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Aborto e misoprostol: usos médicos, práticas de saúde

ARTIGO ARTICLE
e controvérsia científica

Abortion and misoprostol: health practices


and scientific controversy

Marilena Cordeiro Dias Villela Corrêa 1


Miryam Mastrella 2

Abstract This article puts into perspective the Resumo Este artigo coloca em perspectiva a con-
controversy between the association of the use of trovérsia entre a associação do uso de misoprostol
misoprostol for abortion and teratogenicity stud- para aborto e teratogenicidade, encontrada em es-
ies of the type found in a case report. The use of tudos do tipo relato de caso, e a consagração do uso
herbal medicinal drugs and the medical-obstetric de medicamentos à base do fármaco na área médi-
and national and international norms governing co-obstétrica e em documentos normativos nacio-
the registration and circulation of pharmaceuti- nais e internacionais que regulam o registro e a
cal products were examined. Official documents circulação de produtos farmacêuticos. Através do
of ANVISA, the Ministry of Health and the World método monográfico, foram revisados, sistemati-
Health Organization on the use of misoprostol, zados e analisados documentos oficiais da Anvisa,
as well as 68 articles such as case reports pub- Ministério da Saúde e Organização Mundial da
lished in national journals, linking abortion, Saúde sobre o uso do misoprostol, bem como 68
misoprostol and teratogenicity were reviewed, artigos do tipo relato de casos clínicos, publicados
systematically filed and analyzed using the mono- em periódicos científicos nacionais, que associam
graphic method. The legal prohibition of abor- aborto, misoprostol e teratogenicidade. A interdi-
tion prevents the proper prescription and use of a ção legal do aborto impede a prescrição e o uso
drug such as misoprostol that is both safe and adequados de uma droga que produz efeitos efica-
effective. Thus, the danger for the health of wom- zes e seguros como o misoprostol. Assim, o grande
en is linked not to the intrinsic characteristics of malefício à saúde de mulheres está ligado não a
the drug, but to the moral arguments that consti- características intrínsecas ao fármaco, mas a ar-
tute negligence and disregard for the fundamen- gumentos morais que representam descaso e des-
tal rights of women. respeito aos direitos fundamentais de mulheres.
Key words Abortion, Misoprostol, Moebius syn- Palavras-chave Aborto, Misoprostol, Síndrome
1
Instituto de Medicina
Social, Universidade drome, Health, Scientific knowledge, production de Moebius, Saúde pública, Produção de conheci-
Estadual do Rio de Janeiro. mentos
Rua São Francisco Xavier
524/7º andar, Maracanã.
20559-900 Rio de Janeiro
RJ. mcorrea@ism.com.br
2
Instituto de Bioética,
Direitos Humanos e
Gênero, Universidade de
Brasília.
1778
Corrêa MCDV, Mastrella M

Introdução em periódicos científicos nacionais, todos relatos


de casos clínicos, nos quais a hipótese – não com-
O misoprostol é um princípio ativo farmacêutico provada – daquela associação é referida e emer-
desenvolvido no contexto de pesquisas e testes ge em ilações nas conclusões daquelas publica-
para tratamento e prevenção de úlceras gastro- ções, ainda que não se preencham critérios ne-
duodenais. Posteriormente, foi empregado como cessários à criação de bases de evidências que per-
ocitócito, ou seja, como estimulante uterino que mitiriam comprovar a suposta associação posi-
induz contrações e o alargamento do colo uteri- tiva entre aqueles fatores. A hipótese de que o
no. Ao longo do tempo, foi comprovado um uso insulto gestacional pelo misoprostol é uma pseu-
estável, seguro, eficaz, barato e de fácil adminis- dotese científica foi apresentada pela primeira vez
tração na área obstétrica. Suas indicações inclu- na obra do Ministério da Saúde sobre os 20 anos
em: indução do trabalho de parto, prevenção e de publicação sobre o aborto no país3. Pretende-
tratamento de hemorragias obstétricas, término se, aqui, demonstrar as falácias argumentativas
de processos de abortamento precoce e cuidado dessa associação.
pós-aborto1. É utilizado, também, como indutor Este artigo visa, assim, colocar em perspecti-
na interrupção da gestação (aborto medicamento- va a controvérsia entre, de um lado, a perma-
so), isoladamente ou em associação a outros aná- nência de estudos do tipo relato de caso sobre a
logos das prostaglandinas e/ou à mifepristona. associação entre misoprostol e teratogenicidade
Estudos brasileiros na área da saúde pública encontrada, de forma repetida, em um segmento
evidenciaram que o recurso ao misoprostol é, da literatura médica e farmacêutica brasileira; e
hoje, o principal meio para se induzir aborto em de outro, a consagração do uso de medicamen-
mulheres no país2-4. Em função do quadro res- tos à base do mesmo fármaco na literatura cien-
tritivo legal que criminaliza o aborto voluntário, tífica da própria área médico-obstétrica, da saú-
o acesso e, consequentemente, o uso seguro des- de pública e em documentos normativos nacio-
ses medicamentos é um grande desafio à saúde nais e internacionais que regulam o registro e a
pública. circulação de produtos farmacêuticos. Ao colo-
Nos países onde não é proibido por lei, o uso cá-la em evidência, pergunta-se, necessariamen-
de medicamentos à base de misoprostol prescri- te, pelos sentidos de tal controvérsia.
tos e utilizados de forma adequada, associado
ao seguimento médico do processo de aborta-
mento, demonstra ser um meio seguro e eficaz Justificativa
de interrupção da gestação indesejada, sendo o
aborto medicamentoso a primeira opção para A criminalização do aborto no Brasil produziu
gestações iniciais em mulheres que querem evitar efeitos altamente perversos à saúde das mulhe-
procedimentos cirúrgicos. Tem menos de 5% de res e à saúde pública. Esse problema foi extensa-
falha e, nesses casos, procedimentos médico-ci- mente estudado de forma descritiva no país, des-
rúrgicos complementares podem terminar o de os anos 19908-10; e os estudos foram sintetiza-
processo com sucesso e segurança5. dos em publicação do Ministério da Saúde3. Além
No Brasil, o misoprostol tem uso autorizado das consequências nefastas do aborto inseguro
pela autoridade sanitária desde 1985; está listado em termos de morbimortalidade de mulheres,
na Relação Nacional de Medicamentos Essenci- observa-se a organização de um comércio ile-
ais do Ministério da Saúde do Brasil (Rename) gal11 e desafios no plano moral para mulheres
de 20106. Ademais, a Organização Mundial da em situação de tomada de decisão quanto à
Saúde (OMS) concede estatuto de essencialidade (des)continuidade de uma gestação.
ao fármaco, inclusive para emprego em hemor- Os relatos de casos revisados para este artigo
ragia pós-parto, principal causa de mortalidade associam uso do misoprostol, aborto e terato-
materna em todo o mundo7. genicidade. Apontam fatores etiopatogênicos
Apesar das normas e evidências científicas, bastante gerais, variados e heterogêneos: ambi-
nacionais e internacionais, favoráveis à circula- entais, como uso de álcool, cocaína, outros me-
ção do misoprostol, detecta-se na literatura far- dicamentos, nutrição; e/ou fatores genéticos, os
macêutica brasileira interesse sui generis pelo es- mais citados sendo mutações do fator V de Lei-
tudo da suposta associação entre o uso de miso- den e a da banda q12 do cromossomo 13.
prostol para aborto e a ocorrência de uma ano- Como evidenciado por Philip et al.12, cerca de
malia raríssima, a Síndrome de Moebius. Entre 90% dos estudos publicados sobre exposição fe-
1991 e 2011, listamos 68 trabalhos publicados tal ao misoprostol e risco aumentado de terato-
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genicidade são produzidos no Brasil, por auto- Metodologia
res brasileiros, e utilizam a metodologia do estu-
do ou relato de caso/s. Os autores encontraram A pesquisa se apoiou na literatura dos chamados
em sua revisão sistemática, além dos relatos de estudos sociais e históricos das práticas científi-
caso(s), três estudos epidemiológicos do tipo cas. O método monográfico consta de revisão e
caso-controle, igualmente brasileiros. Entretan- análise de literatura, aqui referenciando os temas:
to, quando considerada a medida de risco abso- aborto; aborto inseguro; uso de misoprostol; uso
luto nestes estudos epidemiológicos, nenhum de misoprostol e teratogenicidade e regulação do
aponta correlação estatisticamente importante uso de medicamentos no país. As técnicas empre-
entre exposição ao misoprostol e presença de gadas foram leitura e síntese: i) de documentos
anomalias relacionadas. oficiais da Anvisa, MS e OMS; ii) levantamento e
A justificativa deste estudo se prende, primei- sistematização de argumentos encontrados em 68
ramente, à relevância dos problemas morais e de artigos do tipo relato de casos clínicos, publicados
saúde pública gerados pela prática do aborto in- em periódicos científicos nacionais e que associ-
seguro. A este panorama, acresce-se a necessida- am aborto, misoprostol e teratogenicidade; iii)
de de se visibilizar e discutir os sentidos da con- busca e leitura de trabalhos recentes de sistemati-
trovérsia entre, de um lado, a classificação do zação sobre aborto e saúde pública, no campo da
misoprostol como princípio ativo de medica- Saúde Coletiva. Foram isolados argumentos pre-
mentos essenciais, como atestam documentos sentes nos resultados, de cunho bibliográfico,
normativos oficiais nacionais e internacionais, obtidos a partir dessa pesquisa. Segundo proce-
com base em evidências científicas no meio obs- dimento próprio aos estudos sociais das ciências
tétrico e na saúde pública; e de outro, o interesse e das técnicas, uma vez identificados, os argumen-
particularmente forte e quase que exclusivo de tos foram cotejados entre si.
um segmento da literatura médica e farmacêuti-
ca brasileira pela associação entre misoprostol e
teratogenicidade. Resultados

Trajetória e regulação do misoprostol


Objetivos e hipóteses no Brasil

Trabalhamos com a hipótese de que o quadro O primeiro medicamento à base de misopros-


legal altamente restritivo ao aborto no Brasil se tol (Cytotec) teve uso aprovado pela Secretaria
rebateu não somente no plano moral, discrimi- de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde
nando as mulheres, mas atingiu também a pro- em 1985, entrando no mercado nacional em 1986,
dução de conhecimentos (pseudo)científicos. Ao com comercialização pelo laboratório Biolab a
interpelar a interrupção da gestação, estudos mé- partir de 1988. Em 1991, o MS proibiu a venda
dicos que acusam mulheres do uso inadequado livre do medicamento, passando a exigir receita
de medicamentos promovem mais confusão en- médica com retenção da prescrição9. Em 1998,
tre fatores legais, morais e mesmo científicos, foi incluído na lista C1 do MS (Portaria nº. 344)
mesmo não se baseando em evidências, o que 13
, que relacionou substâncias químico-farma-
configura falácia científica. Assim, a pesquisa que cêuticas sujeitas a controle especial. Para sua dis-
originou o presente artigo teve como objetivos: i) pensação, a receita especial, em duas vias, tor-
identificar e apresentar o estado da arte da regu- nou-se obrigatória. O ambiente regulatório cria-
lação do misoprostol no Brasil; ii) identificar e do pela Portaria conferiu ao misoprostol novo
analisar a produção de estudos médicos descriti- estatuto, representando, na prática, uma clara
vos do tipo relato de caso sobre a associação en- medida restritiva ao acesso a este fármaco e seu
tre misoprostol e teratogenicidade, em particular uso no aborto: o misoprostol acabou restrito a
a Síndrome de Moebius; iii) colocar em perspecti- estabelecimentos hospitalares credenciados pela
va o fato de essa produção poder refletir finalida- autoridade sanitária do MS.
des morais, situadas fora do campo terapêutico, Em 1999, foi criada a Agência Nacional de
e, nestes casos, poderem atentar contra direitos Vigilância Sanitária (Anvisa), agência regulató-
das mulheres e necessidades de saúde. ria independente no âmbito da saúde, que vem
ampliando progressivamente sua atuação sobre
as questões sanitárias no país. No mesmo ano, a
Anvisa publicou portaria normativa para cadas-
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tro de estabelecimentos hospitalares que vislum- tamento induzido. No caso do uso de misopros-
brassem utilizar a droga14, exigindo: petição em tol, são sugeridas dosagens para o esvaziamento
forma de ofício, subscrita pelo responsável téc- do útero.
nico; documento de identidade do farmacêutico/ Essas normas representam relativa inversão
diretor clínico do estabelecimento; cópia da li- da trajetória de restrição ao uso do misoprostol,
cença de funcionamento ou equivalente quando na medida em que fica estabelecida, pelo Minis-
se tratar de órgãos públicos; cópia do CNPJ/ tério da Saúde, a indicação adequada e racional
CGC; relação dos medicamentos (quantidades do misoprostol para interrupção da gestação ou
estimadas, justificativa de uso ou venda, confor- esvaziamento uterino. Contudo, situações para-
me o caso). doxais persistem, destacando-se a Resolução nº.
A partir de 2000, no contexto de ampliação 91121 da Anvisa, que determinou a suspensão,
da regulação dos medicamentos no país, a Anvi- em território nacional, de publicidade veiculada
sa emite uma série de resoluções específicas15-18 em fóruns de discussões, murais de recados e
sobre o uso de substâncias sujeitas a controle sítios na Internet, dos medicamentos Cytotec,
especial, com destaque para os ditos entorpecen- Citotec e Prostokos: “esses medicamentos anun-
tes e psicotrópicos, aos quais o misoprostol foi ciados não podem ser divulgados ao público lei-
alinhado, todas mantendo o controle excepcio- go por serem de venda sob prescrição médica”. A
nal deste fármaco. Dentre outras medidas, tor- suspensão foi justificada como medida cautelar
nou-se obrigatório nas duas faces da embala- em razão de o aborto representar iminente risco
gem secundária de medicamentos à base de mi- sanitário à população, podendo trazer graves
soprostol, um destaque, onde se vê a figura de consequências à saúde da gestante ou mesmo
uma mulher grávida, dentro de um círculo bar- provocar sua morte, além da possibilidade de
rado, seguido de expressões como: “Atenção: Uso recém-nascidos sobreviventes desses episódios
sob Prescrição Médica”; “Atenção: Risco para poderem hipoteticamente portar sequelas21. Em
Mulheres Grávidas”; “Venda e Uso Restritos a seguida, a Resolução nº 1.05022 da Anvisa muda
Hospital”. a justificativa para a suspensão da publicidade
sobre o misoprostol, mencionando, agora, o fato
Normas do Ministério da Saúde de este não ter registro para uso fora do contexto
sobre o aborto hospitalar e não por representar ameaça, a prio-
ri, à saúde de mulheres e fetos.
Em 1999, o MS lançou a Norma Técnica de Para dirimir ambiguidades, a Diretoria Cole-
Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes giada da Anvisa, aprovou em 2008 a Resolução
da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescen- que dispõe sobre o Regulamento Técnico para
tes19 para reforçar a garantia do acesso ao aborto Funcionamento dos Serviços de Atenção Obstétri-
em caso de estupro, uma dentre as duas exceções ca e Neonatal 23 e determina como padrão de fun-
penais previstas. Em 2005 o MS lançou a Norma cionamento para esses serviços a “qualificação,
Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento humanização da atenção e gestão e a redução e
Inseguro20, cujo objetivo é reafirmar o adequado controle de riscos aos usuários e ao meio ambi-
acolhimento a mulheres em processo de aborta- ente”. Independentemente de sua complexidade,
mento que buscam serviços públicos de saúde e os serviços devem ter disponíveis “medicamentos
eliminar a discriminação contra mulheres que básicos para uso obstétrico: ocitocina, misoprostol
necessitam tratar complicações ligadas ao abor- e uterotônicos” (grifos nossos).
to inseguro. Em 2010 foi publicada edição da Rename6,
Recomendações já presentes na norma de Relação Nacional de Medicamentos Essenciais do
1999 em relação à violência sexual foram reafir- MS, em vigor, onde novamente se encontra o
madas no documento de 2005: completa anam- misoprostol, nas seguintes formas farmacêuti-
nese, profilaxia contra doenças sexualmente cas, dosagens e indicações: comprimido vaginal
transmissíveis (inclusive Aids) e oferta de con- de 25 μg, 50 μg e 200 μg; e uso indicado na inter-
tracepção de emergência. Se confirmada gesta- rupção da gravidez a termo ou próxima a termo,
ção, passam a ser sistematicamente oferecidas às na indução do parto com feto morto retido e em
mulheres informações sobre interrupção da gra- abortos permitidos por lei até a 30ª semana de
videz, assistência pré-natal e entrega da criança gravidez.
para adoção. O atendimento humanizado é di- O anexo D dessa publicação oficial apresenta
reito da mulher e dever do profissional de saúde, pareceres de especialistas para exclusão, inclusão
em todas as situações, inclusive nos casos de abor- e alteração de apresentação e/ou concentração e/
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ou dose e/ou usos terapêuticos e/ou restrições. permanece obscura na imensa maioria dos tra-
Os pareceres que embasam a inclusão do miso- balhos consultados. Na vertente ambiental, ci-
prostol na Rename apresentam a definição do tam-se exposição a infecções (sem definição pre-
fármaco, suas indicações, formas de adminis- cisa), febres, uso de cocaína, álcool, psicofárma-
tração, dosagens, vantagens entre as formas de cos, talidomida, misoprostol, etc. Na abordagem
utilização, custo, contraindicações, entre outros genética, são mencionados: “o cromossomo X”
aspectos6. ou, como se lê no mesmo trabalho, uma “muta-
Com base nos estudos revisados pelo anexo, ção na banda q12.2 do cromossomo 13”27.
considera-se o uso vaginal do misoprostol o mais Afirmações vagas como “a SM é de ocorrên-
adequado para as situações clínicas menciona- cia rara. Entretanto, temos a impressão que vem
das e, portanto, recomenda-se: inclusão do fár- sendo observada mais frequentemente nos últi-
maco na forma de comprimidos vaginais de 25 mos anos”25 (grifos nossos) são frequentes na
μg, 50 μg, 200 μg; para interrupção da gravidez a discussão de relatos de caso e refletem a fluidez
termo ou próxima ao termo, na indução do par- referida. Ligada àquela “impressão”, os autores se
to com feto morto retido e em caso de aborto permitem concluir que: “o uso de misoprostol
permitido por lei. Finalmente, por suas proprie- cada vez mais presente na história gestacional de
dades ocitócitas, o misoprostol deve ser usado muitas mulheres em nosso meio deve, em nossa
em situações cirúrgicas e pós-cirúrgicas, como opinião, ter relação com tal fato”25. Apesar das
no tratamento do leiomioma quando, após a expressões de dúvida empregadas e opiniões im-
retirada do útero, é preconizado misoprostol com precisas, a literatura do tipo relato de casos clíni-
a finalidade de reduzir-se a perda sanguínea24. cos vem, em nosso meio, criando autoridade.
No vasto e rico adendo à Rename6, nada se fala Isso se constata quando autores aludem a textos
sobre Síndrome de Moebius. pregressos, repetindo e tornando-os referência.
Em 2008, lia-se na seção de discussão de um
O que ensina o conhecimento científico relato de caso publicado: “seu uso crescente [do
sobre a Síndrome de Moebius misoprostol] com fins abortivos em nosso meio
traz consigo o risco de nascimento de crianças
A Síndrome de Moebius (SM) é caracteriza- com deformidades [...]. Estudos recentes apon-
da como um quadro de paralisia, de origem con- tam para a existência de fatores etiológicos rela-
gênita, de dois pares de nervos cranianos. Em cionados à ação teratogênica do misoprostol,
sua manifestação clínica mais comum, o indiví- usado em abortos clandestinos”26. Anos depois,
duo apresenta estrabismo convergente e tem ex- a conclusão de artigo de 2011 refere-se ao mes-
pressão facial pobre25-28. Embora seja a descri- mo trabalho citado de 2001, que “a populariza-
ção mais frequente na literatura, ela não cobre ção do misoprostol como abortivo, em nosso
nem mesmo a maior parte dos casos encontra- meio, também pode ser responsável pelo aumento
dos na prática clínica. Sinais e sintomas variam do número de casos de SM observado em anos
bastante em função do acometimento de outros recentes”28. E em seu artigo, Wey et al. lembram
nervos faciais (provocando, por exemplo, disfa- também a natureza multifatorial e imprecisa,
gia, disfonia, alterações morfológicas da língua, genética e ambiental da SM; na seção de discus-
do palato), ou da associação de Moebius a ou- são identificam e discorrem, de forma enfática,
tras síndromes congênitas. sobre aborto, teratogenicidade e misoprostol,
A ocorrência da SM é descrita como muito com ilações causais “a popularização do miso-
rara, encontrando-se referência de apenas 500 prostol como abortivo, em nosso meio, também
casos em toda a literatura mundial para o ano de pode ser responsável pelo aumento do número
200826. A imprecisão na caracterização clínica se de casos da SM observado em anos recentes”28.
estende aos aspectos etiopatogênicos, referidos Mattana et al.27 introduzem seu artigo sobre
como genéticos, ambientais ou ambos somados; Síndrome de Moebius-Poland assinalando o “ob-
às estimativas de incidência, que variam bastante, jetivo de informar [sobre a ocorrência] da enti-
de 1 caso para 10 mil a 1 para 50 mil nascimen- dade médica, haja vista sua raridade”. De fato,
tos26; e na interrogação sobre o emprego do pró- registrar seria o aspecto cientificamente relevante
prio termo síndrome, que corresponderia a “um e justificado para o emprego do método relato
padrão consistente de anomalias congênitas múl- de caso em estudos clínicos. Contudo, os estudi-
tiplas relacionadas a um mesmo fator causal”28. osos da S. Moebius-Poland concluem sobre a eti-
Para Wey et al., mais acertado seria falar Se- opatogenia de ambas as Síndromes – que, aliás,
quência de Moebius28. De fato, a etiologia da SM poderiam “ser uma única entidade” – dada a “as-
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sociação entre tentativa de aborto e hemorragi- características intrínsecas ao medicamento, mas


as”. Adiante, se verifica a correlação entre o uso sim da criminalização do aborto e da inadequa-
do misoprostol e o aparecimento da S. Moebius- ção do atendimento à mulher que aborta.
Poland: “substâncias abortivas e teratogênicas Exemplo de esforço científico no contexto da
estão envolvidas com as malformações desta Saúde Regional, que analisou o aborto como pro-
patologia. Supõe-se que o misoprostol afete a blema de saúde pública, o Manual de Uso do Mi-
contratilidade uterina e a irrigação sanguínea do soprostol em Obstetrícia e Ginecologia da Federa-
feto, gerando isquemia com necrose [...] do ner- ção Latino-Americana de Sociedades de Obste-
vo facial”27. trícia e Ginecologia (Flasog)1 corrobora essa pers-
O valor científico do relato de caso reside em pectiva, com o intuito de não privar as mulheres
assinalar para a comunidade de pares a ocorrên- “de serem beneficiadas do uso racional desse
cia de uma raridade, cientificamente mal conhe- medicamento”, já que o Manual se fundamenta
cida. Logo, afirmações inconclusivas ligadas ao “no conceito da medicina baseada em evidência
desconhecimento real sobre a SM seriam espera- de boas práticas médicas”1. Nesse guia são estu-
das. Daí esperar-se, também, cuidado com o tipo dados aspectos farmacotécnicos da droga, suas
de extrapolação que um autor se permite fazer a aplicações terapêuticas obstétricas, vias, doses e
partir desse tipo de estudos, em suas conclusões. contraindicações, a cada caso. O objetivo da meta-
Ademais, a publicação é um fato que pode, por si análise de Flasog é que ginecologistas e obstetras
só, dar conta de atestar alguma expertise, como possam usar o misoprostol fora de sua indica-
nos processos de referenciamento entre artigos. ção aprovada, desde que estejam “muito bem
Se, mais ainda, o texto se dobra na direção de informados sobre o produto” e que seu uso seja
inferências causais, na ênfase ou “preferência” por baseado “em um raciocínio médico firme e em
uma causa hipotética entre as muitas listadas na sólidas evidências científicas”1.
diversa gama de fatores etiopatogêncios no esta- Assim, os benefícios do misoprostol em abor-
do da arte da SM, é possível questionar o que to são assinalados tanto em nome da saúde quan-
determinaria a adoção de tal perspectiva. to da proteção de mulheres e seus direitos. Do
ponto de vista médico, nada justifica seu bani-
mento ou restrição de seu uso; sendo o contexto
Discussão legal restritivo, no Brasil e em muitos países da
região, o único fator limitante. O fármaco está
Como revelou a primeira pesquisa nacional so- aprovado para uso, sendo efetivamente empre-
bre aborto (PNA)4, é alta a prevalência do uso do gado. Tem sua essencialidade atestada em docu-
misoprostol em tentativas de interrupção da ges- mentos nacionais e internacionais (Rename e
tação: 48% do universo pesquisado de mulheres OMS). Por um desvio jurídico, se mantém a cri-
adultas, alfabetizadas e residentes no Brasil ur- minalização do aborto, o que determina graves
bano em 2010, afirmaram ter usado medicamen- problemas de saúde pública1,3 e promove ilegali-
to para abortar. Este resultado confirma e quali- dades fundamentais: desrespeito do direito à saú-
fica resultados valiosos de estudos precedentes de, à integridade e dignidade de mulheres. Con-
na saúde pública. Todos revelam os efeitos do clusão semelhante sobre os benefícios do uso do
aborto inseguro à saúde pública2,19,20 e à saúde misoprostol emana de publicação igualmente
das mulheres, e dão visibilidade à prática do abor- relevante da Comissão de Cidadania e Reprodu-
to medicamentoso à base do misoprostol, utili- ção de São Paulo30.
zado de forma não segura em função de restri-
ções legais no país.
Assim, apesar de toda a gama de indicações e Conclusão
usos essenciais confirmados na área da obstetrí-
cia em documentos oficiais revistos, a Anvisa A partir da releitura e sistematização de 68 rela-
mantém o estatuto de substância a ser controla- tos de casos clínicos, da literatura do campo da
da de forma especial para o registro de medica- saúde pública, da obstetrícia, e da regulação do
mentos à base de misoprostol, juntamente com medicamento, colocamos em evidência a contro-
entorpecentes e psicotrópicos29. Fica claro que vérsia ou a incomunicabilidade entre uma pro-
essa definição é função da criminalização do abor- dução que enfatiza a associação entre uso de mi-
to voluntário no país e, por isso, a tentativa de soprostol e teratogenicidade 25-28, e outra que
coibir o uso clandestino do fármaco para este acentua o valor do misoprostol em obstetrí-
fim. O controle do misoprostol não advém de cia1,3,7,8,30, destacando os enormes benefícios, para
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mulheres, do uso seguro e racional do fármaco.
Os estudos médico-farmacêuticos indicam ris-
co, cientificamente não comprovado, de terato-
genicidade ligado ao emprego do misoprostol.
Contudo, baseiam-se em estudos metodologi-
camente inadequados à proposição de inferência
causal, como o relato de caso clínico. Sem contri-
buir para a criação de uma base de evidências
científicas, esses trabalhos trazem ilações causais
sobre aborto provocado, uso de misoprostol, de
tal forma que, com ou sem intenção de seus au-
tores, promove-se reforço da estigmatização de
um comportamento social em nosso meio, o
aborto, e a estigmatização das mulheres.
Se o procedimento de aborto é finalizado de
forma segura não existirá, a seguir, embrião ou
feto no qual se investigar teratogenicidade. Ade-
mais, se evidências científicas vierem a revelar ser
verdadeira aquela associação, deverá o médico não
intervir, deixando a mulher sem cuidados e o feto
em risco de desenvolvimento de malformação?
Os malefícios do aborto, no país, estão determi-
nados não por características intrínsecas a um
fármaco, o misoprostol, mas à criminalização que
leva a uma diversidade de práticas inseguras de
interrupção de gestações não planejadas.

Colaboradores

MCDV Corrêa e M Mastrella participaram igual-


mente de todas as etapas de elaboração do artigo.
1784
Corrêa MCDV, Mastrella M

Referências

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Aprovado em 20/03/2012
Versão final apresentada em 26/03/2012

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