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CENTRO PRESBITERIANO DE PÓS-GRADUAÇÃO

ANDREW JUMPER

Fúlvio Anderson Pereira Leite

O FUNDAMENTALISMO CRISTÃO E LIBERALISMO TEOLÓGICO: uma análise


histórica e teológica

São Paulo, 2022


CENTRO PRESBITERIANO DE PÓS-GRADUAÇÃO
ANDREW JUMPER

Fúlvio Anderson Pereira Leite

O FUNDAMENTALISMO CRISTÃO E LIBERALISMO TEOLÓGICO: uma análise


histórica e teológica

Monografia apresentada ao Centro


Presbiteriano de Pós-graduação Andrew
Jumper – CPAJ, como requisito parcial
para obtenção do título de Magister
Divinitatis, MDiv, na área de em Estudos
Históricos e Teológicos, sob a orientação
do Prof. Dr. Leandro Antonio de Lima

São Paulo, 2022

2
FÚLVIO ANDERSON PEREIRA LEITE

O FUNDAMENTALISMO CRISTÃO E LIBERALISMO TEOLÓGICO: uma análise


histórica e teológica

Monografia apresentada ao Centro


Presbiteriano de Pós-graduação Andrew
Jumper – CPAJ, como requisito parcial
para obtenção do título de Magister
Divinitatis, MDiv, na área de em Estudos
Históricos e Teológicos, sob a orientação
do Prof. Dr. Leandro Antonio de Lima

Aprovação 28 / 11 / 2022
Orientador: Prof. Dr. Leandro Antonio de Lima

3
Folha de Identificação da Agência de Financiamento

Autor: Fúlvio Anderson Pereira Leite

Programa: Magister Divinitatis, MDiv - Em Estudos Históricos-Teológicos

Fundamentalismo Cristão e Liberalismo Teológico:


Título do Trabalho:
Uma análise histórica e teológica

O presente trabalho foi realizado com o apoio de:

☐X Instituto Presbiteriano Mackenzie / Isenção Integral das Mensalidades

☐ Instituto Presbiteriano Mackenzie / Isenção Parcial das Mensalidades

4
Dedicatória

À minha esposa, por sua constante presença

5
Agradecimentos

Ao Pai bondoso e Deus Trino, nosso louvor e gratidão por sua maravilhosa
graça em minha vida.
À minha esposa Leandra Gueiros, grande incentivadora em todo tempo de
estudo e formação.
Aos nossos queridos filhos: João Pedro, Marcinho e Tiaguinho, filhos da
Aliança e presentes de Deus. Vocês são para mim uma cidade de refúgio,
segurança e paz.
Ao meu professor e orientador, Prof. Dr. Leandro Antonio de Lima, por sua
paciência, empenho e sua disposição em orientar nessa pesquisa.
À Igreja Presbiteriana Redenção onde, atualmente, tenho o prazer de servir
ao Senhor no ministério pastoral.
Pelo apoio ministerial durante esse tempo, de irmãos muito queridos: Rômulo
e Lúcio, respectivamente, também, de suas famílias.
A todos os membros da família Redenção que tanto amo e sei que sou
amado.
Ao Seminário Presbiteriano do Norte (SPN), onde tive o prazer de estudar e
me formar no ano de 2006, e hoje tenho a grata satisfação de ser professor dessa
casa centenária de profetas, desde 2013 até hoje.

6
O protestantismo liberal não era um
mero tipo de cristianismo diferente,
mas totalmente uma outra religião.

J. Gresham Machen

7
Resumo

Está pesquisa tem como tema ‘O Fundamentalismos Cristão e Liberalismo Teológico


através de uma análise histórica e teológica’ do embate ocorrido entre teólogos
liberais e fundamentalistas, no início do século XX. E como argumentação
adjacente, porém, necessária para a compreensão do tema, trata sobre a inerrância,
a inspiração divina das Escrituras Sagradas e outras doutrinas consideradas
fundamentais para o cristianismo ortodoxo. Os objetivos são: a análise da tensão
existente entre os dois movimentos e a reação fundamentalista em face aos ataques
dos liberais, além disso, propõe novos métodos de interpretação bíblica. Para
alcançar os alvos propostos, utilizou-se, como fundamento metodológico, a técnica
da pesquisa bibliográfica. Nomes importantes tais como: Friedrich Schleiermacher,
considerado pai liberalismo teológico do século XIX, e John Grasham Machen e Carl
McIntire, como pensadores que se destacam no movimento Fundamentalista,
fazem parte da bibliografia utilizada, dentre outros. O texto final está dividido em três
capítulos: no primeiro, demonstrou-se o surgimento e a influência do Racionalismo,
do Iluminismo e do Romantismo na gênese do Liberalismo Teológico do século XIX;
no segundo, apresentou-se a origem e o impacto do Liberalismo na fé ortodoxa; no
terceiro, expôs-se como o movimento fundamentalista reagiu às novas ideias da
Teologia Liberal.

Palavras-chave: Escritura Sagrada; Liberalismo; Fundamentalismo

8
Abstract

The subject of this study is "Christian Fundamentalism and Theological Liberalism


through a Historical and Theological Analysis" of the clash between liberal and
fundamentalist theologians at the beginning of the twentieth century. The clash took
place at the beginning of the twentieth century. And as an adjacent but necessary
argument for understanding the subject, it deals with inerrancy, the divine inspiration
of the Scriptures, and other doctrines considered fundamental to Orthodox
Christianity. The objectives are: to analyse the existing tensions between the two
movements and the reaction of fundamentalists to the attacks of liberals, as well as
to propose new methods of biblical interpretation. In order to achieve the proposed
objectives, the bibliographic research technique was used as a methodological basis.
Important names such as Friedrich Schleiermacher, considered the father of 19th
century theological liberalism, and John Grasham Machen and Carl McIntire as
thinkers who excelled in the fundamentalist movement, among others, are part of the
bibliography used. The concluding text is divided into three chapters: the first shows
the origins and influence of rationalism, the Enlightenment, and Romanticism on the
emergence of theological liberalism in the 19th century; the second presents the
origins and impact of liberalism on the orthodox faith; and the third shows how the
fundamentalist movement responded to the new ideas of liberal theology.

Keywords: Holy Scripture; liberalism; fundamentalism

9
Sumário

Introdução ............................................................................................................... 12

Capítulo 2. ANTECEDENTES HISTÓRICOS DO LIBERALISMO TEOLÓGICO DO


SÉCULO XIX. ........................................................................................................... 15
2.1 Racionalismo: Descartes e Espinosa ................................................................. 16
2.2 Iluminismo: Kant, Hegel e o Deísmo .................................................................. 19
2.3 Romantismo e Friedrich Schleiermacher ........................................................... 25
2.4 Uma avaliação .................................................................................................... 28
Capítulo 3. ORIGEM, CONCEITUAÇÃO, CARACTERÍSTICAS E ANÁLISE
TEOLÓGICA DO IMPACTO DO LIBERALISMO TEOLÓGICO DO SÉCULO XIX.
................................................................................................................................... 30
3.1 Origem do liberalismo teológico do século XIX .................................................. 30
3.2 Conceituando o liberalismo teológico ................................................................. 32
3.3 Características do liberalismo protestante teológico .......................................... 34
3.4 Teologia liberal: uma avaliação .......................................................................... 37
Capítulo 4. ORIGEM, CONCEITUAÇÃO, REAÇÃO E ANÁLISE TEOLÓGICA DO
FUNDAMENTALISMO DO SÉCULO XX. ................................................................ 40
4.1 Origem do Fundamentalismo protestante do século XX .................................... 41
4.2 Conceituando o fundamentalismo protestante ................................................... 44
4.3 A reação do fundamentalismo protestante em face ao liberalismo teológico..... 47
4.4 Fundamentalismo cristão: uma avaliação .......................................................... 50
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 54
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 56

10
Introdução

O Protestantismo, embora seja um movimento recente, tem uma história


marcada por múltiplas faces. Elas aparecem sob forma de ênfases e submovimentos
que se contrapõem, e se justapõem. O historiador Battista Mondin (2003, p.18)1,
divide a história do Protestantismo em cinco períodos, começando pelos pais
fundadores, e se estendendo até a Neo-ortodoxia e movimentos recentes. Ainda que
tal esboço não seja aceito por unanimidade, ele ajuda a entender panoramicamente
a história dele.
A pesquisa se ocupará de dois (dos cinco) períodos da história do
Protestantismo: o liberalismo teológico do século XIX e sua reação por parte do
fundamentalismo protestante do século XX2. Ainda que isso não seja efetivado de
maneira pormenorizada dados os limites e escopo do trabalho, a pesquisa procurará
mostrar que o Fundamentalismo foi um manifesto aberto e vigoroso contra os
postulados da teologia liberal3. Postulados que desconstruíam, e se contrapunham a
tudo o que o cristianismo histórico e ortodoxo defendeu historicamente4.
Advindos dessas verdades, a presente investigação tem por propósitos a
análise da tensão existente entre os dois movimentos em tela e a reação
fundamentalista em face aos ataques dos liberais, além disso, propõe novos
métodos de interpretação bíblica. Para tanto, ela buscará expor em linhas gerais os
pressupostos da teologia liberal do século XIX e a maneira com que o

1 MODIN, Battista. Os grandes teólogos do século XX. São Paulo: Editora Teológica, 2003, p.18
2 O historiador Mondin apresenta cinco grandes períodos: 1) Fundadores; 2) Ortodoxia ou
Escolástica; 3) Aufkiãrung ou Iluminismo; 4) Liberalismo; 5) Neo-ortodoxia e o historiador Roger Olson
divide o fundamentalismo em duas fases: moderada e extremista (Para ele, Machen e The
Fundamentals fazem parte dessa primeira fase moderada). Mcintire divide a história do
fundamentalismo em quatro fases (OLSON, 2001, p. 576-84).
3 O Fundamentalismo foi um movimento marcante de reação à entrada do Liberalismo Teológico nos

arraiais das igrejas protestantes americanas no início do século XX. Seu conteúdo declarou guerra
aberta contra o ateísmo, a filosofia moderna, mas principalmente, a Teologia Liberal “que se baseava
numa interpretação naturalista das doutrinas da fé, a alta crítica alemã e o darwinismo, que pareciam
subverter a autoridade da Bíblia” (MCINTIRE em ELWELL, 1992, v.2, p. 187). Já para Machen “O
liberalismo moderno não somente é uma religião diferente do cristianismo, mas pertence a uma
classe totalmente diferente de religiões” (MCGRATH, 2005, p. 451).
4 A base argumentativa na qual Machen sustenta a proposição de que o Liberalismo moderno não é

Cristianismo está no Dogma e na História bíblica, presentes desde o princípio na Igreja Primitiva.
Segue numa exposição intrinsecamente bíblica. Observar-se que Machen recorrer à Bíblia em defesa
de sua tese. De modo simples, percorre o Novo Testamento utilizando-se de conceitos,
consideravelmente simples, a fim de dar caráter discursivo e científico às narrativas bíblicas
(MACHEN, 2001, p. 13).

11
fundamentalismo protestante do século XX reagiu a eles.5 A partir de tal propositura,
já fica estabelecido que a averiguação não possui apenas caráter descritivo, mas se
constitui, também, em um exercício de análise.
Assim, ao analisar o liberalismo teológico e o fundamentalismo, a pesquisa se
desenvolveu a partir de alguns questionamentos prementes: o que foi o liberalismo
teológico do século XIX? Com quem teve origem tal movimento? Quem foram os
principais representantes? Quais as características estruturais dele? Qual o impacto
do liberalismo em seus dias e nas gerações posteriores? O que foi o
fundamentalismo teológico no século XX? Com quem teve origem tal movimento?
Quem foram os principais representantes? Quais as características estruturais do
fundamentalismo?
Não é pretensão, no entanto, analisar completa e globalmente os movimentos
em pauta, mas fazer uma descrição histórico-teológica em linhas gerais. Não se tem
o intuito de ser exaustiva, contudo, a descrição e a análise que serão apresentadas,
permitirão aos leitores compreenderem o choque conceitual e o efeito dos dois
movimentos neste período. À medida em que o Liberalismo surgiu e se desenvolveu,
o Fundamentalismo apareceu como reação direta a ele.
Sem dúvida, as perguntas supracitadas permitem uma problematização
interessante: em que consistiu a reação do Fundamentalismo ao Liberalismo e como
isso se deu? E foi justamente esse olhar que motivou a presente pesquisa que,
evidentemente, pode servir de ponto de partida para outros estudos mais
abrangentes.
O texto final está dividido em três capítulos como segue: no primeiro, são
apresentados os antecedentes históricos e filosóficos que precederam o Liberalismo
e que, de certa forma, lhe prepararam o caminho. Tais antecedentes incluem o
Racionalismo do século XVII (especificamente o de Descartes e Espinosa), o
Iluminismo (por personagens como Kant e Hegel), o Deísmo (a religião do

5Os pressupostos da teologia liberal estão enraizada nas modernas teorias seculares do
conhecimento (na ciência, na filosofia moderna e sua hermenêutica estava baseada numa
interpretação naturalista das doutrinas da fé, a alta crítica alemã e no darwinismo). Como
consequência, isso, levou ao abandono de muitas crenças ortodoxas em muitas denominações
tradicionais. A reação fundamentalista, no sentido mais restrito do termo, foi um movimento que
começou nos círculos protestantes americanos para defender os "fundamentos da crença" contra os
efeitos corrosivos do liberalismo que cresceram nas fileiras do protestantismo com abordagens
críticas da Bíblia que se baseiam em suposições puramente naturalistas.

12
Iluminismo), o Romantismo (com sua ênfase nos sentimentos), e, propriamente dito,
o pai da Teologia Liberal, o teólogo, filósofo e filólogo F.D.E. Schleiermacher que,
em seus dias, teve como contemporâneos figuras importantes como Schelling e
Hegel. No segundo, aprofunda-se a análise sobre o Liberalismo teológico do século
XIX, bem como seu contrafator, o Fundamentalismo protestante do século XX. Isso
permitirá aos leitores uma compreensão clara do que foram ambos os movimentos e
os seus desdobramentos conceituais, pois é apresentada teológica do movimento.
No terceiro aborda-se a origem do Fundamentalismo, os pontos emblemáticos na
oposição com o Liberalismo Teológico e uma análise teológica do movimento
fundamentalista.
Quanto à metodologia utilizada para se alcançar os objetivos propostos, foi a
técnica de pesquisa bibliográfica. Nesse tipo de averiguação, emprega-se os meios
literários que abordam o tema, para tanto, consultou-se artigo científico da internet,
exaustiva análise das fontes principais e da bibliografia secundária para análise do
tema proposto. Autores como Friedrich Schleiermacher (considerado iniciador do
liberalismo teológico) e John Grasham Machen (Cristianismo e Liberalismo) e Carl
McIntire (A Moderna Torre de Babel).

13
Capítulo 2. ANTECEDENTES HISTÓRICOS DO LIBERALISMO TEOLÓGICO DO
SÉCULO XIX
O Protestantismo, historicamente, pode ser definido como um fenômeno
recente. Sua origem remonta ao século XVI com a chamada Reforma Protestante
cuja principal figura foi o monge agostiniano Martinho Lutero.6 E, muito embora a sua
narrativa abarque um curto período de pouco mais de cinco séculos, tal fato passou
por subdivisões periódicas. Em tais ramificações, as ênfases eram muito próprias e,
até certo ponto, se constituíam em uma espécie de resposta às anteriores.7
O pensador Mondin (1980, p.5), divide a história do Protestantismo em cinco
períodos a saber: fundadores, Ortodoxia ou Escolástica, Aufklärung ou Iluminismo,
Liberalismo e Neo-Ortodoxia.8 Assim sendo, em termos cronológicos o Liberalismo
teológico9 aparece como a quarta divisão da breve história do Protestantismo.
Constanza (2005, p.79) em um artigo intitulado “As raízes históricas do
Liberalismo teológico ao tratar do contexto histórico, bem como dos eventos que
antecederam o Liberalismo teológico afirma:

As raízes do liberalismo teológico, partindo do pressuposto de que


ele começou no racionalismo do século XVII e se desenvolveu até a
década de 1920, quando declinou. O trabalho se desenvolve
basicamente em três seções principais, as duas primeiras referentes
às fases do movimento e a última uma apreciação crítica da teologia
liberal. Cabe destacar a Matthew Tindal e Hermann Reimarus, cuja
obra marca o colapso definitivo do liberalismo com a ortodoxia, ao
afirmar que o cristianismo se baseia nas alegações fraudulentas da
ressurreição e da segunda vinda de Jesus. Na segunda parte, o
autor relaciona o romantismo com o modernismo, considerando-os
uma só fase do movimento teológico liberal.10

A partir do que a autora afirma, o Liberalismo teológico do século XIX é


herdeiro de pressupostos oriundos do Racionalismo, bem como perpassa e abraça
ideias de outros movimentos correlatos tais como o Iluminismo, o Deísmo e o

6 CAIRNS, Earle. O Cristianismo através dos séculos: uma história da Igreja cristã. 2ª ed. São
Paulo: Vida Nova, 2008, p. 258-266.
7 MONDIN, Battista. Os grandes teólogos do século vinte. Vol.2. São Paulo: Edições Paulinas,

1979-1980, p. 5-14. A leitura das referidas páginas mostra claramente como nos períodos
constitutivos do Protestantismo os períodos trazem consigo determinadas ênfases que não são as
mesmas do período anterior.
8 MONDIN, 1979-1980, p. 5.
9 Embora a palavra Liberalismo tenha vários sentidos e implicações em diversos campos (e.g.

política, economia, moral etc.), na presente pesquisa será abordado em linhas gerais o Liberalismo
teológico do século XIX.
10 CONSTANZA, José Roberto da Silva. As Origens Históricas do Liberalismo Teológico. Citado

in: Fides Reformata X, nº 1 (2005): p.79.

14
Romantismo, além das ideias de autores da época11 como Herman Reimarus12 e
Friedrich Schleiermacher, este último conhecido como o Pai da Teologia Liberal. 13
Nesse sentido, o presente capítulo tem como propósito expor as raízes históricas do
Liberalismo teológico do século XIX.
Dessas raízes históricas, a primeira a ser analisada será o Racionalismo cuja
expressão máxima aparece nas obras de René Descartes e Baruch de Espinosa.

2.1 Racionalismo: Descartes e Espinosa


É possível definir o Racionalismo enquanto movimento filosófico, como uma
“corrente da filosofia moderna fundada na superestima do poder da razão”. 14 Essas
palavras são suficientes para evidenciar que, diferentemente, da filosofia medieval
centrada na Ontologia (a existência de Deus, do mundo, e a imortalidade da alma), a
filosofia moderna da qual o Racionalismo é parte integrante centra-se no primado da
razão.15 A seguir serão expostas em linhas gerais a contribuição de dois filósofos
racionalistas: René Descartes e Baruch de Espinosa.
Os historiadores da Filosofia conferem a Descartes o título de pai da “Filosofia
Moderna”.16 Isto porque, com ele, ocorreu uma mudança de paradigmas no campo
da reflexão filosófica. Roger Scruton (2008, p.45) destaca a importância histórica e
metodológica de Descartes nos seguintes termos:
René Descartes (1596-1650), o principal fundador da filosofia
moderna e um famoso matemático, merece o lugar de destaque que
lhe foi conferido por dois motivos. Primeiro, por causa de sua busca
obstinada pelo método em todos os ramos da investigação humana,
e segundo, porque ele introduziu na filosofia muitos dos conceitos e
argumentos que desde então serviram de fundamento para ela.
Descartes era um perfeito representante do novo espírito científico.17

11 Evidentemente alguns filósofos foram muito importantes nesse processo tais como Descartes,
Espinosa, Kant e Hegel. Este último aliás, contemporâneo do próprio Schleiermacher.
12 Reimarus ele fazia parte da corrente racionalista que afirmava que os critérios da razão julgam a

revelação como falsa. A revelação está em desacordo com a razão e deve ser deslocada. A religião
natural, acreditava ele, substitui o cristianismo. Reimarus registrou suas opiniões particulares em um
manuscrito secreto que ele intitulou Apologie oder Schutzschrift fü r die vern ü nftigen Verehrer Gottes
(Apologia ou Defesa do Adorador Racional de Deus).
13 LOPES, Augustus Nicodemus. A Bíblia e seus intérpretes: uma breve história da interpretação.

São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 2005.


14 MONDIN, Battista. Curso de Filosofia. Vol.2 São Paulo: Editora Paulinas, 1981, p. 206.
15 Ibidem, p.62. Alguns dos filósofos racionalistas mais representativos foram Descartes, Espinosa e

Pascal. Na presente pesquisa apenas Descartes e Espinosa serão estudados.


16 SCRUTON, Roger. Uma breve história da Filosofia moderna: de Descartes a Wittgenstein. Rio

de Janeiro: José Olympio, 2008, p. 45.


17 SCRUTON, Roger. Uma breve história da Filosofia moderna: de Descartes a Wittgenstein. Rio

de Janeiro: José Olympio, 2008, p. 45.

15
Pelo acima exposto, fica evidente que Descartes foi contemporâneo de outros
grandes luminares, e a despeito disso construiu uma filosofia própria. Sua insistência
na questão do método o levou a escrever uma célebre obra intitulada o Discurso do
Método em 1637.18 Em 1641 ele publicou uma importante obra intitulada
Meditações19 e 1644 publicou outra importante obra intitulada Princípios de
Filosofia.20
Das obras supracitadas, não há dúvidas de que o Discurso do Método ocupa
um lugar privilegiado nos estudos sobre Descartes. Ao comentar a importância
dessa obra, Mondin (1980, p.263) afirma:
O Discurso do Método, o “manifesto” da nova filosofia, é a primeira
obra filosófica importante de Descartes. De fato, neste breve e
revolucionário ensaio, anunciam-se claramente os quatro
delineamentos característicos da Filosofia: autonomia da filosofia,
orientação gnosiológica, interesse pelo método, antropocentrismo.21

Essas são em linhas gerais as ideias e os fatos que conferem a Descartes um


lugar privilegiado na filosofia moderna. Outro grande luminar do período do
Racionalismo foi o judeu holandês Baruch de Espinosa. Mondin (1981, p.84) faz a
seguinte observação sobre a importância de Espinoza para a história da Filosofia:
Depois da morte, Espinosa permaneceu quase totalmente ignorado
durante cerca de um século, quando em tão foi descoberto pelos
pensadores alemães (Lessing, Jacobi, Mendelssohn, Herder, e pelos
idealistas) que se tornaram seus admiradores fervorosos e lhe
asseguraram um lugar entre os maiores pensadores de toda a
História.22

Na exposição que faz o mesmo autor do pensamento de Espinosa, ele o


subdivide em quatro tópicos: caráter ético-matemático, Deus ou substância, o
homem, e religião e política.23 Já o filósofo Nicola Abbagnano (2000, p.105) lista os
seguintes tópicos estruturais: a unidade substancial, a necessidade, a ordem
geométrica, pensamento e extensão, escravidão e liberdade do homem, o direito
natural como necessidade, a religião como obediência, e a liberdade investigativa. 24

18 Ibidem, p.46.
19 MONDIN, Battista. Curso de Filosofia. Vol.2. São Paulo: Edições Paulinas, 1981, p. 63.
20 Ibidem, p.63.
21 MONDIN, Battista. Introdução à Filosofia: problemas, sistemas, autores, obras. São Paulo:

Paulus, 1980, p. 263.


22 MONDIN, Battista. Curso de Filosofia. Vol.2. São Paulo: Edições Paulinas, 1981, p. 84.
23 MONDIN, Battista. Curso de Filosofia. Vol.2. São Paulo: Edições Paulinas, 1981, p. 87.
24 ABBAGNANO, 2000, p. 105-124.

16
Segundo Scruton (2008, p.70) lista os seguintes tópicos: o método geométrico,
substância, monismo, a mente e seu lugar na natureza, pessoas e coisas,
conhecimento, liberdade, emoção, atividade e passividade, e o amor intelectual de
Deus.25
A exposição que Scruton (2008, p.71) faz da filosofia de Espinosa é didática e
parece fazer jus ao substancial do pensamento espinosano. Em face disso, far-se-á
na sequência, uma apresentação em linhas gerais de ‘alguns’ tópicos de tal
pensamento.
Começando pelo método geométrico, cabe lembrar que Espinosa, ao escrever,
tomou como mote racional a geometria de Euclides26. No entender de Espinosa, as
verdades dos axiomas deveriam ser vistas como necessárias, e as definições
fundamentavam sua formulação. As logicidades dos passos levavam-no até
teoremas que eram tão verdadeiros, quanto os axiomas de que derivam.27
Quanto ao conceito de substância, na Ética28 ele aparece como epíteto de
Deus (para falar de Deus). Na Ética, a substância aparece como a causa de si
mesma (causa sui)29. Tal definição tem como objetivo provar a existência da
substância referida (Deus).30 Após estabelecer ontologicamente a existência da
substância e qualificá-la como sendo Deus, Espinosa passa então a qualificá-la:
infinita, única, livre, imutável e eterna.31 Por fim, Espinosa conclui que Deus possui
um infinito número de atributos, embora apenas dois sejam acessíveis ao intelecto
humano: pensamento e extensão.32
Quanto a relação das pessoas com as coisas, sua validade está no fato de que
ela ajuda a responder à questão: o que, então, nós somos?33 Porque a questão é: se
há apenas uma única substância, como é possível falar em individualidade? A fim de
responder tal questão, Espinosa recorre à metáfora da cera. No entender de

25 SCRUTON, Roger. Uma breve história da Filosofia moderna: de Descartes a Wittgenstein. Rio
de Janeiro: José Olympio, 2008, p. 70-89.
26 Euclides de Alexandria foi um dos mais proeminentes matemáticos da Antiguidade. É conhecido

pelo seu tratado matemático - Os Elementos - que é a obra matemática mais duradoura de todos os
tempos, utilizada até os dias de hoje. A obra está dividida em 13 livros. Os seis primeiros tratam da
Geometria plana elementar.
27 Ibidem, p. 71.
28 Espinoza, Baruch. Ética. 2ª. Edição. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
29 MONDIN, Battista. Curso de Filosofia. Vol.2. São Paulo: Edições Paulinas, 1981, p. 87.
30 Ibidem, p. 87.
31 Ibidem, p. 87.
32 MONDIN, Battista. Curso de Filosofia. Vol.2. São Paulo: Edições Paulinas, 1981, p. 87.
33 SCRUTON, Roger. Uma breve história da Filosofia moderna: de Descartes a Wittgenstein. Rio

de Janeiro: José Olympio, 2008, p. 80.

17
Espinosa, enquanto as coisas resistem aos danos, os organismos evitam os
danos.34
Ainda conforme Scruton (2008, p.79), há também a questão da liberdade. No
caso de Espinosa o tema da liberdade está intrinsicamente ligado à noção de
necessidade. Por isso, fala-se em determinismo espinosano.35 Uma necessidade
presa a identidade da única substância possível: Deus.36 Logo, na filosofia de
Espinosa parece não haver espaço para a liberdade do homem (fixo na ordem
causal-necessária dos eventos da natureza).
Por fim, há um conceito central para o pensamento espinosano que é o
chamado amor intelectual de Deus. Um amor que necessariamente se volta para a
realidade (Deus), ou que discernindo as coisas no mundo, se voltar para ele com
amor.37 De acordo com Scruton (2008, p.89), Espinosa diz que esse amor não traz
consigo traços passivos ou emocionais, mas traços ativos e intelectuais.38
Há outro elemento bem peculiar na vida de Espinosa que o conecta
diretamente ao chamado Criticismo bíblico, bem como ao Liberalismo: é a chamada
hipótese de que Moisés não foi o autor do Pentateuco.39 Tal ideia somada ao fato de
que Espinosa foi expulso da Sinagoga (por negar a interpretação tradicional da
Tanah) fizeram dele no dizer do Colin Brown40 “um pioneiro da crítica bíblica”.41
Espinosa também foi enfático em negar a inspiração das Escrituras. 42 Estas ênfases
vão reaparecer com outros contornos no pensamento liberal, o que faz de Espinosa
um precursor do liberalismo teológico do século XIX.
Após o analisar dos grandes racionalistas, cabe agora examinar o movimento
Iluminista e o legado de Kant e Hegel.

2.2 Iluminismo: Kant, Hegel e o Deísmo

34 SCRUTON, Roger. Uma breve história da Filosofia moderna: de Descartes a Wittgenstein. Rio
de Janeiro: José Olympio, 2008, p. 79.
35SCRUTON, Roger. Uma breve história da Filosofia moderna: de Descartes a Wittgenstein. Rio de

Janeiro: José Olympio, 2008, p. 83.


36 Ibidem, p. 83.
37 Ibidem, p. 89.
38 Ibidem, p. 89.
39 BRAY, Gerald. História da interpretação bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2017, p. 238.
40 Colin Brown (1932-2019; DD, University of Nottingham; PhD, University of Bristol) foi professor

sênior de teologia sistemática no Fuller Theological Seminary em Pasadena, Califórnia.


41 BROWN, Colin. Filosofia e fé bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2007, p. 49.
42 Ibidem, p. 238.

18
Segundo Abbagnado (2000, p.7), a razão encontrou no Racionalismo do século
XVII célebres representantes tais como Grócio, Descartes, Hobbes, Espinoza e
Leibniz.43 Tal ênfase teve seu elo de continuidade no movimento que ficou
conhecido como Iluminismo (em alemão Aufklärung). Segundo Kerr (2007, p.346),
define o Iluminismo nos seguintes termos:
O Iluminismo foi um movimento do século XVIII cujos primórdios são
marcados pela publicação dos Principia (1687) de Isaac Newton. Ele
enfatizava principalmente a capacidade do homem de, por meio da
razão, descobrir a verdade embutida, por um arquiteto divino, na
natureza e na consciência do homem..44

O mesmo autor compreendeu bem a essência do Iluminismo ao enfatizar sua


natureza antropocêntrica, personificada pela confiança excessiva na razão humana.
Ainda, segundo Abbagnado (2000, p.7), Kant em um escrito de 1784 que tem
como título Resposta à pergunta: o que é o Iluminismo? afirma: “O Iluminismo
constitui a emancipação de uma menoridade que só aos homens se devia”. 45 Essa
menoridade tem a ver com a incapacidade do homem de ser a fonte de sua própria
orientação. Por isso, afirmou Kant em alemão “Sapere aude!” (“Ouse ser a fonte da
própria orientação”).46
Não há dúvidas que Kant, seja aquele que talvez tenha a maior proeminência
no período iluminista. Outros dealistas como, Fichte, Schelling e Hegel, também
deixaram importantes contribuições nesse período. Para os propósitos da presente
pesquisa, será exposto em linhas gerais as ideias de Kant e Hegel.
Immanuel Kant nasceu na cidade de Königsberg. Passou a vida e ensinou. na
Universidade do mesmo lugar, consegue a livre-docência em 1755.47 Ao longo da
vida ele foi um autor extremamente prolífico. Sua Magnus Opus foi sem dúvida a
Crítica da Razão Pura publicada em 1781.48 Nessa obra, Kant procurou responder à
questão: quanto à metafísica Kant, perguntar se ela é possível como ciência? A obra
gerou muitos desconfortos a ponto de Frederico II, Rei da Prússia lhe enviar uma

43 ABBAGNANO, Nicola. História da Filosofia. Vol.7. 4ª ed. Lisboa: Editorial Presença, 2000, p. 7.
44 KERR, William N. in: HENRY, Carl F. H. (org.). Dicionário de Ética Cristã. São Paulo: Cultura
Cristã, 2007, p. 346.
45 KANT apud in: ABBAGNANO, Nicola. História da Filosofia. Vol.7. 4ª ed. Lisboa: Editorial

Presença, 2000, p. 7.
46 HOTTOIS, Gilbert. Do Renascimento à Pós-modernidade: uma história da filosofia moderna e

contemporânea. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2008, p. 163-164.


47 MONDIN, Battista. Curso de Filosofia. Vol.2. São Paulo: Edições Paulinas, 1981, p. 172.
48 Ibidem, p. 172.

19
carta proibindo que ele continuasse a ensinar as ideias expostas na obra. Kant de
pronto se submeteu.49
Além da Crítica da Razão Pura, Kant publicou outras obras importantes:
Fundamentos da Metafísica dos Costumes (1785) A Crítica da Razão Prática (1788),
A Crítica da Faculdade de Julgar (1791) e A religião nos limites da simples razão
(1793).
Segundo Abbagnano (2000, p.96) os escritos de Kant correspondem a três
períodos de suas pesquisas:
Na atividade literária de Kant pode distinguir-se três períodos. No
primeiro, que vai até 1760, prevalece o interesse pelas ciências
naturais. No segundo período, que vai até 1781 (ano em que foi
publicada a Crítica da Razão Pura), prevalece o interesse filosófico e
determina-se a orientação para o empirismo inglês e o criticismo. O
terceiro período, de 1781 em diante, é o da filosofia transcendental.50

Na época de Kant, ele enfrentou o impasse vivido entre empiristas e


racionalistas.51 À vista disso, houve a necessidade de lidar com a questão da origem
do conhecimento. De acordo com Sproul (2002, p.118)), Kant ao abordar a questão
vinculada à possibilidade do conhecimento se perguntou: “O que é nesse necessário
para que o conhecimento ocorra? Outrossim: sob que condições o conhecimento é
possível?”52
Em relação à questão do conhecimento na Filosofia de Kant, Mondin (1981,
p.174) a resume bem, após abordar outra levantada pelo próprio Kant sob os juízos
sintéticos a priori:
Ora, o conhecimento não é fruto nem do sujeito, nem do objeto, mas
é a síntese da relação combinada do sujeito e do objeto: o sujeito dá
a forma, o objeto a matéria; o conhecimento é o resultado de um
elemento a priori (o sujeito), e de um elemento a posteriori (o objeto):
os juízos que o exprimem já não são apenas analíticos ou só
sintéticos, mas também sintéticos a priori.53

Essa compreensão (ou formulação) fez com que Kant transcendesse o


Racionalismo e o Empirismo. Ele nem adotou um nem outro, mas ao invés disso
criou sua própria escola: o Idealismo Transcendental. De conformidade com o
excerto citado acima, Mondin (1981) sumariza essa questão afirmando que Kant

49 Ibidem, p. 172.
50 ABBAGNANO, Nicola. História da Filosofia. Vol.7. 4ª ed. Lisboa: Editorial Presença, 2000, p. 96.
51 BROWN, Colin. Filosofia e fé bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2007, p. 77.
52 SPROUL, R.C. Filosofia para iniciantes. São Paulo: Vida Nova, 2002, p. 118.
53 MONDIN, Battista. Curso de Filosofia. Vol.2. São Paulo: Edições Paulinas, 1981, p. 174.

20
empreendeu duas descobertas fundamentais: “O conhecimento não é reprodução
passiva de um objeto por parte do sujeito, mas construção ativa do objeto por parte
de um sujeito; os juízos sintéticos a priori”.54
Há pelo menos duas questões ainda a serem consideradas na filosofia de Kant:
o imperativo categórico, e a distinção noumeno (coisa em si mesma) e fenômeno.
Quanto à questão do chamado Imperativo Categórico na teoria kantiana, é
preciso observar que ele está associado à questão da lei moral (que exige uma
representação racional).55 De acordo com Hottois (2008, p.181), ele define o
Imperativo Categórico de Kant nos seguintes termos: “Um imperativo autenticamente
moral é Categórico, incondicional - ele é seu próprio fim e não se acha subordinado
a qualquer valor que lhe seja exterior”.56 Logo, o Imperativo Categórico de Kant se
apresenta como um regulador moral de caráter universal (válido para todos).57
Quanto à distinção entre Noumeno e Fenômeno Kant discute-a na relação com
aquilo que ele nominou como a coisa em si, que nas palavras de Scruton (2008,
p.186) envolve a “ênfase no empírico como a legítima esfera do conhecimento, e na
impossibilidade de se conhecer um “noumeno” ou a “coisa em si mesma”.58 O
mesmo autor expõe tal ideia de maneira ainda mais clara, quando afirma:
O mundo é um “mundo de aparência” somente no sentido de que ele
existe no tempo, consistindo em objetos e processos que ou são
percebidos por nós, ou então são relacionados de forma causal a
nossa percepção. Seria possível chamar isso de a interpretação
objetiva da teoria de Kant.59

Essa distinção claramente ameaça não só o projeto da teologia natural à qual


Kant duramente criticou em sua Crítica da Razão Pura, segundo a qual a razão

54 Ibidem, p. 174.
55 HOTTOIS, Gilbert. Do Renascimento à Pós-modernidade: uma história da filosofia moderna e
contemporânea. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2008, p. 181.
56 HOTTOIS, Gilbert. Do Renascimento à Pós-modernidade: uma história da filosofia moderna e

contemporânea. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2008, p. 181.


57 Mondin faz uma observação pertinente nesse sentido: “... Para Kant, o imperativo Categórico:

obedece à lei pela própria lei e não por outro motivo. A obediência ao imperativo constitui a essência
da moral [...] Por isso, enquanto as outras concepções éticas chamadas teleológicas, porque têm o
bem como fim supremo, a moral de Kant é chamada deontológica, porque seu fundamento único é o
dever”. Maiores detalhes in: MONDIN, Battista. Curso de Filosofia. Vol.2. São Paulo: Paulus, 1981,
p. 215-216. Kenny cita uma das formas do Imperativo Categórico como segue: “Age somente de
acordo com aquela máxima mediante a qual possas, ao mesmo tempo, querer que se converta numa
lei universal”. Ver in: KENNY, Anthony. Uma nova história da Filosofia Ocidental: o despertar da
Filosofia moderna. vol.3. São Paulo: Edições Loyola, 2009, p. 131.
58 SCRUTON, Roger. Uma breve história da Filosofia moderna: de Descartes a Wittgenstein. Rio

de Janeiro: José Olympio, 2008, p. 186.


59 Ibidem, p. 187.

21
possibilita um conhecimento seguro sobre Deus,60 como por implicação exclui Deus
do mundo da razão para introduzi-lo na esfera dos sentimentos61.
Da mesma maneira que Kant, outro luminar do período moderno, próximo do
Iluminismo, foi Hegel. Conforme Mondin (1981, p.38), Georg Wilhelm Friedrich Hegel
(1770-1831) nasceu em Stuttgart.62 No Seminário de Tübingen além do estudo da
Teologia, cultivou o interesse por filosofia moderna, sobretudo Hume e Kant. 63 Foi
contemporâneo e mais tarde adversário de Friedrich Wilhelm Schelling. Ele foi um
autor prolífico. Dentre as muitas obras que escreveu destacam-se: Fenomenologia
do Espírito (1807), Ciência da Lógica (1808), Enciclopédia das ciências filosóficas
(1816-1818), Filosofia do Direito (1818) e História da Filosofia.64
Se Kant fundou a escola de pensamento que ficou conhecida como Idealismo
Transcendental, não há como negar que dentre os grandes idealistas que se
seguiram ao próprio Kant, Hegel tenha sido o mais proeminente deles. 65 Enquanto
movimento, o Idealismo procurou ultrapassar o pensamento de Kant,
especificamente, a noção presente na Crítica da Razão Pura de que há limites
intransponíveis do que se pode conhecer.66
O historiador presbiteriano Matos (2008, p.215) descreve algumas questões
referente ao pensamento hegeliano que o conectam diretamente ao liberalismo e a
alguns nomes importantes desse período:
Georg Wilhelm Hegel (1770-1831) procurou reintroduzir um forte
conceito de Deus que não contrastasse com a mentalidade científica
moderna. Em suas Palestras sobre a Filosofia da Religião (1840), em
sua obra Preleções sobre filosofia da religião (1840), ele explicou
Deus como um Espírito (Geist) mundial imanente que está por trás
da natureza, da história e da cultura, e com elas evolui. .67

Como é possível depreender do trecho acima, vários elementos característicos


do liberalismo teológico foram antecipados e integravam o pensamento hegeliano
tais como: o panteísmo, a noção de evolução histórica, uma filosofia da história, e a

60 MONDIN, Battista. Curso de Filosofia. Vol.2. São Paulo: Edições Paulinas, 1981, p. 214.
61 Essa última apreensão servirá de base para Schleiermacher desenvolver suas ideias.
62 MONDIN, Battista. Curso de Filosofia. Vol.3. São Paulo: Paulus, 1981-1983, p. 38.
63 Ibidem, p. 38.
64 Ibidem, p. 38-39.
65 HOTTOIS, Gilbert. Do Renascimento à Pós-modernidade: uma história da filosofia moderna e

contemporânea. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2008, p. 195.


66 Ibidem, p. 194.
67 MATOS, Alderi de Souza. Fundamentos da teologia histórica. São Paulo: Mundo Cristão, 2008,

p. 215-216.

22
noção de Deus como um conceito. O panteísmo mencionado é descrito por Marías
(2004, p.349):
Para Hegel, a realidade é o absoluto, que existe numa evolução
dialética de caráter lógico, racional [...] Tudo o que existe é um
momento do absoluto, um estágio dessa evolução dialética, que
culmina na filosofia, em que o espírito absoluto possui a si mesmo no
saber.68

O Idealismo hegeliano é de caráter absoluto na sua pretensão. Entretanto, é


preciso discernir corretamente o que Hegel quer expressar em seu idealismo
absoluto. Nas palavras do historiador Hottois (2008, p.174): “O Idealismo é isto: a
afirmação segundo a qual o sujeito é fonte de si mesmo e do mundo; ele constitui
tudo e ao mesmo tempo conhece, sem exceção, a totalidade do real. Esse
conhecimento total e absoluto é a ciência, que não se distingue da filosofia”.69
Tillich (1999, p.134) compara Hegel a Schleiermacher em termos de síntese.
Nesse sentido, o autor afirma: “Schleiermacher foi o construtor da grande síntese
teológica. Seu colega Hegel, da Universidade de Berlim, no começo do século
dezenove, realizou a síntese filosófica”.70 A súmula a que o autor menciona envolve:
Deus e o homem, a igreja e o estado, Religião e cultura.71 Tal sinopse foi
desenvolvida por meio de cinco princípios: o da identidade e do real, da contradição,
da mediação, da relação e do historicismo.72
O teólogo Geisler (2002, p.379) trata de Hegel e divide sua exposição em
cinco partes, no final, oferece uma avaliação crítica do pensamento do filósofo em
duas partes: valores positivos e crítica negativa.73 Quanto aos aspectos negativos, o
autor menciona: o panteísmo (ou panenteísmo), os fundamentos para a crítica
bíblica, o antissobrenaturalismo que envolve a negação da ressurreição física, a
ideia de que a determinação é por negação, sua interpretação espiritual e sua
incapacidade de alicerçar o conhecimento em um Deus imutável.74

68 MARIAS, Julián. História da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 349.
69 HOTTOIS, Gilbert. Do Renascimento à Pós-modernidade: uma história da filosofia moderna e
contemporânea. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2008, p. 194.
70 TILLICH, Paul. Perspectivas da teologia protestante nos séculos XIX e XX. 2ª ed. São Paulo:

ASTE, 1999, p. 134.


71 Ibidem, p. 137-147.
72 MONDIN, Battista. Curso de Filosofia. Vol.3. São Paulo: Paulus, 1981-1983, p. 43-46.
73 GEISLER, Norman. Enciclopédia de apologética: respostas aos críticos da fé. São Paulo: Editora

Vida, 2002, p. 379-382.


74 Ibidem, p. 382.

23
Um último aspecto vinculado ao liberalismo teológico do século XIX, bem como
a alguns nomes anteriores a tal período, é o Deísmo. Matos (2008, p.210)
contextualiza o Deísmo nos seguintes termos:
No contexto do Iluminismo da pós-Reforma, surgiu uma expressão
inteiramente nova da teologia cristã, diferente de tudo o que havia
existido até então. Trata-se do deísmo ou religião natural, que
afirmou a autoridade suprema da razão em todas as questões
religiosas.75

A ideia básica que perpassou o movimento do Deísmo foi a ideia de um Deus


transcendente. Um Deus que criou o mundo, o entregou às leis naturais, e se
evadiu dele. Ou seja, um Deus que não se relaciona com o mundo (a criação).76
Como a transcendência divina nesse sistema é radical, logo não há intervenções
providentes e milagrosas. Geisler (2005, p.245) nominar o Deísmo de “Teísmo sem
milagres”.77 É associada ao Deísmo que associa a metáfora do relógio. Assim como
um relojoeiro aciona a corda e o relógio funciona, assim teria Deus criado o mundo
e o entregado às suas leis naturais. Tal pensamento não deixa dúvidas de que o
Deísmo é, em grande medida, uma certa expressão do Racionalismo.
Matos (2005, p.210) resume bem e, ao mesmo tempo, critica o Deísmo nos
seguintes termos:
Os deístas procuraram adaptar o Cristianismo à mentalidade
iluminista, motivo pelo qual o Deísmo é considerado a religião do
Iluminismo. Seu objetivo era reconstruir o pensamento cristão, sob
pena de que se tornasse irrelevante no novo mundo científico.78

Embora a tentativa dos deístas de apresentar a fé em termos modernos seja


louvável, tal tentativa fracassou, uma vez que, em nome dela, eles criaram um Deus
que se distancia do teísmo clássico, além de criar um abismo em relação a pontos
cruciais da fé mantida pelo cristianismo histórico.
Na linha de continuidade do Racionalismo e do Iluminismo, há que se analisar
o movimento Romântico e o legado de Friedrich Schleiermacher.

2.3 Romantismo e Friedrich Schleiermacher

75 MATOS, Alderi de Souza. Fundamentos da teologia histórica. São Paulo: Mundo Cristão, 2008,
p. 210.
76 GEISLER, Norman. Enciclopédia de apologética: respostas aos críticos da fé. São Paulo: Editora

Vida, 2002, p. 245-246.


77 Ibidem, p.245.
78 MATOS, Alderi Souza de. Fundamentos Da Teologia Histórica São Paulo: Editora: Mundo
Cristão, 2008, p. 210.

24
No final do século XVIII, a desconfiança em relação à ênfase extremada de que
o Racionalismo tributara à razão gerou algumas reações enérgicas. E tais reações
ao invés de surgirem no âmbito das Universidades, surgiram nos meios artísticos e
literários.79 Nesse ínterim, marcaram sua influência os irmãos Friedrich e August
William Schlegel.80 Esse movimento foi tão marcante e influente, que nem o pai do
Liberalismo, Friedrich Schleiermacher escapou de tal influência. Tillich (1999, p.100)
diz que “Schleiermacher é considerado um filósofo romântico”.81
Além de Schleiermacher, Tillich (1999, p.100) inclui entre os românticos
Schelling, Schlegel e Rothe.82 O autor ao abordar os elementos constitutivos do
Romantismo menciona três elementos: estéticos e emocionais, volta ao passado e
valorização da tradição e busca de unidade e autoridade.83 Mondin (1981, p.11) por
outro lado esboça tais elementos da seguinte forma:
O romantismo é um movimento inspirado nos seguintes princípios: a)
O reino da natureza é maior e mais autêntico que o da cultura. b)
Sentimento e fantasia são capazes de perceber dimensões
(religiosas, morais e estéticas) da realidade que escapam à razão. c)
O indivíduo não é uma ilha ou um satélite vagando sozinho pelo
mundo, mas faz parte de um grande organismo.84

Tudo o que foi dito sobre o Romantismo no parágrafo acima demonstra que, ao
mesmo tempo em que ele se volta contra o Iluminismo e o Racionalismo, por outro
lado, ele se volta para a subjetividade humana, principalmente, em seus aspectos
emocionais.
Na esteira do Romantismo, cabe ressaltar a figura proeminente de
Schleiermacher que é reconhecido como o pai do Liberalismo.85 Ele nasceu em
Breslau, na Prússia (1768-1834). Durante sua vida de docente ensinou teologia e
exerceu a filologia (inclusive traduzindo os diálogos de Platão) em Halle e Berlim.86
Por meio de sua obra, influenciou, decisivamente, a história da teologia e do
Cristianismo. Grenz e Roger (2003, p.43) ao falar da importância e do impacto que

79 MCGRATH, Alister E. Teologia Sistemática, Histórica e Filosófica: uma introdução à teologia


cristã. São Paulo: Shedd Publicações, 2005, p. 133.
80 Ibidem, p. 133.
81 TILLICH, Paul. Perspectivas da teologia protestante nos séculos XIX e XX. 2ª ed. São Paulo:

ASTE, 1999, p. 100.


82 Ibidem, p.100.
83 Ibidem, 105-110.
84 MONDIN, Battista. Curso de Filosofia. Vol.3. São Paulo: Paulus, 1981-1983, p. 11-12.
85 GUIMARÃES, Valtemir Ramos e JÚNIOR, João Luiz Correia. O Fundamentalismo bíblico e suas

consequências pastorais. Recife: Comunicação Multiplicidade Criativa, 2015, p. 28.


86 GEISLER, Norman. Enciclopédia de apologética: respostas aos críticos da fé. São Paulo: Editora

Vida, 2002, p. 804.

25
a obra de Schleiermacher afirmam: Ele é para a teologia cristã o que Newton é para
a física, Freud para a psicologia e Darwin para a biologia. Ou seja, ele pode não ter
sido a autoridade absoluta, mas foi o desbravador e pensador de vanguarda. Sua
influência é sutil, mas profunda no cristianismo ocidental.87
De fato, o escopo da obra e do pensamento de Schleiermacher pode ser
comparado aos grandes gigantes do pensamento cristão ao longo dos séculos tais
como: Orígenes, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, Lutero e Karl Barth. Suas
principais obras no campo teológico foram: Da Religião (1799), A fé cristã (1821-
1822) e hermenêutica (publicado postumamente).88 Segundo Geisler (2002, p.804),
as influências que formaram o pensamento de Schleiermacher são o pietismo e o
agnosticismo de Kant.89
Grenz e Olson (2003, p.804) enumeram cinco pontos centrais no pensamento
de Schleiermacher: a reação ao Iluminismo, o método teológico, inovações
doutrinárias, Deus e a Cristologia.90 Quanto à reação de Schleiermacher ao
Iluminismo os mesmos autores dizem: “Foi na ênfase romântica ao sentimento que
Schleiermacher encontrou a pista para reconstruir o Cristianismo de forma que este
não entrasse em conflito com o espírito fundamental da cultura moderna”.91
Quanto ao método desenvolvido por Schleiermacher Grenz e Olson (2003,
p.52), ressaltam o caráter ambivalente de tal método: O pensamento de
Schleiermacher centrou-se na experiência humana, deixou de lado a autoridade e
procurou construir o conhecimento 'de baixo' Movimento romântico em sua ênfase
no sentimento e no conhecimento intuitivo.
Mas, enquanto o Iluminismo desejava restringir a religião exclusivamente aos
limites da razão, Schleiermacher a restringia exclusivamente aos limites da devoção.
Seu método teológico fazia uso do movimento romântico em sua ênfase no
sentimento e no conhecimento intuitivo, evitando, ao mesmo tempo, o subjetivismo e
irracionalidade do Romantismo.92

87 GRENZ, Stanley J. e OLSON, Roger E. A teologia do século 20: Deus e o mundo numa era de
transição. São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 43.
88 GEISLER, Norman. Enciclopédia de apologética: respostas aos críticos da fé. São Paulo: Editora

Vida, 2002, p. 804.


89 Ibidem, p. 804-805.
90 GRENZ, Stanley J. e OLSON, Roger E. A teologia do século 20: Deus e o mundo numa era de

transição. São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 47-55.


91 Ibidem, p.48.
92 GRENZ, Stanley J. e OLSON, Roger E. A teologia do século 20: Deus e o mundo numa era de

transição. São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 52.

26
Quanto às inovações doutrinárias empreendidas por Schleiermacher em sua
reflexão teológica, duas merecem uma menção especial: a não centralidade da
Bíblia e a negação da inspiração e infalibilidade da Bíblia. 93 Nem mesmo Deus
escapou das inovações de Schleiermacher. Em relação a ele, enquanto conceito e
objeto de reflexão teológica Grenz e Olson (2003, p.53) afirmam que “para
Schleiermacher o critério para determinar os atributos apropriados de Deus é o
sentimento de dependência.94 Ele afirma:
Deus é a realidade que determina tudo o mais, é a causa absoluta de
tudo. Tanto o que é bom quanto o que é mau é o que realiza ações,
mas não está sujeito a elas. Ao lidar com as implicações dessa
experiência, ele conclui: "Deus é a causa real de todas as coisas".95

Ainda, Grenz e Olson (2003, p.53) ao comentarem o quinto elemento


(Cristologia) salientam a ruptura brusca que Schleiermacher operou ao negar a
crença histórica nas duas naturezas, bem como da encarnação:
E quanto a Jesus Cristo? Schleiermacher rejeita a doutrina
tradicional da Encarnação, substituindo-a por uma Cristologia
baseada na experiência da consciência de Deus. Ele criticava a
doutrina clássica das duas naturezas de Jesus (humana e divina)
como sendo ilógica. Duas “naturezas” não podem coincidir em um
único indivíduo.96

Por essas e outras questões é que Schleiermacher marcou decisivamente a


história da teologia, e influenciou todo o movimento liberal que se desencadeou nos
anos que seguiram a sua morte. Seu trabalho influenciou diretamente os trabalhos
de Albretch Ritschl, Adolf Von Harnack e mais recentemente Paul Tillich.

2.4 Uma avaliação


O Racionalismo enquanto filosofia enfatiza a razão como meio de determinar a
verdade. À mente, é dada autoridade sobre o sentido, o a priori sobre o a posteriori.
Os racionalistas são geralmente fundacionalistas que afirmam que existem
princípios primeiros do conhecimento, sem os quais nenhum conhecimento é
possível.

93 Ibidem, p. 52-53.
94 Ibidem, p.53.
95 Ibidem, p.53.
96 GRENZ, Stanley J. e OLSON, Roger E. A teologia do século 20: Deus e o mundo numa era de

transição. São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 55.

27
Para um racionalista, a razão arbitra a verdade, e a verdade é objetiva. O
Racionalismo a priori propõe que se pode alcançar o conhecimento de Deus pelo
uso da razão humana que não é auxiliada por experiências sensoriais, ou qualquer
tipo de raciocínio alicerçado indutivamente a partir do que é observado ou
encontrado no mundo. E a posteriori, propõe que se pode adquirir conhecimento de
Deus pelo uso da razão humana que considera características do mundo em que se
vive.
O Racionalismo como um todo tem dimensões positivas e negativas para um
apologista. O racionalismo ilimitado que nega toda revelação especial é obviamente
inaceitável para um teísta. Nem qualquer forma de racionalismo que negue o teísmo
está de acordo com o cristianismo ortodoxo.
No entanto, a ênfase do fundacionalismo na necessidade de primeiros
princípios é verdadeira e valiosa. Também valiosa é a crença na verdade objetiva. A
ênfase do racionalista na natureza exclusiva das alegações de verdade, também, é
um benefício para a apologética cristã.

28
Capítulo 3. ORIGEM, CONCEITUAÇÃO, REAÇÃO E ANÁLISE TEOLÓGICA DO
IMPACTO DO LIBERALISMO TEOLÓGICO DO SÉCULO XIX

3.1 Origem do Liberalismo Teológico do século XIX


O presente capítulo apresenta o Liberalismo Teológico do século XIX, e analisa
seus quatro vetores: sua origem, conceito, características e impacto.
Antes de se passar para a argumentação da proposta da seção, vale
esclarecer que o protestantismo de cunho liberal é o quarto grande eixo da breve
história do Protestantismo que teve origem na Reforma Protestante do século XVI. E
apesar de ser um movimento, em termos históricos, recente, suas marcas ainda
podem ser facilmente sentidas tanto na prática cúltica, quanto na prática acadêmica
de muitas instituições evangélicas.
Durante o século XVIII, os pensadores iluministas estavam confiantes de que a
mente humana poderia discernir todas as formas de verdade apenas pelo uso da
razão. Para esses pensadores, o estudo da natureza, não a revelação sobrenatural,
prometia as respostas mais confiáveis para as questões fundamentais da existência
humana. Esses estudiosos, que passaram a ser conhecidos como “neólogos” ou
“inovadores”, questionaram as doutrinas de inspiração bíblica que haviam sido
articuladas desde a Era da Reforma. Eles também desafiaram o sobrenaturalismo
do Cristianismo em todas as suas formas, incluindo as históricas doutrinas cristãs da
Trindade, a divindade de Cristo, o nascimento virginal, os milagres de Jesus, a
ressurreição e a expiação.
Conforme afirmação do teólogo e filósofo Champlin (1991, p.803), o
Liberalismo Teológico baseia suas raízes principais :
As muitas crenças judaicas e cristãs eram vistas como obsoletas,
diante das descobertas da ciência. Onde a ciência contradisse a
Bíblia, ela foi dada à ciência. Muitos estudiosos liberais têm sido
estudiosos notáveis, algo que muitas vezes falta aos estudiosos
conservadores. Os liberais eram os mestres da erudição, e o anti-
intelectualismo dos conservadores só serviu para prejudicar sua
causa.97

97CHAMPLIN, R. N. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia. São Paulo: Editora Hagnos,


1991, p. 803.

29
De forma cronológica, esse movimento tem o seu nome ligado, pioneiramente,
ao teólogo Schleiermacher, cuja influência foi tão intensa a ponto de ele ser
intitulado por alguns de “o Kant da teologia moderna”.98
Grenz e Olson (2003, p.81) comentam a importância de Schleiermacher, e
afirmam: Ele já foi chamado de “Príncipe da Igreja” e um dos poucos gigantes do
pensamento cristão, o mais influente teólogo desde Calvino e o fundador do
pensamento teológico e religioso moderno.99
Como se pode depreender da citação em epígrafe, a influência e o legado de
Schleiermacher não foram sentidos apenas em seus dias, mas, ainda hoje, é
possível observar tal patrimônio nos variados movimentos que se fazem herdeiros
da teologia liberal tais como: o movimento do Criticismo bíblico, a teologia
existencialista de Tillich e os teólogos da morte de Deus.100
Sintetizando os princípios que norteiam e fundamentam a teologia liberal
Mondin (1979, p.9) afirma: “O Protestantismo Liberal, isto é, a teologia protestante
do século XIX, inspira-se em dois princípios aparentemente contraditórios de Kant:
a) a remoção da religião da esfera especulativa; b) a redução do Cristianismo aos
limites da razão”.101
Portanto, pode-se afirmar que a influência de Kant sobre o movimento liberal foi
marcante. E, por extensão, tal influência chega a Schleiermacher que foi a gênese
do movimento.102 Igual a todo movimento identitário, o liberalismo também tem seu
ponto de partida. Possui um marcador temporal que estabelece sua origem. E
desde seu nascimento, ele se tornou, sem dúvida, um dos movimentos mais
importantes que surgiu no pensamento cristão moderno.
Nesse sentido, McGrath (2005, p.138) afirma que: Suas origens são
complexas. No entanto, fica mais fácil compreendê-lo se considerarmos como seu

98 MCDERMOTT, Gerald R. Grandes teólogos: uma síntese do pensamento teológico em 21 séculos


de igreja. São Paulo: Vida Nova, 2013, p.145. Na mesma página o autor inicia o capítulo com o
seguinte título e subtítulo: “FRIEDRICH SCHLEIERMACHER – o pai da Teologia liberal”.
99GRENZ, Stanley J. e OLSON, Roger E. A teologia do século 20. Deus e o mundo numa era de

transição. 2003, p.43.


100 Para maiores informações sobre o Criticismo bíblico, Paul Tillich e os teólogos da morte ver in:

CLOUSE, Robert G., PIERAD, Richard V., e YAMAUCHI, Edwin M. Dois reinos: a Igreja e a Cultura
ao longo dos séculos. São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p.513; LANE, Tony. Pensamento Cristão.
São Paulo: Abba Press, 2007, p.139-141; GRENZ, Stanley J. e OLSON, Roger E. A teologia do
século 20. Deus e o mundo numa era de transição. 2003, p.186-191.
101 MONDIN, Battista. Os grandes teólogos do século XX. vol.2. São Paulo: Paulinas, 1979-1980, p.

9.
102 Ibidem, p. 9.

30
ponto de partida a reação ao programa teológico elaborado por Schleiermacher,
particularmente no que diz respeito à sua ênfase sobre o sentimento humano.103
O autor ainda afirma que:
O protestantismo liberal clássico surgiu em meados do século XIX na
Alemanha em meio a uma crescente percepção de que a fé cristã e a
teologia precisavam ser revisadas à luz do conhecimento moderno.
Na Inglaterra, com a recepção cada vez mais positiva da teoria da
seleção natural de Charles Darwin, criou-se um ambiente no qual
alguns elementos da teologia cristã tradicional pareciam
insustentáveis.104

Os estudiosos do pensamento cristão moderno são quase unanimes em


conferir a Schleiermacher a posição de pai da teologia moderna (protestante liberal).
É um dos poucos gigantes do pensamento cristão, o mais influente teólogo desde
Calvino e o fundador do pensamento teológico e religioso moderno.105 De posse dos
pressupostos em tela, não há dúvidas de que a partir de “Schleiermacher” nasce a
“Teologia protestante liberal”.

3.2 Conceituando o Liberalismo Teológico

Entre o final do século XVIII e o início do século XIX, surgiu o movimento


teológico denominado “Liberalismo Teológico”. Esse movimento colocou em dúvida
a autoridade da Bíblia Sagrada, relativizando tal autoridade. Ao mesmo tempo,
estabeleceu-se e implantou-se uma mescla de doutrinas bíblicas com Ciência e
Filosofia da Religião. Aliás, no Iluminismo, tais ênfases apareceram com muita força.
A Teologia Liberal oficialmente teve início no meio protestante com o alemão
Schleiermacher. Além de negar a autoridade da Bíblia, esse teólogo negava,
veementemente, a historicidade e os milagres de Jesus Cristo. Para justificar suas
posturas, ele não deixou uma só doutrina bíblica sem contestação. Contudo,
defendia que o sentimento humano era mais que suficiente para salvação da
pessoa, ou seja, o simples sentir a comunhão com Deus já implicava que a alma

106MCGRATH, Alister Teologia sistemática, história e filosofia: uma introdução a teologia cristã
São Paulo: Shedd Publicações, 2005, p. 138.
110 GRENZ, Stanley J. e OLSON, Roger E. A teologia do século XX, São Paulo: Cultura Cristã,

2003, p. 43.

31
dela estaria salva, e que não precisaria crer necessariamente no evangelho de
Jesus Cristo.
Décadas depois de Schleiermacher, outro teólogo alemão também questionou
a autoridade bíblica, dessa vez, o historiador e exegeta alemão Albrecht Ritschl.
Conforme Mcgrath (2005, p. 251) afirma que Ritschl pontua que a experiência do
indivíduo valia mais do que a revelação das Escrituras Sagradas. Ele pregava que
Jesus só era Filho de Deus, porque muitos assim acreditavam, Jesus era apenas um
grande gênio religioso. Ele também negou sistematicamente a santificação e
expiação de Jesus Cristo pelos pecados da humanidade. Em sua teologia, ele
ensinava que o ingresso ao Reino de Deus se dava pela prática da boa-fé, caridade
e de comunhão entre as pessoas, e não pela fé em Jesus Cristo106.
Outro discípulo da teologia liberal foi Ernst Troeltsch. Marcado pelo espírito da
época, ele foi um defensor caloroso das teorias acima abordadas. Segundo Mcgrath
(2005, p. 461-462) diz que Troeltsch apregoava que o Cristianismo era apenas uma
entre tantas outras religiões, e Deus se revelava em todas as outras religiões da
mesma forma. No Cristianismo, porém, ele considerou a melhor delas pela natureza
das revelações que lhe são peculiares. Dessa maneira, tal como Schleiermacher,
Troeltsch defendia a salvação de não cristãos por essa alegada “revelação de Deus”
que havia em outras religiões também107.
Pelo exposto, demonstra-se que o Liberalismo Teológico do século XIX foi um
movimento associado especialmente à Alemanha do mesmo século que vivia um
ambiente que enfatizava a ligação entre a religião e a cultura. Nesse período, as
tendências do pensamento protestante alemão traziam as mesmas características
da primeira metade do século XVIII que, na época, fora dominada pela ‘era da
razão’.
Em decorrência desses fatos, acontece a funesta consequência da redução do
cristianismo aos limites da razão. Então, partindo-se desses princípios,
Schleiermacher, Hegel, Feuerbach, Nietzsche, Strauss, Baur, Ritschl e Harnack
tenderam para a secularização total do cristianismo. A teologia liberal tem levantado
inúmeros ataques contra as Sagradas Escrituras, mas, ao mesmo tempo, há

106 MCGRATH, Alister E. Teologia Sistemática, Histórica e Filosófica: uma introdução à teologia cristã.
São Paulo: Shedd Publicações, 2005, p.251.
107 Ibidem, p.461-462.

32
reações entre elas. Aquela que talvez tenha tido maior expressão tardiamente
(século XX) se deu por meio do “Fundamentalismo Teológico”.
A Teologia Protestante Liberal teve como seus adeptos grandes professores do
campo teológico acadêmico de diversas áreas da filosofia, teologia e religião,
trazendo assim, uma nova e forte corrente filosófica na “tentativa” de denegrir as
verdades absolutas das Santas Sagradas Escrituras. Lopes (2008 p.194).
Nicodemus aduz que o cristianismo liberal em sua tentativa de unir o racionalismo
com a exegese bíblica, para isso desenvolveu o método histórico-crítico, afirmando
que a Bíblia deixou de ser a palavra de Deus para se tornar o testemunho de fé do
povo de Israel e da igreja primitiva.108 Schleiermacher adotou o método histórico-
crítico em seus trabalhos. O primeiro deles foi um artigo sobre 1 Timóteo (1807)
desconstruindo a mensagem e rejeitando a autoria de Paulo.

3.3 Características do Liberalismo Protestante Teológico

Couch (2009) cita que o teólogo anglicano Packer identifica cinco


características básicas da cosmovisão do liberalismo, na virada do século:
3.3.1 Deus é pura benevolência - benevolência sem comparação;

3.3.1.1 Cada ser humano tem dentro se si mesmo a centelha divina;

3.3.1.2 Jesus Cristo é o Salvador apenas no sentido de que ele é um perfeito mestre
e um exemplo moral.

3.3.1.4 Cristo diferente apenas comparativamente de outras pessoas, e o


cristianismo difere de outras religiões meramente como a melhor que apareceu.

3.3.1.5 A Bíblia é um testemunho humano de religião, dessa maneira, o cristianismo


não tem nenhuma autoridade inerente provinda de Deus sobre outros
comportamentos éticos ou experiências religiosas.109

108 LOPES, Augustus Nicodemus. O que estão fazendo com a Igreja. São Paulo: Mundo Cristão,
2008. p. 194.
109 Edward e Hindson in: COUCH, Mal. (ed). Os fundamentos para o século 21: examinamos os

principais temas da fé cristã. São Paulo: Hagnos, 2009, p. 20-21.

33
Nesse sentido, o teólogo Stanley Gundry (1983, p.17), apresenta sete
características que influenciaram os teólogos liberais e seus pensamentos:
Historicismo, Cientismo, A Crítica, O Racionalismo, O Toleracionismo, O Otimismo,
O Kantianismo.110)
Para maior compreensão e defesa da tese postulada nessa pesquisa, far-se-á
um breve comentário de cada uma delas, como segue.

3.3.2 Historicismo
Os cânones da história científica (frequentemente chamada historiografia)
foram refinados durante o iluminismo juntamente com os mais altos padrões para a
exatidão e subjetividade históricas. Isso levou a um contínuo questionar a
credibilidade histórica das matérias também históricas nas Sagrada Escrituras. Para
Maia (2008, p. 66), Ramm afirma que: “Quando o historicismo é aplicado à história
de Israel, à vida de Cristo e à história da igreja cristã registrada no livro de Atos, todo
o normativo, único ou sobrenatural é dissolvido”.111

3.3.2.1 O Cientismo
A ciência moderna, desde Galileu até o presente momento tem sido uma
história de sucesso. Consequentemente, já não é considerada tarefa dos filósofos
narrar acerca do mundo em geral, ou do mundo nos seus pormenores. A ciência é
considerada capaz de dar uma resposta sólida. Além das informações avulsas, ela
fornece uma visão cientifica, ou retrato da realidade que substitui a visão e
cosmovisão que os homens tinham e pensaram no passado. Para a mentalidade
do pensamento iluminista, por sua vez, significa que aonde as Escrituras entram em
conflito com a ciência moderna, como por exemplo a geologia, a astrologia, e a
biologia em especial, então as Escrituras devem ceder lugar à ciência.

3.3.2.2 A Crítica
Estudos nos manuscritos dos períodos medieval e clássico têm revelado que
muitos documentos que alegam ser autênticos e fidedignos realmente não o são.
Como consequência, todos os documentos do passado devem ser cuidadosamente

110
GUNDRY, Stanley. Teologia Contemporânea. São Paulo: Mundo Cristão, 1983, p.17.
111 COSTA, Hermisten Maia Pereira da. Raízes da teologia contemporânea. São Paulo: Cultura
Cristã, 2008, p. 66.

34
perscrutados quanto à autenticidade, à exatidão e à fatualidade. Os documentos já
não podem ser aceitos por aquilo que parecem ser.
As Sagradas Escrituras são sujeitas ao mesmo escrutínio. Alega-se que o
Pentateuco é uma serie de fragmentos literários colados juntos, ao invés de se tratar
de um só livro, e que foi composto em um período posterior à história de Israel, e
não anterior. Os Evangelhos não foram escritos pelos homens alegados pela Igreja.
Pelo contrário, eram produções de homens desconhecidos, na igreja cristã durante
sua história mais antiga. O livro de Isaias foi escrito por duas mãos, e talvez até
mesmo três. Esse tipo de crítica tem sido codificado com o título de “alta crítica”.

3.3.2.3 O Racionalismo
Os deístas eram pioneiros na teologia que esposaram o dito de que a razão é
o teste de toda a verdade, inclusive da verdade religiosa. Tinham sido antecipados
pelos fundadores da filosofia moderna que percorreram um roteiro secular na
metodologia filosófica, embora ainda acreditassem em Deus. Esta confiança na
razão foi resumida por Kant, a razão é a rainha na ciência, ou no conhecimento; na
ética e na religião; e na beleza, ou na estética.

3.3.2.4 O Toleracionismo
A tolerância é a virtude suprema em questão de religião, e o dogmatismo é a
atitude mais repreensível. A implicação tende ao ecumenismo, não somente das
comunhões cristãs, mas também das religiões do mundo. Ademais, uma religião
natural, composta dos melhores elementos de muitas religiões, é preferível. Isto
acarreta o fim da teologia cristã vigorosa e forte.

3.3.2.5 O Otimismo
A mentalidade do Iluminismo já não acredita na sombria doutrina do pecado
original. O progresso da humanidade, levado a efeito nos avanços de todas as
ciências, bem como um conhecimento melhor da psicologia e da sociologia,
significam que a raça humana está na curva ascendente. A Doutrinas do homem e
desta vida como fardo, carregar a cruz, cederam lugar a conceitos mais otimistas
dos poderes do homem e da alegria e vitalidade da vida aqui e agora.

3.3.2.6 O Kantianismo

35
De muitas maneiras, ele foi o fundador teórico do liberalismo religioso.
Muitos teólogos liberais basearam-se diretamente na filosofia de Kant. Quando Kant
o fez, deu à religião uma forte interpretação ética. Suas teses propostas na Crítica
da Razão Pura fizeram muito para desacreditar a apologética da teologia ortodoxa,
bem como a possibilidade de uma religião sobrenatural.

3.4 Teologia Liberal: uma avaliação


O liberalismo teológico é um movimento que surgiu a partir do iluminismo e do
racionalismo. A Teologia liberal foi uma cosmovisão alicerçada na noção de que
somente a ciência podia explicar a realidade. Assim, liberalismo teológico, com
efeito, começou com a pressuposição de que nada sobrenatural é real. Se nada
sobrenatural era real, então grande parte da Bíblia seria falsa e sem autoridade112.
Assim, a encarnação de Cristo seria um mito (anulando a autoridade de
Cristo), bem como, todos os elementos sobrenaturais do Cristianismo, incluindo o
próprio Deus, teriam de ser totalmente redefinidos em termos naturalistas. O
modernismo foi anticristão até à sua medula.
O Iluminismo foi anunciado como a “Era da Razão”, em oposição à “Era da
Fé”. O liberalismo teológico era simplesmente o Iluminismo aplicado à teologia,
portanto, era o filho óbvio do Iluminismo.
A Teologia Liberal surgiu do racionalismo e do romantismo iluministas dos
séculos XVIII e XIX. No final do século XIX e início do século XX, caracterizou-se por
uma aceitação da evolução darwiniana, uma utilização da crítica bíblica moderna e
participação no movimento do Evangelho Social.113
O movimento Iluminista marcou o cumprimento da transição entre o período
antigo e o moderno. Os pensadores iluministas não estavam mais dispostos a
aceitar os antigos dogmas, embasando-se apenas no fato de que pertenciam ao
sistema recebido através da doutrina da igreja. Um simples apelo às formulações da
teologia clássica não era mais suficiente para resolver os debates intelectuais.

112MACARTHUR, John. Princípios Para Uma Cosmovisão Bíblica. São Paulo Editora: Cultura
Cristã, 2001, p.10.
113 PARSONS. Burk. Cristianismo e Liberalismo Teológico. Disponível em:
<https://tabletalkmagazine.com/article/2019/05/christianity-theological-liberalism/> Acessado em: 04
de junho de 2022.

36
Agora, os indivíduos pensantes queriam ser convencidos de que era razoável tudo
em que criam114.
Assim, o Liberalismo rejeitou: a autoridade objetiva para definir o cristianismo
como uma revelação de Deus, portanto, necessariamente sem erro; a Adão e sua
conexão pactual, moral e genética com a humanidade; qualquer ideia da conexão de
toda a raça com Adão como origem monogenética de toda a humanidade; a
explicação bíblica do pecado e da sua transmissão pelos primeiros pais à
humanidade. Tais rejeições deixaram o cristianismo sem nenhuma explicação real
para a origem do mal universal115.
Além das negativas supracitadas, os pensadores e teólogos de tal corrente
esvaziaram a Trindade, negando a divindade do Salvador que, consequentemente,
não ofereceu expiação aos humanos pecadores116. Os liberais não se propuseram a
destruir o cristianismo. Ao contrário, eles estavam certos de que estavam
resgatando o cristianismo de si mesmo. Seu esforço de resgate exigia a rendição
das doutrinas que a chamada ‘era moderna’ achava mais difícil de aceitar. E ainda, a
doutrina do inferno estava à frente e no centro da lista deles de fundamentos que
deveriam desaparecer.
Como observou o historiador Gary Dorrien (2011)
A cidadela do liberalismo protestante —, foi a doutrina do inferno que
marcou os primeiros grandes desvios da ortodoxia teológica nos
Estados Unidos. Os primeiros liberais simplesmente não podiam e
não aceitariam uma doutrina do inferno que incluísse a punição
eterna consciente e o derramamento da ira de Deus sobre o
pecado117.

114 GRENZ, Stanley J. e OLSON, Roger E. A teologia do século 20: Deus e o mundo numa era de
transição. São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 25.
115 MOHLER, Albert. Céu e Inferno. Disponível em: <https://albertmohler.com/2011/03/16/we-have-

seen-all-this-before-rob-bell-and-the-reemergence-of-liberal-theology> Acessado em: 04 de junho de


2022.
116 NETTLES, Thomas J. Teologia Liberal: Uma Avaliação Crítica Disponível em:
<https://www.thegospelcoalition.org/essay/liberal-theology-assessment/> Acessado em: 04 de junho
de 2022.
117 MOHLER, Albert. Céu e Inferno. Disponível em: <https://albertmohler.com/2011/03/16/we-have-

seen-all-this-before-rob-bell-and-the-reemergence-of-liberal-theology> Acessado em: 04 de junho de


2022.

37
Os liberais argumentam que a doutrina do inferno, embora evidente na Bíblia,
caluniava o caráter de Deus. Eles propuseram evasões os ensinos da Bíblia, e a
rejeição do que a igreja havia afirmado ao longo de sua longa história 118.
Quando o século XX chegou ao fim, a teologia liberal havia causado o
esvaziamento da maioria das principais igrejas e denominações protestantes. Como
se vê, essa corrente não é apenas uma rejeição ao cristianismo bíblico, é, também,
uma tentativa fracassada de resgatar a igreja de suas doutrinas.
Portanto, uma sociedade secular não sente necessidade de frequentar ou
apoiar igrejas secularizadas com uma teologia secularizada. A negação do inferno
ganhou relevância para as igrejas liberais. Simplesmente, enganou milhões sobre o
destino eterno deles.
Ainda, em sua essência, o liberalismo teológico não confessou um credo
particular. Ela não aderiu a um sistema de doutrina unificado e identificável. Em vez
disso, desenvolveu-se como um método de fazer teologia — uma hermenêutica
própria.
Como a hermenêutica do Iluminismo, a hermenêutica do liberalismo teológico
procurou questionar tudo e suspeitar de todas as autoridades externas tradicionais e
estabelecer novas conclusões objetivas embasadas apenas em dados empíricos e
científicos conforme a razão humana e, não na fé em Deus, a Palavra de Deus e os
credos históricos da igreja. A investigação para encontrar a verdade, à parte da fé,
na verdade divinamente revelada, foi o caminho do liberalismo teológico do século
XIX, e é o caminho do liberalismo do século XXI 119.

O capítulo ainda permite concluir que o próprio Liberalismo é um movimento


de reação. Reação e conformação. Reação à hermenêutica conservadora e
conformação ao espírito iluminista. Através de uma hermenêutica própria, o
Liberalismo conseguiu se moldar ao espírito moderno e, ao mesmo tempo, criar uma
forma de religião em que a presença do sobrenatural e a autoridade da Bíblia não
eram mais necessárias. Por isso, a reação fundamentalista surgiu com tanto ímpeto.

118 MOHLER, Albert. Céu e Inferno. Disponível em: <https://albertmohler.com/2011/03/16/we-have-


seen-all-this-before-rob-bell-and-the-reemergence-of-liberal-theology> Acessado em: 04 de junho de
2022.
119 PARSONS. Burk. Cristianismo e Liberalismo Teológico. Disponível em:
<https://tabletalkmagazine.com/article/2019/05/christianity-theological-liberalism/> Acessado em: 04
de junho de 2022.

38
A importância desse período é tão monumental que não há como contornar a
Idade da Razão. Os cristãos colocam a teologia em risco, quando ignoram o
Iluminismo.

Capítulo 4. ORIGEM, CONCEITUAÇÃO, REAÇÃO E ANÁLISE TEOLÓGICA DO


FUNDAMENTALISMO DO SÉCULO XX
Para entender a origem do fundamentalismo é primordial conhecer todas as
transformações ocorridas na sociedade europeia a partir do Renascimento. O
Renascimento foi redescoberto e provocou transformações em diversos setores da
sociedade europeia a partir do final do século XIII.
Todo o conhecimento científico, antes, sob a tutela da Igreja Católica,
começava a ser questionado por intelectuais de renome. As grandes navegações, a
descoberta de que a terra não era o centro do universo e o contato com a literatura
dos grandes filósofos da antiguidade que começava a chegar nas línguas originais,
despertaram no homem uma verdadeira obsessão pelo saber. Se na Idade Média
Deus era o centro, a partir do Renascimento, o homem passava a ter lugar de
destaque.
O Renascimento é um termo usado para identificar o período da história da
Europa aproximadamente entre fins do século XIV e meados do século XVI. O termo
francês Renaissance, “Renascimento”, é usado universalmente para designar o
reavivamento literário e artístico na Itália dos séculos XIV e XV. Prenunciando essa
designação, em 1546 Paolo Giovio120 se referiu ao século XIV como “o século
venturoso no qual se considera que as letras latinas renasceram” (renatae).
Alguns historiadores, mais notadamente Jacob Burckhardt (1991, p.199)121,
argumentaram que o Renascimento deu origem à Era Moderna. De acordo com o

120Paolo Giovio (em latim: Paulus Jovius; Como, Itália, 21 de abril de 1483 — Florença, 11 de
dezembro de 1552) foi um médico, historiador, biógrafo e prelado italiano. Conhecido principalmente
enquanto autor de uma célebre obra da história contemporânea.
121 BURCKHARDT, Jacob. A cultura do Renascimento na Itália. Brasília: Universidade de Brasília,

1991, p. 199.
Jacob. A cultura do Renascimento na Itália. Brasília: Universidade de Brasília, 1991. Jacob
Burckhardt, em seu livro "A Cultura do Renascimento na Itália", escrito em 1867, define claramente o
termo "Renascença", como entendemos hoje. Trata-se de um período de "descoberta do mundo e do
homem". A volta aos paradigmas da Antiguidade Clássica, que trazia como ideal o humanismo e o

39
historiador Suíço, foi nessa era que os seres humanos começaram a pensar de
modo independente, como indivíduos. Em vários aspectos, a definição de
Burckhardt (1991, p.199) para o Renascimento é puramente individualista e
extremamente questionável. Porém, em certo sentido, é indubitavelmente correta:
algo novo e empolgante se desenvolveu na Itália renascentista, algo que se mostrou
capaz de fascinar gerações inteiras de pensadores122.
Apesar dessas transformações serem evidentes na cultura, sociedade,
economia, política e religião, caracterizando a transição do feudalismo para o
capitalismo e significando uma ruptura com as estruturas medievais, o termo é mais
comumente empregado para descrever seus efeitos nas artes, na filosofia e nas
ciências.
No século XVIII, pensadores como Espinosa e Voltaire começaram a
questionar muitos dos dogmas da fé do Cristianismo. Na Inglaterra, o deísmo
ganhava a cada dia novos adeptos entre os intelectuais, enfatizando a não
interferência de Deus no mundo.
A revelação bíblica estava sendo posta em xeque. A crença no Deus que
intervém na criação, foi dando lugar à razão. Nos séculos posteriores entre XIX e
XX, pensadores como Feuerbach123, Nietzsche, Karl Marx e Freud deram
continuidade a essa crítica à religião. Muitos teólogos protestantes influenciados por
filósofos racionalistas, colocaram a razão como lentes necessárias para a
interpretação dos textos bíblicos. Narrativas como o diluvio, a abertura do mar
vermelho por Moisés e os milagres e ressurreição de Jesus passaram a ser
consideradas lendas imaginárias pelo o povo judeu e cristãos.

4.1 Origem do Fundamentalismo protestante do século XX


O Fundamentalismo bíblico tem suas origens nos Estados Unidos,
especialmente, entre os presbiterianos que haviam chegado da Holanda e da
Inglaterra, no século XVII. Foram denominados de Pilgrims -

naturalismo, foram os principais fios condutores de todo um período de reflorescência empírica e


científica de uma época.
122MCGRATH, Alister Teologia Histórica. São Paulo: Casa Editorial Presbiteriana, 2007, p. 120.
123 De acordo com Feuerbach, Religião e Deus não existem além do alcance humano; antes, eles são

a criação do ser humano. A verdadeira religião é a relação do homem consigo mesmo ou com sua
verdadeira natureza. Deus, de acordo com Feuerbach, é a natureza interior manifestada do homem.
Mas quando o homem não consegue entender que a religião e Deus nada mais são do que a criação
do ser humano, ele se torna alienado de sua natureza real.

40
Peregrinos,124expulsos de seus países de origem por volta de 1620, por exigirem
reformas no cristianismo BOFF (2009, p. 9). No final do século XIX e princípio do
século XX, o Fundamentalismo ressurgiu, novamente, nos Estados Unidos, desta
vez de forma mais organizada, para enfrentar as ameaças do Liberalismo
Teológico.
Dentro dos moldes liberais eram defendidos que a religião deveria manifestar-
se pelas ações humanitárias que evidenciassem os valores de fraternidades
expostos no Evangelho. O amor de Deus seria mostrado no serviço ao próximo.
Não eram necessárias liturgias ou Escrituras, e os cristãos deveriam abdicar de
sua pretensão ao monopólio de verdade. Além disso, os liberais eram sensíveis
aos influxos decorrentes do que então era chamado “Crítica Superior”, ramo da
Ciência Bíblica muito em voga no século XIX.
Protestantes conservadores reagiram a essas investidas liberais,
combatendo-as como um perigo à fé cristã. Foi em 1883, que aconteceu a primeira
reunião no Queen's Royal Hotel, para a conferência Bíblica de Niagara, onde se
reuniu todos os anos de 1883 a 1897 (com exceção de 1884). A primeira série de
conferência foi em torno de postulados que contestavam, de frente, as
interpretações advindas da crítica histórica aplicada à Bíblia. Os nomes dos pais
fundadores do fundamentalismo presente na conferência de Niágara durante esses
anos, são eles: WEBlackstone, Charles Erdman, James Brookes, William
Moorehead, AJGordon, ACDixon, CIScofield e J. Hudson Taylor (que fundou a
China Inland Mission).
Em 1895, no final do encontro no acampamento bíblico Niagara Falls, foram
defendidos os cincos princípios ou fundamentos do protestantismo conservador
(infalibilidade das Escrituras; divindade do Jesus Cristo; nascimento virginal;
sacrifício expiatório na cruz em substituição pelos pecados humanos e
Ressurreição física e logo retorno), que se tornou um marco no estabelecimento
fundamentalista. Esses princípios reapareceram em 1910, assumidos por teólogos
das mais diversas confissões protestantes, e alcançaram enorme repercussão.125

124 Peregrinos (em inglês: Pilgrim Fathers ou simplesmente Pilgrims) é o nome dado aos primeiros
colonos ingleses, que eram protestantes, e que se estabeleceram na Nova Inglaterra, região que veio
a ser o embrião dos estados unidos, em 1920. Em torno dessas famílias originais, do fervo de suas
crenças e de seus valores étnicos e morais, a nova nação foi sendo construída. Para saber mais
sobre esse e outros grupos colonizadores norte-americanos: Reinaldo Seriacopi, Gislane Azevedo,
história, (serie Brasil) São Paulo, editora África, 2005.
125 VASCONCELOS, Pedro. Ação dos cristãos pela abolição da tortura: Fundamentalismo,

41
O início do fundamentalismo é geralmente associado a uma serie de doze
pequenos livros publicados de 1910 a 1915. Foi o lançamento de ‘The
Fundamentals’ - um conjunto de doze volumes de ensaios, apologéticos, escritos
por teólogos protestantes conservadores em uma tentativa de defender crenças que
eles consideravam ortodoxia protestante. Aproximadamente três milhões de copias
foram enviadas gratuitamente a estudantes de teologia, ministros cristãos e
missionários pelo mundo todo.
O movimento tornou-se mais organizado dentro das igrejas protestantes dos
Estados Unidos na década de 1920, especialmente entre presbiterianos, bem como
batistas e metodistas. Muitas igrejas que abraçaram o fundamentalismo adotaram
uma atitude firme em relação às suas crenças centrais. Os fundamentalistas
reformados colocam grande ênfase nas confissões de fé históricas, como a
Confissão de Fé de Westminster. Cerca de
Para Shelley (2018,p. 462), o projeto surgiu a partir das ideias de Lyman
Stewart, um homem rico do ramo petrolífero que vivia no sul da Califórnia e estava
convencido de que era necessário fazer algo para reafirmar as verdades cristãs em
face do cristianismo bíblico e da teologia liberal. (Shelley (2018,p. 462) Após ouvir
o reverendo Amzi C. Dixon pregar em agosto de 1909, Stewart assegurou-se de
sua ajuda para publicar The fundamentals [os fundamentos]126
Segundo Shelley (2018,p. 462), Stewart conseguiu o apoio financeiro de seu
irmão, Milton, e Dixon, pastor da Igreja Moody, em Chicago, formou um comitê
para auxiliar no trabalho editorial, incluindo o evangelista R. A. Torrey. Foram
escolhidos 64 autores para estar no The fundamentals. O movimento pré-milenista
e a conferência inglesa Keswick estavam bem representados. Outros
conservadores, entretanto, também estavam entre colaboradores, incluindo E. Y.
Mullins, do seminário Batista do Sul, e Benjamin B. Warfield, do seminário de
Princeton127.
Curtis (1976, p. 176), registra que em 1919 foi criada a Word’s Cristian
Fundamentals Association para apoiar a luta conservadora contra as posições
liberais dentro das igrejas protestantes. Mas o termo fundamentalista só seria

integrismo; uma ameaça aos direitos humanos. São Paulo, Paulinas, 2001, p. 20-21.
126 SHELLEY, Bruce L. História do Cristianismo: uma obra completa sobre a trajetória da igreja

cristã desde as origens até o século XXI, Rio de janeiro: Thomas Nelson, 2018, p. 462
127 SHELLEY, Bruce L. História do Cristianismo: uma obra completa sobre a trajetória da igreja

cristã desde as origens até o século XXI, Rio de janeiro: Thomas Nelson, 2018, p. 462.

42
empregado amplamente um ano depois. Segundo o mesmo autor “o termo
fundamentalista foi cunhado em 1920 por Curtis Lee Laws, editor Batista, quando
se referiu aos batistas conservadores que se apresentavam aos fundamentos da
fé”128.

4.2 Conceitos do Fundamentalismo protestante do século XX


O vocábulo “fundamentalismo” refere-se ‘ao que está no fundo’’, na base de
algo, no seu fundamento, no seu alicerce, na sua raiz ou princípio. Chamou-se de
“fundamentalista” àquelas pessoas que sustentavam tais “crenças fundamentais” do
cristianismo, e se pôs o nome de “fundamentalismo” ao seu movimento129.
Analisando o termo fundamentalismo, ele tem sua raiz no verbo “fundamentar”,
“fundar”, que significa construir, erigir, edificar desde os alicerces, basear,
consolidar. Daí, “fundamentar”, que é o mesmo que lançar os fundamentos de:
estabelecer em base sólidas; justificar. De um modo geral, pode-se afirmar que a
busca dos fundamentos não é ruim. Quando as mudanças que ocorrem no mundo,
chegam a destruir o quadro tradicional de referências, quando elas são tiradas, as
pessoas, todas, de modo geral, se sentem inseguras. Tornam-se mais instáveis
ainda, e a tendência é buscar novas seguranças, um novo fundamento mais
sólido.130
Diante dessa busca, pode-se falar em fundamentalismo e/ou, diversificadas
experiências fundamentalistas. Por isso, do ponto de vista conceitual, o termo
“fundamentalismo” vem sendo empregado em situações diversas, tanto no campo
religioso, como nos campos políticos, econômico e técnico-científico.
O Fundamentalismo, portanto, não é uma doutrina, mas uma forma de
interpretar e viver a doutrina. É assumir a letra das doutrinas e normas sem cuidar
de seu espírito e de sua inserção no processo sempre cambiante da história. É
assumir posturas que exijam contínuas interpretações e atualizações, exatamente,
para manter a verdade originaria dela131.

128 CURTIS, A. Kenneth. Os 100 acontecimentos mais importantes na história no cristianismo, do


incêncio de Roma ao crescimento da igreja na China, 1976, p. 176
129 MADURO, Otto. Fundamentalismos. In: SOTER; AMERÍNDIA (Org.). Caminhos da Igreja na

América Latina e no Caribe: novos desafios. São Paulo: Paulinas, 2006, p. 220.
130 MESTERS, Carlos. fundamentalismo religioso: um fenômeno tipificável? 2007, p.93
131 BOFF, Leonardo. Fundamentalismo: a globalização e o futuro da humanidade. Rio de Janeiro:

Sextante, 2002, p. 49.

43
O fenômeno compreendido pelo conceito de “Fundamentalismo” tem como
características essenciais: proporcionar aos indivíduos desenraizados, fragilizados e
inseguros, o apoio, os fundamentos materiais que lhes proporcionarão a sensação
psíquica de segurança132.
O nome “fundamentalistas” foi criado para se referir aos pastores, presbíteros e
professores conservadores americanos de todas as denominações históricas que se
coligaram para defender a fé cristã da usurpação do liberalismo nos seus seminários
e igrejas.
O nome foi usado por três motivos: primeiro - os conservadores insistiam que o
liberalismo atacava determinadas doutrinas bíblicas que eram fundamentais do
cristianismo e que, ao negá-las, transformava o cristianismo em outra religião,
diferente do cristianismo bíblico; segundo - a publicação em 1910-1915 da série ‘Os
Fundamentos’, 12 volumes de artigos escritos por conservadores onde defendiam os
pontos fundamentais do cristianismo e atacavam o modernismo, a teoria da
evolução, etc., dos quais foram publicadas 3 milhões de copias e espalhadas pelos
Estados Unidos. Há artigos de eruditos conservadores como J. G. Machen 133, John
Murray, B. B. Warfield, R. A. Torrey, Campbell Morgan e outros; terceiro, a
elaboração de uma lista dos pontos considerados fundamentais do cristianismo.
Embora o conflito entre liberais e fundamentalistas envolva mais do que
apenas essas questões discutidas abaixo. Mas os conservadores veem isso como
uma questão central de fé e cristianismo evangélico. Tornou-se um slogan
conservador e a bandeira do movimento fundamentalista. Existem cinco princípios
ou fundamentos do protestantismo conservador:134

1. A inspiração e a infalibilidade das Escrituras


Fica evidente que o ponto mais problemático definido pelos fundamentalistas
foi a infalibilidade das Escrituras. Alguns achavam que essa infalibilidade dizia

132 TÜRCKE, Christoph. Fundamentalismo. In: DE BONI, Luis Alberto (Org.). Fundamentalismo.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995, p. 51.
133 Machen em 1923, escreve Cristianismo e Liberalismo, um marco para o fundamentalismo, foi

lançado confrontando não somente o Liberalismo como todos os que o toleravam. A obra evidenciou
ainda mais as diferenças entre liberais e ortodoxos que, até então, ainda coexistiam nas mesmas
denominações e instituições de ensino. Algumas das novas denominações criadas a partir de 1930
foram: Igrejas Fundamentalistas Independentes dos Estados Unidos (1930); Associação das Igrejas
Batistas Regulares (1932); Igreja Presbiteriana Ortodoxa (1936); Igreja Presbiteriana Bíblica (1938) e
Associação Batista Conservadora dos Estados Unidos (1947).
134 LOPES, Augustus Nicodemus. Fundamentalismo e Fundamentalistas. Série Cadernos Bíblicos,

volume 2. Recife: Primeira Igreja Presbiteriana do Recife, 2002, p. 8-9.

44
respeito à mensagem como um todo. Esse grupo admitia pequenas incorreções nos
manuscritos disponíveis, provocados, por exemplo, por erro dos copistas. Também
entendia que a Bíblia não é um tratado científico, admitindo, por exemplo, que
quando o autor do livro de Josué diz que “o sol parou”, descreve o evento sob uma
concepção de mundo que se tinha na época, não devendo, portanto, ser
interpretado literalmente.
Um outro grupo, mais apegado a uma interpretação literal, achava que a
infalibilidade estava na letra: se a Bíblia diz que o sol parou, diziam os
fundamentalistas mais radicais: é porque parou mesmo, não importando o que diz a
ciência moderna. Para esse segundo grupo, a Bíblia, tal como se pode ler na
atualidade, corresponde exatamente aos escritos originais redigidos pelos escritores
bíblicos. Para justificar as várias versões existentes, esse grupo definiu a versão
King James (“Rei Tiago”), embasada em uma tradução de Erasmo de Roterdan no
século XVI, como única versão fiel aos escritos originais135.
2. A divindade de Cristo
Muitas outras questões cruciais pertencentes ao Cristianismo foram rebatidas,
negadas pelo liberalismo. A divindade de Cristo que insistiam que Jesus era apenas
um homem divinizado. O nascimento virginal de Cristo e os milagres – para o
liberalismo, milagres nunca existiram, eram construções mitológicas da Igreja
primitiva.
3. O nascimento virginal de Cristo
O nascimento virginal de Cristo e os milagres para o liberalismo, os milagres nunca
existiram, eram construções mitológicas da Igreja primitiva.
4. O sacrifício propiciatório de Cristo
O sacrifício propiciatório de Cristo para os liberais,
Cristo havia morrido somente para dar o exemplo, nunca pelos pecados de ninguém.
5. Sua ressurreição literal e física e seu retorno
Sua ressurreição literal e física e seu retorno, ambas doutrinas eram negadas pelos
liberais, que as consideravam como invenção mitológica da mente criativa dos
primeiros cristãos.

135 MENDONÇA, Jones. O que é e quando surgiu o fundamentalismo cristão? Disponível In:
http://numinosumteologia.blogspot.com/2010/04/o-que-e-e-quando-surgiu-o.html. Acesso em
23/11/2022.

45
Uma outra característica forte do fundamentalismo é o milenarismo. Eles
recusavam as concepções liberais que viam o mundo com otimismo, já que
consideravam que o homem governado pela razão levaria a civilização ao progresso
e a paz. Para os fundamentalistas a civilização não ia melhorar pelos esforços
humanos. Isso só ocorreria com a volta triunfante de Cristo, inaugurando um reino
de mil anos na terra. Pode-se dizer que os liberais humanistas tinham uma visão
otimista em relação ao ser humano. Os fundamentalistas, ao contrário, tinham uma
visão bem pessimista do homem136.
Em 1920, o termo “fundamentalistas” foi empregado por conservadores
batistas para designar todos aqueles que lutavam a favor dos cinco pontos em tela.
O uso se espalhou para todos, de todas as denominações afetadas pelo liberalismo
que lutavam para preservar essas doutrinas fundamentais do cristianismo, e que se
alinhavam, teologicamente, com o conteúdo da obra Os Fundamentos137.

4.3 A reação do Fundamentalismo protestante em face ao Liberalismo


teológico
Como é possível observar: “o fundamentalismo nasceu em meio à controvérsia
doutrinária entre cristianismo conservador e o liberalismo”.138 A historiadora Karina
Bellotti (2008, p. 57), lembra que, “antes da controvérsia entre fundamentalistas e
liberais (década de 1920), os liberais eram identificados como reformistas, por conta
do envolvimento com projetos de reforma social, ou simplesmente evangélicos, pela
ênfase na evangelização”139

136 MENDONÇA, Jones. O que é e quando surgiu o fundamentalismo cristão? Disponível In:
http://numinosumteologia.blogspot.com/2010/04/o-que-e-e-quando-surgiu-o.html. Acesso em
23/11/2022.
137 Muitos protestantes norte-americanos opuseram-se ao modernismo, pois o consideravam uma

ameaça aos fundamentos básicos da fé cristã. Em 1846 foi organizada a Aliança Evangélica, com o
propósito de unir todos os que pensavam ser o modernismo uma ameaça à fé cristã. Em 1895, em
uma reunião junto às cataratas do Niágara foram anunciados os cinco fundamentos básicos da fé.
São eles: A infalibilidade das Escrituras; A divindade do Jesus Cristo; seu nascimento virginal; seu
sacrifício expiatório na cruz em substituição pelos pecados humanos, e Sua ressurreição física e logo
retorno. Os cinco pontos defendidos pela reunião em Niágara eram bem básicos e visavam
estabelecer pontos fundamentais da fé cristã, mas com o tempo, o movimento foi ganhando mais
adeptos e adquirindo um caráter bem mais radical.
138HINDSON, Edward E. Os fundamentos para o século 21: examinamos os principais temas da fé
cristã. Mal Couch (ed). São Paulo: Hagnos, 2009, p. 26.
139BELLOTTI, Karina Kosicki. 2008, p. 57. Para se conhecer mais o protestantismo norte-

americano a partir do início do século XX, cf. MARTY, Martin E. (1994), BRUCE, Steve (2000),
ARMSTRONG, Karen (2001) e MARSDEN, George (2006).

46
A ala conservadora do protestantismo norte-americano resolveu se defender e
contra-atacar e, para isso, reafirmou os seus valores e alicerces da sua
fundamentação teológica. Segundo Bellotti (2008, p. 57), o Fundamentalismo
ancora-se no passado para lutar contra o que os fundamentalistas avaliam que
sejam ameaças à sua identidade. Por isso, outra característica do fundamentalismo
é a sua militância.140
Apesar de contar com uma grande parcela de pessoas que apoiavam as ideias
fundamentalistas, objetivando com isso, um retorno ao conservadorismo, nem
sempre as atitudes dos fundamentalistas tiveram total apoio dessa população
conservadora. Um exemplo disso é o fato que ficou conhecido como o caso
Scopes.141
Conforme afirma Fajardo (2016, p. 252-253), em 1925, os fundamentalistas
mostraram sua fase mais agressiva, ao fazerem lobby para um ensino criacionista
nas escolas públicas. Conseguiram apoio político para proibir o ensino da teoria da
evolução de Darwin. Ficando conhecidos como intolerantes ao avanço da ciência.142
Bellotti (2012, p. 58) lembra de que os fundamentalistas não foram
totalmente adversos ao uso dos benefícios provenientes da ciência em seu favor,
pelo contrário, fizeram uso dos avanços tecnológicos para propagar a sua doutrina.
O mesmo autor considera, por exemplo, o uso do rádio143. Conforme Bellotti (2012,
p. 58) O fundamentalismo não rejeita completamente o moderno, mas vive em uma
relação simbiótica com ele. Utiliza a tecnologia, a mídia e até a ciência para servir a
seus propósitos. Ou seja, o fundamentalismo tende a ser antimodernista, mas não
totalmente antimoderno. 144

140 BELLOTTI, Karina Kosicki, 2012, p. 58. Para um maior aprofundamento sobre essa questão,
relacionada ao militarismo fundamentalista, Cf. MARTY, Martin E.; Fundamentals of Fundamentalism.
In: KAPLAN, Lawrence (Ed.). Fundamentalism in comparactive. Amherst: The University of
Massachussetts Press, 1992. p. 15-23.
141 ARMSTRONG, Karen. Em nome de Deus; o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no

islamismo. São Paulo, Companhia das Letras, 2001. p. 206.


142 FAJARDO, Alex. Fundamentalismo Protestante nos Estados Unidos e no Brasil: Intolerância

religiosa no rádio e seus (des)caminhos sonoros. In: Paralellus, Revista Eletrônica em Ciências
da Religião – UNICAP. Recife, mar/ago de 2016, p. 252-253.
143
BELLOTTI, 2012, p. 58. Para um maior aprofundamento sobre essa questão, relacionada ao
militarismo fundamentalista, Cf. MARTY, Martin E.; Fundamentals of Fundamentalism. In: KAPLAN,
Lawrence (Ed.). Fundamentalism in comparactive. Amherst: The University of Massachussetts Press,
1992, p. 15-23.
144 Ibidem, p. 58.

47
Referindo-se aos embates entre os fundamentalistas e os liberais que ocorrera
nos Estados Unidos, a saída de alguns professores do seminário de Princeton e a
abertura do novo seminário de Westminster, Gondim (2003, p. 85) relembra:
Nesse tempo, a Igreja Presbiteriana sofreu duros abalos. Em maio de
1922, Henry Emerson Fosdick pregou um sermão liberal: “Vencerão
os fundamentalistas?” Depois de transcrito e impresso, sob o
patrocínio da Fundação John Rockefeller, 130 mil cópias circularam
pelos redutos presbiterianos. Pouco tempo depois os
fundamentalistas deram o troco. Proclamou um sermão não menos
cáustico: “Vencerá a incredulidade?” De repente, os crentes
presbiterianos viram-se diante de uma situação paradoxal: ou se
tornavam “liberais incrédulos”, ou passavam para o lado dos
“fundamentalistas reacionários”. Centenas de milhares de crentes
partiram para igrejas independentes. Quatro membros do Seminário
de Princeton saíram para formar o Westminster Theological
Seminary..145

Aparentando ter perdido a batalha contra o liberalismo teológico que tinha se


infiltrado nos seus seminários, alguns professores chegaram à conclusão de que a
melhor opção que restava era se retirar e formar um novo seminário. E foi o que
aconteceu: Machen146 liderou uma retirada da faculdade, juntamente com
estudantes que o seguiram, estabelecendo o Seminário Teológico Westminster, na
cidade de Filadélfia, no ano de 1929.147
Nesse sentido, Santos (2004, p. 156), acrescenta que Schaffer, um dos alunos
do Seminário de Princeton e que no momento da reação fundamentalista juntou-se
ao Rev. McIntire (é certo que depois de um tempo ele diverge de alguns pontos
doutrinários e não continua no mesmo grupo do McIntire), relembra a sua

145 GONDIM, Ricardo. Orgulho de ser Evangélico: Porque continuar na igreja. Viçosa, MG: Ultimato,
2003, p. 85.
146 John Gresham Machen (1881-1937) é tido por alguns historiadores como um dos últimos grandes

defensores da teologia de Princeton. Cf. sua obra clássica em português, Cristianismo e


Liberalismo publicada pelo Projeto Os Puritanos (2001). Ver ainda uma homenagem feita por esse
mesmo projeto, num exemplar de 2006. Olson diz que, “um dos principais teólogos da reação
fundamentalista foi J. Gresham Machen (1881-1937), presbiteriano conservador, leal à Confissão de
fé de Westminster e às verdades atemporais descobertas e consagradas pelos teólogos protestantes
ortodoxos dos séculos XVI e XVII. Além disso, havia forte ênfase à inerrância e verdade literal do
registro bíblico e à falsidade da ciência e filosofia modernas, que eram céticas e evolucionistas.
Machen deu seu grito de guerra com Christianity and liberalism [Cristianismo e liberalismo], publicado
quando o fundamentalismo estava no auge da sua influência. Nesse livro, Machen se esforçou para
desmascarar a teologia liberal, apresentando-a como falso evangelho e religião alternativa ao
cristianismo”. Ver in: OLSON, Roger. História da teologia cristã. São Paulo: Editora Vida, 2001, p.
545-546).
147 COUCH, Mal. Os fundamentos para o século XXI: Examinando os principais temas da fé cristã.

São Paulo: Hagnos, 2009, p. 24.

48
peregrinação teológica, e o contexto dessa época, mencionando até mesmo, a
chegada do que ele vai chamar de Neomodernismo148:
Na Europa e na América, um grande número de cristãos que creem
na autoridade das Escrituras tiveram a mesma experiência que eu.
Em um nível intelectual, o caminho lógico para todo pensamento de
tendência liberal deveria ser passar do liberalismo para o
agnosticismo. No momento preciso em que essa necessidade lógica
se impôs dentro do Liberalismo, esse movimento levou o
Racionalismo à catástrofe. Para responder a esta necessidade,
nasceu o Neo-Modernismo, também chamado de Teologia
Transcendente.149.

A criação de um novo seminário não foi suficiente para cessar os embates


entre os fundamentalistas com os liberais. Santos (2004, p. 155) lembra de que:
Machen150 ficou preocupado com a condição doutrinária dos campos
onde os alunos de pós-graduação de Westminster deveriam servir.
Junto com outros vinte e quatro líderes conservadores, Machen
formou o Conselho Independente de Missões Estrangeiras para
receber missionários conservadores comprometidos com a doutrina
calvinista. Mas seus opositores não deixariam por menos e, após
várias articulações, a organização da Junta de Missões
Independentes foi declarada inconstitucional.151

Apesar de todas as dificuldades e resultados contrários aos seus esforços,


Santos (2004, p.156) registra que Machen e os seus aliados não se deram por
vencidos e, continuaram com seus objetivos, dessa vez, com a abertura de uma
nova denominação. Machen apelou para a Assembleia Geral, onde seu recurso foi
mais uma vez indeferido. A única opção que restou a Machen e 5.000 outros
conservadores foi a formação de uma nova denominação em 1936. Igreja
Presbiteriana Ortodoxa - OPC.152
Como se não bastasse, essa nova denominação, apesar de tão pouco tempo
da sua fundação, sofreu com disputas internas em função de aspirações políticas,

148 SANTOS, Valdeci da Silva. John Gresham Machen contra o liberalismo: em defesa da fé
cristã. In: Fides Reformata, Vol. IX, n. 1. São Paulo: CPAJ, 2004, p. 156.
149 Transcendente: aqui este adjetivo significa que a posição teológica do Neo- Modernismo difere

tanto do Cristianismo Bíblico (“ortodoxia tradicional”; posição dos Reformadores e dos que lhes são
fiéis) como do Modernismo tradicional (posição dos velhos Racionalistas do final do século XIX e
princípio do século XX). O Neo-Modernismo fica ainda além destas duas posições, ocupando assim
uma terceira que as reúne e concilia. (Nota da própria citação do original).
150 Como consequência, Machen foi levado a julgamento no seu presbitério, o qual se recusou a

receber quaisquer justificativas que apresentassem questões doutrinárias. Machen foi assim
despojado do ministério
151 SANTOS, Valdeci da Silva. John Gresham Machen contra o liberalismo: em defesa da fé cristã. In:

Fides Reformata, Vol. IX, n. 1. São Paulo: CPAJ, 2004, p. 155.


152 SANTOS, Valdeci da Silva. John Gresham Machen contra o liberalismo: em defesa da fé cristã. In:

Fides Reformata, Vol. IX, n. 1. São Paulo: CPAJ, 2004, p. 156.

49
opiniões divergentes em relação às interpretações escatológicas e também
perspectivas diferentes aos limites da liberdade cristã. Com isso, o grupo se rompeu.
As tensões internas na nova denominação cresceram a tal ponto que, durante a
segunda Assembleia Geral da OPC, em 1936, Carl McIntire articulou a saída de
Machen da presidência da Junta Independente de Missões e assumiu o posto.
Meses mais tarde, McIntire e alguns amigos deixariam a OPC para fundar o Sínodo
Presbiteriano da Bíblia (ou bíblico).153

4.4 Fundamentalismo Cristão: uma avaliação


A melhor maneira de compreender a origem do termo "fundamentalista" é
entender o crescimento do liberalismo teológico radical nas principais denominações
históricas dos Estados Unidos no final do século XIX e início do século XX. O
Liberalismo era, de muitas maneiras, um fruto do Iluminismo, movimento surgido no
início do século XVIII que tinha em seu âmago uma revolta contra o poder da religião
institucionalizada e contra a religião em geral.
Os "Fundamentalistas" originais foram um amplo movimento que começou em
resposta ao modernismo teológico. Em 1846 foi organizada a Aliança Evangélica,
com o propósito de unir todos os que pensavam ser o modernismo uma ameaça à fé
cristã. Já em 1895, foi anunciada os cinco fundamentos da fé.
O que se pôde aprender com os fundamentalistas? Esses cristãos
defenderam corajosamente doutrinas cruciais de fé, como a total veracidade das
Sagradas Escrituras154, o nascimento virginal de Cristo, sua morte expiatória
substitutiva na cruz, quando esses ensinamentos foram atacados por teólogos
incrédulos.
O Fundamentalismo e o Liberalismo esposam pressupostos metodológicos e
estruturais distintos. O Liberalismo amparado por alguma forma de Deísmo esposou
uma teologia antissobrenaturalista. O Fundamentalismo calcado no dogma da

153 Ibidem, p.156.


154 Martin N. Dreher, no seu livro Para Entender – Fundamentalismo, afirmar que alguns temas
passaram a ser fundamental: a inspiração verbal, literal, da Bíblia. Ela faz o seguinte comentário:
“Desenvolve-se, entre muitos protestantes, contra a leitura histórica e crítica dos textos bíblicos, a
convicção de que cada palavra, cada letra do texto bíblico foi "inspirada", ditada pelo Espírito Santo a
seus autores. Por isso muitos também afirmam a "inerrância" do texto bíblico: a Bíblia não ensina
nada que seja cientificamente inexato. Se em Gênesis, por exemplo, a criação ocorreu em sete dias,
estes sete dias são realmente sete dias de 24 horas. Nesse caso, os fósseis que encontramos foram
criados por Deus e por ele colocados na terra. Eles não provam períodos maiores para a criação,
muito menos a evolução das espécies.

50
providência afirmava uma teoria da história em que a presença de Deus podia ser
sentida.
O Fundamentalismo e o Liberalismo possuem hermenêuticas conflitantes e
excludentes. O Liberalismo assume uma hermenêutica histórico-crítica e o
Fundamentalismo como herdeiro da Tradição Reformada assume uma hermenêutica
histórico-gramatical.
Mas também, há lições negativas. Com o passar do tempo, os
fundamentalistas foram perdendo a credibilidade e sua reputação ficou manchada. O
que se considera como erros foram o reducionismo e o separatismo. No primeiro, os
fundamentalistas não foram suficientemente fundamentais e no segundo, eles se
tornaram, com o tempo, muito contenciosos para lutar pela fé uma vez entregue,
exceto em sua própria bolha sectária155.
Embora os fundamentalistas não sejam notavelmente ascéticos, observa-se
certas proibições impostas. Muitos fundamentalistas não fumam, não bebem
bebidas alcoólicas, não dançam, não assistem a filmes ou peças de teatro. Na
maioria das escolas e institutos fundamentalistas, essas práticas são estritamente
proibidas.
Com o passar do tempo, alguns cristãos proeminentes começaram a repudiar
o termo “fundamentalista” a partir da década de 1950, especialmente no Reino
Unido.
Segundo Jensen (2022) o arcebispo anglicano Donald Robinson escreve:
Deveríamos descartar o termo fundamentalista, porque ele se tornou
associado a três extravagâncias, primeiro, uma rejeição total de
todas as críticas bíblicas, segundo, interpretação excessivamente
literalista da Bíblia e, terceiro, certas teorias bastante mecânicas da
natureza da inspiração bíblica. Essas extravagâncias, disse ele, não
faziam parte da posição evangélica ortodoxa ou da fertilização in vitro
em particular 156.

Outras críticas também foram imputadas aos “fundamentalistas”, dentre elas,


o de ser o único objetivo negar o modernismo. Visto que o próprio modernismo
morreu, o Fundamentalismo não teve nenhuma razão de ser óbvia. Tornou-se uma

155 JENSEN, Michael. A favor e contra o fundamentalismo. Disponível em: <


https://www.abc.net.au/religion/for-and-against-fundamentalism/10101930> Acessado em: 04 de
junho de 2022.
156 JENSEN, Michael. A favor e contra o fundamentalismo. Disponível em: <

https://www.abc.net.au/religion/for-and-against-fundamentalism/10101930> Acessado em: 04 de


junho de 2022.

51
forma de cristianismo altamente rígida e ideologicamente orientada, incapaz de
reconhecer a incompletude e a inconsistência em sua própria posição, ou de tolerá-
la em qualquer outra pessoa 157.
O Fundamentalismo se tonou uma posição solitária. Separou-se da corrente
geral da cultura, filosofia, da ciência moderna158 e tradição eclesiástica. O espírito
separatista ficou evidente, com isso, aconteceram divisões no próprio movimento.
Assim, o termo fundamentalista ficou prejudicado.
Vale lembrar de que o apelo à autoridade das Escrituras não faz de alguém
um fundamentalista, tampouco, a confiança em suas próprias posições
teológicas. No entanto, é um grave erro teológico conceder às próprias convicções
teológicas a finalidade que somente o julgamento de Deus pode dar a elas. A
beligerância não é o complemento necessário da convicção confiante159.
Entendemos que o Fundamentalismo é uma mentalidade a ser evitada
atualmente. O termo está desgastado e tem sido tratado com desprezo no mundo
contemporâneo. Mas aqui fica um alerta, a respeitabilidade (ser respeitado) não é
uma categoria que deve interessar demais aos cristãos. Se, ser identificado como
fundamentalista, significa comprometer-se com o evangelho de Jesus
Cristo. Lembro que cristãos verdadeiros são aqueles para quem ser perseguido por
um vizinho, amigo, ou mesmo, pela família, deve ser algo considerado.160.

157 JENSEN, Michael. A favor e contra o fundamentalismo. Disponível em: <


https://www.abc.net.au/religion/for-and-against-fundamentalism/10101930> Acessado em: 04 de
junho de 2022.
158 Os fundamentalistas faziam duras críticas a ciência moderna.
159 JENSEN, Michael. A favor e contra o fundamentalismo. Disponível em: <

https://www.abc.net.au/religion/for-and-against-fundamentalism/10101930> Acessado em: 04 de


junho de 2022.

160“Ora, todos quantos querem viver piedosamente em Cristo Jesus serão perseguidos” (2Timóteo
3:12 ARA).

52
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O tema proposto por esta pesquisa “Fundamentalismo cristão e Liberalismo


teológico”, remontou e marcou um período importante na história do cristianismo
protestante. O embate doutrinário e hermenêutico que fora analisado neste trabalho,
entre teólogos liberais e fundamentalistas, deixou marcas profundas nos cristãos de
tradição reformada no passado, bem como o desdobramento nos arraiais
protestantes nos dias atuais. É verdade, que hoje não se tem os grandes líderes da
teologia liberal como no século XX, no entanto, isso não significa que o espírito ou
influência dessas ideias deixaram de existir ou rondar as igrejas contemporâneas.
A pesquisa valida a sua importância pela análise realizada com detalhes das
raízes históricas e dos métodos filosóficos, com os seus principais proponentes, que
serviram de incubadora para o nascimento do movimento denominado liberalismo
teológico, com seus novos ideias e, consequentemente, os ataques promovidos aos
fundamentos doutrinários cristãos ortodoxos. Igualmente expôs, minunciosamente, o
florescimento do movimento que ficou conhecido como Os Fundamentalistas, e a
reação apresentada a defesa das principais crenças dos antigos dogmas bíblicos.
Os fundamentalistas, enquanto movimento, foram manifestos
em várias denominações cristãs com o mesmo propósito, a luta pela fé evangélica.
Os objetivos da pesquisa foram descrever, realizar análise teológica, histórica
e apresentar os antecedentes filosóficos e pressupostos teológicos dos dois
movimentos, referenciados pela bibliografia utilizada, como também demostrar a
reação do cristianismo ortodoxo (os fundamentalistas) diante dos ataques,
promovidos por teólogos liberais com novas inserções no modo de ler e interpretar

53
as Escrituras Sagradas e, ainda, da releitura das doutrinas consideradas alicerce
para fé protestante.
Portanto, o movimento fundamentalista foi uma reação religiosa, teológica e
hermenêutica em defesa das crenças ortodoxas da fé cristã, contra aspectos da
modernidade (liberalismo). O fundamentalismo teológico surgiu no cristianismo
americano no início do século XX, para defender o que foi considerado pelo
movimento como “os cincos pilares da fé" contra as ideias liberais de humanizar
Deus.
As diferenças entre o cristianismo ortodoxo e o liberalismo afetam o que se
pensa sobre a Bíblia. Para o Cristão fundamentalista, a Palavra de Deus foi escrita
por meio de homens inspirados pelo Espírito Santo, portanto, hermeneuticamente, a
interpretação cristã trata a Bíblia como diferente de todos os outros livros, é a
infalível Palavra de Deus. O Liberalismo cristão, por outro lado, acredita em uma
espécie de “inspiração”, mas essa inspiração é redefinida como um mero aumento
das energias humanas direcionadas ao divino. Assim, o Liberalismo vê a Bíblia
como, fundamentalmente, igual a todos os outros empreendimentos humanos.
Assim, a conclusão final dessa investigação sustenta a premissa de que o
tema é por demais profundo, complexo e carece de mais aprofundamento. Por um
lado, se tem posicionamentos categóricos e irrefutáveis ditos como certos, por outro
de igual maneira, defende suas ideias e posicionamentos. Um embate, sempre.
Deixa-se, portanto, o assunto em aberto para que a quem interessar possa
continuar os estudos.

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