro desse breve relato sobre a Revolução o que se pode dizer é que essa colocou
em xeque pressupostos do iluminismo e do secularismo que diziam que a religião estava
fadada ao esquecimento ou na melhor das hipóteses a práticas cada vez mais individuais. E o
resultado foi um reavivalismo que fora visto em várias partes do mundo em distintas
ideologias e grupos o que gerou uma questão: Como classificar os grupos que se alimentaram
do ideal revolucionário islâmico? Quais foram as reais consequências das ações destes novos
movimentos? Qual a causa do terror?
A vitoriosa revolução xiita no Irã é mais que um ponto na história das revoluções, pois
ela marca, também, uma mudança significativa do Islã no cenário internacional. Os
movimentos de resistência que nasceram sob sua inspiração trouxeram a marca de uma
unidade identitária, o que contribuiu para a fixação do pensamento hegemônico sobre a
religião levando assim, a categorizações unilaterais.
É importante ressaltar, porém, que essa visualização ampliada do Islã pela
contemporaneidade, como movimento religioso, político e homogêneo, encobre uma
diversidade de realidades como, por exemplo, a de que “sob a aparente unidade da referência
religiosa, grupos sociais opostos formaram alianças temporárias e frágeis”. (KEPEL, 2003,
p.180).
Segundo Kepel (2003) no Oriente Médio o impacto maior da Revolução Iraniana fora
no Líbano, nação onde nos anos 80 em meio à invasão israelense vê surgir o movimento xiita
Hezbollah, movimento atuante e legitimado, ainda hoje, pela população libanesa, mas que
carrega, diante de alguns governos como o dos Estados Unidos e Israel , o status de grupo
terrorista62 e não de resistência, como seus simpatizantes e partidários assim o classificam.
Para além das fronteiras xiitas a Revolução Iraniana ficara como um ganho positivo
levando assim, vários militantes muçulmanos de distintas partes do mundo à Teerã a fim de
beberem na própria fonte. Mas se a Revolução despertava nos muçulmanos o sentimento de
luta por outro lado ela os afastava da unidade na ação, e um dos motivos encontrava-se no
simbolismo xiita que perpassava todo o movimento, algo difícil de ser assimilado pelos
grupos sunitas, apesar do esforço de alguns deles.
62
Lista dos grupos classificados como terroristas pelos Estados Unidos pode ser consulta em:
ORGANIZATIONS (2012).
90
63
Abdullah Azzam nasceu na Cisjordânia em 1941 e é considerado um dos principais reformadores do
pensamento jihadista de luta armada na contemporaneidade. Formou-se em Damasco nos estudos religiosos e
aos 18 anos uniu-se aos Irmãos Muçulmanos. Militante palestino participou ativamente na luta armada contra
Israel em 1967. Em 1970 rompeu com a OLP por considerar que o movimento estava a desviar do assunto
central, que seria a luta contra Israel, ao engajar na luta contra o Rei Hussein. Após sua saída da OLP retoma
seus estudos , obtém o doutorado e torna-se professor na Universidade do Rei Abd al-Aziz na Arábia Saudita
tendo como um de seus alunos o jovem Osama bin Laden. Sobre Azzam um dos ex-combatentes no Afeganistão
e que o conviveu com ele, Abdullah Anas (2011, p. 82-83) disse: “ [...] era um mujahid no verdadeiro sentido da
jihad , que buscava a morte em benefício de Deus. Sempre que um mártir era enterrado, ele chorava
profundamente e exclamava: “Isso é uma prova irrefutável de que ainda não tenho direito ao martírio”. [...]
Conheci muitas pessoas virtuosas desta ummah, e não exagero quando digo que nunca conheci um homem com
tais características e habilidade como as do xeque Azzam (que Deus tenha piedade de sua alma).”
64
“No jargão universitário, o termo salafista designa uma escola filosófica que surgiu na segunda metade do
século XIX e que pregava, em oposição à propagação das idéias (sic) europeias o retorno à tradição dos
ancestrais religiosos (salaf em árabe) . [...] essa escola tinha como objetivo exumar, na civilização muçulmana,
as raízes da modernidade; para tanto recorria a uma interpretação bastante livre das Escrituras Sagradas. Porém,
na acepção dos militantes, salafistas são aqueles que compreendem as injunções das Escrituras em seu sentido
literal, consolidado pela tradição, sendo esta representada, principalmente, pelo grande ulemá do século XIV, Ibn
Taimiyya, referência básica dos wahhabitas.” (KEPEL, 2003, p.322).
91
65
Nas palavras de Chomsky (2002, p.23) “[...] ninguém com um mínimo de racionalidade define os árabes
como ‘fundamentalistas. [...] os Estados Unidos e o Ocidente geralmente não tem objeções a religiões
fundamentalistas em si. Os EUA, na verdade, são uma das culturas mais extremamente fundamentalistas do
mundo; não o Estado, mas a cultura popular. No mundo islâmico, o Estado mais rigidamente fundamentalista,
depois do Governo Talibã, é a Árabia Saudita, um aliado dos EUA desde suas origens; o Talibã é, de fato, um
ramo da versão saudita do Islã”.
92
configurações básicas dos movimentos islâmicos que nascem neste tempo são de jovens
desfavorecidos, que iriam para as fileiras de combate, e intelectuais extremistas, os
responsáveis pela produção do discurso e a ideologia militante, leva a indagação de qual a
motivação real estava a guiar essas pessoas no engajamento em tais movimentos.
Talvez a resposta esteja na busca identitária que estes discursos pareciam
proporcionar. Participantes da primeira geração pós-colonialismo estes encontrariam no
discurso religioso a unidade identitária que o Estado, não conseguia lhes oferecer. Filhos de
um tempo onde a escolaridade lhes serviam apenas para aumentar as fileiras dos
desempregados assistiam o continuo desenvolvimento da elite que vivia sob as regalias de um
poder comprometido com governos infiéis.
[...] a jihad me ensinou que o Islã é como uma árvore que é nutrida apenas por
sangue. Se o suprimento de sangue secasse, as veias dessa religião [o Islã]
murchariam e o Islã se desintegraria. [...] a jihad é um componente essencial do
movimento islâmico contemporâneo, e o fogo da jihad só pode ser acendido pelo
movimento islâmico. [...] só pode compreender essa religião [o Islã] por meio da
jihad e o Islã só pode ser realizado por meio da jihad. (AZZAM, 2011, p.86-87).
Percebe-se que a utilização do texto Sagrado nos atos radicais surgem como
legitimador das ações. Contudo, é importante frisar que não é o texto que leva ao radicalismo,
mas o tipo de leitura ou interpretação aliado a uma ideologia política que nortearão as ações
66
“[...] os “salafistas jihadistas” têm um respeito extremo pelas Escrituras Sagradas, tomadas em seu sentido
literal, mas esse respeito é combinado à prioridade atribuída à Jihad, cujo primeiro alvo dever ser o inimigo da fé
por excelência, ou seja, a América.” (KEPEL, 2003, p.322).
93
que ocorrem em meio a grupos religiosos. O Islã como sistema (din) conduz o indivíduo em
toda sua maneira de viver e o texto Sagrado entra como o ordenador e direcionador, o que faz
compreender a importância do tipo de leitura que se faz.
destaque e repercussão o que leva a questionar: porque? qual o motivo? O que há de diferente
nesse ato de terror? O mundo não vivera outros atos parecidos?
Talvez Baudrillard ([20--], p.22) tenha razão quando diz sobre o 11 de setembro que
“a violência em si pode ser perfeitamente banal e inofensiva. Apenas a violência simbólica é
geradora de singularidade.” O que cai naquele momento é mais do que algumas centenas de
mortos, cai o símbolo do poder, da supremacia, da invencibilidade. A reflexão de Baudrillard
é complexa, uma vez que se estar a falar de vidas, de morte, mas ao pensar que tanto o
discurso que conclama a jihad quanto os alvos escolhidos possuem um teor simbólico maior
que a própria materialidade, entender-se-á que os símbolos também são selecionados com um
fim especifico.
a imagem que o mundo traz é de um grupo bárbaro que em nome de Deus não vê limites. Esta
foi a ideia que começou a circular entre muitos dos que não conheciam muito bem o Islã.
Mas e entre eles, entre os muçulmanos que estavam a ser apontados como a origem do
terror, como foi vivenciar estes fatos? O 11 de setembro de 2001 alterou realmente a visão
que o mundo tinha sobre eles? O que pensam e o que dizem os muçulmanos sobre o
fundamentalismo islâmico?
67
Em 1928 Hassan al-Banna fundou aIrmandade Muçulmana no Egito, um período em que a nação vivia sob
dependência colonial com a Inglaterra. Apesar de sua formação secular e moderna Banna rejeitava o modelo
político europeu que só trouxe dependência econômica para seu país. Sobre a Irmandade Armstrong diz que [...]
não era perfeita. Por causa de sua imensa popularidade junto às massas tendia a ser antiintelectual. [...] Banna
insistia na obediência absoluta e não gostava de delegar responsabilidades. Quando morreu não havia ninguém
preparado para substituí-lo, e infrutíferas lutas internas virtualmente destruíram a irmandade. Todavia o maior
problema foi o surgimento em 1943 de uma unidade terrorista denominada "Aparelho Secreto"(al jihaz al-sirri).
[...] considerando a reforma social e espiritual como a razão de ser da Sociedade, o grosso de seus integrantes
abominava o terrorismo do Aparelho. Mas todo movimento que começa matando em nome de Deus toma um
rumo niilista que nega os valores religiosos mais fundamentais. "(ARMSTRONG, 2010, p.254).
97
do que alguns especialistas dizem a luta forjada pelos fundamentalistas não é contra a cultura
ocidental e seus impactos na vida em sociedade; resumir a luta desses movimentos nesse
pressuposto é limitar a ação e encobrir a realidade dos fatos.
Mas contra o que luta os fundamentalistas afinal? A questão é ampla e não deve ser
generalizada, pois cada movimento se estrutura e reivindica algo dentro de seu contexto local
e político, mas pode-se dizer que os movimentos estavam inseridos em uma dinâmica entre
Estados imperialistas e governos locais envolvidos em políticas e arranjos ligados aos
interesses das elites e não da população. Nessa disputa a religião entra como ideologia tendo
no apego aos mitos sua arma de ataque ao pensamento e ação liberal.
vida própria dos tempos modernos, mas ao mesmo tempo utilizam-se das descobertas
tecnológicas desta que tanto criticam. Nesse momento os “agentes do Sagrado” entram como
os proclamadores da ideologia que utiliza dos elementos míticos na leitura racional do mundo
e de seus fatos68.
Os governos e seus aliados usarão deste discurso religioso que vem carregado de
ideologia para dizer que estes, ao propor um retorno na forma de governo, tendo a religião
como guia, estavam a impedir o progresso da nação. A luta se trava no âmbito discursivo
entre secularismo e religião que para eles “[...] era responsável pela “falsa consciência” que
retardava os árabes. Portanto, tinha de ser eliminada, assim como todos os outros empecilhos
ao progresso racional e científico”. (ARMSTRONG, 2001, p.268).
Percebe-se que ambos, secularistas e religiosos, usam o discurso unilateral a fim de
legitimar suas ideias. Não seriam ambos fundamentalistas? A simplificação dos fatos, ou
melhor, o olhar que se foca sob um aspecto do movimento denota um fechamento para a
realidade impedindo qualquer ação que pudesse equilibrar ou resolver o conflito.
68
As propostas e ações de Khomeini eram entendidas pelos ocidentais “[...] como um retrocesso à Idade Média,
mas na verdade boa parte de sua mensagem e de sua ideologia era moderna. Sua oposição ao imperialismo
ocidental e seu apoio aos palestinos, bem como o fato de endereçar-se diretamente ao povo, guardavam
semelhanças com outros movimentos do Terceiro Mundo nesta época.” (ARMSTRONG, 2001, p.283).
99
assegura em ideias como a de uma unidade fundamentada no ideal da ummah perfazia assim o
trajeto entre o mito e a realidade em um caminho que ora dialogava com a tradição ora com o
conhecimento moderno.
Armstrong (2001) diz que o uso do conceito de jihad como luta armada, legitimada na
vida do Profeta Muhammad ao organizar a primeira ummah é totalmente contrário ao que a
história relata69, o que leva a inferir que alguns movimentos ao usarem a tradição para
legitimarem seus atos, estão “lendo” a tradição a partir de uma ideologia própria e que pouco
ou nada responde efetivamente ao interesse da comunidade universal dos crentes. A
necessidade local toma o discurso do universal gerando assim reações radicais e intolerantes.
E é nesse espaço de conflito que as ideias vão ganhando corpo, e o espaço de atuação
se torna limitado, pois a proposta que nasce de uma mudança interna toma proporções
universais. O chamado em prol da ummah alcança as comunidades muçulmanas diaspóricas
em um discurso que se pauta no retorno as tradições. Como esse discurso, que é forjado em
locais onde a ideia de comunidade tem vínculos mais fortes e visíveis, chegam aos que se
encontra em diáspora? O discurso fundamentalista é capaz de gerar uma unidade fora de
contextos de origem?
69
“As biografias tradicionais deixam claro que, embora a primeira ummah tivesse de lutar para sobreviver,
Maomé conquistou a vitória não pela espada, e sim com a engenhosa tática da não-violência. O Alcorão condena
a guerra em geral e permite apenas a de autodefesa. Opõe-se firmemente ao uso da força em questões religiosas.
Tem uma visão inclusiva: reconhece a validade de toda religião corretamente orientada e enaltece todos os
grandes profetas do passado. Ao pregar à comunidade pela última vez, Maomé recomendou aos fiéis que
utilizassem a religião para compreender os outros, pois somos todos irmãos.” (ARMSTRONG, 2001, p.276).
100
Os lugares lembrados têm amiúde servido como âncoras simbólicas para gente
dispersa. Há muito que isso é verdade para os imigrantes, que [...] usam a memória
do lugar para construir imaginativamente seu novo mundo. Nesse sentido, a “terra
natal” permanece um dos símbolos unificadores mais poderosos para povos móveis
e deslocados, embora a relação com ela possa ser construída de modo diferente em
cenários diferentes. (GUPTA;FERGUSON, 2000, p.36).
Vivendo o mito da tradição local em espaços estrangeiros esse “corpo” formado por
membros de diversas línguas, etnias, religiões se deslocam além de suas fronteiras como se
ouvisse um chamado, o chamado da modernidade. Ela, com seu discurso global não apenas
desconfigura um retrato considerado perfeito, que é o das identidades nacionais imaginadas,
mas também gera novas e fortes diferenças dentro da diferença.
A identidade, assim vai se ressignificando em nuances que tendem a cada vez mais
refletir o novo, que faz ponte entre a tradição e a releitura da tradição. Assim, não se poderá
dizer, por exemplo, de um Islã homogêneo, mas de vários “Islãs” que se cruza em um
determinado território e que se identificam não somente pela tradição religiosa, mas acima de
tudo na exclusão ou inclusão que estes indivíduos vivenciarão nesses espaços. “É a carência
que define uma coletividade possível das diversas coletividades”. (PIERUCCI, 1991, p.158).
O sentimento de pertença se organiza não mais a partir da identificação nacional, mas
sim na identificação étnica que é o sentido de pertença independente da origem: é negro quem
se sente negro, é muçulmano quem se identifica como muçulmano. E desta forma, os grupos
se fortalecem e ao mesmo tempo precisam se organizar para que haja uma identificação
comum dentro das diferenças. “[...] existe uma bagagem cultural, mas ela deve ser sucinta:
não se levam para a diáspora todos os seus pertences. Manda-se buscar o que é operativo para
servir ao contraste. [...].” (CARNEIRO, 2009, p.238).
101
Para a mente sensata, a atual ascensão espetacular dos fundamentalismos não guarda
mistério. Está longe de ser intrigante ou inesperada. Feridos pela experiência do
abandono, homens e mulheres desta nossa época suspeitam ser peões no jogo de
alguém, desprotegidos dos movimentos feitos pelos grandes jogadores e facilmente
renegados e destinados à pilha de lixo quando estes acharem que eles não dão mais
lucros. Consciente ou subconscientemente, os homens e as mulheres de nossa época
são assombrados pelo espectro da exclusão [...]. (BAUMAN, 2005, p.53-54).
[...] uma identificação étnica nunca é auto-explicativa (sic): não podemos dar conta
do fato de dizermos de alguém que ele é X (ou do fato de alguém dizer ‘eu sou X’) .
[...] não se trata de saber quem são os X, mas saber quando, como e por que a
identificação ‘X’ é preferida. (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 1998, p.166-
167).
Pode-se inferir então, que ao mesmo tempo em que o discurso fundamentalista como
um tipo de força, os agrupa, também os fragmenta, pois, ao propor uma identificação a partir
de um ponto, no caso o discurso da exclusão, esses movimentos podem levar a
descaracterização da tradição quando suas ações geram a distorção da imagem e conceito do
Islã.
Não que seja possível fugir a isso, visto que, a construção identitária passa por essa
reformulação ou construção, mas o problema se encontra na maneira como essa construção
tende a ser erguida- radical ou não - e onde ela se manifesta.
A questão dos movimentos diaspóricos revela um desafio aos governos que se digladia
em duas frentes: o do número crescente de estrangeiros em seus territórios e a manutenção da
identidade estatal. E nesse embate os ajuntamentos em torno de um ideal de etnicidade serão
de suma importância para uma luta mais equilibrada.
102
A modernidade ao propor o fim das fronteiras parece não ter atentado para o fato de
que uma vez sem fronteiras haverá uma dificuldade em demarcações de identidades nacionais
possíveis isso ao se pensar que a desterritorialização é um fato que leva a perguntar: o que é
nacional? Quem são os nacionais? A segunda, terceira geração de imigrados são nacionais?
Que tipo de sentimento trazem esses? A qual imagem são remetidos quando se faz necessário
a busca por um elo cultural? E os locais, que vivem a chegada do estrangeiro em suas terras,
se tornam que tipo de nacionais?
Nesse sentido a modernidade contribui para essa busca nos fundamentos, algo que em
um primeiro momento soa um tanto superficial, ao se pensar que modernidade produz trocas e
trocas produzem novas identidades então porque o “culto” a tradição estaria em alta nos dias
atuais? Porque os discursos de cunho fundamentalistas parecem ser mais atrativos que o
discurso da modernidade? Onde a modernidade falhou?
[...] o discurso e a prática desses movimentos são portadores de um sentido; não são
produto de um desregramento da razão nem de uma manipulação por forças
obscuras, são o testemunho insubstituível de um mal social profundo que as nossas
categorias tradicionais de pensamento não permitem decifrar.
Isso leva a pensar que as dinâmicas pelas quais passam o mundo contemporâneo
exigem de seus concidadãos um enfrentamento das crises que se revelam não apenas nas
adaptações – culturais, econômicas, políticas – mas na própria consciência individual, e o
retorno ao discurso dos fundamentos os leva de encontro a uma imagem mais conhecida, sem
muitas surpresas, o que talvez seja um dos motivos para sua apreensão e aceitação.
Mas há um desafio maior a se pensar: se a modernidade pede um enfrentamento como
esse pode se dar em campos tão distintos, e, além disso, em buscas que parecem tão
paradoxais, como as da política e suas propostas modernas, e a religião e seu retorno à
tradição? O racionalismo proposto pela modernidade que se baseia em uma ética pautada pelo
104
efêmero conseguiria chegar de forma prática àqueles que ainda têm no discurso sobre o
Sagrado sua base de fé e prática social?
Outrora, vivendo sob as amarras de um discurso religioso que tinha no céu e inferno as
duas portas possíveis para a passagem deste para o outro e estava ligada a vida que se tinha
aqui, com o pensamento moderno o céu e o inferno tornaram-se alegorias para um pensar e
agir que tem como busca a realização aqui e agora. E assim, a mudança de pensamento levou
a quebra de paradigmas e com as quebras novas formas de se relacionar.
O pensamento moderno não trouxe mudanças apenas no campo filosófico e religioso,
mas intimamente fora sentido na economia. Em uma busca frenética por mercado e
consumidores o mundo passou a viver sob a égide do consumo e esse trouxe o aumento da
produção e também o aumento da exclusão. O preço pago por essa “mercadoria” foi à
ausência de um Estado em favor do mercado, seu grande cliente, o qual deve ser protegido.
Além disso, o chamado ao retorno pede também uma atualização do discurso, pois a
comunidade que a recebe já não é a primeva, mas uma comunidade que nasce em meio ao
novo. E é dentro desse desafio que, “o fundamentalismo religioso opera como uma espécie de
retorno do reprimido; uma repetição do recalcado pela cultura porque esta, não tendo sabido
como lidar com ele, não fez mais do que preparar sua repetição.” (CHAUÍ, 2004, p.152).
Quando Khomeini, por exemplo, conclamou a nação iraniana a lutar em prol da
libertação do jugo e das injustiças cometidas por um governo corrupto e infiel, ele buscou na
tradição o subsídio para legitimar a luta ao mesmo tempo em que negociava com os diversos
segmentos da sociedade70. Desta forma a figura da transcendência aliada a de um líder que se
reveste do discurso religioso, vai ganhando forma em um misto de realidade e misticismo que
reafirma a crença da eterna luta entre o bem e o mal e que seria vencida pelos mártires de
Deus.
A modernidade e seu discurso secular desencantou o mundo e ao desencantar deixou
uma lacuna que tem sido preenchida pela religião; religião que os intelectuais, as vozes
modernas anunciaram sua morte, prepararam seu enterro, mas que agora surpreende com seu
ressurgir não apenas no privado, mas também no público em forma de Estados islâmicos ou
movimentos que reivindicam uma maior participação desta no social.
70
“Essa vitória do discurso islâmico foi possível graças à notável capacidade de Khomeini para unificar os
diversos componentes, tanto religiosos quanto laicos, de um movimento que, inicialmente, fora impulsionado
pelo ódio ao xá e ao regime de governo, e no qual cada um poderia enquadrar seus fantasmas políticos
particulares, sem jamais se desiludido até a série de expurgos que se seguiu à tomada do poder. [...] no Irã
Khomeini deu atenção, desde o princípio, aos setores mais modernos e mais proeminentes da sociedade, os quais
inicialmente não o apoiavam: a mudança de orientação desses grupos teve papel decisivo na derrubada do xá. O
mesmo ocorreu, em outubro de 1978, no caso da greve dos trabalhadores do petróleo – uma classe que nem era
muito receptiva ao islamismo -, quando o regime imperial teve sua queda acelerada pelo corte de suas fontes de
renda.” (KEPEL, 2003, p.173).
106
A paz, ideal tão caro e necessário a humanidade tornou-se uma palavra de segunda
linha. Se outrora os movimentos pacifistas como os liderados por Martin Luther King ou
Mahatma Gandhi eram ouvidos e revistos, hoje somente o som de um fuzil é respeitado. O
enriquecimento de urânio para fins bélicos tornou-se assunto de pauta: a segurança hoje está
nas mãos da guerra, afinal “[...] a coerção funciona; os que empregam a força contra o
semelhante conseguem obediência e com isso, conquistam riquezas, bens materiais, repeito e
desfrute de prazeres negados aos menos poderosos.” (TILLY apud CHOMOSKY, 2006,
p.235-236). Quem não deseja ser invadido deve se preparar para a guerra.
71
Sobre o faturamento bélico ver: MEYER (2004).
107
Entrevistado 1:
O fundamentalismo a gente pode entender de duas maneiras: uma maneira é o que é
passado prá gente, ou seja, o que a gente enxerga, o que a gente assiste na televisão,
na mídia, nos noticiários e a outra maneira o fundamentalismo é digamos o retorno
ao fundamento ai você pode chamar o fundamento de doutrina, você pode chamar o
fundamento das bases, você pode chamar o fundamento de uma série de coisas.
Então tem essas duas visões. A visão passada pela mídia é o fundamentalismo ele é
radical e ele é cego essa outra visão de um retorno aos dogmas talvez ou fundamento
da religião pode ser algo conservador, pode ser algo muitas vezes progressista ou
seja contradizendo conservador, pode ser algo que leve ao radicalismo, pode ser algo
moderado então o fundamentalismo dentro dessa segunda concepção pode se moldar
de diversas formas. E da primeira visão a visão passada pela mídia de que é radical ,
109
cego ou uma digamos uma prática é mais digamos doutrinaria e fechada essa
concepção é mais clara . Então podemos entender dessas duas maneiras.73
Entrevistado 3:
O fundamentalismo filosófico eu acho que é uma coisa ótima. Mesmo com a
expressão hoje a palavra fundamentalismo algo que é entendido pelas pessoas como
coisa ruim, abominável. Se defender a minha pátria, defender a minha comunidade
isso for chamado terrorismo então existe um engano na denominação. [...] A grande
mídia tem um papel fundamental nisso. Porque se você quiser do ponto de vista
filosófico você tem que ser fundamentalista. Porque? Porque você tem que ir aos
fundamentos de uma coisa. Só que transferiram hoje a palavra fundamentalismo
hoje as pessoas jovens entendem fundamentalista como sinônimo de pessoa
extremada, pessoa irracional, pessoa que está indo aos extremos e de uma maneira
cega. Muitas vezes a pessoa não é fundamentalista, mas ela ouviu tanto a respeito
dela como sendo fundamentalista que ela acaba vendo ela uma imagem muito ruim.
Então eu acho que a mídia fez com que o fundamentalismo passasse a ser visto
principalmente o islâmico de uma maneira ruim. Enquanto ser fundamentalista é
uma maneira de você ir aos fundamentos da coisa, entender uma coisa com
profundidade.
Entrevistado 4:
A palavra fundamentalismo na verdade ela é muito mal usada, muito mal
interpretada muito mal conceituada se a gente for analisar sob este prisma que você
esta destacando ai o fundamentalismo não é ruim o fundamentalismo ele não é mal o
fundamentalismo é isso é conhecer os fundamentos. Eu não posso dizer que sou
marxista-leninista se eu não conheço os fundamentos da teoria marxista-lenista. Eu
não posso dizer que sou liberal se eu não conhecer os fundamentos da teoria liberal.
Entrevistado 5:
Fundamentalismo, intrinsecamente não é algo ruim, pelo contrário, é algo até
desejável eu só defendo um ponto de vista se eu defendo os fundamentos, a base
teórica daquilo que eu me proponho a defender. A palavra, o termo
fundamentalismo essencialmente quando é ligado aos muçulmanos ele acaba agindo
nesse sentido de estigmatizar, de chancelar, de rotular. O muçulmano não só é
fundamentalista, mas ele é radical, é intolerante. Eu acho que o grande perigo ai é a
intolerância. É o grande risco é a intolerância. A intolerância gera o extremismo. [...]
Então o grande perigo prá mim está nessas duas palavras, intolerância não eu não
aceito você porque é diferente e o extremismo, eu faço qualquer coisa para defender
meu ponto de vista [...].
Por serem seguidores de uma religião que se pauta em um livro Sagrado esta resposta
era a esperada, porém quando se pensa no contexto histórico do termo fundamentalismo
percebe-se que falta uma contextualização. A contextualização dita aqui vai além da origem
73
Conforme descrito no TCLE – Termo Consentimento Livre e Esclarecido – (anexo) aprovado pelo Comitê de
Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, os nomes dos entrevistados serão
omitidos e a identificação de cada entrevistado será por números . As entrevistas foram realizadas em fevereiro
de 2012 nas cidades de Foz do Iguaçu e Curitiba.
110
do termo, mas diz respeito, também a como este se tornou pejorativo logo no início 74 de seu
surgimento.
Como dito, para os muçulmanos entrevistados o termo não é considerado pejorativo,
porém, ao serem questionados se esse termo poderia ser aplicado aos seguidores do Islã nos
dias atuais a resposta foi a de que
Entrevistado 1:
Hoje não. Hoje não porque primeiro que o termo “fundamentalista” como eu disse
ele pode digamos ser traduzido ou pode significar diversas condutas, diversos
pensamentos , isso por um motivo. Segundo motivo é por essa digamos, esse
significado, essa concepção que a mídia tenta colocar . Então isso já está no
inconsciente das pessoas . Então você chamar alguém de fundamentalista primeiro
você corre no perigo de estar dizendo o fundamentalismo dito pela mídia. Segundo,
se você falar fundamentalismo, mas não nesse sentido você tem que falar que tipo de
fundamentalista que ele é? sendo que existe uma gama dentro dela. Então por
exemplo, tem pessoas hoje nos EUA que estão querendo voltar ao fundamento do
cristianismo prá diminuir com essa libertinagem ou prá resistir a essa libertinagem
que existe na sociedade americana de drogas e sexo e etc. etc. Essas pessoas podem
se dizer conservadoras, são fundamentalistas conservadoras agora outros digamos ai
nos viemos aqui para a América Latina podemos ver a Teologia da Libertação
querendo voltar ao fundamento, os princípios que Jesus dizia que era a luta por
justiça, por igualdade então nesse caso eles não são conservadores eles são
revolucionários num contexto principalmente de ditadura e de opressão e injustiça.
Então o fundamentalismo pode ser de vários tipos. Então primeiro se você chamar
de fundamentalista você tem que deixar claro que tipo de fundamentalista é e isso se
as outras pessoas já não entenderem o fundamentalismo divulgado pela mídia.
Entrevistado 2:
Essa palavra agora significa terrorismo infelizmente através de que? Através da
influência da mídia, o papel, a força maior agora mais forte que a economia, para
mim, a mídia modifica mentalidades, significa transforma um país; significa a
filosofia de um país para outra filosofia, de uma ideologia para outra ideologia
através da mídia. Através da propaganda, através dessas coisas. Por isso agora eu,
essa palavra fundamentalista, eu não gosto de ser chamado; agora é sinônimo de
terrorismo, infelizmente.
Entrevistado 3:
No sentido que hoje é entendido a palavra é ir a um extremo apenas e eu não posso
ir a um extremo eu preciso ir a um extremo a outro pra encontrar o termo médio. Se
o fundamentalismo for um fundamentalismo filosófico , ir ao fundamento de uma
coisa, então ele é muito bem vindo. Agora se for um fundamentalismo sem
74
Se no início os próprios criadores do termo orgulhavam-se desta nomeação, após o episódio que os levaria aos
tribunais, os fundamentalistas foram midiaticamente rotulados e desde então, termo tornou-se sinônimo de tudo
que seja contrário à modernidade e a evolução, além de pejorativo. “Depois do famoso julgamento de John
Scopes no tribunal de Dayton, Tenessee, em 1925, o nome ‘fundamentalismo’ iria passar de lisonja a ofensa. [...]
É que, catapultada pelos jornalistas a uma audiência em nível nacional na América dos anos 20, a querela anti-
evolucionista logo assumiu as dimensões de uma luta cultural entre ‘Deus e o macaco’. Entre a Bíblia e Darwin,
a ortodoxia e a evolução [...] o obscurantismo e o esclarecimento, o fanatismo e a lucidez, a ignorância e a
inteligência [...] Consequência não intencionada da agressiva militância fundamentalista durante os anos 20, o
nome maculou-se desde então. Sujou. E em razão desse efeito bumerangue, atualmente ‘é muito difícil que o
fundamentalista se auto-identifique (sic) por este termo”. (PIERUCCI, 1999, p.195-196).
111
sustentação nos devemos também abominar. Se você disser pra mim eu vou aos
fundamentos do Islã supõe este aspecto não há problema nenhum agora se você
dizer eu vou a um fundamentalismo ultrapassando os preceitos lógicos do Islã então
eu diria pra você, esse fundamento nos não queremos.
Interessante é que a não vinculação com o termo hoje esta mais ligada ao que a mídia
dissemina do que com o contexto da palavra, da origem, do que significa o termo. Na
entrevista ficou claro o entendimento de que, para eles, a mídia é a responsável pela distorção
deste, algo que Pierucci (1999) confirma ao narrar o momento em que o termo fora deslocado
para categorizar o movimento revolucionário que acontecia no Irã em 197975,Além disso, há
um entendimento de que a mídia contribui para o desvio do real problema Palestino quando
sugere que o conflito que ocorre naquela região é de cunho religioso.
Entrevistado 2:
Infelizmente eu choro por essa causa que também os cristãos do Oriente Médio vão
ser expulsos. Não por causa dos muçulmanos por causa de mídia que cria o conflito
entre as religiões [...] mídia ao invés de ajudar nessa convivência eles colocam
obstáculos. [...] A mídia coloca que só a religião islâmica surgiu através do sangue,
através da guerra. Nenhuma religião cria uma mente de guerra. Mas também
nenhum ser humano equilibrado aceita de ser humilhado, de ser também perseguido,
de ser também pisado. Também a defesa um direito de qualquer ser humano
Entrevistado 3:
Chegamos no ponto talvez mais delicado da atualidade. Não há dúvidas que hoje em
dia existe um movimento por parte da grande mídia no mundo de denegrir o Islã e
agredir o Islã verdadeiro. Então hoje você vê a Europa, os EUA e seus aliados
praticam uma terrível agressão quando dizem “terrorismo islâmico” e no Brasil
infelizmente não é diferente. A grande mídia que é as TVs, as grandes, eu diria
empresas, elas estão empenhadas nisso tanto é que se você assiste a uma reportagem
sobre alguma coisa no mundo árabe aqui no Brasil e assiste a mesma reportagem
num canal árabe a diferença é enorme.
Entrevistado 5:
Esse discurso ele vai contra a religião por quê? Porque os muçulmanos são muito
religiosos de uma forma geral esse ethos islâmico ainda permeia muito as sociedades
árabes e não árabes, as sociedades muçulmanas, as nações islâmicas [...] . Então
ataca-se a religião. Cria-se essa campanha midiática, essa simplificação do outro,
essa essencialização do outro, não, o árabe e é muçulmano e terrorista. Prá que? Prá
faça-se com os árabes o que os israelenses fazem com os palestinos! Se matam os
palestinos assim como quem pisa em uma barata. Porque? Porque os palestinos não
são seres humanos; e são terroristas; e são radicais; e são fundamentalistas. E são
não-pessoas. Então reduz a essência humana do outro. Prá que então na hora que os
comerciais mostrarem catástrofes ai as pessoas
75
Conforme descrito na nota 51 da página 82.
112
Entrevistado 1:
[...] além de religião ela é um modo de vida é um sistema social e individual. [...]
Acredito que ela se insira mais fortemente na conduta do ser humano, ou seja,
diariamente ela esta presente 24 horas por dia na vida dum muçulmano. [...], o
islamismo ele fornece a base prá um sistema político ideal, digamos assim.. Na
conduta do ser humano baseada no islamismo, de um muçulmano então, ela é
exatamente, ela se insere também a questão política. Que a política faz parte do
nosso dia a dia. Então, como estávamos comentando agora a pouco, que o Islã faz
parte de 24 horas de seu dia a dia, desde a maneira que você ora, que você come,
também na maneira de enxergar a política. Tem um dito do Imam Ali, que é o primo
do Profeta Mohammad, o primeiro Imam depois da morte do Profeta, primeiro líder
guia, ele disse que “aquele que comete injustiça e aquele que colabora com aquele
que comete injustiça e aquele que é omisso quando vê a prática da injustiça esses
três são sócios”. Isso significa que a nossa prática política é também uma
necessidade religiosa é também um dever religioso. Então lutar por um sistema
justo, não necessariamente por um sistema ideal islâmico, porque o islamismo ele
aceita viver sob outros sistemas que não seja o islâmico e mais do que isso, ele
obriga um muçulmano a respeitar as regras desse outro sistema, a não burlar
nenhuma lei. Mas ele, digamos, incentiva um muçulmano a lutar por um sistema
justo mesmo que não seja ideal, mas um sistema justo. Lutar por justiça. A lutar para
que não ocorra mais as injustiças.
Entrevistado 2:
Definir a palavra Islã ou a religião islâmica em uma frase bem resumida, bem exata
é submissão à Deus Altíssimo. Submissão à ordem de Deus. Submissão à Lei que na
realidade nos acreditamos que está surgida de Deus Altíssimo para melhorar e para
organizar a vida terrena do homem na terra. [...] De parte a pratica, de parte a fé, de
parte à crença , de parte a ideologia .[...]
Entrevistado 3:
A identidade islâmica ela nasceu em torno da noção de ummah ou de comunidade
ela é uma entidade religiosa ao mesmo tempo que cultural. Ela é as duas coisas
porque ela já tinha o idioma mas se acentuou , se intensificou com o advento do Islã.
[...] se você pegar a palavra ummah por si só no início do Islã ela significa
comunidade mas com o tempo o Islã foi se expandindo ela pode significar também o
próprio Estado. [...] No Islã não existe separação entre . [..] não há separação entre ,
na religião assim vamos excluir a política da religião, não. Não por quê? Porque a
política é um elemento social. [...]. Os levantes, essa primavera árabe que estão
falando eu tenho minhas duvidas quanto a ser uma primavera, porque faz tempo que
ela vem acontecendo, ela acontece principalmente pela identidade religiosa das
pessoas. Antes de mais nada é uma identidade religiosa que ao mesmo tempo é
política . Você pode ver que as grandes manifestações acontecem depois da oração
de sexta-feira. Isso num país muçulmano é tudo. Eles não tão querendo expulsar
ninguém ou de seu país eles estão querendo um verdadeiro Islã que é justo
Entrevistado 4:
113
[...] a palavra Islã carrega consigo um significado muito forte, muito grande, muito
importante na vida de todo ser humano que é fazer com que ele atinja uma paz
espiritual verdadeira. Nós entendemos a religião como um caminho, um método
uma filosofia que faz com que o ser humano atinja o seu máximo grau de
humanização. E os preceitos que a religião carrega consigo, os regulamentos, as
normas e toda jurisprudência ela tem justamente a finalidade de doutrinar esse ser
humano para que ele possa ter um caminho, um objetivo na vida. E o maior
problema que as pessoas tem hoje é a ausência desse objetivo espiritual de vida
porque material todos tem. [...] O fiel, crente, ele se preocupa em fazer atos que
tenha um efeito real na sua eternidade. É esse o objetivo principal dele.[...] aprende a
teoria e aplica essa teoria em vida. Prá nós não é algo só que a gente carrega
simbolicamente prá preencher alguma lacuna . [...] o muçulmano ele carrega a
filosofia religiosa como a filosofia de vida. Tudo que ele faz na vida dele está
baseado no Islã como religião.
Entrevistado 5:
[...] não há uma dicotomia entre o mundo espiritual e o mundo material no Islã,
muito pelo contrário, um dos grandes conflitos que se estabeleceu desde a morte do
Profeta Mohammad e da sua associação foi exatamente esse manter essas leis e
essas determinações de caráter divino no cotidiano tanto do governo quando do
convívio social dos indivíduos. Tanto das relações de poder dentro do Estado
islâmico quanto nas relações sociais [...].
Entrevistado 1:
Sim, a religião deve ser contextualizada. Não só pode como deve ser
contextualizada. [...] o Islã ele é dinâmico. Ele não é algo que foi criado há 1600
anos atrás com leis rígidas que não se modificam com o tempo. Algumas leis e
princípios básicos vão ser mantidos pro resto da humanidade, pro resto da historia e
outros vão ter que ser criados baseados nesses princípios mas de acordo com o que
esta acontecendo no momento [...]. Então, eu diria que o formato e essas leis
conjunturais é que não são definidos que podem ser definidos de acordo com o
momento, conjuntura e contexto.
Entrevistado 3:
A filosofia islâmica nasceu em função de entendimento do texto Sagrado e muitos
filósofos, vou te dar o nome de Avicena, Alfarabe, Alverrois recorreram ao texto
Sagrado para argumentar do ponto de vista filosófico. Isto que os ocidentais, alguns
pensadores ocidentais não entendem. [...] Quando a questão é o Islã o conceito
muda. A análise muda, os métodos mudam, as visões mudam, a qualquer custo[...] .
Você para falar sobre o Islã tem que se colocar na posição do Islã [...] e não falar do
ponto de vista da tua posição contra o Islã. [...] O ocidente pensa assim que
liberdade é fazer o que você quer. Não. Eu acho que uma pessoa é livre na medida
que ela tem educação, tem acesso à educação, acesso à comida, acesso à habitação e
114
acesso à saúde pública. Isso é uma forma de liberdade. Quando você minimiza a
prostituição, o uso de droga, quando você oferece condições para que isso não haja
isso também é uma forma de liberdade. Porque tanto a prostituição quanto a droga
são formas de escravidão. Então, nos países muçulmanos existem todos esses
elementos, mas de uma maneira muito minimizada. [...] O mundo muçulmano não é
contra o capitalismo, mas o mundo muçulmano preza muito pela família, pela saúde
física das crianças, pela saúde mental, pela saúde ética das pessoas e até pelo
consumo. Você não pode ser levado ao consumo puro e simplesmente. Esta é a
liberdade que se vive no mundo muçulmano. [...] As grandes empresas de consumo
são ocidentais. Elas entraram em alguns países muçulmanos mas em alguns elas não
conseguem entrar porque elas não tem esse tipo de liberdade que eu te disse. Não
importa o custo social de uma propaganda. Sabe o que eu estou dizendo custo
social? O custo social é você agredir as pessoas é levar as pessoas ao consumo; levar
uma mãe a comprar um caderno de uma marca que ela não tem condições de
comprar só porque o capitalismo está mostrando que eu devo comprar esta marca.
Veja eu não sou anti-capitalista mas eu sou racionalista nas minhas atitudes. [...]
Então é isso que o Estado Teocrático muçulmano preserva porque isto também está
na base da Teologia islâmica, esta questão de não oprimir o outro pela diferença.
Entrevistado 5:
Quem fala esse tipo de coisa primeiro não entende o que é modernidade. O que é a
modernidade? Modernidade é ter acesso aos bens tecnológicos? A Evolução da
tecnologia? Modernidade é isso ou a modernidade é o que diz respeito aos valores
humanos, éticos, morais. O que quê é a modernidade? Ser moderno é sair nu na rua
ou semi-nu? Isso é modernidade? Eu vejo muitas vezes a crítica por esse viés. Não
os muçulmanos não permitem que as mulheres se desnudem porque eles tem ódio a
modernidade. Modernidade não significa degradação muito menos desrespeito a
valores de ordem moral. Nesse sentido a gente pode dizer que os muçulmanos em
sua grande parte em sua maioria são conservadores. Por quê? Porque existem
valores que devem ser conservados. O valor da família, o valor do respeito à esposa
[...].o islamismo não é contrário, intrinsecamente avesso, adversário da modernidade
[...] mesmo porque se o conhecimento humano é o resultado sucessivo da evolução e
da descoberta das gerações, muito desse desenvolvimento tecnológico e cientifico
que hoje o ocidente goza se deve as descobertas e os estudos dos cientistas
muçulmanos. Álgebra, a medicina, a química [...]. Essa ideia ou essa intenção essa
tentativa de dizer que o islamismo é contrário à modernidade, primeiro parte de
quem não entende muito nem o que é essa modernidade em segundo lugar é uma
tentativa simplista de fortalecer um preconceito entre muitos outros que se procura
criar contra os muçulmanos. [...] Agora existem outras sociedades, especialmente
sociedades árabes que querem que acham até mesmo influenciadas por essa
campanha midiática que modernidade é descuidar desses valores.
caso o Islã, infere-se que a modernidade, através de seus veículos de comunicação de massa,
tenta deslegitimar ou banalizar as ações produzidas pela religião.
A verdade, entretanto, revela que a vivência política na comunidade muçulmana xiita
está ligada na própria origem do grupo. Isso significa que discutir e atuar politicamente estão
presentes no dia a dia, nos discursos nas mesquitas, na construção da ideia de irmandade de fé
que luta por justiça social, na própria identidade coletiva e individual do crente.
Outro fato interessante, quando se analisa o Islã xiita, é que a questão da justiça está
ligada a de paz, sem justiça não há paz e esse é um conceito caro ao Islã que pode ser
percebido a partir da nomeação de religião:
A raiz da palavra Islam [...] é formada pelas letras “s” (sin) “l” (lam) e “m” (mim).
Trata-se da mesma que compõe as palavras Salam (paz) e muslim (aquele que se
submete à vontade de Deus. Esta relação etimológica é importante porque explica
um ponto fundamental do islamismo: a crença de que somente a partir do momento
em que o ser humano se submete incondicionalmente, à vontade divina, revelada por
intermédio dos profetas, ele pode atingir a paz em sua máxima plenitude. (KHALIL;
NASSER FILHO, 2003, p.17).
Mas se o Islã é uma religião ligada ao conceito de paz, e o que se percebe é a sua
imagem sendo relacionada a ideia de violência e intolerância, cabe então nessa discussão a
pergunta: porque esse tipo de vinculação à religião do Islã? O conceito de paz que o Islã
carrega seria diferente do conceito promulgado por aqueles que o categorizam?
Entrevistado 3:
Por quê? Porque nos temos que invadir um país que é muçulmano, no caso dos EUA
invadiu o Iraque, a troco de nada porque nos temos que derrubar o regime de um
país ou outro então eu tenho, eu preciso que em primeiro lugar desconstruir o Islã,a
desconstrução da palavra Islã. Eu tenho que substituir essa palavra por algo que
imediatamente seja assim maléfico, ou seja, terrorismo islâmico. Ora quando eu digo
que é terrorismo islâmico eu estou trocando a etnia da palavra pela religião. porque?
Porque poderia dizer terrorismo árabe, terrorismo africano... Porque por exemplo o
terrorismo que exista no Egito, no Marrocos, na África ele é antes de mais nada
localizado. [...] mas não. Eles insistem no terrorismo islâmico para fazer com que a
palavra Islã seja realmente e absolutamente desconstruída no seu conceito
verdadeiro que é uma religião da paz. Segundo para que haja no mundo hoje uma
islamofobia; terceiro prá eu poder agredir um país muçulmano legitimando a minha
agressão porque ele é um terrorista.
Entrevistado 4:
A proposta do Islã é basicamente eu creio que seria um método, um caminho por
uma busca de uma paz que o ser humano deve tê-la na sua vida. Porque sem uma
paz real ninguém consegue viver [...]. Eu não consigo imaginar que uma pessoa
tenha uma felicidade real sem uma paz espiritual. Eu entendo paz o termo no seu
mais profundo sentido que seria sentir uma tranquilidade espiritual plena. Não
utópica, não um sonho, não algo que você imagina que ela possa existir ela é algo
real e concreto. A religião traz essa doutrina [...] nos entendemos o islamismo como
uma religião que você aprende a teoria e aplica essa teoria em vida. Prá nós não é
116
algo só que a gente carrega simbolicamente prá preencher alguma lacuna . [...]
Existe uma espécie de islamofobia, é este o termo uma guerra contra o Islã. Não é o
Islã que está pleiteando ou invadindo nações, ou conquistando territórios, mas ele
esta sendo agredido, ele esta sendo ofendido, ele esta sendo de certa forma
desrespeitado e como o Ocidente não tem argumentos contra o Islã para tentar
desestruturar sua filosofia a ideia é de tentar demonizar o outro. Demonstrar como
vilão, demonstrar como bandido, demonstrar como outro como se fosse uma pessoa
diferente dele , não tivesse sentimento, não tivesse os mesmos ideais, justamente
para tentar de certa forma distanciar as pessoas de conhecerem o islamismo ou de
terem contato com os muçulmanos. Isso a gente chama de islamofobia essa
incapacidade do ocidente de conseguir frear o crescimento do islamismo como
religião.
Entrevistado 5:
Islamismo é uma religião de paz, mas não é uma religião de submissão a injustiça. O
muçulmano ele não deve aceitar a injustiça. E o islamismo ele concede ao crente o
direito de se defender, aliás, o nosso ordenamento jurídico no Brasil também
reconhece esse direito. Direito a legitima defesa. [...] O islamismo é uma religião de
paz, não tenha dúvida, mas essa paz tem que ser uma paz justa. [...] Quando a gente
fala mundo islâmico a gente usa uma figura de linguagem uma simplificação muito
grande não existe um mundo islâmico existem sociedades islâmicas, existem nações
e populações muçulmanas que vivenciam esse islamismo de forma muito
diferenciada. [...] A solução dos problemas dos países islâmicos está sem dúvida
nenhum num melhor entendimento, num aprofundamento do estudo da religião
islâmica, da história do islamismo. [...]
Desta forma a religião islâmica demarca sua diferença no que tange a ser uma religião
que prega a paz, mas uma paz que esta ligada a uma busca por um mundo justo aqui e agora e
é nesse momento que o jihad vai tomando forma, seja no esforço individual que se manifesta
na prática diária do muçulmano, seja no coletivo onde a última consequência seria a
resistência armada, se for necessário.
A paz que os muçulmanos acreditam e buscam só é possível de ser alcançada se
houver justiça e justiça é diferente de subserviência. Talvez neste ponto esteja a dificuldade de
muitos compreenderem o Islã: a justiça não se esquiva do combate para que de fato se efetue a
paz.
Entrevistado 1:
[...] o islamismo diz que você não pode praticar violência, mas que você tem o
direito de resistir a qualquer agressão contra a sua vida, a sua propriedade, a sua
pátria, a sua dignidade ou os seus familiares. O islamismo te dá direito a resistir a
isso, apenas. Não te dá o direito de agredir ninguém. Te dá o direito a resistir nessas
condições que eu acabei de dizer aqui. [...] Tá na base do islamismo. Não o nome
resistência, mas o direito de resistir. De lutar contra a agressão. [...] Esse direito sim.
Não uma obrigação, esse direito [...].
Entrevistado 3:
O Jihad não é a guerra santa. A guerra santa é um dos elementos que fazem parte do
jihad [...] Jihad na verdade é um esforço acentuado em prol de alguma coisa. Então a
guerra santa seria em prol da defesa da comunidade. [...].O Irã é o país mais
117
Entrevistado 4:
O muçulmano ele carrega a filosofia religiosa como a filosofia de vida. Tudo que ele
faz na vida dele está baseado no Islã como religião. [...] A religião prescreve o
autocontrole nessas situações o crente, o fiel se ampare em Deus, se socorra em
Deus [...] prá uma pessoa chega do ponto de fazer um jihad que seria dar a sua alma
pela causa de Deus ou pela religião quando você tem o seus direitos totalmente
negados palestino tem que implorar para sair de uma região à outra , de uma terra
que pertence à ele , quando ele não tem direito ao trabalho, sendo que é uma terra
dele, pertence a ele tudo isso o leva a ter um sentimento de revolta: porque meus
filhos tem que ser mortos por esse regime ele chega num ponto que ele não
consegue tanta pressão. A ideia de martírio é essa de dar um basta nisso.
Entrevistado 5:
A pessoa alcança a paz quando ela se submete a vontade de Deus quando ela passa
viver dia a dia aqueles preceitos de ordem religiosa [...].Os movimentos de
resistência não tem só na Palestina no Líbano; partem dessa percepção ,quer dizer eu
quero a paz . O islamismo é uma religião de paz não tenha dúvida, mas essa paz tem
que ser uma paz justa. [...] Essa tentativa de atrelar o termo jihad ao terrorismo é
mais uma tentativa ideológica dos grandes poderes do ocidente secundados pela
mídia de criar um preconceito contra os muçulmanos ,mesmo porque o conceito de
jihad ele é um conceito muito caro a religião, muito importante no Islã. Ele é
considerado um dos pilares da religião islâmica. Por quê? Porque a jihad ela não é só
um combate armado , a jihad não é pegar uma arma para defender sua casa [...]
infelizmente a gente vê que a religião historicamente ela é manipulada ela é
distorcida seus conceitos são trabalhados prá atender a determinados interesses,
interesses de determinados grupos.
Esse entendimento, que está intrinsecamente ligado à teologia islâmica, contribui para
que alguns grupos surgissem e utilizando desta legitimidade que a religião concede, a de
busca pela justiça através do jihad, empreitasse ações condenáveis e intolerantes. Sobre esses
grupos que se identificam como muçulmanos pode-se dizer que :
Entrevistado 1:
Olha, eu não sei a nomeação. Eu só acho que deve, digamos ser bem claro a
diferença dos dois. Se você for chamar simplesmente de fundamentalista você não
pode chamar o outro que acredita na contextualização também de fundamentalista.
Se você for chamar de outra coisa pode chamar também. Mas cada um deve ter um
nome diferente. [...] A Al Qaeda ela não segue o Alcorão. Ela tira do Alcorão alguns
versículos pela metade para justificar os seus atos. É muito diferente. Hezbollah sim,
ele se baseia no Islamismo, com certeza.[...] a resistência do Hezbollah não existia
na época do Profeta. Nem existia a palavra resistência. Mas hoje esse direito de lutar
contra a agressão ou digamos assim, lutar contra aquele que quer tirar a sua vida, a
118
sua propriedade, a sua família e a sua dignidade, esse direito que é um princípio
imutável toma forma no contexto de hoje da situação do Líbano, de invasão de Israel
no Líbano, toma forma como resistência. [...] O islamismo tem 1.600, 1.500 anos
próximo a isso e esses grupos tem 20 anos, 30 anos. Quantos anos têm? 20, 30 anos?
E porque que, se isso, se o terrorismo esta na base do islamismo, porque se o
islamismo tem 1500 anos porque só nos últimos 30 anos apareceu? Não tem alguma
coisa estranha? E só surgiu com a infiltração da inteligência americana nesses
grupos. Não tem alguma coisa muito estranha nisso ?
Entrevistado 2:
Na realidade qualquer ser humano que faz parte de terror na sociedade, qualquer
sociedade, qualquer outro ser humano na realidade não podemos chamar ele de
muçulmano. Jamais. Seja que crente no Profeta. Um sábio, assim, autoridade. Não.
O muçulmano é aquele que a sociedade fica em paz. [...] Todas as religiões tem
pessoas hipócritas, que utilizam do discurso de religioso, mas não seguem.
Entrevistado 1:
Eu já ouvi assim muitas declarações digamos distorcidas falando assim terrorismo e
tudo mais, mas não preconceito são assim desinformações, são assim digamos
pronunciamentos provindos da ignorância, não deliberado “oh terrorista, oh não sei
o que ”. Posso até ter ouvido uma vez ou outra, mas assim, não sei, mas aqui no
Brasil eu não percebi muito isso.[...] Eu percebi mais pela mídia e logo depois do 11
de setembro muitas pessoas principalmente no Paraguai , os paraguaios adoram tirar
sarro de outros que não sejam paraguaios. Então, logo depois do 11 de setembro
passava um árabe “oh terrorista, oh terrorista” brincando mais querendo cutucar.
Mas isso foi o máximo que aconteceu. A população aqui já esta acostumada já faz
mais de 30 anos que os muçulmanos vieram pra cá nunca tiveram problema maiores,
ajudaram a construir essa cidade comercialmente, socialmente, politicamente então
assim não sofremos, além da mídia, não sofremos assim nenhuma discriminação.
Apenas propaganda mesmo.
Entrevistado 3:
Eu me sinto racionalmente revoltado. O meu ímpeto de revolta ele existe, mas eu
consigo segura-lo pra racionalmente poder explicar a minha revolta. Mas eu consigo
ver que a minha identidade muçulmana é extremamente agredida. Como muçulmano
eu me sinto assim agredido assim de uma maneira bastante, bastante, bastante
significativa. [...] Sim, bastante. Da grande mídia das emissoras de TV que detêm a
grande audiência, sim. Eu fico muito triste quando eu ouço isso. Aqui no Brasil, não
pelas pessoas, a agressão que estou falando não é de pessoa é a agressão da grande
mídia dos grandes canais de televisão. Que recebem, por exemplo, as notícias e pura
e simplesmente publicam [...] Hoje a islamofobia no Brasil ela esta bastante
acentuada, repito, a nível de mídia. Mas o povo brasileiro é muito pacifico. O povo
não absorveu essa questão.
Entrevistado 5:
Eu me lembro que quando minha esposa ficou grávida do meu primeiro menino eu
trabalhava numa organização, trabalhava na FIEP – Federação das Indústrias do
120
Paraná , era um jornalista lá, ai cheguei pros amigos eu disse minha mulher tá
grávida . ai primeiro comentário amigo, amigo meu, quer dizer pessoa fala isso por
ignorância, primeiro comentário que o amigo meu fez assim, em tom de brincadeira
opa mais um hominho bomba no mundo.Então o que que é isso? As pessoas já tem
projetadas na sua mentalidade essa figura do muçulmano terrorista. Esse é o mérito
que a nossa chamada grande mídia tele-guiada à partir de Telaviv e Washington
conquistou:Transformar os muçulmanos aos olhos da população em terroristas.[...]
Eu tenho impressão que no Brasil apesar de toda essa campanha que existe já das
pessoas terem já essa vinculação do árabe, do muçulmano a figura do terrorista
ainda é algo relativo na cabeça das pessoas.
A conclusão que se chega ao fim das entrevistas é que o termo fundamentalista não
seria pejorativo, desde que estivesse ligado a ideia de busca dos fundamentos, mas, ao ser
apropriado pela mídia e aplicado ao Islã desde então, este termo tomou outra conotação, a de
sinônimo de terrorismo e por isso não seria um termo apropriado para se nomear um seguidor
desta religião.
Porém, a ideia e a nomeação tem se perpetrado não somente o imaginário, mas nos
noticiários, nos escritos acadêmicos, nos tantos livros que utilizam do termo cunhado pela
mídia e as questões que surgem são: o que revela o Islã ao mundo a ponto de ser categorizado
desta forma? Quais são as mensagens produzidas por ele e quais as repostas que o mundo
contemporâneo tem dado ao fundamentalismo e ao Islã?
Após o 11 de setembro várias teses sobre os motivos que levaram ao terror naquele dia
fatídico surgiram: do ódio à democracia e seus valores seculares a uma guerra de civilizações.
Distintas foram às ideias, mas em todas elas algo era comum: O problema estava em meio ao
Islã. Utilizando-se de uma retórica que camufla as origens, crescia assim, o ódio ao outro e a
caça ao terror. Para Chamosky (2002, p.88-89) o desvio na análise dos fatos seria porque
A questão parece precisar de uma demarcação geopolítica o que significa dizer que, ao
vincular a ideia do Islã com o terror, na verdade está a se usar de uma demarcação religiosa
para referir-se a uma zona de atuação específica: os países do chamado Oriente Médio. Ali,
121
onde residem os símbolos que demarcam a origem desta religião, residem também as maiores
fontes de reserva natural do mundo.
Desta forma, ao se pensar os movimentos que nascem entre seguidores do Islã, deve-
se levar em consideração a religião e a política como fator relevante nas análises sobre os
conflitos. A história auxilia na percepção e na demarcação do onde, quando e porque surgem
os grupos, que vão do retorno ao literalismo ao uso do terror em suas ações. Mas essa
observação sobre a influência que a política externa internacional tem sobre as nações
islâmicas não parece ser levada muito em consideração pelos analistas:
Percebe-se nisso uma tentativa de desvio do motivo que gerou o surgimento destes
grupos que hoje carregam a marca de um estigma identitário religioso e individual aos olhos
daqueles que pouco ou nada sabem sobre o Islã. Uma marca que fora, em grande parte
produzida pela mídia, pois, “nenhuma outra coisa ameaçou tanto os muçulmanos, ao longo da
história, como os media (sic) [...].”(AHMED, 1992, p.262)
Não se pode negar, também, que em nome da religião alguns grupos promovem atos
que maculam a imagem da religião e a transforma, na visão de alguns, na religião que
promove o terror. Porém a crítica deve ser contundente quando o assunto é generalização e
122
76
“A ordem internacional refere-se a um conjunto de princípios ideológicos e normativos que legitimam as
instituições internacionais e o comportamento dos Estados, e a qual se apoia no uso do poder por parte das
grandes potências.” (ALMEIDA, 2001, p.110).
77
Pan-islamismo refere-se à união dos Estados islâmicos. Jamal al-Din al-Afghani (1839-1897) foi um dos
divulgadores desta ideia sendo visto “[...] seu posicionamento como um ‘pan-islamismo revolucionário’ que, a
partir de uma mistura de sentimento religioso e nacional com radicalismo europeu, acabou por influenciar
profundamente todo o mundo islâmico no último quarto do XIX.” (SAHD, 2011, p.144).
123
pensar em uma fragmentação de ideais que propriamente uma ideologia de unidade baseada
na religião. Essa na verdade é a ideia que o “outro” pretende incutir.
Recorrente, esse argumento, o da unidade através da religião surge como tentativa para
explicar o que ocorre ou o que seria esses movimentos, homogeneizando mais uma vez
determinada ideia sobre o Islã, nesse caso a de que a base do conflito estaria no desejo de
retorno aos seus tempos áureos. Porém, quando se olha mais de perto os fatos e a história
percebe-se que há uma linha tênue que distingue os movimentos e é essa linha que vai dizer o
porquê de cada ação e de que tipo é cada movimento.
Para Almeida (2001, p.112) os movimentos que ocorrem no Islã, os quais ele classifica
como pan-islâmico , “[...] não atacam políticas mas sim princípios e valores ou seja, observa-
se um ataque aos princípios e valores da ordem política liberal e secular”. Almeida (2001)
parece homogeneizar todos os grupos e isso precisa ser melhor trabalhado.
Quando se analisa um movimento como o de resistência, por exemplo, percebe-se que
estes estão para além da preocupação com princípios e valores ocidentais, eles estão voltados
para política norteamericana que com o fim da Guerra Fria ocupou o lugar de potência
internacional. A nova ordem internacional instaurada coloca a ideologia liberal como a
norteadora das ações, e é contra isso que luta os movimentos de resistência.
Amplas áreas do mundo viram-se, portanto, revertidas a uma situação em que, por
várias razões ou com vários pretextos, países efetivamente fortes e estáveis intervêm
pela força das armas em regiões que já não estão devidamente protegidas pela
estabilidade internacional nem controladas pelos seus próprios governos. Em regiões
importantes como o mundo islâmico, o ressentimento contra invasores e ocupantes
ocidentais, depois de um período relativamente breve de emancipação dos controles
imperiais, voltou a ser um fator politicamente poderoso. (HOBSBAWM, 2007,
p.89).
Um exemplo real do que se esta a dizer pode ser visto na Revolução de 79 no Irã. A
luta do movimento de resistência, que culminou na Revolução de 79, era pelo fim de um
governo opressor e corrupto, essa era sua primeira preocupação. Não era com princípios e
valores, mesmo porque o povo iraniano não apoiava a secularização implantada pelo Xá: a
124
É preciso verificar os fatos com lentes que ampliem a fim de não encobrir uma
realidade excludente. O discurso que diz que as investidas islâmicas são contra a nova ordem
internacional secular é um tipo de deslegitimação de uma ação que surge contra políticas de
exclusão e dominação que o próprio Almeida (2001, p.113) descreve muito bem quando diz
que:
A descrição que Almeida (2001) faz dos motivos que levaram e levam a resistência de
grupos em áreas de maioria muçulmana a agirem é pertinente, mas a classificação denota uma
deslegitimação dos atos, como se o que ocorreu na história estivesse dentro de uma lógica.
Chamar de ressentimento o que move os povos desta região demarca explicitamente um olhar
etnocêntrico e compactuante com as ações empreitadas contra estes povos.
E assim, algumas imagens produzidas pelo fundamentalismo vão surgindo; imagens
produzidas pelas políticas de ocupação, de dominação de exclusão e também pelas reações
125
que os que recebem as ações começam a empreitar. E o que se percebe nisso tudo, é que se a
história ocidental fora demarcada com o antes e depois da era comum (DEC) parece que uma
nova história surgiu para também fazer uma demarcação no tempo e na vida das pessoas: o 11
de setembro de 2001. E a pergunta é: como ficou o mundo depois do 11 de setembro? Quais
as consequências esse dia trouxe ao mundo? O que era o mundo antes e depois do 11 de
setembro?
Existe agora, como durante todo o transcurso do século XX, uma ausência total de
qualquer autoridade global efetiva que seja capaz de controlar ou resolver disputas
armadas. A globalização avançou em quase todos os aspectos – econômicos,
tecnológico, cultural até linguístico – menos, um: do ponto de vista político e
militar, os Estados territoriais continuam a ser as únicas autoridades efetivas.
126
Como visto nas páginas anteriores, o fim da Guerra Fria marcou a entrada definitiva
das guerras irregulares no âmbito mundial gerando modalidades que ora são de resistência ora
de terrorismo. Os problemas nesse tipo de guerra não se restringem apenas no encontrar os
que promovem, mas na forma como a busca por eles se dará, pois que o terrorismo é
periférico e não estatal. Isso significa que são grupos armados que se organizam em células
espalhadas pelo mundo e sendo assim, que direito legitima a invasão de um determinado país
porque ele supostamente esconderia ou seria utilizado como abrigo por um ou alguns dos
líderes de operação terrorista?
Exceto como metáfora, não pode haver algo como a ‘guerra contra o terror’ ou o
‘terrorismo’, mas apenas contra atores políticos particulares que o empregam como
tática, não como programa. Como tática, o terror é indiscriminado e moralmente
inaceitável, quer seja usado por países, quer por grupos não oficiais. (HOBSBAWM,
2007, p.46).
78
Yehezkel Dror especialista israelense em análise de políticas governamentais ao falar sobre terrorismo
compreende-o como um fato raro, de difícil entendimento e previsão. Uma de suas críticas quando a falta de
estudos sobre o fenômeno recaí sobre as ciências sociológicas. Segundo ele “essa ignorância [sobre o terrorismo]
resulta principalmente da situação das ciências sociais, que não conta com arcabouços de avaliação, mapas
cognitivos, pacotes de conceitos e metodologia para entender fenômenos complexos que não podem ser
entendidos pela decomposição em subelementos mais fáceis se serem analisados. Nossa geração, como as
anteriores, está assoberbada por eventos que não conseguimos entender adequadamente com os modos de pensar
e modelos tácitos contemporâneos”. (YEHEZKEL apud CRENSHAW, 2010, p.58).
127
A complexidade dos fatos que ocorreram revelaram não apenas uma necessidade em
compreender o que realmente originou os atos, mas também em uma melhor definição dos
termos a fim de não categorizar todas as ações que envolva o conflito como terrorista. Para
tanto, os termos devem passar pelo critério da análise não apenas política mas do próprio
conceito que se esta a empregar, a fim de não categorizar uma revolução como ato terrorista,
como fizera Almeida (2001, p.119) : “[...] o pan-islamismo radical é um movimento
verdadeiramente internacionalista e revolucionário, que ameaça a segurança dos países
ocidentais e que pretende fazer revoluções políticas com objectivo (sic) de unificar o mundo
islâmico.”
São esses tipos de afirmações, que não se preocupam com o significado e significante
das palavras, é que vão agregando valores, sedimentando ideias que ao final fixam pré-
conceitos tendo como consequências o fechamento para a compreensão e diálogo. É preciso
estar atento as categorias de nomeação e ao fato de que essa não é uma ação natural, pois o
128
discurso sobre o outro nasce dentro de uma ideologia e intencionalidade. Então ao analisar
uma categoria sempre haverá a pergunta: qual a intenção?
O problema gerado na aplicação de termos como fundamentalismo, terrorista, pan-
islâmico, radical, é que sobre eles uma carga ideológica é inserida e ao categorizar um grupo
ou movimento com algum destes cria-se uma identidade externa sobre eles. No caso da
Revolução Iraniana, por exemplo, quando Almeida (2001) cita a palavra revolucionário e a
vincula a movimentos radicais a vinculação “revolução = radicalismo” será facilmente feita
deslegitimando assim uma ação e movimento que ocorreu dentro dos pressupostos de uma
resistência, legitimado pelas convenções internacionais, e não de um ato terrorista.
Desta forma, percebe-se que, os eventos do 11 de setembro trouxeram consequências
reais e linguísticas. A questão da categorização é tão relevante que sob ela políticas de contra-
ataque poderiam ser redigidas. E foi por causa desta categorização que invadir um país que
abrigava terrorista, mesmo que os órgãos internacionais não aprovassem, foi legítimo dentro
da nova modalidade da guerra preventiva79 .
Chomsky (2002), um crítico da política estadunidense, diz que os Estados Unidos não
tem o Islã como inimigo e vice-versa e que a visão dos muçulmanos descrita pela mídia após
o 11 de setembro o surpreendeu.
79
Segundo o Dicionário de Termos Militares guerra preventiva é uma “guerra iniciada a partir da crença de que
um conflito militar, mesmo não iminente, é inevitável, e que atrasá-la envolveria grandes riscos.” (DOD apud
NASSER; TEIXEIRA, 2007, p.4). A invasão ao Iraque em 2003 foi baseada nesse conceito de guerra preventiva.
Alegando que esse país escondia armas químicas os Estados Unidos declarou guerra a esta nação deixando
milhares de civis e militares mortos em uma guerra que posteriormente revelou que os argumentos eram
ilegítimos.
129
O trauma do 11 de setembro fez com que uma corrida por “segurança” tomasse
proporções de neurose a ponto de um homem com traços árabes ser confundido com um
terrorista80 e isso ser o suficiente para se atirar contra ele ou na melhor das hipóteses, o
prender sob suspeita. Não apenas os muçulmanos passaram a conviver com o pavor do terror,
mas os imigrantes também tornaram-se alvos dessa política de defesa a qualquer custo.
Utilizando-se do discurso de uso da força militar a curto prazo a fim de derrotar o
terrorismo e instalar a democracia81 os Estados Unidos e seus aliados seguiam abrindo fogo
contra o inimigo sem refletir, entretanto, sobre a questão de que democracia não é algo que se
impõe e muito menos por governos estrangeiros que nada sabem do povo e que se interessa
não na efetivação de uma paz mas na resolução de conflitos que interferem em seus interesses
imperiais.
A difusão de valores e de instituições através de sua súbita imposição por uma força
estranha é tarefa impossível, a menos que já estejam presentes no local condições
que os tornem adaptáveis e sua introdução, aceitável. A democracia, os valores
ocidentais e os direitos humanos não são como produtos tecnológicos de importação,
cujos benefícios são óbvios desde o início e que são adotados de uma mesma
maneira por todos os que têm condições de usá-los, como uma pacífica bicicleta ou
um mortífero AK 47, ou serviços técnicos, como os aeroportos. Se fossem, haveria
maior similaridade política entre os numerosos Estados da Europa, da Ásia e da
África, todos vivendo (teoricamente) sob a égide de constituições democráticas
similares. (HOBSBAWM, 2007, p.18-19)
80
Jean Carlos de Menezes morto em 2005 pela Scotland Yard (polícia metropolitana) em Londres após ser
confundido com Hamdi Adus Isaac ou Hussain Osman, o suspeito da tentativa do ataque à bomba no metrô de
Londres alguns dias antes. Outro caso recente envolve o bicampeão olímpico nascido na Somália naturalizado
britânico Mo Farah. Farah foi preso em Oregon- Estados Unidos, após ser confundido com um terrorista.
Segundo o atleta está é uma situação que se repete e a qual ela acredita estar ligada a sua nacionalidade. Sobre
esses fatos ver: G1 (2007) e GLOBOESPORTE.COM (2012).
81
O documento de 2006 que sanciona a nova Estratégia de Segurança Nacional pode ser encontrado em:
WHITE HOUSE (2012).
130
Apesar de Pierucci (1991) dizer que não existe uma busca pelo retorno deste Islã
tradicional percebe-se que alguns movimentos usam desse discurso quando legitimam suas
ações nos textos Sagrados produzidos no passado. Pode-se dizer então, que a leitura que
alguns grupos fazem de forma literal seria um tipo de retorno ao Islã, mas que nada tem de
real com a tradição, pois ao proclamar um jihad, por exemplo, eles utilizam do discurso da
tradição mas sem fazer a leitura que a tradição pede. E talvez seja por isso, que esses grupos
sejam categorizados como fundamentalistas.
Todavia, a crítica que se faz nesta pesquisa é a de que, por ser uma categoria que
carrega um histórico contextual e de exclusão, deve-se ter em mente que ao categorizar um
grupo que foge a esse contexto há uma intencionalidade por trás disso, e descobri-la faz toda
diferença não somente para compreensão, mas para as ações que responderão a essa
nomeação. Quando se demarca a diferença “arma-se” para essa diferença. Por exemplo,
quando se categoriza um grupo de resistência como fundamentalismo islâmico o que se
espera? Quando a categoria fundamentalismo desloca seu significado para sinônimos como
131
Os muçulmanos, como fora descrito nas entrevistas, não acham que o termo
“fundamentalismo” é o mais adequado, hoje, para identificá-los justamente pela carga
ideológica negativa que esse termo passou a ter ao se tornar sinônimo de terrorismo. Essa
categorização tem como consequência direta na construção identitária no imaginário do
“outro”, afinal a ideia sobre “eles” é construída antes pelo discurso. O discurso diz sobre o
“eles” e os “outros”.
A mídia contribuiu para essa construção imagética e uma identidade que é
performática, no sentido de que muda por ser flexível, passa a ser vista como rígida e
imutável. Logo, se a imagem que está sendo construída sobre os muçulmanos é de um grupo
fundamentalista, arraigados em seus pensamentos que remonta a um período tribal geradores
de ações intransigentes e radicais, não se pode esperar muito desse grupo a não ser atos de
terror e horror. Essa é a visão nua e crua que grande parte das pessoas fazem sobre o Islã e o
11 de setembro contribuiu em muito para isso.
Por outro lado, os relatos de que os números de conversões/reversões aumentaram
após o 11 de setembro também merecem atenção. Os muçulmanos entrevistados citam esse
fato e acreditam que esse fenômeno, de busca pelo Islã, é o reflexo do encontro com a
verdade, no sentido de verificar o que a mídia e os estudiosos sobre os fenômenos que
ocorrem no Islã lançaram sobre este. Além disso, Ahmed (1992, p.265-266) acredita que a
mídia gera também um contra discurso. Para ele
Os Estados Unidos são um dos casos que podem ser citados, assim como a França e
suas leis de controle sobre o uso de determinados objetos religiosos considerados ostensivos
entre outros. Tais ações, do Estado sobre os aspectos que fazem parte da construção
identitária de um grupo tem sido um dos motivos para o aumento da resistência pela
133
manutenção da identidade. Desta forma, é preciso antes de categorizar verificar o que causa as
reações e quem as causa.
Quando o assunto vai de encontro à formação identitária islâmica a questão é mais
complexa. Por estarem inseridos em ideias que se fundamentam na vivência e prática da fé
associada à vida privada e pública, ou de comunidade e política, o Estado, ao imputar leis,
invadir nações onde há uma comunidade muçulmana significativa presente, entre outras
ações, coloca-se como representante de uma ordem mundial. Operando sobre a rubrica de um
imperialismo que não respeita fronteiras culturais ou territoriais o resultado desta é a chamada
ao despertar que pode ser revolucionário ou radical.
5 CONCLUSÃO
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Universidade Católica de Goiás, Departamento de Filosofia e Teologia, Goiânia.
145
Atenciosamente,
Prezado Sr(a),
Você está sendo convidado a participar de uma pesquisa que estudará as implicações que o
uso do termo fundamentalismo religioso causa quando aplicado aos seguidores do Islã. O
interesse por esse estudo vem da percepção de que, após o 11 de Setembro ser muçulmano
tornou-se, para muitos que não professam e não conhecem a fé, sinônimo de fundamentalista,
terrorista, radical. Através de sua participação, poderemos verificar e esclarecer até que ponto
o uso desse termo pode ou não gerar, sobre os que professam a fé no Islã, preconceito,
rejeição, intolerância ou outra forma de segregação.
Você foi selecionado (a) porque faz parte de uma comunidade que professa a fé no Islã, logo
somente aqueles que estão inseridos nesse contexto poderão dizer com propriedade o que essa
pesquisa busca verificar. Devido ao tempo para execução dessa pesquisa, optou-se pela
inclusão de apenas 01 (um) membro da Sociedade Beneficente Muçulmana de
___________________ a fim de colher o maior número de dados que a entrevista possa
oferecer Os fiéis da Sociedade Beneficente Muçulmana, em geral, não participarão dessa
pesquisa.
A sua participação nesse estudo consiste em informar, através de entrevistas, sua percepção e
experiência de como o uso do termo fundamentalismo religioso aplicado aos adeptos da
religião do Islã, gera ou pode vir a gerar uma identidade negativa.
Para a entrevista, não há perguntas previamente formuladas, mas eixos temáticos pelos quais
conversaremos. Há três eixos que nortearão a entrevista, a saber: 1) A respeito da religião do
Islã 2) A respeito do fundamentalismo religioso; 3) A respeito das conseqüências que o uso
do termo fundamentalismo causa ou pode vir a causar nos adeptos da religião do Islã. As
gravações de áudio e anotações farão parte do arquivo dessa pesquisa e ficarão sob posse do
pesquisador. Esse material será arquivado pelo período de 05 (cinco) anos e após esse período
destruído.
147
Sua participação é muito importante e voluntária. Você não terá nenhum gasto e também não
receberá nenhum pagamento por participar desse estudo.
As informações obtidas nesse estudo serão confidenciais, sendo assegurado o sigilo sobre sua
participação, quando da apresentação dos resultados em publicação científica ou educativa,
uma vez que os resultados serão sempre apresentados como retrato de um grupo e não de uma
pessoa. Você poderá se recusar a participar ou a responder algumas das questões a qualquer
momento, não havendo nenhum prejuízo pessoal se esta for a sua decisão.
Os resultados dessa pesquisa servirão para esclarecimento dos termos que hoje se utiliza para
nomear e classificar aqueles que seguem o Islã. Sua participação terá como benefício direto,
tanto social como individual, a contribuição para a construção de um conhecimento que tem
como expectativa a abertura para um diálogo que se baseie no respeito à diferença e na
convivência pacífica, sem preconceitos.
Você receberá uma cópia deste termo onde consta o telefone e o endereço do pesquisador
responsável, podendo tirar suas dúvidas sobre o projeto e sua participação, agora ou a
qualquer momento.
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, coordenado pela Prof.ª Maria Beatriz Rios Ricci, que poderá ser
contatado em caso de questões éticas, pelo telefone 3319-4517 ou email
cep.proppg@pucminas.br.
Dou meu consentimento de livre e espontânea vontade para participar deste estudo.
148
______________________________________
Nome do participante (em letra de forma)
______________________________________ ___/___/____
Assinatura do participante ou representante legal Data
________________________________________ ___/___/____
Nome (em letra de forma) e Assinatura do pesquisador Data