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A respeito da Violenta Polícia da Paz

Uma carta aberta a Chris Hedges

David Graeber

E stou escrevendo isso sob a premissa de que você é uma pessoa de


boas intenções que deseja que o Occupy Wall Street dê certo. Estou
também escrevendo como alguém que esteve profundamente envolvido nas eta-
pas iniciais de planejamento do Occupy em Nova Iorque.
Também sou um anarquista que participou em vários Black Blocs. Apesar de
pessoalmente nunca ter participado de atos de dano à propriedade, eu fiz parte
mais de uma vez de Blocs em que houve danos à propriedade. (Eu fiz parte de
mais Blocs ainda que não empreenderam tais táticas. É um erro comum dizer que
os Black Blocs só pensam nisso.)
Eu era praticamente o único veterano de Black Bloc que participou do plane-
jamento da estratégia inicial para o Occupy Wall Street. Na verdade anarquistas
como eu eram o verdadeiro núcleo do grupo que surgiu com a ideia de ocupar o
Zuccotti Park, do slogan dos “99%”, do processo da Assembleia Geral, de quem
decidiu coletivamente que adotaríamos a estratégia gandhiana de não-violência
e evitaríamos atos de dano à propriedade. Muitos de nós tinham participado dos
Black Blocs. Não sentíamos que era uma tática apropriada para a situação em que
estávamos.
É por isso que me sinto compelido a responder à sua afirmação sobre “o cân-
cer no Occupy”. Essa afirmação não é só factualmente imprecisa, também é lite-
ralmente perigosa. É uma espécie de desinformação que pode realmente matar

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pessoas. Na verdade é mais possível de sentimento de que criar um bloco de


fazer isso, na minha opinião, do que pessoas com políticas claramente re-
qualquer coisa feita por um adolescen- volucionárias e dispostas a confron-
te coberto de preto jogando pedras. tar forças da ordem por meio de ou-
Deixe-me explicar alguns pontos tras táticas militantes se for preciso é
iniciais: algo útil em particular na ocasião em
que eles se veem. Não se pode falar de
1. Black Bloc é uma tática, não
“anarquistas de Black Bloc” como um
um grupo. É uma tática pela qual ati-
grupo de ideologia identificável senão
vistas põem máscaras e roupas pretas
poderá se falar também de “anarquis-
(originalmente jaquetas de couro na
tas de cartazes” ou “anarquistas de tes-
Alemanha, depois blusas nos Estados
te de som”.
Unidos) como uma atitude pelo anoni-
mato, pela solidariedade e para indicar 3. Mesmo que você selecione uma
aos outros que eles estão preparados, minoria minúscula, ultrarradical den-
se for o caso, para uma ação militante. tro do Black Bloc e finja que suas visões
A natureza da tática desmente a acusa- sejam representativas de qualquer um
ção de que eles tentam assaltar o mo- que vista uma blusa preta, você pode-
vimento ou ameaçar os outros. Uma ria pelo menos estar atualizado sobre
das ideias em se ter um Black Bloc é eles. Somente em 1999 as pessoas fin-
que todos que vêm ao protesto devem giam que “o Black Bloc” era feito de se-
saber onde estão as pessoas dispostas guidores primitivistas niilistas de John
a fazer parte de uma ação militante; Zerzan, opostos a todas as formas de
torna-se, por consequência, também organização. Hoje em dia, a abordagem
mais fácil evitar isso se alguém quiser. preferível é fingir que “o Black Bloc” é
feito de seguidores insurreicionários
2. Black Blocs não representam
niilistas do Comitê Invisível, opostos a
uma posição ideológica em especial
todas as formas de organização. Am-
ou até mesmo anti-ideológica. Black
bas as ideias são estigmas absurdos. A
Blocs tenderam no passado a serem
sua está atrasada em 12 anos.
feitos principalmente de anarquistas,
mas a maioria contém participantes 4. Seu comentário sobre partici-
cujas posições políticas variam do ma- pantes de Black Blocs que odeiam za-
oísmo à social-democracia. Eles não patistas é um dos mais absurdos que
estão unidos por ideologias, ou pela já ouvi. É claro, se você procurar bem,
falta de ideologia, mas somente pelo conseguirá achar alguém dizendo qua-

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se a mesma coisa. Mas suspeito que, vez de impor um código a todos. Em


apesar da diversidade ideológica, se partes, isso se deve ao fato de que impor
você fizer uma enquete com os par- isso irremediavelmente dá efeitos nega-
ticipantes de um Black Bloc comum tivos. Na prática, significa que alguns
e perguntar qual movimento político grupos acabam se indignarem e fazem
no mundo mais os inspirou, o ELZN mais ações combativas do que fariam
conseguiria cerca de 80% dos votos. em outras situações, fora de sincronia
De fato, poderia apostar que pelo me- com os outros – como aconteceu, por
nos um terço dos participantes em um exemplo, em Seattle. Os resultados são
Black Bloc comum veste ou carrega geralmente desastrosos. Depois do fias-
consigo algum artigo zapatista. (Você co em Seattle, quando ativistas se esfor-
realmente falou com alguém que par- çaram em atirar uns aos outros à polícia,
ticipou de um Black Bloc? Ou só com decidimos que precisávamos assegurar
pessoas que não gostam deles?) que isso não aconteceria de novo. Des-
cobrimos que se tivéssemos declarado
5. “Diversidade de táticas” não é que: “devemos ser solidários uns com os
uma ideia vinda do Black Bloc. Foi o outros. Não entregaremos manifestan-
GA original no Tompkins Square Park tes parceiros para a polícia. Trataremos
que planejou a primeira ocupação, se vocês como irmãs e irmãos. Mas espe-
não estou enganado, que adotou o prin- ramos que vocês façam o mesmo por
cípio de diversidade de táticas (pelo nós”, então, aqueles dispostos a agir de
menos isso foi discutido com grande maneira combativa agiriam em solida-
ânimo), enquanto nós aprovávamos a riedade também, tanto para evitar ações
abordagem gandhiana como a melhor militantes que possam prejudicar outros
estratégia. Isso não é uma contradição: (como em Ações de Justiça Global, nas
“diversidade de táticas” significa deixar quais os Black Blocs apenas ajudaram
isso para a consciência de cada um em a proteger as solitárias, ou no Zuccotti

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Park, onde ninguém fez blocs), quanto 4) não têm qualquer fundamento;
para praticar essas ações de modo a cau- 5) são todos iguais;
sar o mínimo risco aos parceiros. 6) querem nos destruir;
7) são um câncer que precisa ser
*
extirpado.
* *
Com certeza você precisa reco-
Tudo isso é secundário. Escrevo
nhecer que, quando se define tudo
principalmente para apelar à consci-
dessa forma, é exatamente esse tipo de
ência. A sua consciência, já que você
linguagem ou argumento que, na his-
é uma pessoa sincera com boas inten-
tória, tem sido invocado para atacar
ções que quer que esse movimento dê
fisicamente, “limpar” uma etnia ou ex-
certo. Eu imploro: por favor, pense no
terminar outra – na verdade esse tipo
que estou dizendo. Por favor, lembre-
de linguagem ou argumento que quase
se quando digo que não sou um niilista
nunca é invocado para qualquer outra
louco, mas sim uma pessoa sensata que
circunstância. Afinal de contas, se um
é um (senão o único) dos autores da
grupo é feito exclusivamente de faná-
estratégia gandhiana que o OWS (Oc-
ticos violentos sem fundamento, com
cupy Wall Street) adotou – além de um
a intenção de nos destruir, o que mais
estudioso dos movimentos sociais, que
poderíamos fazer? Essa é a linguagem
passou muitos anos participando des-
da violência em sua forma mais pura,
ses movimentos e tentando entender
muito mais que “foda-se a polícia”. Ver
sua história e sua dinâmica.
esse tipo de linguagem usada por al-
Sigo nesse apelo porque realmen-
guém que diz falar em nome da não-
te acredito que uma declaração como a
violência é realmente extraordinário.
sua é bastante perigosa.
Eu reconheço que você conseguiu
A razão pela qual digo isso é porque,
achar certos elementos peculiares à
não importando seus motivos, é muito
margem do anarquismo ao dizer algu-
difícil ler sua declaração senão como
mas coisas bem extremas. Não é difícil
um apelo à violência. Afinal de contas, o
fazer isso, especialmente pelo fato de
que você está dizendo na verdade sobre
que essas pessoas são mais facilmente
os “anarquistas de Black Bloc”?
encontradas na internet do que na vida
1) eles não são parte de nós; real, mas seria difícil surgir com um
2) são conscientemente malévolos “anarquista de Black Bloc” dando uma
em suas intenções; declaração tão extrema quanto essa.
3) são violentos; Mesmo que você não quisesse que

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sua declaração soasse como um apelo e, pelo que saiba, nunca foram pro-
à violência, o que suspeito que não seja movidas por qualquer pessoa em um
o caso, como você acredita de verdade Black Bloc, mas sim, invariavelmente,
que muitos não a leriam assim? por ditos pacifistas contra qualquer um
Pela minha experiência, quan- que tente colocar uma toca na cabeça
do afirmo algo assim, a primeira rea- ou uma bandana sobre o rosto, ou sim-
ção que tenho de pacifistas são frases plesmente contra anarquistas que ado-
como: “do que você está falando? É cla- tam táticas que se pensa que vão longe
ro que não sou a favor de atacar qual- demais. (Não preciso nem mencionar
quer um! Eu não sou violento! Só estou táticas potencialmente violentas. Du-
pedindo para confrontar esses ele- rante 15 minutos no Occupy Austin,
mentos sem violência e exclui-los do fui ameaçado primeiro de ser detido,
grupo!” O problema é que, na prática, depois de ser agredido por companhei-
isso praticamente nunca acontece. Ao ros de acampamento, porque estava
longo do tempo, o que isso significou expressando solidariedade - demons-
de verdade é: a) atirar companheiros trando uma resistência passiva - por
para a polícia, ou seja, atirá-los para um grupo de anarquistas que monta-
pessoas com armas que vão agredi-los, va o que foi considerado uma barraca
algemá-los e prendê-los; ou: b) levar não-autorizada.)
ativistas a se agredirem. Essas coisas já Esse tipo de situação com frequên-
aconteceram. Houve agressões físicas a cia produz ironias extraordinárias. Em
ativistas por parte de outros ativistas, Seattle, os únicos casos de real agres-

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são física por manifestantes para com 1. OWS teve sucesso porque seguiu
outros indivíduos não foram ataques à uma estratégia gandhiana ao mostrar
polícia, já que não ocorreram de forma que, mesmo com uma oposição estrita-
alguma, mas sim ataques de “pacifistas” mente não-violenta, o Estado respon-
contra integrantes do Black Bloc ocu- derá com violência ilegal;
pados em atos de dano à propriedade.
2. Integrantes do Black Bloc que
Considerando que o Black Bloc tinha
não agem de acordo com os princí-
concordado coletivamente com uma
pios gandhianos de não-violência es-
política de não-violência (que eles defi-
tão destruindo o movimento, pois dão
niram como não fazer nada que amea-
uma justificativa retroativa para a re-
çasse outro ser vivo), eles se recusaram
pressão estatal, especialmente para a
em conjunto a voltar atrás. Em muitas
visão da mídia;
ocupações recentes, a autodenomina-
da “Polícia da Paz” maltratou ativistas 3. Portanto, os integrantes do Bla-
que apareceram com roupas pretas e ck Bloc precisam ser, de algum modo,
toucas, arrancaram suas máscaras e os extirpados.
empurraram e chutaram; como sem-
Como um dos autores da estraté-
pre, sem que as vítimas tenham feito
gia gandhiana original, posso relem-
qualquer ato de violência; sempre com
brar o quão conscientes estávamos
as vítimas recusando, sob base moral, a
quando moldamos essa estratégia de
empurrar ou chutar em resposta.
que tomávamos um risco enorme.
O tipo de retórica que você assu-
Táticas gandhianas não funcionaram
me, se se disseminar amplamente, as-
historicamente nos EUA. Na verdade,
segurará que esse tipo de violência se elas não funcionaram em larga escala
torne muito, muito mais severa. desde o Movimento dos Direitos Civis.
* Isso se deve ao fato de a mídia ame-
* * ricana ser constitucionalmente impe-
dida de relatar atos de repressão poli-
Talvez você não acredite em mim, cial como “violência”. (Uma razão pela
ou não acredite que esses acontecimen- qual o Movimento dos Direitos Civis
tos sejam significativos. Se for o caso, foi uma exceção é que muitos america-
deixe-me colocar a situação em um nos não viam o Extremo Sul como par-
contexto histórico maior. te do mesmo país.) Muitos dos jovens
Se entendi seu argumento, parece que formaram o famoso Black Bloc em
que se delineia deste modo: Seattle eram, na verdade, ecoativistas

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que tinham se envolvido em defesa de sendo os fatos básicos iniciais sobre o


florestas que funcionavam sob princí- que aconteceu. Isso acontecerá se al-
pios puramente gandhianos – só para guém no protesto fizer algo que possa
provar que, nos EUA dos anos 90, ma- ser remotamente descrito como violen-
nifestantes não-violentos poderiam to ou não. Muitas afirmações da polícia
ser violentados, torturados (com spray serão obviamente ridículas – como na
de pimenta nos olhos) e até mesmo última marcha em Oakland, na qual a
mortos sem qualquer objeção forte da polícia acusou manifestantes de atirar
mídia nacional. Então eles mudaram “explosivos improvisados” –, mas não
de tática. Sabíamos disso. Decidimos importa quantas vezes ela mentir sobre
que valia o risco. isso, a mídia nacional relatará suas rei-
No entanto, também estamos cien- vindicações como verdadeiras, e ficará
tes de que, quando a repressão começa, para os manifestantes fornecer provas
alguns sairão do lugar e reagirão como contrárias. Às vezes, com ajuda das mí-
bons militantes. Mesmo que isso não dias sociais, conseguimos demonstrar
ocorra de maneira sistemática e orga- que alguns ataques da polícia foram
nizada, alguns atos violentos aconte- completamente injustificados, como
cerão. Você escreveu que os integran- no famoso caso do spray de pimenta de
tes do Black Bloc destruíram um “café Tony Bologna. Mas não podemos pro-
local”; duvidei disso quando li, já que var que a princípio todos os ataques da
a maioria dos Black Blocs concordam polícia são injustificados, mesmo todos
com uma política rígida de não causar os ataques em um protesto em especial.
danos a pequenos empresários, e agora É fisicamente impossível filmar tudo o
vejo na resposta de Susan Cagle a seu que acontece de todos os ângulos pos-
artigo que, na verdade, era um café per- síveis a todo tempo. Portanto, podemos
tencente a uma franquia, e que o dano imaginar que, não importando o que
à propriedade foi realizada por alguém fizermos, a mídia relatará com obe-
que não estava de preto. Ainda assim, diência que “manifestantes entraram
você está certo: alguns incidentes des- em confronto com a polícia” em vez
ses podem realmente ocorrer. de que “a polícia atacou manifestantes
A questão é como se reage. não-violentos”. Digo mais: quando al-
Se a polícia decidir atacar um gru- guém jogar uma bomba de gás, atirar
po de manifestantes, dirá que foi pro- uma garrafa ou pichar algo, podemos
vocada, e a mídia repetirá qualquer esperar que esse ato será usado como
coisa que a polícia disser – não impor- justificativa retroativa para qualquer
tando se for plausível ou não – como violência policial ocorrida antes mes-

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mo do ato acontecer. aceita. E, o que talvez seja o mais im-


Tudo isso será verdade estando o portante, mesmo se fosse possível de
Black Bloc presente ou não. algum modo criar uma espécie de Po-
Se a questão moral for: “é aceitável lícia da Paz que pudesse prevenir que
fazer ameaças físicas àqueles que não alguém sob ataque de gás atirasse uma
ameaçam diretamente outros?”, pode- garrafa, de maneira que pudéssemos
se dizer que a questão pragmática, tá- afirmar que ninguém fez nada para
tica é: “mesmo se fosse possível criar sustentar o tipo de ação que a polícia
uma Polícia da Paz capaz de prevenir tem feito com frequência, a cobertura
qualquer ato que possa ser interpretado um pouco melhor da mídia que pode-
como ‘violento’ pela mídia corporativa, ríamos conseguir valeria o custo à li-
por alguém em um protesto ou próxi- berdade e à democracia que se seguiria
mo dele, não importando qual seja o inevitavelmente da criação de tal força
policial só para começar?
motivo, isso teria algum efeito signifi-
cativo?” Isto é, seria criada uma situ-
*
ação em que a polícia sentiria que não
* *
poderia usar sua força arbitrariamente
contra manifestantes não-violentos? O Essas não são questões hipotéticas.
exemplo do Zuccotti Park, onde chega- Todo grande movimento de massa de
mos a certa não-violência consistente, desobediência civil não-violenta teve
sugere que a hipótese é difícil de ser que lidar com elas de uma forma ou

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de outra. Quão aberto você deveria ser Ali estava um homem que enten-
com aqueles que têm ideias diferentes dia o que se precisa para vencer uma
sobre quais táticas são apropriadas? revolução não-violenta! Ele sabia que
O que você faz com aqueles que vão se a polícia começasse a atirar bombas
além do que a maioria considera serem de gás sobre a cabeça das pessoas, ba-
os limites aceitáveis? O que você faz ter com cassetetes, prender ou torturas
quando o governo e sua mídia aliada pessoas, com centenas de manifestan-
apresentam suas ações como justifica- tes, alguns reagiriam. Não há jeito para
tiva – até mesmo justificativa retroativa se evitar isso. A resposta adequada
– para atos de violência e repressão? é lembrar sempre todos da violência
Movimentos de sucesso já entende- das autoridades estatais, e nunca, nun-
ram que é absolutamente essencial não ca mesmo escrever longas denúncias
cair na armadilha feita pelas autorida- de outros ativistas dizendo que fazem
des e passar o tempo condenando ou parte de uma conspiração fanática,
tentando policiar outros ativistas. Dei- maléfica e insana. (Mesmo que eu es-
xa-se claro os princípios de cada um. teja quase certo de que se um ativista
Expressa-se qual solidariedade pode se hipotético egípcio quisesse comprovar
ter com outros que compartilham da que salafistas violentos ou até mesmo
mesma luta, e se não puder tê-la, ten- trotskistas tentaram subverter a revo-
ta ignorar ou evitá-la, mas, acima de lução, e adotasse os mesmos padrões
tudo, manter o foco na verdadeira fon- de evidência que os seus, procurando
te de violência sem fazer ou dizer algo por declarações inflamadas onde fosse
que possa justificar essa violência por e fingisse que são típicas de qualquer
causa de desentendimentos táticos que um que atire uma pedra, eles pode-
se tenha com outros companheiros. riam facilmente comprovar tudo.) É
Lembro-me da minha surpresa e do por isso que a maioria de nós sabe que
meu prazer ao conhecer os ativistas do o regime de Mubarak atacou manifes-
Movimento Jovem 6 de Abril, do Egi- tantes não-violentos, e não sabe que
to, quando a questão da não-violência muitos responderam atirando pedras.
deles veio à tona. “É claro que somos Os ativistas egípcios, em outras pa-
não-violentos”, disse um dos primeiros lavras, entenderam o que jogar o jogo
organizadores, um jovem de políticas da polícia realmente significa.
liberais que trabalhava em um banco. Na verdade, por que nos limitar-
“Ninguém nunca usou armas de fogo mos ao Egito? Como estamos falando
ou algo do tipo. Nunca fizemos algo de táticas gandhianas aqui, por que não
mais combativo do que jogar pedras!” pensamos no caso do próprio Gandhi?

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Ele teve que pensar em que dizer àque- Gandhi e seu movimento foram cons
les que foram além de jogar pedras tantemente denunciados pela mídia,
(ainda que os egípcios jogando pedras assim como anarquistas não-violentos
na polícia já tenham ido além de qual- são sempre denunciados pela mídia (e
quer Black Bloc dos EUA). Gandhi preciso ressaltar aqui que, mesmo não
fazia parte de um amplo movimento sendo anarquista, Gandhi foi bastan-
anticolonial que incluía elementos que te influenciado por anarquistas como
de fato pegavam em armas de fogo, na Kropotkin e Tolstói), como mera fa-
verdade elementos interessados em ter- chada para elementos terroristas mais
rorismo absoluto. Ele começou a deli- violentos, com os quais se disse que ele
near sua própria estratégia em massa estaria colaborando em segredo. Ele foi
de resistência civil não-violenta em frequentemente desafiado a provar suas
resposta ao debate sobre o ato de um credenciais não-violentas ao ajudar as
nacionalista indiano que entrou no es- autoridades a suprimir tais elementos.
critório de um oficial britânico e ati- Nisso Gandhi se manteve decidido. É
rou-o cinco vezes no rosto, matando- sempre moralmente superior, ele insis-
o na hora. Gandhi deixou claro que, tia, se opor à injustiça por meios não-
mesmo que fosse contrário ao assas- violentos que por meios violentos. No
sinato sob quaisquer circunstâncias, entanto, opor-se à injustiça por meios
ele também se recusava a denunciar o violentos é ainda moralmente superior
assassino. Era um homem que estava a não fazer nada para se opor à injustiça.
tentando fazer a coisa certa, agir con- E Gandhi estava falando de gente
tra uma injustiça histórica, mas que que estava explodindo trens, assassi-
agiu da maneira errada porque estava nando oficiais do governo, não que-
“bêbado com uma ideia doida”. brando janelas ou pichando frases mal-
Ao longo dos 40 anos seguintes, educadas sobre a polícia.

David Graeber é antropólogo, pesquisador na London School of Economics e ativista


do Occupy Wall Street. Texto originalmente publicado na revista digital N+1, traduzido
por Miguel F.

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