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As causas profundas da guerra civil síria

por William William Waack em 03/02/2014

A atual guerra civil síria é o resultado tanto de fatores históricos profundos quanto das velhíssimas divisões
religiosas do Oriente Médio, um cenário extraordinariamente complexo no qual a atuação das chamadas
“potências externas” é relevante, mas não suficiente como ferramenta de compreensão dos fatos. O objetivo do
artigo não é o de examinar em detalhe a composição étnica, política e religiosa de cada um dos grupos
rebeldes mas, sim, de descrever o contexto internacional da guerra civil síria. A islamização dos grupos de
combate ao regime é uma dessas características “internacionais”. A Síria inspira uma observação sobre as
sociedades árabes, que tendem a se definir muito mais pelo que não gostariam de ser, ou em função daquilo a
que se opõem: o imperialismo, o colonialismo, o sionismo. Daí tantas esperanças associadas ao movimento de
2011: os sonhadores de mais de um século atrás finalmente teriam razão quanto à capacidade dos árabes de
moldar o destino de suas sociedades.

Quase cem anos atrás um jovem inglês apaixonado por arqueologia, poesia e aventuras encarregou-se de
explicar a seus chefes o que era a Síria. Ele já percorrera boa parte da região estudando fortalezas medievais
construídas pelos Cruzados. Falava árabe e montava camelos. Acabaria se transformando numa das figuras
lendárias da Primeira Guerra Mundial como comandante de tropas árabes que lutavam contra o Império
Otomano, mas ficaria ainda mais famoso para historiadores como o homem que disse aos seus chefes o que
NÃO fazer na região. Seus chefes, os oficiais generais e os políticos da Grã-Bretanha (e da França),
examinavam como dividir o espólio que já anteviam da derrota dos turcos otomanos, senhores até ali de boa
parte do que hoje chamamos de Oriente Médio. O jovem inglês era T. E. Lawrence, o Lawrence da Arábia. A
palavra Síria não existia em árabe, alertou. “A não ser que tenha estudado inglês ou francês, o habitante dessas
regiões sequer tem uma palavra para descrever a totalidade de seu país”, escreveu Lawrence em 1915 (link para
o leitor interessado no texto completo:
http://www.telstudies.org/writings/works/articles_essays/1915_syria_the_raw_material.shtml). E que país era
esse, para quem o percorrera a pé e no lombo de um camelo? Um lugar dividido pela geografia, com as
correspondentes divisões por etnias, atividade econômica e, principalmente, religião. Ao longo da história, a
Síria – nos tempos de Lawrence, a área onde hoje estão os modernos Estados da Síria, Líbano, Israel, Jordânia,
Iraque e os territórios da Autoridade Nacional Palestina, e partes da Turquia – sempre foi o corredor entre o mar
e o deserto, juntando a África com a Ásia, a Arábia com a Europa. Os historiadores fiéis à abordagem da “grand
dureé” definem dois grandes eixos como o caminho do choque milenar entre civilizações e religiões. Um é o
que o Pentágono chama hoje de Af-Pak (Afeganistão e Paquistão). O outro é a Síria. Foi sempre, prosseguia
Lawrence, o prêmio a ser conquistado pelos grandes povos e civilizações ao seu redor: Pérsia, Grécia, Roma,
Bizâncio, Califados, Otomanos. “A pobreza verbal ( a ausência da palavra Síria em árabe) indica uma condição
política”, concluiu. “Não há um sentimento nacional”.

De lá para cá o que hoje é a Síria sofreu a partição arranjada entre França e Grã-Bretanha; viu nascer e
prosperar o nacionalismo árabe e o pan-arabismo; foram desenhadas fronteiras artificiais (Churchill se jactava
de ter criado a Jordânia numa tarde) que em boa parte não levaram em consideração as condições locais; foi o
palco de pelo menos oito grandes conflagrações militares, para não falar de guerras civis, sublevações, golpes
de variados tipos, limpeza étnica, revoluções seculares e religiosas, massacres de populações locais ou vizinhas,
emprego de armas de destruição em massa (começando pelos britânicos que bombardearam partes do Iraque
com gás na década dos vinte). E se for possível atribuir algum tipo de denominador comum, por mais tênue que
seja, a um século de constante tumultos, então a expressão teria de ser “identidade árabe”, pelo menos para a
região que abordamos aqui, a da moderna Síria. A atual guerra civil síria é o resultado tanto de fatores
históricos profundos quanto das velhíssimas divisões religiosas do Oriente Médio, um cenário
extraordinariamente complexo no qual a atuação das chamadas “potências externas” é relevante mas não
suficiente como ferramenta de compreensão dos fatos. Pois se há algo de simbólico nos nomes e nos lugares, a
palavra é Damasco: ao mesmo tempo a fonte do nacionalismo arabe moderno e o retrato das suas frustrações.

O atual ditador da Síria, Bashar al-Assad, herdou do pai uma construção política apoiada num velho problema
da região: as minorias. Os Assads são alawitas, um grupo originalmente das montanhas ao norte do país, donos
de um longo passado de perseguição e destituição, ao mesmo tempo em que se sentem superiores aos demais. A
seita alawita apareceu no final do século nove, vinda de mais uma divisão no mundo muçulmano. No caso, do
próprio movimento xiita, combinando elementos do zoroastras, cristãos e muçulmanos. Para xiitas
“tradicionais” e também para os sunitas os Nusaryys, como eram chamados os alawitas, não passavam de
extremistas que levavam a veneração do Imman Ali, sobrinho do profeta e seu genro, para além das fronteiras
do Islã. À diferença de outras comunidades de montanha na região, como os Maronitas, os Alawitas mantinham
poucos contatos com o mundo exterior e não cultivavam laços culturais antigos e amplos com instituições
“externas”, como os maronitas em relação à Igreja em Roma, por exemplo. Nunca aceitaram plenamente os
árabes sunitas da planície, e vice-versa – seria mesmo difícil imaginar que os sunitas da planície seguiriam
aqueles que acusam de pertencer ao cisma, e que sequer reconhecem como sendo muçulmanos. Os franceses
ajudaram bastante a aprofundar essa velha divisão. Depois da Primeira Guerra esses senhores europeus
repartiram a área de influência conquistada nos tratados de paz em quatro grandes entidades: a República do
Líbano, a República da Síria, o Estado dos Alawis (governo de Latakia, de onde vem Bashar) e os druzos.
Havia fronteiras naturais para esse Estado alawita, centrado nas montanhas do norte do país. A proteção às
minorias tinha um desígnio claro: servia para ajudar a enfrentar os sunitas, que desde as primeiras negociações,
ainda durante a Primeira Guerra, queriam a Síria para si e os franceses fora. É importante ressaltar que os
franceses não criaram as diferenças entre nacionalidades; simplesmente deram mais expressão e consciência a
elas. Os alawitas, por exemplo, sempre quiseram manter à distância os nacionalistas árabes de Damasco. Em
1936, um acordo entre franceses e sírios encerrou a autonomia dessas regiões. É uma história complexa, com
narrativas diferentes, sem espaço para serem abordadas aqui. O que importa para avaliar a situação atual é
ressaltar que a entidade política então criada abrigava sob uma mesma administração os territórios dos alawitas,
dos drusos e dos curdos. Pior ainda, do ponto de vista das elites nacionalistas em Damasco, foi a criação do
Líbano, tirando da Síria o vale do Bekaa, as cidades de Trípoli e Beirute – gesto até hoje não digerido pelo pan-
arabismo do qual os Assads viriam a ser (assim como Nasser, Saddam Hussein, Mubarak, entre muitos) uma
expressão importante. Igualmente não deglutida foi a anexação, por parte da nova República turca, da cidade
costeira de Alexandretta. A transformação dos alawitas nesse período é interessante: os franceses, com afinco,
recrutaram minorias para suas “Troupes Speciales du Levant”. Os alawitas entre eles. Alguns historiadores
preferem resumir essa mudança em uma frase: os alawitas, os antigos camponeses, fizeram espadas de seus
arados e, através de Hafez al-Assad, dominaram as estruturas das Forças Armadas e, mais tarde, tomaram o
poder, através do Exército e do Partido Baath. Para os sunitas, foi uma usurpação. E o arabismo, antes usado
pelos sunitas para domar as minorias, agora era usado pela minoria para controlar a maioria sunita.

Bashar al-Assad é mais do que o herdeiro de uma ditadura. Na tradição árabe (mas não só, levando em
consideração alguns países comunistas) seu pai pensava que o filho levaria adiante uma dinastia, mesmo diante
das consideráveis transformações ocorridas na Síria. Hafez, o pai, nasceu numa aldeia pobre nas montanhas
habitadas pelos alawitas. Bashar é do litoral e, enquanto seu pai se casara dentro da própria comunidade, ele
escolheu uma sunita, filha de um cardiologista auto exilado em Londres. O próprio Bashar foi educado nas
melhores escolas de Damasco e passou brevemente pela Inglaterra. Médico oculista, ao assumir o lugar do pai
parecia anunciar a chegada de tempos modernos à política e sociedade sírias, sugeria novos ares num ambiente
de décadas de perseguições políticas, cárceres, repressão e atraso econômico. Fez uso calculado de pequenos
gestos, como ir a restaurantes sem muitos seguranças. O país começou a receber galerias de arte moderna e
investimentos em hotéis cinco estrelas de potentados do Golfo, virou até destino turístico. O poder tinha
passado do partido Baath para os alawitas e da seita para a casa dos Assads, que exercia firme controle sobre os
quatro pilares do sistema: a comunidade alawita, as Forças Armadas, os serviços de segurança e o Partido
Baath.

A revolta na Síria começou um pouco mais tarde que em outros países árabes da região, mas encontrou o país
em situação similar a de muitos vizinhos. A Síria tinha seis milhões de habitantes vivendo sobretudo no campo
quando Hafez chegou ao poder. Em 2011, eram 22 milhões em sua maioria nas cidades. A metade da população
tem menos de 19 anos de idade. E entre os menores de 25 anos, a taxa de desemprego vai aos 57%. A primeira
província a se rebelar foi a de Deraa, uma planície agrícola próxima à fronteira com a Jordânia. Ironicamente, o
regime dos Assads cresceu a partir das regiões longe do centro de poder político, que agora se rebelavam contra
ele, em parte por se sentirem negligenciadas pela centralização das oportunidades em Damasco. A geografia da
revolta síria acompanhou as divisões sectárias, políticas e religiosas. A revolta começou no sul e prosseguiu
através das cidades costeiras de Baniyias e Latakia, chegou aos subúrbios da capital, e daí alastrou-se para
Homs, Hama e cidades menores até chegar à província de Dayr as Zawr. Na sua imensa maioria as revoltas
eclodiram em territórios de árabes sunitas. Os curdos, também sunitas, ficaram inicialmente de fora, o mesmo
acontecendo com cristãos e ismailis.

Inicialmente a série de protestos e revoltas civis sugeria que a sociedade síria, como as de outros países árabes,
saía de um longo período de opressão, disposta a derrubar uma ditadura em boa parte identificada como o
domínio exercido por uma minoria. Supunha-se que o conflito armado não teria longa duração, em parte pelo
papel atribuído a Turquia de santuário para os rebeldes e elemento de dissuasão num inevitável contra-ataque
das tropas leais a Damasco. Essa perigosa presunção (a de se prever a duração de conflitos armados e suas
exatas consequências) resultava também da ilusão de que a “primavera” árabe seria um movimento sem volta
rumo ao estabelecimento de regimes políticos democráticos, transparentes e seguros. Ao contrário, a Síria
acabou rapidamente dominada por violência em grande parte anárquica. Diante dos primeiros protestos de
adolescentes em Deraa, que grafitaram paredes próximas a uma base militar – e foram selvagemente reprimidos
– o regime oscilou entre a reação brutal ao desafio proposto pelas ruas e as promessas de reformas e
concessões. Desta vez a reação da população à brutalidade oficial foi diferente, em grande parte ajudada pelo
fato de que modernos meios de comunicação – entre os quais se destaca o papel da rede de TV árabe Al
Jazeera, abertamente favorável aos protestos e aos sunitas – facilitaram a coordenação e, principalmente, a
narrativa da história de resistência. A revolta na Síria ganhou rapidamente contornos muito especiais, dada a
existência de linhas cruzadas de antagonismo difíceis de serem vistas de uma perspectiva mais ampla, mas
criando inúmeros palcos de conflitos locais atendendo à abrangência do conflito maior.

Uma força irresistível entrou em choque com um objeto que não se move: os Assads tinham montado o mais
temido regime de opressão do mundo árabe. Criou-se a situação de uma guerra civil clássica piorada por uma
guerra sectária dentro dela. Nunca foi, porém, simplesmente um conflito entre sunitas e alawitas; muitos sunitas
apoiavam, e continuam apoiando o regime. Do ponto de vista militar, o que parecia inicialmente uma inevitável
derrocada do poder em Damasco evoluiu ao longo de 2012 para uma situação de estagnação e até vantagem em
diversos teatros. Em parte a sobrevivência de Assad se deve ao fato de que as Forças Armadas registraram
deserções significativas inclusive entre oficiais generais, mas o esperado motim e desagregação não ocorreram.
O regime dos Assads não soube fazer o país crescer e gerar prosperidade para a maior parte dos habitantes, mas
soube criar uma eficiente máquina de repressão que funcionou muito bem dentro das Forças Armadas também.
A sobrevivência do regime explica-se não só pelo fato de a guerra civil ter colocado em risco a própria
sobrevivência dos alawitas. Setores diversos enxergavam no regime sírio uma garantia de certo secularismo, e a
chegada de rebeldes ligados aos salafistas foi imediatamente reconhecida como atraso cultural e em termos de
conquistas sociais. Muitos sírios consideravam uma minoria religiosa (os alawitas) no comando da maioria
como uma reversão da ordem natural das coisas, mas as perspectivas oferecidas pelos grupos militares mais
fortes da rebelião surgiram aos olhos de muitos como opção ainda pior do que a ditadura dos Assads. O mesmo
tipo de reação registrou-se em comunidades cristãs dentro e fora do país, que achavam positivo o nacionalismo
árabe, mas horrorizaram-se ao constatar a islamização da rebelião.

O propósito deste texto não é o de examinar em detalhe a composição étnica, política e religiosa de cada um
dos grupos rebeldes mas, sim, de descrever sobretudo o contexto internacional da guerra civil síria. A
islamização dos grupos de combate ao regime é uma dessas características, digamos, “internacionais”. O
regime sírio, ao longo dos diversos conflitos no Oriente Médio, soube manipular com cinismo e maestria
grupelhos e facções que empregou geralmente nos bastidores – nos anos 70 eram os grupos palestinos de
inspiração terrorista e marxista. Mais tarde, grupos da chamada resistência a Israel de clara inspiração religiosa,
como o Hamas. Logo após a invasão americana do Iraque, em 2003, a Síria virou uma espécie de corredor
preferencial dos jihadistas, muitos deles ligados ao terrorismo da Al Qaeda, rumo ao centro da antiga
Mesopotâmia. O mesmo corredor funcionou ao contrário com a guerra civil, com uma importante diferença:
desta vez o jihadismo era financiado por monarquias conservadoras no Golfo, que viram na possibilidade de
derrubada dos “apóstatas” em Damasco a chance de quebrar o que chamam de “arco xiita” que iria do Irã ao
Líbano, passando pela Síria. Os grupos radicais islâmicos que lutam no Oriente Médio afirmam que sua
legitimação vem da tentativa de reconstituir o califado, que afundou com o colapso do Império Otomano em
1924. São a minoria no mundo islâmico, mas com enorme vontade de perseguir seus objetivos. A atividade
desses grupos, e sua ressonância em partes do mundo árabe, tornaram muito difícil integrar o mundo do Islã na
modernidade. Os islamistas sempre entraram em guerra, de maneira brutal e efetiva, contra heranças
civilizatórias. O salto que China e Índia deram rumo ao mundo moderno é impensável no horizonte mental
desses radicais, sempre dedicados à autocomiseração e guerras de fé. Cabe notar aqui, de passagem, que as
guerras das quais participam esses radicais produziram três tipos de Estados: aqueles nos quais a autoridade
central deixou de existir (Afeganistão, Somália e Iêmen), regimes ditatoriais (Iraque sob Saddam e Irã) e os
regimes que promovem a exportação de seus problemas para os outros, como Egito e Arábia Saudita. Os
jihadistas na Síria encontraram uma importante base de operações, não só para a guerra civil “local”. Repetindo
o que já se verificara no Afeganistão, no Iraque (e, em boa medida, também na Chechênia), jihadistas
convergiram para a Síria, onde, no final de 2013, pareciam ter criado o que se chama de “massa crítica” em
termos de números, logística e coordenação de operações, embora incapazes de derrubar o regime. Parte da
onda jihadista acentuou-se também com o esmagamento da Irmandade Muçulmana depois do golpe militar no
Egito, criando uma dificuldade suplementar para os serviços secretos ocidentais: é difícil, admitiu o general
americano Martin E. Dempsey, o Chairman of the Joint Chiefs of Staff, identificar qual grupo jihadista é local,
regional ou de alcance mundial – os dois principais, o Nusra Front e o Islamic State of Iraq and Syria são, de
qualquer maneira, os que têm a maior capacidade de combate e controle de território.

No final de 2013, quase ao se completar quatro anos da guerra civil, a Síria estava, na prática, dividida em três
grandes pedaços. Utilizo aqui a caracterização desenvolvida por Jonathan Spyer, pesquisador do Global
Research in International Affairs Center, e amplamente confirmada pelos relatos de correspondentes atuando na
região. A primeira área é aquela controlada pelo regime dos Assads. Abrange as áreas costeiras ocidentais, a
capital Damasco e boa parte dos arredores e as principais ligações por terra entre esses territórios. Há dúvidas
se o ditador exerce, de fato, controle centralizado dos territórios nominalmente sob a tutela do regime, que
depende para sua sobrevivência não só das Forças Armadas convencionais mas também de agrupamentos
paramilitares e, também, da colaboração de milícias de países vizinhos (Hezbollah) e ajuda direta do Irã.

A segunda área na qual a Síria está dividida pertence a um número difícil de ser precisado de grupos rebeldes, e
carece totalmente de qualquer autoridade ou comando central. Senhores da guerra dominam feudos que às
vezes combatem-se mutuamente. Há estimativas apontando mais de 1.200 grupos rebeldes diferentes ou, pelo
menos, obedecendo a comandos independentes entre si. Os grupos rebeldes, do ponto de vista ideológico,
abrangem um grande espectro também, que vai de agrupamentos com inspiração secular e nacionalista até os já
mencionados salafistas, passando por facções do tipo Irmandade Muçulmana. Os rebeldes formaram alianças de
curta duração dependendo do maior ou menor sucesso das várias “brigadas” – uma das principais, a Brigada
Islâmica, abriga cerca de 40 a 50 mil combatentes, sobretudo na área próxima a Damasco. Falharam até agora
as tentativas de se estabelecer uma estrutura única de distribuição de ajuda ocidental e das monarquias do
Golfo; em novembro de 2013, por exemplo, os principais grupos islâmicos anunciaram uma coordenação
própria que parecia ter sido o resultado sobretudo de sucessos militares recentes das tropas do regime central.
Não se pode falar de “padrões de governança” nas áreas controladas pelos rebeldes.

A terceira área na qual se dividia a Síria ao final de 2013 é mantida por curdos ao nordeste do país. O que vem
sendo chamado de enclave curdo (além de duas outras áreas curdas mais a oeste, junto da fronteira com a
Turquia) tornou-se possível devido à decisão de Assad de concentrar forças e abandonar áreas de difícil
controle. Imediatamente o setor foi ocupado por uma facção curda obediente ao principal grupo armado, o PKK
– por sua vez, fortemente encorajado a se organizar pelo próprio regime sírio nos tempos em que abrigava
guerrilheiros curdos como maneira de fustigar a vizinha Turquia. Apesar das fortes divisões internas, os curdos
conseguiram manter-se distantes dos dois lados na guerra civil síria. Do ponto de vista de Assad, a situação não
é totalmente desfavorável: os curdos, ao contrário dos sunitas árabes, não estão engajados numa batalha de vida
ou morte contra o regime. Para os rebeldes, porém, os curdos são separatistas na melhor das hipóteses ou,
simplesmente, traidores.

A principal tática militar do regime consistiu, a partir do final de 2012, em concentrar o controle das principais
comunicações a partir de Damasco e bombardear indiscriminadamente as áreas contíguas que estão fora de seu
alcance. Foi numa dessas operações num dos subúrbios próximos a Damasco, ocupado por rebeldes sunitas
moderados, que, na madrugada de 21 de agosto de 2013, o regime empregou artilharia com armas químicas,
matando mais de mil pessoas, entre elas cerca de 400 crianças. Não era a primeira vez que se registrava o
emprego desse tipo de arma, que constitui uma flagrante violação de leis internacionais e, além disso, tinha sido
declarada pelo governo dos Estados Unidos como “linha vermelha” que deflagraria uma intervenção militar. O
episódio teve importantes consequências internacionais e acabou sendo um dos marcos na linha do tempo da
guerra civil.

A ameaça de intervenção militar de países ocidentais contra o regime sírio foi impedida inicialmente no
parlamento britânico, onde um voto proposto pelo primeiro-ministro David Cameron foi derrotado em parte
pelos próprios deputados conservadores. Pesou na decisão não só a pouca habilidade demonstrada por Cameron
nas articulações políticas de bastidores mas, principalmente, o cansaço dos britânicos com a participação em
duas guerras nas quais entraram quase incondicionalmente ao lado dos americanos. E numa inversão do que
ocorrera dez anos antes, por ocasião da invasão do Iraque, a França apoiou a intenção americana de bombardear
Assad. Tanto o primeiro-ministro britânico quanto o presidente socialista francês François Hollande
pressionaram Obama a aumentar a ajuda aos rebeldes, inclusive com o fornecimento de armas pesadas. Apesar
de severas diferenças entre França e Estados Unidos, no caso da Síria os dois países demonstravam a mesma
preocupação em “manter a credibilidade dos países ocidentais”, nas palavras de Vicente Desportes, general da
reserva e antigo diretor da École de Guerre. E se há algum lugar no mundo onde os franceses entrariam junto
dos americanos é a Síria, um antigo protetorado. A preocupação dos franceses, conforme manifestada em outro
episódio (o da negociação de um acordo preliminar com o Irã sobre o programa nuclear do regime dos aiatolás)
era sobretudo com a manutenção de acordos internacionais relevantes, como o Tratado de Não Proliferação e a
Convenção de Armas Químicas.

Obama, que reagiu com cautela e dependia de um voto do Congresso para seguir adiante com uma intervenção
militar, viu-se “salvo” do dilema por uma proposta russa de acordo para eliminação das armas químicas do
regime, que acabou sendo aceita e, para surpresa de muitos inspetores internacionais, cumprida pela ditadura
Assad – abrindo caminho até para uma conferência sobre a Síria programada para acontecer no início de 2014,
e na qual o regime de Assad compareceria como um dos principais atores, e não mais como réu. Tida
inicialmente como uma importante vitória diplomática da Rússia, que tem em Assad o último aliado árabe da
região, a iniciativa que levou à retirada e destruição das armas químicas sob controle de Assad acabou abrindo
aos americanos novas oportunidades. Há bastante tempo que os Estados Unidos não estão em condições de
impor sozinhos soluções ao Oriente Médio. E esqueceram a expressão “mudança de regime”, tão popular na era
Bush, como maneira de colocar na região governantes que, teoricamente, teriam melhor disposição em negociar
com os EUA. Ampliou-se na diplomacia americana – para não falar do público em casa – a noção que são
escassas as possibilidades de influenciar decisivamente comportamentos e mentalidades em lugares como o
Oriente Médio. No caso do caldeirão sírio, esse reconhecimento implica a admissão da impraticabilidade de
moldar favoravelmente a curto prazo qualquer tipo de solução.

No final de 2013 outro fator ainda parecia pesar no comportamento americano: o paradoxal reconhecimento de
que se a mera contemplação da sobrevivência de Assad no governo é péssima, as outras opções são piores
ainda. Coincidência ou não (daqui a algum tempo saberemos) a reaproximação dos Estados Unidos e do Irã
colocou velhos inimigos diante de um adversário comum: o fundamentalismo árabe sunita financiado e dirigido
por monarquias conservadoras no Golfo Pérsico, todas elas, por sinal, aliadas e, ao mesmo tempo, enfurecidas
pelo que consideravam comportamento errado de Washington ao não bombardear Assad e iniciar negociações
diretas com o regime dos aiatolás (o mesmo tipo de crítica, aliás, vociferado por outro importante aliado
americano, Israel). No caso do Irã, os americanos preferiram esperar o surgimento de um novo fator em Teerã,
com a eleição do presidente Hassan Rouhani, um moderado apoiado pela linha dura. No caso da Síria, tiveram
de esperar pelas articulações russas. Daqui a algum tempo saberemos, também, quanto da atitude recente da
diplomacia americana no conflito sírio está ligada, ainda, ao fato de que a economia americana desenvolve-se
rapidamente, graças à inovação e conhecimento, na direção oposta da dependência das fontes do Oriente
Médio. Os americanos gastam muito menos energia para gerar muito mais riquezas. Em pouco tempo,
alteraram fundamentalmente um velho dogma. Em 2006, importavam mais de 60% do petróleo que
consumiam; no final de 2013, eram apenas 36%. O Oriente Médio estava virando um problema maior para a
China, em termos de segurança de suprimento de energia, do que para os Estados Unidos.

Como é facilmente compreensível diante da posição central da Síria naquela região, o conflito tem implicações
gravíssimas para todos os vizinhos. O Iraque viu a revolta na Síria sob o prisma do velho conflito entre sunitas
e xiitas. Desde que os xiitas ganharam o poder em Bagdá, eles acompanharam o que acontecia no vizinho com
enorme suspeita. Para o governo (xiita) em Bagdá, a vitória da rebelião sunita poderia significar um rearranjo
na região e, portanto, era para ser vista com desconfiança, independentemente da proximidade entre o primeiro-
ministro iraquiano Maliki e o Irã. A ideia de que o relativo apoio do Iraque a Bashar fosse um tributo ao Irã é
equivocada. Maliki passou boa parte do exílio na Síria, e ele acredita mesmo na força da seita xiita. E estava
convencido de que a vitória da sublevação na Síria fomentaria o crescimento de um regime sunita
fundamentalista numa fronteira importante para seu país. A Jordânia, ao contrário, tratou de alertar os
americanos para o fato de que, na visão de Amã, a permanência de Assad no poder facilitaria, ao lado dos xiitas
em Bagdá, a formação de um “crescente xiita” que iria do Irã até o Líbano, passando por Iraque e Síria. E pediu
aos americanos ajuda para tentar combater esse cenário.

A Turquia é o país mais diretamente afetado, não só pela imensa quantidade de refugiados sírios (problema
sério para a Jordânia também). Inicialmente o principal papel turco foi o de ajudar a Free Syrian Army, formada
por desertores das Forças Armadas sírias. Mas rapidamente a frente rebelde foi infiltrada e dividida pela
presença de islamistas radicais. A relação com a Síria sempre fora muito complicada, sobretudo por conta do
problema curdo, já que os sírios abrigavam a liderança de uma antiga guerrilha contra Ancara. Com o
desenrolar da guerra, o problema para o primeiro-ministro turco Recep Erdogan era o de como abraçar as
revoltas árabes – sunitas – e lidar com um governo xiita que além do mais era próximo ao vizinho e rival Irã.
Erdogan foi um dos primeiros a condenar o regime de Bashar al-Assad, mas não se atirou à invasão de parte do
território da Síria, como alguns comandantes da OTAN pensavam que poderia acontecer. E manteve um jogo
duplo, em parte entregando ao regime sírio um dos principais desertores das Forças Armadas.
Até agora o conflito não se expandiu a outros países vizinhos, com a notada exceção do Líbano – que não é, do
ponto de vista de vários participantes do conflito, um “país” vizinho. Nenhum acontecimento na Síria ou no
Líbano foi independente um do outro – não só os constantes atentados em Beirute (contra sunitas ou contra
xiitas) demonstram essa constatação. Outro bom exemplo é a situação em Trípoli, no norte do país: dali
trabalha um influente clérigo salafista, para o qual a Austrália está mais próxima dos sunitas do que os
subúrbios xiitas do sul de Beirute. A já mencionada participação do Hezbollah, milícia sediada principalmente
nos subúrbios pobres ao sul da capital libanesa, foi essencial para a estabilização da situação militar do ponto de
vista do governo central em Damasco.

O conflito também não transpôs as fronteiras de Israel, que interviu militarmente pelo menos duas vezes contra
alvos na Síria. Políticos israelenses sempre preferiram tratar com Assad do que com os demônios do islamismo.
Depois de dois anos de situação confusa, as séries de revoltas árabes tinham deixado os israelenses em posição
aparentemente mais confortável, a saber:

a) o exército egípcio derrubou a Irmandade Muçulmana e restaurou um confiável interlocutor para os


israelenses;
b) a Arábia Saudita parecia mais furiosa com os Estados Unidos do que nunca, a ponto de recusar um assento
provisório no Conselho de Segurança, em protesto contra o que chamou de incapacidade da ONU de lidar com
o conflito na Síria;
c) negociações com os palestinos caminhando vagarosamente, em segredo;
d) economia e política de Israel em estabilidade e prosperidade.

O conflito na Síria sugere, no final de 2013, uma provável partição do país. A comparação com outros países
árabes que viveram conflitos sangrentos desde o final de 2011 é ilustrativa. Egito e Tunísia eram velhos
Estados-nações com um senso de comunidade muito forte, com sua unidade longe de qualquer ameaça. A
Líbia, que sofreu uma intervenção militar, sempre foi dividida entre Trípoli e Bengasi, mas não havia no país
uma casta dominante. A revolta na Síria, ao contrário, levou imediatamente às origens do surgimento do país
nos anos 30 e 40. Os franceses deram ênfase às diferentes etnias e depois deixaram um Estado único que
acabou sendo dominado por uma dessas minorias. E os alawitas sequestraram algumas das palavras de ordem
mais importantes: a revisão das fronteiras com o Líbano, a luta contra Israel (os alawitas prometiam recuperar
as colinas do Golan, perdidas no conflito de 1967, e também recuperar Alexandreta dos turcos). Surgiam,
assim, como guerreiros do arabismo. A comparação óbvia aqui é com a Iugoslávia. A personalidade do
marechal Tito conseguiu manter durante mais de 30 anos um semblante de unidade numa região muito mais
conhecida pelas divisões profundas entre seus habitantes – e as constantes guerras entre eles. O fim de Tito
significou também o fim da Iugoslávia.

Por último, a Síria inspira uma observação sobre as sociedades árabes, que tendem a se definir muito mais pelo
que não gostariam de ser, ou em função daquilo a que se opõe: o imperialismo, o colonialismo, o sionismo. Daí
tantas esperanças associadas ao movimento de 2011: os sonhadores de mais de um século atrás finalmente
teriam razão quanto à capacidade dos árabes de moldar o destino de suas sociedades – embora seja muito difícil
imaginar um projeto comum, dadas as diferenças que parecem muito mais fortes do que o sentido de unidade.
Diferenças que se acentuam na era da revolução da informação na qual, na feliz expressão de Robert Kaplan, a
geografia se vinga, acentuando o localismo de circunstâncias políticas e culturais, e de percepções do mundo ao
redor. Nesse sentido, a tragédia síria – que não é nova – nos obriga, mais uma vez, a olhar para a História: não
é, simplesmente, uma guerra civil.

ESTA MATÉRIA FAZ PARTE DO VOLUME 22 Nº3 DA REVISTA POLÍTICA EXTERNA


Comércio Internacional
A Conferência Ministerial de Bali, foi um marco na história do sistema de comércio multilateral.
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