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Intrapessoal e interpessoal: dependência filosófica

antiga
Renê Ruggeri

Não vi início melhor para este texto que repetir a pergunta que nos ronda
há cerca de dois mil e quinhentos anos: “conhece-te a ti mesmo?”
(Sócrates, 469 A.C. a 399 A.C.).

Já naquela época os grandes pensadores percebiam a importância do


autoconhecimento como ponto de partida para a compreensão de todo o
universo.

Protágoras (481 A.C. a 411 A.C.), por outro lado, pouco anterior a
Sócrates, refletiu que "o homem é a medida de todas as coisas, das coisas
que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são".
Percebia-se desde aquela época a questão do relativismo.
Heráclito (540 A.C. a 470 A.C.), por sua vez anterior a ambos, afirmará que
“nenhum homem pode banhar-se duas vezes no mesmo rio, pois na
segunda vez o rio já não é o mesmo, nem tão pouco o homem”.

Sócrates, aliás, criticou duramente o relativismo (artifício de reflexão dos


sofistas) quando era utilizado para interesses do indivíduo (a referência) e
não da compreensão sobre as coisas em si. A compreensão não ocorre
pela afirmação do que se pensa, mas pela descoberta do que de fato pode
ser tido como universal.

Colocar estas três lições da filosofia em sua sequência temporal nos


conduz ao seguinte pensamento: tudo muda o tempo todo no mundo,
inclusive o próprio homem que, por se tomar como medida para todas as
coisas, tem sua compreensão do mundo e de si mesmo alterada a cada
instante não apenas pela fluência de sua referência (si mesmo), mas do
próprio mundo.

Eis um dilema não apenas do conhecimento, mas, sobretudo, do


autoconhecimento. Como dizer que alguma coisa é, se num segundo
instante ela já se transformou? A rigor, considerando a continuidade da
mudança, tudo é ao mesmo passo que deixa de ser.
Nisso se baseia nosso interesse no passado e no futuro. Reside também
nessa constatação um segundo pilar do pensamento de Heráclito: a
unidade dos contrários. Algo que segue a lógica existente em: a saúde
existe porque há doença. Afirmar que algo é azul implica afirmar que não
é vermelho, por exemplo.

A verdadeira compreensão não é uma fotografia, mas um filme. O


momento é estático, mas a realidade é dinâmica. Precisamos refletir se
nos interessa compreender o momento que já não existe ou a realidade
que é dinâmica.

Juntemos tudo isso e, pensando em autoconhecimento, será fácil concluir


que ao sermos o que somos, deixamos de ser o contrário, pelo menos no
momento específico e com a referência do instante. Em seguida, com
referência alterada (nós mesmos), podemos compreender que fazemos ou
somos outra coisa ou de outro jeito.

Vem a nosso socorro, nessa situação em que parece não haver saída para
uma compreensão ou autocompreensão segura, Aristóteles ao afirmar
que “você é o que repetidamente faz”. Isso parece dar alguma
estabilidade ao pensamento de transformação contínua proposto por
Heráclito. Mas introduz uma necessária percepção do que é feito para se
compreender o que se é. Perceber a repetição exige a constância na
observação.

Em psicologia poderíamos associar o que é feito ao comportamento que,


por sua vez, é percebido pelos outros e pelo próprio indivíduo. Como são
medidas deferentes (lembremos Protágoras), é claro que os
comportamentos são compreendidos de forma diferente por cada um. A
ajuda de Aristóteles ao dar alguma estabilidade à mudança contínua,
introduz uma distinção objetiva, embora dependente, entre a coisa e a
interpretação que fazemos dela. Se a interpretação reside no mundo das
ideias (separação proposta por Platão), para Aristóteles as ideias estão
instanciadas nas coisas (no mundo sensível, segundo Platão) e ambas
coexistem necessariamente. Não há ideia universal sem instância
particular (o que reverbera a lógica contida na afirmação de Protágoras,
pois atingir a ideia universal exige as interpretações particulares de
instâncias especificas).

Reflexão sempre possível será perceber que é realmente difícil o


entendimento do mundo partindo de medidas (referências) distintas,
construído a partir de instâncias particulares, com base em interpretações
de ideias que se pretendam universais. Como algo universal poderia ser
compreendido nesse contexto tão individualizado?

Neste ponto caímos numa discussão ainda mais difícil porque segundo o
raciocínio feito até aqui, o universal está na esfera do metafísico, no
mundo das ideias. Como permanecemos naturalmente presos à
interpretação de instâncias, a universalização do próprio conceito de
universal é um desafio à parte. Podemos pensar naquilo que está contido
em todos os elementos de uma categoria (realismo) ou numa ideia que
possa ser derivada das coisas (conceitualismo) e reaplicada como traço
característico de uma categoria. São caminhos diferentes para tentar
estabelecer algo geral.

Aplicar conceitos “universais” às instâncias é, então, um desafio inglório,


mas que precisa ser enfrentado, pois é com base nele que procuramos
algo que possamos chamar de verdade (ideia tão ou mais difícil que a de
universal).

Mas onde entra o autoconhecimento nessa argumentação?

A questão é que, para início de conversa, o autoconhecimento é sempre


instanciado, ou seja, baseado em interpretações realizados com base na
própria medida. O autoconhecimento não se confunde com o
conhecimento que os outros possam construir de nós mesmos. Ninguém
pode lhe dizer o que você é porque estará limitado a observar apenas seu
comportamento e fisiologia (instâncias) comunicando-os com
terminologias que pretensamente traduzem ideias universais.

Após milhares de anos de existência, a humanidade conseguiu construir


alguma convergência sobre algumas ideias tratadas como universais. Na
prática, sempre há risco de interpretações equivocadas, dado que a
transmissão das ideias tidas como universais é mediada pelas coisas
sensíveis que, por definição, são instâncias. Ou seja, a convergência dessas
ideias aparentemente universais nos permite buscar compreensões que
possam ser aplicadas a nós mesmos e também aos outros para
estabelecer comparações. Afinal, o que somos convive com o que não
somos, mas que são os outros.

Encontramos, então, uma explicação relativamente consistente do porque


o autoconhecimento e o conhecimento do outro são construídos
conjuntamente. O princípio da unidade dos contrários de Heráclito, induz
que conhecer o que você é pressupõe conhecer também o que não é, pois
coexistem. E tudo que você não é, poder ser o que os outros são.

Parece complicado, mas captando os fundamentos do pensamento que


nos acompanha há cerca de 2500 anos, não é difícil compreender que,
sendo uma medida continuamente mutável num mundo a ser mensurado
continuamente, a busca do homem pelo autoconhecimento requer a
identificação de quais instâncias das ideias pretensamente universais
repetidamente são percebidas por ele mesmo naquilo que é, consciente
de que sua verdade surgirá quando os outros identificarem as mesmas
ideias naquilo que repetidamente faz. Essa convergência em verdade é
necessária porque o autoconhecimento está intimamente associado ao
conhecimento do outro.

Talvez a maior dificuldade disso esteja no fato de não termos nos


acostumados ainda a lembrar que o rio não para de correr e, portanto, o
autoconhecimento e o conhecimento do mundo não é uma conclusão,
mas um processo em constante renovação. Se o mistério do momento
seguinte não persistir, nossa capacidade de pensar e abstrair perde o
sentido e qualquer conhecimento (inclusive o autoconhecimento) deixa de
fazer sentido. Para que nos conhecermos e conhecermos ao outro, se o
que já sabemos até um momento fosse exatamente o mesmo dos
momentos seguinte. Essa situação inviabiliza o próprio conceito de
conhecimento.

Por isso, a questão de Sócrates é tão instigante, necessária e potente.


Conhecermo-nos a nós mesmos é a base do conhecimento de tudo.

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