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Direito

OS DIREITOS HUMANOS SOB A


ÓTICA DO DIREITO NATURAL
CLÁSSICO-CATÓLICO: ANÁLISE E
PROPOSIÇÃO DE OUTRO VIÉS
JUSNATURALISTA

Israel Alves Jorge de Souza, Conciliador do Juizado Especial Cível


da Comarca de Franca, SP, e graduando em Direito pela UNESP Campus Franca,
israeljorge@hotmail.com

Resumo: Nas últimas décadas, filósofos e juristas parecem se preocupar com


os direitos humanos como nunca. Nesse contexto, se vislumbra um retorno
ao direito natural clássico-católico como concepção que melhor fundamenta a
noção desses direitos. Entretanto, tal concepção apresenta em sua estrutura de
pensamento elementos da filosofia grega que podem mistificar sobremaneira o
estudo jurídico, prejudicando a análise da realidade humana. Propõe-se um viés
jusnaturalista sem estes entraves, mediante a aplicação da filosofia mecanicista e do
pensamento protestante – indispensáveis ao desenvolvimento da ciência natural
moderna nos séculos 16 e 17 – ao direito natural.
Palavras-Chave: Direitos Humanos, Direito Natural e Jusnaturalismo

THE HUMAN RIGHTS UNDER THE OPTICS OF THE CLASSIC-


CATHOLIC NATURAL LAW: ANALYSIS AND PROPOSAL BY
ANOTHER JUSNATURALIST BIAS

Abstract: In the last decades, philosophers and jurists seem to be concerned


about human rights as never before. In this context, a return to the Classic-Catholic
Natural Law is glimpsed as a conception that better bases the notion of such rights.
This conception presents in its structure of thought, however, elements of the Greek
Philosophy that may excessively mystify the legal study, harming the analysis of the
human’s reality. A jusnaturalist bias without these impediments is considered, by
the apply of the mechanist philosophy, and of the protestant thought - which are
indispensable to the development of modern natural science in the 16th and 17th
centuries - to the Natural Law.
Keywords: Human Rights, Natural Law and Jusnaturalism

ACTA Científica - Ciências Humanas 1º Semestre - 2006 19


Introdução
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cida- e o processo de sua asserção necessita de um espaço
dão, de 1789, marcou o início da defesa dos direitos público, sendo a cidadania o meio que proporciona o
inerentes ao ser humano que, após as grandes guerras acesso ao mesmo.
do século 20 e seus resultados desastrosos, consagrou- De acordo com este pensamento, quando alguém,
se na Declaração Universal dos Direitos do Homem, no mundo contemporâneo, é destituído de sua cidada-
de 1948. Em seguida, espalhou-se pelo mundo refle- nia, torna-se supérfluo e descartável, como na experi-
tindo-se nas constituições dos países democráticos. ência do totalitarismo. Se, porém, os direitos humanos
Atualmente, há uma intensa e pacífica valorização des- foram um construído, conclui-se, obrigatoriamente,
ses direitos, e muitos pensadores procuram combater que houve um momento inicial na história no qual o
o que quer que possa ter levado a um período em que homem era supérfluo e descartável, palavras de Han-
os mesmos não recebiam igual proteção. nah Arendt. Isso parece não ser aceitável.
Porém, divergências são notadas quanto à defi- No preâmbulo da Declaração Universal dos
nição da origem dos direitos humanos. De um lado Direitos do Homem, da ONU, está estabelecido:
afirma-se que constituem uma construção, e de outro “Considerando que o reconhecimento da dignidade
que são pertencentes à própria essência humana, ou inerente a todos os membros da família humana e de
seja, transcendentalmente inerentes ao homem. A pri- seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da
meira posição apresenta problemas ao deparar-se com liberdade, da justiça e da paz no mundo”. O art. I, por
a busca de um fundamento ético para o ordenamento sua vez, estabelece que “todos os homens nascem livres
jurídico, enquanto a segunda parece permanecer mais e iguais em dignidade e direitos”. Fica claro, pelo uso
coerente com a própria noção de direitos humanos. da palavra inerente, no preâmbulo, e da afirmação de
Após este destaque, entretanto, pode-se notar em tal que o homem já nasce com o direito da igualdade, no
concepção sérios entraves à sua utilização racional e art. I, que esta Declaração de 1948 considera a existên-
científica, necessitando-se cuidadosa reflexão a respeito cia de direitos pertencentes à essência do homem.
e proposições que corrijam tais impedimentos. Houve realmente uma evolução histórica dos
direitos humanos, mas no sentido de afirmação e de
Direitos humanos, uma construção humana? positivação, não de invenção. Percebem-se traços do
Hannah Arendt fala de uma ruptura trazida pelo culturalismo na concepção “arendtiana”. Realmente
totalitarismo, cujo trágico ápice foi o nazismo na ver- é importante encarar o ser humano coletivamente,
tente capitalista e o stalinismo, na socialista, regimes essa ação minimiza a importância da análise extre-
nos quais os seres humanos eram considerados supér- mamente individual que simplifica, erroneamente, a
fluos e descartáveis. Celso L afer (1988), num diálogo compreensão da sociedade. Entretanto, excluir com-
com esse pensamento, mostra o alcance dessa idéia pletamente qualidades pessoais do homem constitui
no campo jurídico ao demonstrar como o paradigma um exagero e um equívoco. Seguindo a reflexão de
do direito natural deu lugar ao da filosofia do direito. Arendt conclui-se que o homem sem o seu estatuto
Este último objetivava ir além dos dados empíricos do político, na condição de simples ser humano, perde
direito positivo para poder lidar melhor com o mesmo. suas qualidades substanciais. Não se pode, no entanto,
Mediante o debruçar sobre problemas específicos, negar a “importância substancial do ser humano, em
como o da justiça da norma, e sempre baseado na lógica si”, como afirma Alceu Amoroso Lima (Prefácio de
do razoável. Mas o caráter de não-razoabilidade que M aritain, 1967, p. 10).
caracterizou a experiência totalitária esgotou a atuação
e relevância do paradigma da filosofia do direito, e é Direitos humanos e o jusnaturalismo
aí que surge a ruptura de que fala Arendt. clássico- católico
Nesta direção, L afer pretende tornar necessário No aparente confronto entre o individualismo e
o acontecimento de ruptura no campo do direito e o coletivismo nenhum dos dois deve sobrepor-se ao
encontrar algumas respostas para tal situação, num outro. Esse equilíbrio ideal foi desvendado por Jacques
estudo denominado de A Reconstrução dos Direitos Hu- M aritain (1967), cuja obra Os Direitos do Homem e a
manos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. De Lei Natural foi assim descrita por Alceu Amoroso em
fato, uma das conclusões dessa pensadora é a de que seu prefácio: “Maritain procurou, muito sabiamente,
esses direitos não são um dado, mas um construído da situar na reciprocidade hierárquica (...) os dois concei-
convivência coletiva. Segundo ela, os direitos humanos tos de pessoa e de indivíduo, que permitem colocar
constituem uma invenção para a convivência coletiva em termos relativos, e não absolutos e de exclusão ou

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preponderância absoluta de um sobre o outro, tanto de hoje. O direito natural clássico herdou elementos
a pessoa humana como a coletividade” (Prefácio de da filosofia grega que constituem verdadeiro óbice ao
M aritain, 1967, p. 10-11). estudo científico do direito.
O próprio Alceu A moroso (2001), em sua obra In- A natureza, na concepção grega, era considerada
trodução ao Direito Moderno, também fala em rupturas. O um organismo vivo e divino, gerador de todas as coi-
autor aponta quatro formas que culminam com aquela sas, inclusive dos deuses. Os teólogos da Idade Média,
definida por Arendt, a fim de explicar o processo que posteriormente, na tentativa de conciliar a Bíblia com
chama de desintegração do direito. sua herança helênica, acabaram por manter o endeu-
Em vista disso, se conclui que a reconstrução dos zamento da natureza, privilegiando a visão grega em
direitos humanos, buscada por Celso Lafer, poderia detrimento da bíblica (Hooykaas, 1988, p. 31). São
ser alcançada mediante um processo de reintegração Tomás de Aquino, por exemplo, afirmava ser a perfei-
do direito. Isso significa restaurar o princípio de São ção do universo fruto de uma diversidade de “móveis”,
Tomás de Aquino sobre a importância substancial do proporcionadores da diversidade de movimentos.
ser humano, princípio este derivado do cristianismo. Acreditava que se Deus governasse sozinho seriam
Essa linha tomista, com destaque para Jacques privadas da perfeição as suas criaturas. A função da
Maritain, parece encontrar-se atual até os dias de filosofia natural era possibilitar a distinção entre o que
hoje. A análise do filósofo antecedeu aos dois grandes pertence somente a Deus e o que pertence à natureza
documentos modernos que objetivaram sintetizar os (Goytisolo, 1976, p. 708).
direitos do homem – a declaração das Nações Unidas, Pode-se notar traços dessa visão no pensamen-
de 1948, e a Encíclica Pacem in Terris, de 1963. Aquino to de Goffredo Telles Jr . (1980), quando afirma
tinha um caráter equilibrado, racional e humano, que ser o direito a expressão de uma organização uni-
lhe conferiu destaque no contexto de valorização dos versal e que, embora possivelmente ligada a um ser
direitos humanos, durante a época de pós-inserção dos superior, reveste-se de uma semi-independência.
mesmos nas constituições dos países democráticos. Desta forma, o jusnaturalismo clássico, construído
Seguindo este raciocínio, conclui-se que a questão mediante essa visão católica ou integral do direito,
dos direitos humanos pode, como fonte de estudo in- coloca a natureza e o direito natural em um pata-
dutivo, destacar uma das várias correntes jus-filosóficas, mar que dificulta um alcance científico completo
a saber, o jusnaturalismo. Os direitos do homem acom- (L ima , 2001, p. 79).
panharam toda a história humana, e não se destacaram, A ciência natural também precisou romper algumas
pontualmente, como resultado de uma construção. É barreiras, nos séculos 16 e 17, para se desenvolver na fi-
este um dos pilares da concepção jusnaturalista, que per- gura de grandes cientistas. Essa visão orgânica do mundo
correu a história do pensamento jurídico desde tempos também representava um obstáculo. Segundo Hooykaas
remotos e que permaneceu velada durante o predomínio (1988, p. 32), foi a predominância de um modelo mecâni-
do positivismo, porém não extinta. Recobra forças, co do mundo, em substituição ao grego, que possibilitou
agora, para equilibrar o pensamento jurídico, para aliar- todo o desenvolvimento, de Copérnico a Newton. Na
se em caráter complementar ao direito positivo, sendo filosofia mecanicista, o planejamento não advém da
enfim os direitos humanos nada menos que uma nova natureza, mas reflete um elemento planejador.
roupagem do direito natural. Filósofos e cientistas mecanicistas do século 17, como
Há, ainda, enorme receio por parte de alguns pen- Basso, Boyle e Newton, encararam o mundo como um
sadores em assumir a existência de um fundamento mecanismo ou sistema de regras, nas palavras de Boyle,
absoluto. Tal atitude pode parecer retrógrada ou atrasada. cujo planejamento não lhe é imanente, e sim oriundo de
Entretanto, conforme já comentado, a pacificidade na um projetista superior. Realizaram suas atividades cien-
defesa dos direitos humanos pode ser a ponte entre esse tíficas baseados na crença de que seus objetos naturais
receio e a verificação da coerência do jusnaturalismo com de estudo provinham de uma idealização transcendente.
a noção de direitos do homem (Dallari, 1990, p. 14). Assim alcançaram a liberdade intelectual necessária para
lançar as bases da ciência moderna, sobre as quais todos
A ineficácia científica do jusnaturalismo os seus sucessores ainda se apóiam até hoje.
clássico- católico
A linha de pensamento do direito natural tomista, A filosofia mecanicista e o direito natural:
na qualidade de principal representante do Jusnatura- uma proposta de interação
lismo, apresenta, entretanto, um problema fundamen- A aplicação da filosofia mecanicista à ciência do
tal que a destitui de eficiência e cientificidade nos dias direito, e conseqüentemente ao estudo dos direitos

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humanos, pôde partir de um jusnaturalista racionalista: Considerações finais
Samuel Pufendorf. Ele procurou separar a ciência do O jusnaturalismo mecanicista, a partir de uma
Direito Natural, encarada como autônoma da Teologia, fundamentação transcendental, defende o valor, a
mas afirmando não haver oposição entre as duas (Prats, justiça e os direitos humanos. A teoria elimina a
1968, p. 9). Segundo sua posição, extremamente original, possibilidade de uma transitoriedade dos direitos e
pode-se encontrar os princípios ou valores fundamen- encontra respostas à busca de um fundamento ético
tais do homem nos comportamentos humanos. para o ordenamento jurídico – busca esta que marca
Entretanto, Pufendorf afirmou que tais princípios a filosofia política contemporânea de John Rawls,
foram colocados na realidade social por um planejador, Charles Taylor e Jürgen Habermas. Por outro lado,
e, assim, mediante observação dessa realidade social é permite que tal fundamentação não oblitere o es-
possível descobrir os valores ali estabelecidos por ele. tudo desses direitos, pois permite a observação da
De acordo com esse pensamento, não se invoca algum realidade humana e social de forma absolutamente
deus, e sim a realidade. O ato proporciona liberdade de racional, ao considerar-se um mecanismo regido por
pensamento sem, contudo, eliminar a crença num “de- leis racionais e inteligíveis.
sign” inteligente. Dallari (1990, p. 13), comentando a
Além disso, a análise não deve ser somente
visão de Pufendorf, afirma que é por esse caminho que,
no plano individual, fazendo-se necessário que os
no século 18, chegou-se à Declaração dos Direitos do
direitos humanos também sejam vistos de forma
Homem e do Cidadão, e posteriormente ao contexto
coletivizada. É necessário analisar o conjunto dos
atual de valorização dos direitos humanos.
A visão mecanicista, aliada à de um Deus criador, seres humanos como um sistema, e não como
levou a uma concepção empírica da ciência, lançando várias realidades pontuais, um típico traço do
um de seus principais fundamentos. “Ela formou a culturalismo – iniciado com Ihering e Jellinek e
base daquele empirismo racional que se tornou o mé- bem desenvolvido por Radbruch.
todo legítimo da moderna ciência” (hooykaas, 1988, Enfim, o direito positivo não conformaria uma
p. 46). No campo jurídico, a visão mecanicista poderia dicotomia com o direito natural, mas seria a mera
se adaptar muito bem, no que diz respeito às questões colocação prática, no plano das normas, de noções do
de justiça e de direitos inerentes à pessoa humana. Se- certo ou direito. Ação que possibilitasse a existência
melhantemente ao que Pufendorf afirmou, é possível de ética na disciplina da convivência humana. O equi-
extrair do comportamento do homem aquilo que lhe é líbrio, dessa forma, poderá ser alcançado mediante a
inerente, encarando essa imanência como o resultado de harmonia entre o direito e os valores fundamentais,
um planejamento inicial, ou seja, analisando o homem entre o individualismo e o coletivismo e entre o direito
e a sociedade como um mecanismo planejado. positivo e o direito natural.

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