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Título: Efeito backlash: “mesquinhez e intolerância, bolso nada que pariu”.

Autor: Graziela Paro Caponi. Pós-graduada em Ciências Penais pela Universidade


Anhanguera/UNIDERP. Defensora Pública do Estado do Pará.

CPF: 08184745648

Endereço para Correspondência: Travessa Mario Curica, 365, Centro. CEP 68800-
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Efeito Backlash: mesquinhez e intolerância, bolso nada que pariu

A verdade sobre a forma como as leis são produzidas é inconveniente. Sabemos que
elas não são resultado do processo democrático, nem objetivam a “construção de uma
sociedade livre, justa e solidária” - palavras estas apregoadas, já em seus primeiros
sussurros, pela Constituição Federal. Na realidade da vida prática, as leis se
promulgam e se propagam diretamente como expressão de grupos políticos
majoritários. Seu objetivo autêntico, e nunca expressamente declarado nas propostas
legislativas, é a perpetuação do poder.

Assim é que nosso arcabouço legislativo se preenche de um emaranhado de diplomas


despidos de lógica - permitindo reiteradas violações, como as perpetradas por grandes
grupos econômicos em detrimento de valores ambientais, sociais e culturais. Como
exemplo, tem-se a possibilidade de serem cobrados juros extorsivos por entidades
bancárias em desfavor de consumidores, embora reconhecidamente vulneráveis.
Mitigam-se preceitos, valores e postulados do Código de Defesa do Consumidor para
satisfação dos mandos e desmandos de uma categoria econômica especial,
financiadora de campanhas políticas. Promulgam-se leis específicas assegurando uma
espécie de “direito a violar outros direitos”.

Ao se voltar para a efetivação de direitos humanos, porém, o processo legislativo se


utiliza da técnica da legislação simbólica. Ao revés da exacerbada atividade legislativa
voltada à proteção dos interesses de grupos dominantes, aqui a codificação é precária
e, quase sempre, de pouca ou nenhuma efetividade. Utiliza-se o legislador de artifícios
como a profunda vagueza dos preceitos normativos, dando preferência a normas de
eficácia contida ou limitada, dentre outras aberrações chanceladas pelo sistema
legislativo constitucional. Ou seja: em matéria de direitos fundamentais, em regra, o
legislador produz uma lei, mas não prevê nem permite outros mecanismos suscetíveis
de lhe assegurar efetividade. É o que discorria o professor Marcelo Neves,
magistralmente, ao tratar da legislação álibi1.

Em tema de direitos fundamentais, além das mencionadas leis construídas para


permanecerem “no papel”, há, em questões mais sensíveis, um contínuo, profundo e
eloquente silêncio legislativo – especialmente no que diz respeito ao exercício de
liberdades humanas individuais. Aqui as leis sequer existem.

1
NEVES, Marcelo, Constituição simbólica 1º edição, Pernanbuco, Editora Martins Fontes 1998.
Num sistema de freios e contrapesos em que se tem um Legislativo ineficaz e um
Executivo volúvel, que “dança conforme a música” proposta pelos grupos políticos
dominantes, o Poder Judiciário, embora sobrecarregado, é a única porta aberta aos
inconformados.

E é nesse cenário que a jurisdição constitucional ganha especial relevo: o ativismo


judicial deslancha nas lacunas legislativas. O pronunciamento dos tribunais acerca do
exercício de direitos fundamentais ganha papel de destaque na solução de celeumas
específicas, como a delimitação de interpretações justas e adequadas a um texto
ambíguo, além da possibilidade de serem impostas medidas concretas, eficazes e
adequadas, para que se atendam aos valores constitucionais democráticos. Tal
atividade assegura a subserviência a comandos inafastáveis, oriundos dos tratados de
direitos humanos dos quais o Brasil é signatário.

Muito embora pouco, ou nada, se produza em matéria de direito penal – onde o


ativismo judicial ainda é tímido, e enfrenta enormes ressalvas – tem-se assistido, no
Brasil, a uma série de decisões que comprovam a necessidade de uma jurisdição
constitucional plena e atuante.

Citem-se, como exemplo, as recentes decisões proferidas pelo STF garantindo o


direito de aborto à gestante, no caso de feto anencéfalo (ADPF 54); a permissão de
pesquisas com células tronco (ADI 3510); a autorização para produção de biografias
sem prévia censura (ADI 4815); o direito à livre manifestação pelas chamadas
“marchas da maconha” (ADPF 187), dentre outras.

O ativismo judicial, porém, tem um preço: o denominado “efeito ‘backlash’”,


profundamente estudado em direito americano, e ainda pouco difundido na doutrina
brasileira. Em artigo elucidativo sobre o tema, George Marmelstein explica como
referido efeito funciona:

“(1) Em uma matéria que divide a opinião pública, o Judiciário profere


uma decisão liberal, assumindo uma posição de vanguarda na
defesa dos direitos fundamentais. (2) Como a consciência social
ainda não está bem consolidada, a decisão judicial é bombardeada
com discursos conservadores inflamados, recheados de falácias com
forte apelo emocional. (3) A crítica massiva e politicamente
orquestrada à decisão judicial acarreta uma mudança na opinião
pública, capaz de influenciar as escolhas eleitorais de grande parcela
da população. (4) Com isso, os candidatos que aderem ao discurso
conservador costumam conquistar maior espaço político, sendo,
muitas vezes, campeões de votos. (5) Ao vencer as eleições e
assumir o controle do poder político, o grupo conservador consegue
aprovar leis e outras medidas que correspondam à sua visão de
mundo. (6) Como o poder político também influencia a composição
do Judiciário, já que os membros dos órgãos de cúpula são indicados
politicamente, abre-se um espaço para mudança de entendimento
dentro do próprio poder judicial. (7) Ao fim e ao cabo, pode haver um
retrocesso jurídico capaz de criar uma situação normativa ainda pior
do que a que havia antes da decisão judicial, prejudicando os grupos
que, supostamente, seriam beneficiados com aquela decisão”2.

Alguns casos emblemáticos são citados como responsáveis pelo fenômeno em terras
americanas: o primeiro deles, Brown v. Board, versava sobre a segregação racial em
escolas. Há de se mencionar, ainda, o caso Furman, que tratava da pena de morte.

Em terras tupiniquins, como dito, o tema ainda é recente e pouco estudado, mas sua
difusão é visível. Verificou-se, por mais de uma vez, a imediata reação política – e
legislativa – a uma decisão judicial de vanguarda em matéria de direitos fundamentais,
após seu enfrentamento pelo Supremo Tribunal Federal. No ano de 2016, o Plenário,
no julgamento da ADI 4983/CE (decisão disponibilizada no Informativo 842) decidiu,
por maioria, ser inconstitucional lei estadual que regulamenta a atividade da
“vaquejada”. Em reação à histórica decisão, mobilizou-se o Poder Constituinte
Reformador, em velocidade assustadora, aprovando a Emenda Constitucional nº
96/2017, que inseriu no artigo 225 da Constituição um novo parágrafo, autorizador da
prática (§7º).

Causa estranheza que o legislador permaneça inerte, por tanto tempo, sobre assuntos
de importância reconhecida e, ao ser contrariado, ganhe brusca e inesperada
eficiência para remendar, por birra, o próprio texto constitucional. Um legislador
sempre teimoso, ineficiente e inócuo ganha inesperada produtividade motivada por
razões egoísticas. O efeito backlash, em seu viés legislativo, não é nada além disso:
pirraça, capricho. A arrogância do jogo de poder manifestando-se de modo dramático.

Outro exemplo adveio após pronunciamento do STF quanto ao reconhecimento da


união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar (ADI 4277). A tentativa
de burla legislativa ao pronunciamento da jurisdição constitucional manifestou-se, aqui,

2Disponível em: https://direitosfundamentais.net/2015/09/05/efeito-backlash-da-jurisdicao-


constitucional-reacoes-politicas-a-atuacao-judicial/. Acesso em: 15/06/2018.
pela proposta de um “Estatuto da Família”, que pretendia justamente grafar previsão
em sentido contrário, de modo expresso, visando excluir e tolher quaisquer outros
arranjos familiares que não o eleito pelo legislador.

É fato, porém, que o efeito backlash não se manifesta unicamente pela interposição
legislativa de diplomas visando contradizer os pronunciamentos judiciais – e que são,
como dito, armas despóticas, já que seu único objetivo é expressar contrariedade e
reproduzir um ilógico “braço de ferro” no sistema de freios e contrapesos, o qual quem
sempre perde, fatalmente, é o jurisdicionado.

Os pronunciamentos judiciais voltados à garantia de direitos fundamentais geram


notícia. Assim, causam polêmica e forçam a sociedade ao debate. Amparados por um
sistema democrático que permite a liberdade de expressão, grupos conservadores
passam a bradar e grunhir como animais feridos. Organizam-se. Propagam mentiras,
notícias falsas. A onda conservadora e reacionária vale-se de teses sem qualquer
respaldo científico para angariar seguidores.

Nesse cenário, torna-se possível a ascensão de líderes fascistas, cujo discurso se


difunde, essencialmente, pela exteriorização de preconceitos e intolerância. Palavras
do grupo musical brasileiro “Francisco, el Hombre”, de cuja canção inclusive tomamos
expressão emprestada para dar título a este artigo, resumem facilmente o tema: “Se a
um fascista é concedido cargo alto e voz viril / Vai lucrar do desespero, tal loucura já
se viu”3.

Figura exagerada e caricata, o deputado é a personificação exata do efeito backlash.


Diríamos, até mesmo, que se o efeito backlash tivesse um rosto, poderia
perfeitamente ser o do deputado. Seus discursos só não podem ser chamados de
vazios porque são impregnados de ódio. Sua marca registrada é, justamente, a reação
afetada à conquista de direitos fundamentais: o parlamentar já se manifestou
contrariamente a garantias trabalhistas conquistadas pelas mulheres, se posicionou
contra o reconhecimento de direitos aos LGBTs. Homenageia publicamente
torturadores – o que é um contrassenso, já que diz odiar “bandidos”. Ao tratar de
segurança pública e criminalidade, apropria-se do “medo do crime” e propaga
fantasias sem nenhum respaldo científico. Angaria seguidores apaixonados, porém.

Ao ser confrontado diretamente sobre a atecnia e imprecisão de suas falas, revida


agressivamente. Seus chavões e lugares-comuns parecem ser tão sedutores a ponto
de não importar, a seus entusiastas, o fato de não ter nenhuma produção significativa

3
Música: Bolso nada. Álbum: Soltasbruxa, 2016.
a exibir. Sua popularidade repentina e contínua ascensão em pesquisas eleitorais
prévias não condizem com a insignificante produção parlamentar. Sequer nas poucas
áreas em que arrisca palpitar, ou se posicionar, possui algum trabalho relevante.

Em brilhante artigo publicado no “Justificando”, aliás – o qual se recomenda,


veementemente, a leitura - o pedagogo Otavio Pereira4 desmantelou o “mito”,
comprovando que o deputado não possui sequer os atributos propalados. Suas ações
não condizem com os valores cristãos, patrióticos ou de honestidade que,
supostamente, afirma deter. “Bolso dele sempre cheio, nosso copo anda vazio”,
prossegue a apropriada canção. Como, então, sua popularidade não para de crescer?

Sabe-se que figuras reacionárias, como Bolsonaro ou Donald Trump, possuem


idêntica construção – discursos “revolucionários”, que vagueiam entre o cômico e o
grotesco, permeados por falácias apelativas e de fácil assimilação. Falas grosseiras e
incultas que os promovem de forma meteórica. Seus discursos ressaltam algo de
primitivo e bestial. Essa reação exagerada e cruel aos direitos das minorias, e a
aceitação política recebida, são explicadas em partes pelo efeito backlash.

Não há dúvidas que o desenvolvimento dos direitos humanos, em retrospecto


histórico, sempre ocorreu de modo arrastado e dificultoso. Aos avanços seguem-se
retrocessos – promovidos sempre como reação de grupos afetados, que não querem
abdicar de privilégios ou interesses pessoais. Guerras e violações de direitos humanos
extremamente graves são desencadeadas logo em seguida ao mínimo
reconhecimento de garantias.

É fato que as decisões que implementam direitos fundamentais, pela via judicial,
tomam um atalho: determina-se forçadamente o cumprimento de um valor que,
embora humano, ainda não é assimilado por todos, sem que haja uma completa
evolução da sociedade para aceita-lo. As esferas contrariadas, incapazes de digerir
seu aborrecimento, reagem - ainda que por afetação, egoísmo ou maldade.

A doutrina especializada, neste ponto, se divide: há quem sustente a necessidade de


contenção, entendendo que deve o Poder Judiciário se esquivar, deixando de
pronunciar-se sobre temas sensíveis, para evitar justamente o efeito backlash e toda a
gama de respostas perniciosas dele decorrentes. Deveria a luta pelo direito
fundamental em questão centrar-se na esfera política e social, ainda que de forma
lenta, permitindo-se que as camadas mais conservadoras da sociedade primeiro

4
Disponível em: http://justificando.cartacapital.com.br/2018/04/14/nem-patriota-nem-honesto-nem-
cristao-desmitificando-jair-bolsonaro/. Acesso em: 15/06/2018.
evoluam, a ponto de acatar ou tolerar a consagração daquele direito, para então, só
depois desse processo, materializá-lo.

Nos filiamos, porém, à corrente contrária: as reações conservadoras não justificam o


“bater em retirada” dos atores do sistema de justiça na luta pela implementação de
direitos fundamentais. Sabemos que a imposição de um direito pela atuação de um
tribunal, no exercício de sua função constitucional, causa asco e rebeldia aos que se
sentem “atingidos” pela perda de um privilégio. Quem gosta de ser contrariado?

Por óbvio que os setores conservadores buscarão, a qualquer custo e por qualquer
meio, reverter os efeitos da decisão, ainda que isso impacte no cenário político – e o
que se produza sejam resultados avassaladores e desastrosos, como a promoção de
fascistas a “heróis”.

Porém, não podemos esperar que a conquista de um direito, que demanda exercício
imediato por seus titulares, balance ao sabor das vontades políticas dominantes. O
reconhecimento de determinadas garantias é emergencial e não pode resistir à
demora de um processo vagaroso e sem prazo de duração – as violações produzidas
no processo de espera, indubitavelmente, são ainda mais catastróficas e nefastas.

Esperar que primeiro venha a evolução lenta e gradual de uma sociedade, para então
se produzirem mecanismos pelos Poderes Legislativo e Judiciário com vistas a efetivar
um determinado direito, seria o cenário ideal. Mas é utópico. Mais que irreal ou
ilusório, pode mesmo ser impossível. Trocaríamos a segurança de um cenário político
sereno, em que supostamente não haveria possibilidade de ascensão de grupos
reacionários, pela nossa própria liberdade em exercer direitos mínimos. Benjamin
Franklin já profetizava, nesse ponto: “Aqueles que se dispõem a renunciar à liberdade
essencial em troca de uma pequena segurança temporária não merecem liberdade,
nem segurança”.

Talvez a imposição de direitos de modo súbito pelos tribunais constitucionais, no


exercício de sua função contramajoritária, por pegar os incomodados de surpresa, seja
como um remédio amargo, cujos efeitos colaterais sejam ainda muito incômodos. Mas
o organismo social há de se habituar, ainda que seja uma guerra em que todos
percam alguma coisa. Poderíamos, nesse ponto, fazer uma analogia: desertores, no
código penal militar, são punidos com a pena de morte. Mas, se os membros do Poder
Judiciário deserdarem dessa batalha, quem morre é o próprio sistema democrático.

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