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13/05/2019 Magister

Doutrina/Área Penal/Edição 83/Crimes Tributários no Brasil: Reflexões sobre o Difícil Equilíbrio entre a Lógica
Arrecadatória do Fisco e a Racionalidade Punitiva /Beatriz Corrêa Camargo

Crimes Tributários no Brasil: Reflexões sobre o Difícil Equilíbrio entre a Lógica


Arrecadatória do Fisco e a Racionalidade Punitiva

Beatriz Corrêa Camargo


Professora de Direito Penal da Universidade Federal
de Uberlândia/MG; Pós-Doutora pela Universidade de
Bonn, Alemanha; Doutora em Direito Penal pela
Universidade de São Paulo; Mestre em Direito
Penal pela Universidade de Bonn, Alemanha;
Bacharel em Direito pela Universidade de São
Paulo.

Artigo publicado na Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal nº 83 - Abr/Maio de 2018

RESUMO: Os crimes tributários são exemplo da frágil relação de autonomia entre a esfera penal e a esfera
administrativa. No Brasil, essa relação se mostra tormentosa em diversos aspectos que caracterizam o Direito
Penal Tributário em nosso país. O presente artigo se dispõe a fazer uma avaliação crítica sobre temas como a
extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo, o esgotamento da esfera administrativa para a persecução
criminal e o respeito à garantia de inviolabilidade do domicílio e ao princípio da não autoincriminação, tudo a
partir de uma reflexão mais ampla sobre a necessidade de proteção do bem jurídico tutelado nos crimes
tributários.

PALAVRAS-CHAVE: Direito Penal Tributário. Bem Jurídico. Crimes Tributários. Extinção da Punibilidade pelo
Pagamento do Tributo. Súmula Vinculante nº 24 do Supremo Tribunal Federal.

SUMÁRIO: I - Introdução. II - A Interferência de Finalidades Arrecadatórias na Punição pelos Crimes Tributários no


Brasil. III - O Bem Jurídico nos Crimes Contra a Ordem Tributária. IV - Ponderações sobre a Finalidade de Proteção do
Bem Jurídico nos Crimes Contra a Ordem Tributária. V - Conclusão. VI - Referências.

I - Introdução

Os crimes tributários são exemplo da frágil relação de autonomia entre a esfera penal e a esfera administrativa. No
Brasil, essa relação se mostra particularmente tormentosa em diversos aspectos. Em certo sentido, isso se deve à
própria natureza da matéria quando são considerados temas sensíveis, como as garantias na produção de provas para o
processo penal e a autonomia da administração para fins de investigação fiscal.

Por outro lado, contudo, parece que o próprio equilíbrio entre as duas esferas é minado pelas escolhas legislativas feitas
em nosso país, diagnóstico esse que se inicia com a evolução das diversas transformações na possibilidade de extinção
da punibilidade pelo pagamento do tributo, culminando na discussão acerca do esgotamento da via administrativa para o
processamento criminal da sonegação dos tributos, nos termos da polêmica Súmula Vinculante nº 24 do Supremo
Tribunal Federal.

Nesse breve espaço gostaríamos de propor uma reflexão sobre tais questões, partindo de uma discussão acerca dos
interesses protegidos pelos crimes tributários. O intuito é argumentar que, dependendo de como o bem jurídico for
concebido, os próprios interesses tutelados criminalmente por tais delitos são ameaçados no caso de uma sobreposição
da política fiscal sobre a criminal, o que é tanto mais verdadeiro quando se tem em vista o caráter preventivo da pena.

A apreciação que se segue não ignora as especificidades de cada um dos crimes de natureza tributária, desde aqueles
previstos nas Leis ns. 8.137, de 1990 e 4.729, de 1965 até as figuras presentes nos arts. 168-A, 334 e 337-A do Código
Penal. No entanto, ela considera existir um fio comum entre eles que permite agrupar tais delitos materialmente entre si,
para além da simples referência abstrata à ideia de proteção da ordem tributária.

II - A Interferência de Finalidades Arrecadatórias na Punição pelos Crimes Tributários no Brasil

Em uma pesquisa que compara o nível de eficiência do sistema tributário de 102 países, o sistema brasileiro ficou
classificado em penúltimo lugar. A existência de uma complexa e abundante produção normativa tributária leva à
sensação de estarmos, antes de tudo, diante de um verdadeiro "caos tributário" 1. No que diz respeito à sistemática dos

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crimes tributários, a avaliação não poderia deixar de ser diferente, o que se aplica, sobretudo, em relação à extinção da
punibilidade pelo pagamento do tributo.

A previsão de uma hipótese de extinção da punibilidade específica para os crimes tributários parece ser o aspecto mais
sintomático do conflito potencial entre a lógica arrecadatória do fisco e a racionalidade punitiva própria do Direito Penal 2.
Tal conflito fica tanto mais agudo no Brasil, cuja possibilidade de extinção da pretensão punitiva estatal ocorre pela via do
pagamento do tributo efetuado em momento anterior ao recebimento da denúncia, nos termos do art. 34 da Lei nº
9.249/95, o que se aplica ainda mesmo no caso em que as autoridades fiscais e os órgãos de persecução penal
disponham de material probatório suficiente para a instrução de um processo criminal contra o sonegador de tributos e
de meios para uma execução fiscal.

Diferentemente de outros institutos penais que visam alternativas ao procedimento criminal, a exemplo do instituto da
transação penal para crimes de menor potencial ofensivo (art. 76 da Lei nº 9.099/95), não existem quaisquer limitações
para a ausência de punição em face do pagamento do tributo, que incide independentemente de eventual reincidência
do sonegador ou do fato de já ter sido ele contemplado pela extinção da punibilidade em ocasião recente. Desta sorte, o
sistema de responsabilização penal por crimes de natureza tributária no Brasil é marcado pela sensação de impunidade
perante o fato de que o cálculo de custo-benefício entre o correto pagamento do tributo e sua sonegação criminosa
pende em favor do crime, economicamente mais vantajoso para o agente a longo prazo 3.

O caminho até o atual desenho institucional da extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo nos crimes tributários
foi gradual, permeado de idas e vindas, marcado por algumas inconsistências.

Desde as últimas décadas, um grande número de leis disciplinou a matéria, em geral de maneira esparsa e muitas vezes
sem grande consenso sobre o âmbito de incidência de cada uma das mudanças introduzidas. A evolução legislativa
sobre a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo inclui dispositivos no Código Penal 4, em diversas leis
especiais 5, passando por uma lei que define o valor do salário mínimo 6, até a hipótese de anistia prevista pela mais
recente lei de repatriação fiscal 7. Essa dispersão na regulação da matéria demonstra uma grande dificuldade de
sistematização e interpretação das regras de extinção de punibilidade, persistindo certa insegurança no que respeita a
sua aplicação pelos tribunais.

Sob o aspecto da interpretação e aplicação do Direito Penal Tributário, verificam-se contornos legislativos que colocam
em xeque princípios essenciais ao Direito Penal, tais como a aplicação equânime da lei, a segurança jurídica e, em
última análise, o ideal de uma justiça distributiva e retributiva. Mencionem-se a esse respeito as dificuldades trazidas com
as sucessivas leis do REFIS e do PAES 8, que, ao seguirem interesses estratégicos do governo na arrecadação de
tributos, realizam diferenciações entre o tipo de tributo, os tipos de crime, os sujeitos contemplados e os períodos de
parcelamento na determinação da exclusão da punibilidade pelo pagamento.

Isso faz com que doutrina e jurisprudência proponham soluções à margem da literalidade das normas positivadas, a fim
de, analogicamente, estender para todos os casos, de forma igualitária, as condições mais benéficas de extinção da
punibilidade pelo pagamento do tributo, tanto no que diz respeito à possibilidade de parcelamento do tributo devido,
como no que tange ao momento permitido para extinção da punibilidade a partir desta feita 9.

Essa ausência de segurança jurídica se estende ao problema acerca da necessidade de conclusão do processo
administrativo-fiscal para se dar início à persecução penal, no que se refere ao lançamento definitivo do tributo. A
matéria, que foi duvidosamente resolvida como questão relativa à tipificação do delito pelo Supremo Tribunal Federal, na
Súmula Vinculante nº 24, foi posteriormente assimilada pela regulamentação da Lei nº 12.382/2011, que modificou o art.
83 da Lei nº 9.430/96. Entretanto, a artificialidade da solução estabelecida tem feito com que o próprio STF venha a
desconsiderar em certas ocasiões tanto o texto da lei, quanto o da própria Súmula, para realizar uma aplicação caso a
caso, aceitando a investigação penal mesmo sem o desfecho na esfera administrativa, desde que suficientes os indícios
da prática de crime 10.

Por fim, a relação contraditória entre a política arrecadatória e a política criminal possui reflexos na esfera processual
penal, beirando a violação de direitos e garantias individuais. Essa problemática se expressa, sobretudo, no desrespeito
ao direito de não produzir prova contra si mesmo e da inviolabilidade do domicílio, os quais, se são questões
relativizáveis no âmbito da investigação administrativa, na esfera criminal, vícios dessa ordem devem dar ensejo à
ilicitude da prova no processo penal, por desrespeitarem garantias constitucionais asseguradas aos cidadãos brasileiros
11.

Nesse tocante, a própria legislação oferece dispositivos de redação minimamente duvidosa, como a criminalização
prevista pelo art. 1º, V, parágrafo único, da Lei nº 8.137/90 ("negar ou não fornecer nota fiscal ou documento relativo à
venda de mercadoria ou prestação de serviço"). Ainda, requer leitura cautelosa regras como a presente no art. 200 do
Código Tributário Nacional ("requisição de força pública para invadir estabelecimento"), que somente em casos extremos
e se possível mediante autorização judicial deve ser utilizada pelos representantes da Administração Pública no exercício
de seu poder de fiscalização.

III - O Bem Jurídico nos Crimes Contra a Ordem Tributária

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Na doutrina brasileira não há um consenso sobre qual seja o bem jurídico protegido nos crimes tributários, muito embora
se reconheça a importância de sua determinação para a interpretação e aplicação desses tipos penais, especialmente no
que diz respeito à sua estrutura como crimes materiais ou formais, bem como às regras do concurso de crimes 12.

Nesse espaço, cabe a indicação de quatro perspectivas sobre o bem jurídico nos crimes tributários que a nosso ver
merecem destaque no intuito de compreender e fundamentar a punição pela prática das condutas previstas como crimes
contra a ordem tributária.

A primeira delas vê nos crimes tributários uma ofensa ao patrimônio público, conferindo-lhes, portanto, natureza
patrimonial. Quanto à forma específica de proteção do patrimônio público, são defendidas basicamente duas linhas de
argumentação. De um lado, fala-se na proteção da própria pretensão tributária do Estado, isto é, o interesse público
existente no recebimento integral e pontual dos tributos 13. De outro lado, menciona-se a necessidade de se garantir as
condições de cobrança dos valores tributários pelo Estado, permitindo-lhe o seu recebimento a partir do correto
cumprimento dos deveres acessórios ao fisco por parte do contribuinte 14.

Embora plausível em suas conclusões, a visão que considera o caráter meramente patrimonial dos crimes tributários
padece de algumas dificuldades no que diz respeito à justificativa de existência desses delitos.

Primeiramente, seria de se indagar por qual razão teria sido necessária a criação de delitos específicos envolvendo
tributos quando, no que tange o patrimônio, a sonegação de tributos e o desvio de valores tributários confiados aos
particulares pelo Estado poderiam ser enquadrados em figuras delitivas como o estelionato e a apropriação indébita, nos
termos dos arts. 171 e 168 do Código Penal. Neste sentido, fica obscurecida a justificativa para a diferença de pena que
existe entre os referidos crimes comuns contra o patrimônio e os crimes tributários, já que os crimes do art. 1º da Lei nº
8.137/90, por exemplo, possuem pena mais elevada em comparação com os anteriores. Assim, enquanto a apropriação
indébita simples (art. 168 do CP) tem uma pena restritiva de liberdade de um a quatro anos, a apropriação indébita
previdenciária (art. 168-A do CP) é punida com a restrição de liberdade de dois a cinco anos.

Em segundo lugar, não se pode dizer que o recebimento integral e pontual dos tributos justifique por si só a intervenção
penal. Afinal, também os contratantes na esfera civil têm frustradas as suas pretensões pecuniárias diante do
inadimplemento das obrigações por parte de seus devedores e nem por isso cogita-se em apenar criminalmente essas
condutas. A prisão civil por dívida está excluída de nosso ordenamento jurídico nos termos do art. 5º, LXVII, da
Constituição Federal.

Em distinção a esse viés patrimonialista, uma segunda corrente doutrinária vê a finalidade dos crimes tributários na
proteção da ordem jurídica tributária. Trata-se de uma perspectiva que apresenta uma função crítica importante. De
acordo com Brito Machado, a ordem jurídica tributária consistiria não apenas no complexo de normas que estabelecem o
exercício estatal do poder de tributar, como, igualmente, das normas que impõem uma limitação a esse poder. Protegida
estaria a vigência das normas relativas ao exercício do poder de tributar, visão essa que permite ao autor incluir no rol
dos crimes tributários o excesso de exação (art. 316, § 1º, do CP) e defender a realização de um único crime em
situações em que se verifica a multiplicidade dos tributos afetados pela conduta praticada 15.

Não obstante amplamente aceita a concepção acima, deve-se considerar que cada subsistema - o tributário não poderia
ser diferente - possui meios próprios para resguardar a eficácia de suas normas, o que desafia a justificação de que o
Direito Penal seria recurso necessário para tanto. Neste tocante, a própria legislação tributária estabelece penalidades
ao descumprimento das obrigações tributárias principais e acessórias, como o perdimento de bens previsto nos art. 105
do Decreto-Lei nº 37/66 e art. 23, § 1º, do Decreto-Lei nº 1.455/76. Essa concepção do bem jurídico tutelado pelos
crimes tributários peca, ainda, porque deixa em aberto a razão pela qual o sistema tributário careceria de proteção
especial se comparado a outros sistemas, como, por exemplo, o sistema do direito civil.

Em outro sentido, a terceira vertente que mencionamos para análise, afirma que o bem jurídico tutelado pelos crimes
tributários consistiria nos processos de arrecadação de receitas e realização do gasto público 16. Essa alternativa parece
igualmente insuficiente, pois não explica o que há de especificamente importante na salvaguarda destes procedimentos
arrecadatórios, que de resto já são resguardados por meio de mecanismos e institutos do Direito Administrativo e do
Direito Penal, quando se estabelecem multas em caso do não pagamento de tributos, a execução das dívidas, e os
crimes de corrupção para os desvios no recebimento e gasto dos valores arrecadados.

Por fim, a quarta e última perspectiva doutrinária que trazemos à baila é aquela que, a nosso ver, permite certa
confluência entre as visões anteriores. De acordo com ela, o bem jurídico tutelado deve ser compreendido a partir não de
uma noção do erário público em vista de seu caráter patrimonial, mas sim, tendo-se em conta a importância dos tributos
numa dada sociedade. Partindo dessa tese, há uma linha de argumentação que se foca na garantia da realização de
uma política financeira e fiscal justa do Estado, voltada para o bem comum 17. Dificultar sua implementação pelo boicote
à arrecadação seria uma prática que atinge "toda uma política econômica social que incide sobre a poupança, o
investimento, a distribuição de renda nacional, etc." 18.

A nosso ver, a relevância desse raciocínio consiste, porém, na concepção de que seria afetado não o Estado enquanto
titular de um patrimônio determinado, mas, sim, o interesse público, de toda a sociedade, no sistema de arrecadação dos
tributos. Isso, na exata medida em que os indivíduos outorgam ao Estado poderes para alcançar e garantir liberdade,
justiça e igualdade para todos 19.

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Antes de qualquer coisa, portanto, o que se tutela com os crimes tributários é a própria manutenção do Estado e da
sociedade, que só é possível na medida em que seus cidadãos contribuam financeiramente para a existência do
maquinário público. A atuação estatal compreende não apenas as tarefas mais complexas, como a garantia de saúde e
educação universais, mas também as mais triviais e questionadas, como o "auxílio-paletó" pago a parlamentares. Por
essa razão, por mais que se possa fazer alusão aos danos sociais concretos causados pelo desvio do pagamento de
tributos, como a privação a muitas pessoas de "alimentação, remédios e saneamento básico" 20, não é esse tipo de dano
que está em jogo nesses casos, ao menos não diretamente, pois o que se visa proteger é uma condição anterior e
essencial para que a própria discussão sobre alocação dos recursos possa ser feita, qual seja, a existência da estrutura
estatal.

Somente considerando o delito tributário como um desrespeito a esse dever de zelo e contribuição para a manutenção
do Estado e de suas atividades é que outros efeitos negativos secundários da supressão ou redução do pagamento de
tributos são capazes de justificar, subsidiariamente, a criminalização das condutas lesivas ao Fisco. Dentre os efeitos
secundários da sonegação podem-se mencionar, nesse sentido, a deterioração dos setores que deixam de receber os
recursos destinados pela arrecadação, assim como a lesão imediata de terceiros, a exemplo dos empregados que são
tolhidos no acesso aos serviços da seguridade social 21, ou ainda das empresas que se tornam menos competitivas
devido aos gastos tributários, passando-se, ademais, pela lesão dos contribuintes que efetivamente pagam impostos,
uma vez que a sonegação pressiona para cima o valor final a ser estabelecido para os tributos 22.

IV - Ponderações sobre a Finalidade de Proteção do Bem Jurídico nos Crimes Contra a Ordem Tributária

A nosso ver, uma discussão sobre a interferência de interesses arrecadatórios sobre a política criminal estabelecida para
a punição dos crimes tributários deve ser abordada sob uma dupla perspectiva: a da proteção do bem jurídico tutelado
por esses delitos, de um lado, e a da racionalidade própria da atuação do Direito Penal, de outro.

Assim, uma compreensão patrimonialista dos crimes tributários é mais suscetível de alinhar a atuação penal no sentido
de uma abertura para ampliar as possibilidades de extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo, ao passo que
uma explicação procedimental do bem jurídico protegido favorece maior aceitação da discricionariedade administrativa
no desenvolvimento da investigação fiscal, por exemplo.

Com efeito, uma pergunta fundamental na atualidade diz respeito à legitimidade das anistias penais estabelecidas
através da Lei de Repatriação de Ativos. A medida foi proposta no contexto de colapso fiscal de diversos estados
brasileiros, além do próprio governo federal. O intento por trás de sua promoção era destinar parte dos recursos para
socorrer as finanças desses estados, cuja dificuldade para o fechamento das contas chegou ao ponto de faltarem com o
pagamento do salário de funcionários públicos 23. Foi uma aposta eivada de grande otimismo. Apenas para o ano de
2016, a estimativa de arrecadação do governo federal com multas e impostos dos contribuintes que aderissem ao
programa de repatriação chegou à ordem de 80 bilhões de reais 24, muito embora tenha sido capaz de arrecadar pouco
mais da metade do valor inicialmente previsto 25.

A se considerar os efeitos positivos gerados ao erário público, parece, à primeira vista, ser mais do que justificável e
vantajoso para a sociedade como um todo que essa transferência de recursos ocorra às custas da impunidade de crimes
como a sonegação de tributos e contribuições sociais (arts. 1º e 2º, I, II e V, da Lei nº 8.137/90; art. 1º da Lei nº 4.729/65;
art. 337-A do CP), crimes de falsidade (arts. 297-299 e 304 do CP), evasão de divisas (art. 22 da Lei nº 7.492/86), e
lavagem de dinheiro (art. 1º da Lei nº 9.613/98), praticados por quem manteve tais valores no exterior sem a devida
declaração às autoridades nacionais 26.

Nessa hipótese, teríamos de considerar que, em realidade, a extinção da punibilidade não fere, e sim garante, o
interesse de manutenção do Estado em suas atribuições político-sociais. Sendo assim, mereceria apoio incondicionado
qualquer política arrecadatória mais ampla do governo no sentido de obter recursos através de previsões legais que
permitem a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo, ainda que isso ocorra a qualquer momento do processo
criminal 27.

Todavia, há algo de inadequado nessa conclusão, sobretudo se formos considerar a necessidade de um equilíbrio mais
duradouro entre a política fiscal e a política criminal nessa matéria.

A longo prazo, a sobreposição que se estabelece da política arrecadatória em detrimento da lógica penal é
contraproducente. Entretanto, essa constatação somente se entrevê quando se considera o caráter preventivo da sanção
criminal. Como política duradoura, a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo nos moldes atualmente
estabelecidos no Brasil, em verdade esvazia o sentido da pena. Esta, por nunca ser aplicada, deixa de funcionar como
fator capaz de motivar o agente racional na ponderação de prós e contras no momento de realização do crime.

Com essa inversão das lógicas, a pena passa a servir exclusivamente como garantia ao Estado de que o agente irá
pagar a dívida tributária, ou seja, ela é empregada como substituto da execução da dívida pela Fazenda 28. Nesses
moldes, a criminalização de atos lesivos à ordem tributária acaba cumprindo uma função verdadeiramente administrativa
diante da ineficiência dos órgãos responsáveis pela cobrança dos valores devidos, num momento em que a existência da
dívida já foi descoberta. A pena perde, assim, o seu caráter útil originário de levar o sujeito a evitar consequências ruins
derivadas da prática do delito 29.
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Logo, nem mesmo uma teoria patrimonialista do bem jurídico nos crimes tributários resiste a uma sobreposição da
política arrecadatória sobre a criminal, já que o erário público acaba sendo mais lesado que beneficiado por tais medidas
quando se considera um período de tempo mais extenso.

Além disso, ainda que o pagamento nesses casos beneficie o patrimônio do Estado a curto prazo, relativamente ao
reforço do cumprimento do dever de contribuir para a manutenção do Estado, as consequências são simplesmente
catastróficas. Nos dias atuais, a sensação que se tem é que ninguém deixa de praticar crimes tributários por "medo" da
prisão no Brasil. Um forte indicativo, portanto, de que o Direito Penal deixou há algum tempo de atuar na função
particular que lhe diz respeito, qual seja, a proteção de bens jurídicos por meio da prevenção mediata de lesões que se
expressa no resguardo da eficácia das próprias normas penais 30.

V - Conclusão

Embora possa parecer vantajosa para os interesses arrecadatórios do Estado, a política criminal que caracteriza a
punição pelos crimes tributários no Brasil na atualidade é gravemente afetada pelo descompasso existente entre a
ameaça de pena e o perdão indiscriminado dos delitos cometidos. Em uma visão de longo prazo, tal descompasso se
mostra nocivo ao erário público.

Nesse sentido, uma reforma do Direito Penal Tributário no Brasil se mostra relevante não apenas para o propósito de
uniformizar e oferecer coerência às regras de extinção da punibilidade nos crimes tributários, como, ademais, para
oferecer maior segurança em temas sensíveis, tais como o prévio esgotamento do procedimento fiscal para a
persecução criminal e os limites da investigação fiscal, tendo-se em vista os efeitos criminais da mesma.

Se um sistema tributário previsível e eficiente é fundamental para o desenvolvimento social e econômico de um país,
mais verdadeira essa consideração se faz no que respeita a tutela criminal oferecida aos pressupostos de seu adequado
funcionamento.

TITLE: Tax crimes in Brazil: reflections on the difficult balance between tax collective logic and punitive rationality.

ABSTRACT: Tax crimes are an example of the fragile relationship between criminal and administrative law. In
Brazil, this relationship is tormented in several aspects that characterize the Tax Criminal Law. From a broader
reflection on the interests protected by tax crimes, the present article seeks to make a critical evaluation on
issues such as the extinction of criminal liability for the tax payment, the exhaustion of the administrative
remedies as a condition for criminal prosecution as well as the guarantee of residence inviolability and the
principle that no one is bound to incriminate himself.

KEYWORDS: Criminal Law Tax. Legal Interest. Tax Crimes. Extinction of Punishment by the Payment of the Tax.
Binding Precedent no. 24 of the Federal Supreme Court.

VI - Referências

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