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DADOS DE ODINRIGHT

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Ficha Técnica

Copyright © 2011 by Mohamed ElBaradei


Todos os direitos reservados.
Tradução para a língua portuguesa © Texto Editores Ltda., 2011
Título original: The Age of Deception

Diretor editorial: Pascoal Soto


Editora: Mariana Rolier
Produção editorial: Sonnini Ruiz
Marketing: Léo Harrison

Coordenação editorial: Estúdio Sabiá/Carochinha Editorial


Preparação de texto: Sílvia Almeida
Revisão: Ceci Meira, Hebe Lucas e Valéria Sanalios
Capa e projeto gráfico: Ana Carolina Mesquita
Imagem de capa © Eric Bouvet/VII Network/Corbis/Corbis (DC)/Latinstock

Dados internacionais de catalogação na publicação (CIP-Brasil)


Ficha catalográfica elaborada por Oficina Miríade, RJ, Brasil.
E37 ElBaradei, Mohamed, 1942-
A era da ilusão : a diplomacia nuclear em tempos traiçoeiros / Mohamed
ElBaradei ; tradução: Luís Fragoso e Elvira Serapicos. – São Paulo : Leya,
2011.
Tradução de: The Age of Deception.
ISBN 9788580446975
1. Política nuclear. 2. Controle de armas nucleares.
3. Não proliferação nuclear. I. Título.
11-0115 CDD 327.174

Texto Editores Ltda.


Uma editora do Grupo LeYa
Av. Angélica, 2163 – Conj. 175/178
01227-200 – Santa Cecília – São Paulo – SP
www.leya.com
Introdução

“Ajudem-nos a ajudar vocês.”


Do outro lado da mesa, o homem sorriu, mas não era
satisfação que se via em seu rosto. Seus olhos esmoreciam
e o canto de seus lábios definhava. Tristeza? Cansaço? Eu
não sabia ao certo.
Era 9 de fevereiro de 2003. Fazia mais de doze anos que
o Conselho de Segurança da ONU emitira, pela primeira
vez, sanções ao Iraque. Em pouco mais de um mês,
haveria uma nova invasão liderada pelos EUA. Pouco
tempo antes, Saddam Hussein voltara a admitir a inspeção
de armas da parte da ONU. Hans Blix e eu, na condição de
líderes das equipes internacionais, fazíamos nossa terceira
visita a Bagdá. Era nossa última noite no país. Naji Sabri,
ministro iraquiano das Relações Exteriores, nos convidara
para participar de um jantar com nossos principais
especialistas e um grupo de colegas do Iraque.
O restaurante era o mais sofisticado da cidade. A
infraestrutura de Bagdá beirava o colapso, deixando
visíveis os efeitos das sanções que foram impostas ao país.
O jantar, porém, ostentava elegância, com impecáveis
toalhas de mesa de linho escarlate e muita cortesia da
parte dos garçons. O peixe grelhado, recém-pescado no rio
Tigre, era servido à vontade. O tempero dos espetinhos de
carneiro (kebab) estava perfeito. E, na mesa, outro regalo:
vinho. Isso causava surpresa, já que o consumo de álcool
em público era proibido de acordo com um decreto de
1994. Naquela noite, porém, para seus convidados de fora
da cidade, os iraquianos abriram uma exceção.
O homem sentado à mesa, do lado oposto a mim, era o
general Amir Hamudi Hasan al-Sa’adi. O título de “general”
era, basicamente, honorífico. Homem urbano e negociador
carismático, com Ph.D. em Química e Física, Al-Sa’adi era
fluente tanto em inglês quanto em árabe e preferia ternos
feitos sob medida aos uniformes militares. Embora não
fosse membro do Partido Baath, desempenhava um papel
de liderança na área científica para o governo iraquiano.
Durante o jantar, Blix e eu havíamos conduzido a
conversa para um tema crucial: a necessidade de obter
maior cooperação e documentação mais completa. “Vocês
afirmam que não possuem armas de destruição em
massa”, nós dissemos. “Vocês nos dizem que não
reativaram nenhum de seus antigos programas de armas
de destruição em massa, porém não podemos
simplesmente arquivar os casos cujos registros estão
incompletos. Precisamos de mais provas. Quanto mais
transparência vocês tiverem, mais documentos e provas
materiais poderão mostrar, e isso será melhor para o
Iraque no cenário mundial. O que mais vocês podem
apresentar para preencher as lacunas em relação às
informações sobre seu país? Ajudem-nos a ajudar vocês.”
Sentado ao lado de Al-Sa’adi estava Husam Amin, líder
do grupo iraquiano que fazia a interface com a ONU. Ele
inclinou-se para a frente e respondeu: “Vamos ser francos.
Primeiro, não podemos lhes oferecer nada, porque não há
mais nada a oferecer”. Desviou o olhar na direção de Blix,
e então de volta para mim. “Mas, em segundo lugar, vocês
não têm como nos ajudar, porque esta guerra irá
acontecer, e nada que vocês ou nós possamos fazer irá
impedir isso. Todos nós sabemos. Não importa o que
façamos, é fato consumado.”
E voltou a ajeitar-se na cadeira. Al-Sa’adi assentiu com a
cabeça, mas não disse nada. A tristeza continuava em seu
sorriso.
Apesar da posição de Amin, eu me recusava a acreditar
que a guerra era inevitável. A Agência Internacional de
Energia Atômica (AIEA), órgão da ONU responsável pelas
inspeções de armas nucleares do qual eu era o diretor,
vinha fazendo consideráveis progressos. Isso incluía seguir
cada uma das pistas que nos eram dadas, mesmo sem
achar nada. Em meu relatório para o Conselho de
Segurança da ONU, em 27 de janeiro, afirmei: “Até o
momento, não temos nenhuma prova de que o Iraque
reativou seu programa de armas nucleares”. Essa
declaração provocou duras críticas de autoridades de
governo ocidentais e de analistas da mídia, que já estavam
convencidos do contrário. Mas esses críticos baseavam-se
em hipóteses circunstanciais, caracterizando-as como
provas. Eu havia dito a verdade.
A AIEA ainda não estava preparada para emitir um
“atestado de plena saúde” ao Iraque. Mas eu havia
conclamado o Conselho para que deixasse os inspetores
fazer seu trabalho. Argumentei que mais alguns meses
representariam “um valioso investimento em favor da
paz”. Se a justificativa para uma invasão preventiva do
Iraque estava baseada nos reconstituídos programas de
armas de destruição em massa de Saddam Hussein, então
onde estavam as provas? Onde estava a ameaça
iminente? Se Amin estava dizendo a verdade e o Iraque
não “tinha mais nada a oferecer”, então as implicações
eram significativas: não havia ameaça nenhuma.
Uma guerra sem razão certamente levaria a um número
maior de hostilidades em uma relação já cindida entre os
países detentores e os não detentores de tecnologia
nuclear. Tanto os EUA quanto o Reino Unido possuíam
armas nucleares, não demonstrando a mínima disposição
de renunciar a elas. Entretanto, eles ameaçavam o Iraque
por supostamente também buscar adquirir tais armas. Para
os países em desenvolvimento, e particularmente para as
sociedades árabes e muçulmanas, isso era, ao mesmo
tempo, irônico e extremamente injusto. Saddam Hussein
gozava de relativa popularidade diante dos povos árabes
em virtude de suas posições contrárias ao tratamento
dado por Israel aos palestinos e devido à sua atitude
desafiadora em relação ao Ocidente. Ele não era a
personalidade predileta da maioria dos governantes árabes
pró-Ocidente, especialmente após sua invasão do Kuwait,
em 1990; entretanto, causava-lhe irritação ver o Iraque ser
tratado com tamanho desdém. Se uma guerra de fato
eclodisse, e particularmente um conflito assentado em
acusações forjadas sobre armas de destruição em massa,
a sensação de ultraje entre os povos árabe e muçulmano
aumentaria drasticamente.
Ainda assim, com o passar das semanas, mesmo com
toda a crença que eu depositava no processo de inspeção,
comecei a sentir uma inquietação crescente. A retórica
proveniente dos EUA e do Reino Unido era cada vez mais
estridente. Apenas quatro dias antes do jantar em Bagdá,
o secretário de Estado dos EUA, Colin Powell, apresentara
seus argumentos ao Conselho de Segurança: gravações de
conversas telefônicas interceptadas e imagens de
instalações iraquianas registradas por satélite. Tais
registros, afirmou, demonstravam “padrões de
comportamento inquietantes” da parte de Saddam Hussein
e de seu regime, “uma política evasiva e dissimulada”.
Para o grupo de inspetores, a apresentação de Powell era,
essencialmente, um misto de conjecturas, um
encadeamento de dados não verificados, interpretados à
luz do pior cenário possível. Não havia nenhuma prova
conclusiva. Porém, para muitos ouvintes, sobretudo para
não especialistas, os argumentos de Powell eram
contundentes.
Ao longo das seis semanas posteriores, nada seria capaz
de impedir a crise iminente, nem mesmo um sinal de
progresso durante as inspeções ou uma intervenção
diplomática. A AIEA revelou que documentos confidenciais
essenciais, supostamente associando Saddam Hussein a
tentativas de comprar urânio do Níger, haviam sido
forjados. A descoberta, porém, teve pequeno impacto. Um
encontro dos líderes árabes em caráter emergencial, em
Sharm el-Sheikh, a fim de elaborar uma solução ou pensar
numa reação unificada desses Estados, terminou em
confusão. Uma derradeira tentativa de evitar a ação
militar, feita pelos britânicos, fracassou.
No início da manhã de 17 de março, recebi um
telefonema da missão norte-americana em Viena,
aconselhando nossa equipe de inspetores a deixar Bagdá.
A invasão estava prestes a acontecer.

“Se existe um perigo no mundo, este é compartilhado por


todos; da mesma forma... se existe a esperança na mente
de uma nação, esta deve ser compartilhada por todas.”
Essas foram as palavras do presidente dos EUA Dwight D.
Eisenhower, em 1953, no discurso intitulado “Átomos para
a paz”, que permitiu o nascimento, quatro anos mais tarde,
da AIEA. Trata-se de uma mensagem extraordinária,
proferida em meio a uma crescente corrida armamentista
e dirigida a uma comunidade internacional que ainda tinha
em mente a devastação provocada pela Segunda Guerra
Mundial.
O conceito de “Átomos para a paz” de Eisenhower – a
ideia de que tanto os benefícios quanto as inseguranças
contidas na ciência nuclear devem ser abordados de modo
coletivo pela comunidade internacional – é o princípio
central da diplomacia nuclear. Ele se transformaria em um
compromisso praticamente universal com o intuito de
estimular a cooperação tecnológica para o uso pacífico da
energia atômica, bem como impedir a proliferação das
armas nucleares – um duplo compromisso consagrado pelo
Estatuto da AIEA e pelo histórico Tratado de Não
Proliferação de Armas Nucleares (TNP), de 1970.
Na condição de jovem advogado egípcio e professor de
Direito Internacional em Nova York no início da década de
1980, eu me considerava em sintonia com os ideais de
“Átomos para a paz”. Associei-me à AIEA em 1984,
tornando-me consultor jurídico da organização três anos
depois. Na época da Guerra do Iraque, em 2003, eu
ocupava o cargo de diretor-geral da AIEA havia mais de
cinco anos e já era membro havia quase duas décadas.
Estava completamente imerso na missão de diplomacia
nuclear da agência. O fato de que uma guerra seria
travada com base em acusações infundadas de posse de
armas de destruição em massa – e de o papel de
diplomacia nuclear da AIEA estar sendo posto de lado,
servindo de mero instrumento para acobertar
procedimentos ilegítimos – era, para mim, uma distorção
grotesca de tudo aquilo que defendíamos. Isso contrariava
praticamente meia década de trabalho árduo, realizado
por profissionais comprometidos – cientistas, advogados,
inspetores e servidores públicos – de todos os continentes.
Eu estava perplexo diante do que estava testemunhando.
Estava plenamente convencido de que nada que Blix ou eu
tivéssemos presenciado poderia justificar a ida à guerra.

O general Amir al-Sa’adi, com quem partilhei aquele


melancólico jantar, rendeu-se às Forças de Coalizão em 12
de abril de 2003, ao tomar conhecimento de que era o
número 32 na lista dos iraquianos mais procurados e visto
como uma peça inútil no tabuleiro. Ele pediu à ZDF,
emissora alemã de TV, que filmasse sua rendição. Falando
diante da câmera, anunciou: “Não temos armas de
destruição em massa, e o tempo confirmará o que estou
dizendo”. Foi então que ficou claro para mim que nossa
conclusão provisória sobre as armas nucleares estava
correta, pois naquele momento Al-Sa’adi não tinha motivos
para mentir.
Desde então, diversas fontes confirmaram que a
premissa usada para a invasão de março de 2003 – a
acusação feita pelos EUA e pelo Reino Unido de que os
programas de armas de destruição em massa
representavam uma ameaça iminente – era infundada.
Posteriormente, o Grupo de Inspeção no Iraque, nomeado
pelos EUA, gastaria bilhões de dólares para constatar a
veracidade das afirmações dos inspetores internacionais: o
Iraque não havia reativado seus programas de armas de
destruição em massa. Aparentemente, a suposta ameaça
nuclear tampouco foi a real motivação para a agressão
liderada por EUA e Reino Unido. O célebre memorando que
vazou de Downing Street em julho de 2002 é um forte
indicativo de que a decisão de ir à guerra fora tomada
muito antes de as inspeções terem início.
Não sou capaz, ainda hoje, de ler tais declarações sem
pensar nos milhares de soldados mortos, nas centenas de
milhares de civis iraquianos assassinados, nos milhões de
pessoas mutiladas e desabrigadas, nas famílias
dilaceradas, nas vidas arruinadas – e fico espantado que
não tenha havido um autoexame e uma introspecção
maior da parte dos principais protagonistas do episódio. A
vergonha dessa guerra desnecessária nos força a levar em
conta o que deu errado no caso do Iraque e a refletir sobre
como as lições ensinadas por essa tragédia podem ser
aplicadas a crises futuras.
As tensões sobre o desenvolvimento de programas
nucleares que hoje inquietam o planeta, particularmente
em relação ao Irã, indicam a possibilidade de repetirmos a
catástrofe do Iraque, com consequências ainda mais sérias
para a segurança global. Quando considero os desafios
que permanecem diante de nós, sou remetido à cena de
nosso jantar de fevereiro de 2003, em Bagdá, porque ele
serve de protótipo para os principais aspectos do dilema
que enfrentamos na condição de comunidade global em
busca de uma segurança duradoura e coletiva: a crescente
desconfiança entre diferentes culturas; os efeitos
corrosivos de um sistema de longa data, que opõe os
detentores de tecnologia nuclear aos que carecem dela; a
insanidade de certas práticas políticas arriscadas; e a
certeza do fracasso, caso sejamos incapazes de aprender
com os erros do passado. A cena daquele jantar também é
importante pelo elemento que lhe falta: os principais
protagonistas – no caso, os EUA e o Reino Unido –, cujas
decisões, de fato, determinariam o resultado dos
acontecimentos. A ausência deles se transformaria num
tema recorrente nos anos que se seguiriam, especialmente
no Irã: a distância, os EUA ofuscavam negociações,
moldavam seus resultados ao mesmo tempo que se
furtavam a uma participação direta. A diplomacia nuclear é
uma disciplina prática que requer envolvimento direto,
comedimento e compromissos a longo prazo. Ela não pode
ser operada por controle remoto. Se a intenção é usar o
diálogo como ferramenta para a resolução de tensões
nucleares, este não pode ser limitado a uma conversa
entre os inspetores e o país que está sendo acusado. Os
EUA e seus aliados devem estar genuinamente envolvidos
nos debates, dialogando com os que julgam ser seus
adversários, demonstrando – para além do discurso
retórico – seu compromisso com a resolução pacífica das
inseguranças que lhes são inerentes. Enfim, todas as
partes devem sentar-se à mesa de negociações.
O jantar em Bagdá – chamado sarcasticamente por
alguns de meus colegas de “A última ceia” – foi apenas
uma das múltiplas crises ocorridas no início de 2003. A
Coreia do Norte acabara de expulsar os inspetores da AIEA
que monitoravam o “congelamento” de suas instalações
nucleares e anunciou a intenção de retirar-se do Tratado de
Não Proliferação Nuclear. Acompanhado de vários colegas
da AIEA, eu estava prestes a fazer minha primeira visita a
uma usina de enriquecimento nuclear em construção, em
Natanz, e apenas começando a examinar a extensão do
programa nuclear iraniano. Em breve, a Líbia começaria a
fazer propostas de negociação aos EUA e ao Reino Unido,
relacionadas à dissolução de seus programas de armas de
destruição em massa. E começava a ser formado o ainda
vago esboço de uma rede ilícita e obscura de suprimentos
nucleares. Posteriormente, encontraríamos sinais de sua
atividade em mais de 30 países.
Hoje, sabemos muito mais a respeito de cada um desses
casos de proliferação de armas nucleares, sejam eles reais
ou em potencial. No Irã e particularmente na Coreia, as
circunstâncias continuam fluidas e imprevisíveis. Ainda não
dispomos de uma abordagem prática e da capacidade de
reagir diante desses casos ou de situações futuras, por isso
precisamos de um compromisso com a diplomacia nuclear.

A Primeira Era Nuclear representou uma corrida pela


bomba atômica: uma competição entre um número
relativamente pequeno de países que dispunham da
sofisticação tecnológica necessária, ou que então eram
capazes de obter, de modo clandestino, o conhecimento
científico necessário para produzir armas nucleares. O
clímax daquela corrida – a destruição de Hiroshima e
Nagasaki – foi atingido com a vitória dos Estados Unidos.
Mas os demais competidores não desistiram. Num
intervalo de poucos anos, mais quatro países conseguiram
produzir a bomba.
O período que denominamos de Guerra Fria consistiu na
Segunda Era Nuclear. Embora vários países possuíssem
armas nucleares e outros continuassem a desenvolvê-las,
esta foi, de fato, a era de dois gigantes: os Estados Unidos
e a União Soviética, ambos acumulando dezenas de
milhares de ogivas, numa filosofia conhecida como MAD,
sigla em inglês para Destruição Reciprocamente Garantida,
disfarçada sob o nome de “força de dissuasão nuclear”.
A Terceira Era Nuclear, a era atual, teve início após o
colapso da União Soviética. No vácuo de poder que se
seguiu, a comunidade política não foi capaz de capitalizar
as oportunidades para promover um desarmamento
nuclear. Como resultado, cada vez mais países começaram
a cogitar a possibilidade de ter um programa de armas
clandestinas, ou então um ciclo completo de combustíveis
nucleares que lhes desse a capacidade de produzir uma
arma nuclear rapidamente, caso a situação, no que diz
respeito à segurança, assim exigisse.
Atualmente, o problema essencial não é o cenário MAD –
ataques pesados com o uso de arsenais nucleares a varrer
as grandes metrópoles que abrigam tanto o capitalismo
quanto o comunismo –, mas a ameaça de uma guerra
atômica assimétrica: a aquisição e o uso de armas
nucleares por grupos extremistas, por um país “de patifes”
comandado por um ditador agressivo, ou ainda por uma
grande potência contra um Estado desprovido de
tecnologia e armas nucleares.
Essa situação é fatalmente instável, e os
desdobramentos ocorridos em anos recentes só fizeram
exacerbar tal instabilidade. Testemunhamos agressões em
locais onde não havia uma ameaça iminente (Iraque); a
falta de ação e a hesitação em um momento de real
ameaça (Coreia do Norte); e um impasse prolongado,
estimulado por insultos e por um exibicionismo público em
vez de um diálogo significativo (Irã). Ao longo dos anos,
trouxemos à tona uma rede nuclear ilícita e próspera,
pronta para suprir programas nucleares clandestinos.
Enquanto isso, a autossuficiência de alguns países em
relação às armas nucleares continua sendo um constante
estímulo para que outras nações as adquiram.
Essa instabilidade crescente significa que estamos no
crepúsculo da Terceira Era Nuclear. De um modo ou de
outro, estamos à beira de uma mudança significativa. Se
não fizermos nada, numa tentativa de manter o statu quo
que opõe os países detentores de tecnologia nuclear aos
não detentores, é provável que a mudança assuma a
forma de uma verdadeira proliferação em efeito cascata
ou, pior ainda, uma série de conflitos nucleares. Os sinais
já são visíveis, sobretudo na reação de países vizinhos no
momento em que surgem ameaças nucleares, reais ou
aparentes. O recente crescimento do número de países no
Oriente Médio envolvidos em diálogos sobre tecnologia e
conhecimento nucleares, ou que têm começado a adquiri-
los, é apenas um exemplo disso. Outro exemplo foi a
resposta do Japão ao primeiro teste com armas nucleares
na Coreia do Norte: iniciar debates sobre um programa de
armas nucleares japonesas.
Há também uma saída. Podemos alterar o rumo das
coisas e adotar uma abordagem diferente para essa
assimetria: um genuíno progresso na direção do
desarmamento nuclear global. Um novo acordo de redução
de armas firmado entre os gigantes nucleares do planeta
em que eles assumam responsabilidades pela necessidade
de desarmamento – esses são os caminhos que poderiam
nos conduzir em direção a um futuro de maior segurança.
Se prestarmos atenção às lições do passado recente e se
pudermos enfrentar a ameaça real que está bem diante de
nós, seremos capazes de evitar a aniquilação mútua e
garantir que o início da Quarta Era Nuclear seja marcado
pela resolução de tensões no plano nuclear: o
desarmamento e a paz duradoura.
1 • Iraque, primeiro round
DEPOIS DA GUERRA

Para que se possa contemplar o cenário nuclear de 2003, é


necessário retornar ao início da década de 1990, quando
dois programas nucleares vieram à tona: primeiro, o
programa secreto de Saddam Hussein de desenvolvimento
de armas nucleares, descoberto depois do término da
Guerra do Golfo, em 1991; em segundo lugar, o desvio de
plutônio e o ocultamento de instalações nucleares pela
Coreia do Norte, revelados pela AIEA no ano seguinte.
No caso do Iraque, o conhecimento da agência sobre o
programa nuclear do país no início da primeira Guerra do
Golfo se limitava, basicamente, ao Centro de Pesquisas
Nucleares Tuwaitha, situado ao sudeste de Bagdá, a
poucas horas de carro da capital. Em suas negociações
com a AIEA, o Iraque declarou possuir dois reatores para
pesquisas1 situados em Tuwaitha, bem como um pequeno
laboratório para a fabricação de combustível e instalações
para seu armazenamento. Duas vezes ao ano, a agência
inspecionava essas instalações, a fim de certificar-se de
que nenhuma parte das substâncias nucleares declaradas
fosse desviada do uso pacífico para o desenvolvimento de
armas.
Terminada a guerra, os inspetores da AIEA encontraram
evidências de outras atividades nucleares não declaradas
em Tuwaitha, além de uma série de instalações ilícitas pelo
país. A AIEA foi responsabilizada por não ter detectado
antes esses aspectos clandestinos do programa nuclear
iraquiano. No entanto, essa culpa deve ser pelo menos
parcialmente atribuída às limitações impostas às
autoridades de inspeção da AIEA. Esperava-se apenas que
a agência verificasse os dados que um determinado país
tivesse declarado. Nossa autoridade e nossos mecanismos
eram restritos para proceder à busca de materiais ou
instalações nucleares que não tivessem sido formalmente
declarados.
Isso pode soar um tanto ingênuo, e de fato era. Para
regimes dispostos a ocultar suas atividades ilícitas, a AIEA
era como um policial que faz a ronda de olhos vendados.
Contudo, as perguntas se multiplicavam: por que a AIEA
não contestou a incompletude das declarações feitas pelos
iraquianos? Por que não foram solicitadas inspeções
especiais? Como é que podem ter “escapado” à AIEA as
ambições maiores do Iraque, no plano nuclear?
Essas perguntas têm boas respostas. Além das limitações
impostas à autoridade da agência, havia na época poucas
informações substanciais sobre os programas nucleares
clandestinos do Iraque. Ou, pelo menos, se tais
informações existiam, elas não eram compartilhadas com
a AIEA. Mas, para a verdadeira compreensão da situação, é
necessária uma perspectiva adicional: (1) alguns aspectos
relacionados ao Tratado de Não Proliferação Nuclear, do
qual deriva grande parte da autoridade de verificação da
AIEA; e (2) uma visão de conjunto básica do ciclo de
combustíveis nucleares, a fim de corrigir eventuais
concepções equivocadas.

O TNP, ou Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares,


foi implementado em 1970. A despeito de todas as suas
lacunas, ele permanece sendo um dos acordos que mais
receberam adesão em toda a história. No final de 2010,
189 países eram signatários. Apenas três países – Índia,
Paquistão e Israel – jamais concordaram em assiná-lo, e a
Coreia do Norte retirou sua adesão.
O TNP está estruturado em torno de “três pilares” com os
quais seus signatários estão de acordo. O conjunto desses
“pilares” inclui uma negociação de delicado equilíbrio.
Em primeiro lugar, os países-membros que não possuem
armas nucleares, também conhecidos como Estados sem
armas nucleares (NNWS, na sigla em inglês),
comprometem-se a não buscar ou desenvolver tais armas.
Cada um dos países-membros tem a obrigação de firmar
um acordo bilateral juridicamente compulsório com a AIEA,
conhecido como “acordo de salvaguardas abrangente”.
Segundo as cláusulas, o país promete colocar todas as
suas substâncias nucleares sob a proteção da AIEA, para
garantir, por meio de controles concretos e rigorosos
procedimentos contábeis, que esse material não seja
desviado para a fabricação de armas nucleares. Esse
acordo confere à agência a autoridade de verificar o
cumprimento dos termos.
Em segundo lugar, todos os signatários do TNP se
comprometem a conduzir negociações “em boa-fé”, com a
finalidade de buscar o desarmamento nuclear2. De modo
significativo, isso inclui os cinco Estados que o TNP
reconhece como detentores de armas nucelares: China,
França, Rússia, Reino Unido e Estados Unidos, aos quais se
refere como Estados com armas nucleares (NWS, na sigla
em inglês)3. Os países NWS também se comprometem a
sob nenhuma circunstância ajudar os países NNWS a
adquirir armas nucleares.
O terceiro aspecto é que todos os signatários concordam
em facilitar o uso da energia nuclear para fins pacíficos em
todos os países-membros, com uma particular atenção às
necessidades dos países em desenvolvimento. Isso inclui a
troca de equipamentos relevantes, de substâncias e de
informações científicas e tecnológicas.
O tratado contém inúmeras falhas. Como já apontei, sua
execução é frágil: durante décadas, a expectativa foi que a
AIEA apenas inspecionasse, ou “verificasse”, o que fora
declarado pelos signatários do TNP. Os aspectos do tratado
relacionados ao desarmamento são ainda mais débeis: não
existe nenhum mecanismo capaz de verificar o progresso
prometido pelos membros no que diz respeito às
negociações, nem um órgão de fiscalização, tampouco
qualquer penalidade pelo descumprimento de suas
cláusulas. Por fim, o tratado contém um aparente
paradoxo: ao obedecer à terceira parte da negociação –
facilitando a troca de equipamentos e substâncias
nucleares, além de informações para fins pacíficos –, os
signatários do TNP estão, simultaneamente, aumentando a
capacidade dos países NNWS de buscar armas nucleares,
particularmente quando a tecnologia do ciclo de
combustível nuclear está envolvida.
Esse dilema está relacionado ao duplo potencial da
ciência e da tecnologia nucleares e se encontra no cerne
da diplomacia nuclear. A ciência nuclear é o exemplo
extremo de um dilema clássico: as sociedades humanas
são capazes de usar seus avanços tecnológicos para o bem
ou para o mal. Não importando se seu uso final será uma
nuvem de cogumelo ou um isótopo medicinal utilizado na
cura do câncer, grande parte da ciência e da tecnologia
será exatamente a mesma. As intenções é que diferem: o
conhecimento nuclear adquirido será usado para fins de
agressão militar e ampla destruição? Ou para a obtenção
de um grande número de benefícios nucleares que já são
garantidos aos cidadãos dos países industrializados –
energia e medicina, por exemplo, ou produtividade
agrícola, controle de pragas, controle das águas
subterrâneas, ou testes industriais? Uma coisa é negar aos
outros países a possibilidade de possuir armas nucleares,
porém negar-lhes o direito de usar a ciência nuclear para
fins pacíficos não se justifica de modo algum e anularia por
completo a razão da existência do TNP.
Uma palavra em relação ao ciclo de combustível nuclear:
termos como “enriquecimento”, “conversão de urânio” e
“separação de plutônio” passaram a fazer parte do
vocabulário comum, sendo mencionados em artigos da
imprensa tradicional e em documentos de políticas
públicas. Entretanto, constantemente me deparo com
concepções equivocadas a respeito da natureza, das
intenções e da legitimidade desses processos nucleares.
Para poder entender os interesses envolvidos na
diplomacia nuclear dos anos recentes, um leigo precisaria
ter pelo menos uma compreensão básica do ciclo de
combustível como um todo, assim como quais partes
desse ciclo são mais vulneráveis à proliferação de armas.
Trata-se de tarefa arriscada, mesmo para o mais bem
versado advogado, fazer esclarecimentos sobre tecnologia
nuclear. Portanto, limitarei minha explicação do ciclo de
combustível nuclear a uma série simples de passos.

[1] Mineração: O minério de urânio é extraído da terra.


Assim como ocorre na natureza, o urânio é
predominantemente formado pelo isótopo de urânio-238.
Apenas 0,7% é de urânio-235, que é “físsil”, ou seja, ele
pode sustentar uma reação nuclear em cadeia.
[1] Moagem: O minério é processado através da moagem e
da filtragem química, a fim de produzir o yellowcake, que
constitui um concentrado de urânio.
[2] Conversão: Por meio de uma série de processos
químicos, o yellowcake é transformado em gás
hexafluorido de urânio (UF6), a matéria-prima para o
enriquecimento em centrífugas. Nesta etapa, o UF6 ainda
é considerado “urânio natural”, já que a concentração
relativa de U-238 e U-235 não foi alterada.
[3] Enriquecimento: À medida que as centrífugas são
alimentadas com o UF6, a concentração do U-235 é
aumentada e há um equivalente decréscimo da
concentração de U-238. O enriquecimento aumenta a
capacidade do urânio de produzir energia nuclear.
[4] Produção de combustível: O urânio enriquecido é
convertido em pó, processado em pastilhas de cerâmica
e colocado dentro de varetas de combustível que, em
seguida, serão dispostas em elementos de combustível
que impulsionarão o núcleo do reator.
[5] Armazenamento: Depois de utilizado no reator, o
combustível nuclear empobrecido – em grande parte,
agora, U-238, não havendo U-235 em quantidade
suficiente para sustentar a reação – normalmente é
armazenado em um “reservatório de combustível
queimado”. O combustível empobrecido também contém
1% do plutônio físsil, criado como um subproduto no
reator.
[1] Reprocessamento: Considerando que apenas uma
pequena porcentagem da energia nuclear é utilizada em
um ciclo normal de reator, alguns países reciclam o
combustível queimado, recuperando (ou “separando”) o
urânio e o plutônio para a reutilização.

As centrífugas de gás usadas no enriquecimento de


urânio4 têm a aparência de cilindros compridos e finos,
com canos de descarga embutidos. Elas giram em alta
velocidade – mais de 20 mil r.p.m., o suficiente para que os
átomos do urânio-238, com três núcleos mais pesados do
que o urânio-235, se desloquem para o exterior do tubo e
possam ser separados à medida que saem. No momento
em que as centrífugas múltiplas são alinhadas, ou “em
cascata”, o gás UF6 passa de uma para outra e é
gradualmente “enriquecido” até obter uma porcentagem
mais alta de U-235. Como o U-235 consiste apenas de uma
diminuta porcentagem do urânio natural, é necessário um
grande volume de material bruto para produzir um volume
bastante pequeno de substância enriquecida. Isso faz com
que as centrífugas tenham de permanecer girando durante
semanas ou meses a fio, o que significa que não é fácil
projetá-las ou construí-las e que podem ser fabricadas
apenas com metais especiais, capazes de suportar tal
impacto.
A maioria dos reatores a água leve, que utilizam o
combustível nuclear para a produção de eletricidade,
necessita do urânio enriquecido a um nível de
aproximadamente 3,5% de U-235. O “urânio altamente
enriquecido” (HEU, na sigla em inglês) está relacionado a
qualquer nível de enriquecimento que ultrapasse 20%. O
urânio enriquecido a 90%, ou a uma porcentagem maior,
geralmente é classificado na categoria de arma;
entretanto, muitos reatores de pesquisa em todo o mundo
também usam o combustível de urânio enriquecido a 90%
para fins pacíficos, como por exemplo a produção de
isótopos medicinais.
Contrariando as concepções equivocadas mais comuns,
os passos de 1 a 7 são elementos de um ciclo de
combustível nuclear para fins pacíficos. A despeito do que
artigos da imprensa às vezes possam sugerir, o
enriquecimento de urânio (ou a separação de plutônio) não
é um indicador inerente da intenção de desenvolver armas
nucleares. Dado que o plutônio e o HEU são as substâncias
que podem ser usadas de modo direto nas armas
nucleares, os dois aspectos do ciclo de combustível mais
diretamente associados à proliferação são,
respectivamente: o reprocessamento, no qual o plutônio é
separado; e o enriquecimento, que pode produzir o HEU.
Porém, tanto o HEU quanto o plutônio também podem ser
usados como combustíveis do reator, a fim de gerar
eletricidade. Assim, nenhuma dessas operações de ciclo de
combustível é “ilegal”; todas elas fazem parte dos direitos
de qualquer Estado signatário do TNP. Cabe atentar para
algumas advertências: as instalações e atividades
relevantes devem ser “declaradas” ou comunicadas à
AIEA, e meios de proteção devem ser empregados a fim de
verificar se o material utilizado está devidamente
registrado, e não é desviado para a utilização em armas
nucleares.
Uma dúzia de países realiza operações de ciclo de
combustível nuclear. Portanto, um número razoável de
Estados sem armas nucleares possui reservas de plutônio
(separadas por meio do reprocessamento de combustível
nuclear queimado) que podem ser prontamente aplicadas
a um programa de armas nucleares. Assim, à medida que
um número maior de países se industrializa e o
conhecimento sobre a energia nuclear é disseminado,
aumenta a probabilidade de mais Estados levarem em
consideração estratégias econômicas e de outra natureza
associadas à utilização do ciclo de combustível nuclear.
É nesse ponto que a situação se complica. A
disseminação da tecnologia nuclear vem acompanhada de
um risco crescente de sua proliferação. Assim, os Estados
que já dominam o ciclo de combustível nuclear não estão
dispostos a renunciar a esse conhecimento, mas preferem
que nenhum outro país os adquira. Os países sem tal
tecnologia ressentem-se dessa avareza. E, de fato, sob as
cláusulas de negociação do TNP, os países detentores de
tecnologia nuclear são obrigados a compartilhá-lo. A
queixa vem, sobretudo, do fato de os Estados com tal
tecnologia não terem cumprido sua parte no trato:
negociar “em boa-fé” e “o mais breve possível” condições
que conduzam ao desarmamento nuclear. Os Estados que
detêm a tecnologia gozam de um status invejado pelos
demais, já que as armas nucleares tornaram-se sinônimo
de influência e poder políticos, bem como uma segurança
contra possíveis ataques.
Olhando em retrospecto, a emergência dos primeiros
programas nucleares clandestinos no Iraque e na Coreia do
Norte, no início da década de 1990, talvez não devesse
causar surpresa. Com a Guerra Fria chegando à sua fase
final, não era mais possível se fiar no equilíbrio de poder
entre a União Soviética e os Estados Unidos para manter
uma relativa paz. Países não explicitamente protegidos sob
um “guarda-chuva nuclear”, como era o caso dos
membros da OTAN ou de outros aliados dos EUA, talvez
estivessem se deparando, e de modo justificável, com uma
crescente sensação de insegurança. É possível política de
segurança mais eficaz do que o desenvolvimento oculto de
armas nucleares?

É nesse contexto que o programa nuclear do Iraque foi


descoberto no final da Guerra do Golfo, em 1991. Embora
os EUA tenham apontado as emergentes ambições
nucleares do Iraque como uma das muitas razões para
empreender uma ação militar5, na verdade, sabia-se muito
pouco sobre o verdadeiro potencial nuclear daquele país
antes da guerra. Fontes do Serviço de Inteligência norte-
americano teriam afirmado que o Iraque supostamente
tinha ambições em relação às armas nucleares – baseadas,
entre outros indícios, em tentativas do país de adquirir
componentes para o enriquecimento nuclear e outras
tecnologias nucleares de vários países europeus6. Essa
informação, contudo, não foi apresentada à AIEA. Até dois
meses antes da guerra, inúmeros veículos da mídia
começaram a divulgar reportagens irrefletidas e
inconsistentes sobre o potencial nuclear do Iraque7. Porém,
o melhor indício da extensão das informações secretas em
poder do Ocidente, no período anterior à guerra, é a
afirmação de que os Estados Unidos tinham apenas duas
instalações nucleares em sua lista de alvos para
bombardeio, ao passo que, na inspeção pós-guerra, 18
instalações foram identificadas pela AIEA. Na realidade, foi
a invasão e a ocupação do Kuwait por Saddam Hussein que
ofereceu à coalizão liderada pelos EUA a justificativa para
a invasão.
Em 3 de abril de 1991, menos de dois meses depois do
final da guerra, o Conselho de Segurança da ONU emitiu
uma resolução com um extenso conjunto de regras a
serem cumpridas pelo Iraque. Naturalmente, ela incluía
obrigações tais como respeitar os limites da fronteira entre
Iraque e Kuwait, a devolução de bens e propriedades do
Kuwait, e indenizá-lo pelos feridos, por perdas e danos.
Mas parte significativa da resolução dedicava-se às
demandas do Conselho para que o Iraque se livrasse das
armas de destruição em massa.
Em relação à questão nuclear, a Resolução 687 exige do
Iraque a total honestidade – que o país faça uma
declaração completa de todas as suas instalações
nucleares e de suas substâncias nucleares classificadas na
categoria de armas. Ela solicita ao diretor-geral da AIEA
que inicie inspeções imediatas baseadas nas declarações
do Iraque e que desenvolva um plano dentro de 45 dias
para destruir ou retirar do país quaisquer instalações
industriais associadas a armas nucleares. A resolução
instala também a UNSCOM, Comissão Especial das Nações
Unidas, à qual foi conferida uma missão semelhante,
relacionada aos programas de armas biológicas e químicas
e sistemas de entrega de mísseis de longo alcance do
Iraque8.
Tanto a AIEA quanto a UNSCOM receberam carta branca
para buscar e eliminar os programas de armas de
destruição em massa do Iraque “a qualquer momento, em
qualquer lugar”. Do ponto de vista de um inspetor, tal
medida parecia idílica. Mas somente funcionou porque o
Iraque tinha sido recentemente derrotado e não dispunha
mais de recursos militares. Nenhum outro país teria
aceitado tais condições.
A primeira equipe de inspeção da AIEA, liderada pelo
inspetor-chefe Demetrius Perricos, aterrissou em Bagdá em
14 de maio de 1991, dirigindo-se diretamente para a
instalação nuclear de Tuwaitha. Após ver uma série de
imagens aéreas, a equipe esperava deparar-se com um
cenário de destruição após a Guerra do Golfo. E, de fato,
todos os principais edifícios de Tuwaitha haviam sido alvo
de bombardeios.
O primeiro objetivo dos inspetores era localizar e
proteger o combustível de urânio altamente enriquecido,
destinado aos dois reatores de pesquisa. Os peritos
técnicos iraquianos pareciam bastante dispostos a
colaborar. Revelou-se, então, para a surpresa dos
inspetores, que o combustível irradiado havia sido
deslocado no auge do bombardeio, segundo os iraquianos.
Eles reenterraram esse combustível em poços de concreto
construídos apressadamente, numa gleba de terra sem
qualquer característica marcante, no distrito vizinho de
Garf al Naddaf, para evitar que fosse destruído ou perdido.
Com a colaboração dos iraquianos, os inspetores se
dispuseram, de imediato, a localizar e a iniciar a
verificação de todas as substâncias nucleares em questão,
baseados em inventários elaborados antes da guerra.
No entanto, atingir o segundo objetivo essencial –
desvendar quaisquer atividades nucleares não declaradas
anteriormente – se revelaria uma tarefa nada simples.
Aparentemente, sem contar toda a destruição causada
pelos bombardeios, os iraquianos foram além da
destruição de edifícios e construções. Tudo indicava que os
equipamentos de alguns deles haviam sido retirados e
havia sinais de registros operacionais e outros documentos
queimados. Certificar-se quanto ao objetivo das instalações
de Tuwaitha que não tinham sido alvo de inspeções prévias
da AIEA revelou-se uma tarefa complicada.
Observações de natureza semelhante foram feitas em
outra instalação, em Tarmiya, ao norte de Bagdá, onde
havia boatos sobre atividades nucleares. Os iraquianos
afirmaram que as instalações de Tarmiya eram usadas
para a manufatura de transformadores elétricos. Porém, na
avaliação da equipe da AIEA, tal explicação não condizia
com certos fatos: por exemplo, a enorme quantidade de
carga elétrica exigida pelas instalações de Tarmiya, bem
como o volume e a disposição dos equipamentos elétricos
de distribuição. Quando tais discrepâncias eram
apontadas, os colegas iraquianos não conseguiam
apresentar explicações plausíveis (ou se recusavam a
tanto).
Já em sua primeira inspeção, começavam a ser
delineados os desafios que os inspetores de salvaguarda
da agência teriam de enfrentar.
Aqui, mais uma vez, é importante que se corrija uma
concepção comumente equivocada. Os inspetores da AIEA
não são detetives, tampouco agentes de segurança ou
policiais. Estão acostumados a buscar e a apontar
discrepâncias qualitativas – incluindo ocultamentos
deliberados – e não se furtam a enfrentar o grupo que está
sendo inspecionado, mediante a apresentação de provas.
Mas o estilo deles é respeitoso, não importando se o alvo
de inspeção é o Canadá, a África do Sul, o Japão ou a
Holanda – ou, nesse caso, o Iraque. De minha parte, tenho
uma firme convicção de que tal respeito, característico das
inspeções da AIEA, tem se mostrado, repetidas vezes, uma
importante qualidade da agência.
Além disso, a AIEA não é uma agência de espionagem.
Nossos inspetores não se envolvem com espionagem,
tampouco usam métodos fraudulentos para chegar à
verdade. Não temos acesso ao banco de dados das
equipes policiais, da Interpol ou de serviços de inteligência
nacionais, a menos que essas organizações optem por
colocar à nossa disposição informações que possam ser
relevantes. As informações são disseminadas dentro da
AIEA apenas à medida que a necessidade surge.
No início da década de 1990, no Iraque, na Coreia do
Norte e em outros países, o relacionamento entre os
serviços de inteligência e as organizações de inspeção
internacional ganhou contornos de uma dança excêntrica.
Em contrapartida, por terem compartilhado informações
privilegiadas com a AIEA e a UNSCOM, os serviços de
inteligência demandavam o acesso privilegiado aos
resultados da inspeção. Estava perfeitamente claro o
porquê disso: a AIEA e a UNSCOM tinham um maior acesso
in situ e conseguiam, desse modo, fazer uso das
informações confidenciais com alta eficiência,
desvendando e relatando os fatos de uma maneira que os
serviços de inteligência não eram capazes de fazer. Porém
a AIEA se recusava a aceitar um acordo nesses termos. O
fluxo de informações, pela própria necessidade da
circunstância, deveria ser de mão única: para manter sua
integridade e legitimidade, a AIEA não poderia divulgar
informações privilegiadas ao serviço de inteligência de um
país, como uma espécie de favor.
A agência se mostrava inflexível em relação à sua
independência, situação que, às vezes, criava conflitos
com alguns Estados. Isso ficou evidente durante a
negociação da Resolução 687 do Conselho de Segurança,
momento em que os Estados Unidos tentaram conferir à
UNSCOM a liderança do processo de inspeções, em
detrimento do interesse da agência. Para mim, os motivos
eram claros. A UNSCOM era um órgão novo; por
necessidade, ela seria uma organização ad hoc, um órgão
subsidiário ao Conselho de Segurança, cujos atores
principais seriam capazes de exercer grande influência
sobre suas operações. Os inspetores da UNSCOM foram
rapidamente selecionados em órgãos e laboratórios
governamentais, que lhes ofereciam as habilidades
necessárias a essas tarefas (familiaridade com toxinas
biológicas e químicas e com a tecnologia de mísseis de
longo alcance). Assim, seria mais fácil infiltrar-se na
UNSCOM do que na AIEA, uma organização já estabelecida,
com conhecimentos na área nuclear e com ação
independente.
Na condição de consultor jurídico da agência, à época eu
estava em Nova York durante a negociação da resolução.
Encontrei-me várias vezes com Robert Gallucci, diplomata
e acadêmico norte-americano e futuro vice-diretor
executivo da UNSCOM. A AIEA tentou, a todo custo, insistir
em sua independência para o manuseio dos arquivos
nucleares. Em grande medida, fomos bem-sucedidos.
Posteriormente, Gallucci reconheceu a existência de
divergências internas em certos círculos governamentais
norte-americanos, nos quais reinava uma grande
insegurança quanto à capacidade da AIEA em lidar com
essa tarefa. Por outro lado, para outras pessoas, a
preocupação era a de que conferir à UNSCOM a autoridade
principal significaria causar danos à credibilidade da AIEA9.
A linguagem de comprometimento contida na resolução
soava bastante branda: à AIEA caberia cumprir sua missão
“com a assistência e a cooperação da Comissão Especial”.
Porém, para Gallucci, essa linguagem dava à UNSCOM o
poder de colocar o “focinho de seu camelo dentro da
barraca” da AIEA10.
Decerto, era importante que existisse cooperação entre
as duas agências, particularmente na área logística.
Considerando que muitas das instalações que nós
devíamos inspecionar haviam sido bombardeadas, havia
riscos de segurança associados a arsenais não detonados.
A UNSCOM recrutara peritos em descarte de arsenais
explosivos para acompanhar as equipes de ambas as
agências. De sua parte, ela tinha muito a aprender com a
organização e a disciplina das equipes da AIEA, que
vinham trabalhando juntas havia muitos anos e, em alguns
casos, estavam familiarizadas com seus colegas iraquianos
e com o modo iraquiano de operar.
Não resta dúvida de que as personalidades envolvidas
influenciaram o relacionamento entre as duas agências.
Hans Blix, o então diretor-geral da AIEA, ocupara o posto
de ministro das Relações Exteriores da Suécia. Rolf Ekeus,
que foi nomeado diretor da UNSCOM, também foi
diplomata sueco. No que diz respeito às relações
exteriores, Blix ocupava um posto mais alto na hierarquia,
porém visivelmente não gostava de receber instruções de
Ekeus em assuntos nos quais a UNSCOM assumira a
liderança. Tampouco ajudava o fato de a UNSCOM ter sua
sede em Nova York, onde recebia grande parte da atenção
da mídia, em um momento em que a AIEA era um tanto
quanto obscura. O relacionamento entre ambas foi
facilitado, em parte, por Maurizio Zifferero, cientista
italiano que ocupava o cargo de diretor do Grupo de Ação
da AIEA no Iraque, mostrando grande eficácia na resolução
de conflitos entre as duas organizações.

Na época da segunda inspeção no Iraque, entre 22 de


junho e 4 de julho de 1991, o cenário já estava preparado
para o drama. Um determinado serviço de inteligência
partilhou imagens de reconhecimento com a AIEA que
mostravam um aumento repentino das atividades
iraquianas ocorridas imediatamente após a partida da
primeira equipe de inspeção, numa área próxima às
instalações de Tuwaitha. Um conjunto de grandes discos
metálicos fora desenterrado do local e levado para um
novo lugar.
Também vieram à tona informações sobre um suposto
programa de enriquecimento que os iraquianos vinham
conduzindo em segredo, por meio de uma técnica
denominada “separação de isótopo eletromagnética”
(EMIS, na sigla em inglês). Nesse método, era usada uma
máquina chamada “calutron”, uma espécie de
espectrômetro de massas posicionado entre eletroímãs de
grande escala, inventado na Universidade da Califórnia. Tal
processo não tem grande eficácia e consome uma
quantidade enorme de eletricidade. Especialistas que já
conheciam o programa Calutron do Projeto Manhattan11
examinaram as imagens dos inspetores da AIEA, bem
como relatórios sobre as instalações de Tarmiya, e
concluíram que havia indícios de operações de
enriquecimento do tipo EMIS.
Os iraquianos continuavam negando a posse de um
programa não declarado de enriquecimento de urânio,
portanto era importante encontrar os equipamentos que
pudessem comprovar tal fato. Desde cedo, a segunda
inspeção transformou-se numa espécie de caça. Afirmou-
se que o novo local dos discos desenterrados, suspeitos de
serem ímãs para processamento por EMIS, era um campo
militar. Quando a equipe da AIEA chegou, conforme estava
agendado, o acesso lhes foi negado. Seus membros
protestaram junto aos altos escalões do governo iraquiano
e, três dias depois, o acesso foi autorizado. A essa altura,
entretanto, o equipamento não estava mais no local.
Alguns dias depois, a equipe recebeu informações sobre
a nova localização: outro amplo campo militar. Dessa vez,
um grupo de inspetores da AIEA apareceu sem aviso
prévio. Novamente, foram barrados na porta. Porém, dois
membros da equipe subiram pela escada externa da torre
de água ao lado; do topo, puderam avistar um comboio de
caminhões deixando o local pela saída dos fundos do
campo. Dois outros integrantes passaram a persegui-los
em um carro da ONU, “costurando” caoticamente por entre
os mercados locais, até conseguir encontrar a estrada
correta. A persistência rendeu frutos: quando acharam o
comboio, descobriram cerca de cem veículos carregados
com equipamentos aparentemente de natureza nuclear,
grande parte dos quais nem chegara a ser coberto, na
pressa da fuga. Foi um avanço significativo ter apanhado
os iraquianos nessa flagrante tentativa de ocultamento.
No início de julho, Blix e eu viajamos para Bagdá. Na
ocasião, éramos membros de uma delegação de alto nível
formada pelo secretário-geral da ONU, Javier Pérez de
Cuéllar. Para grande desgosto de Blix, a delegação era
chefiada por Ekeus. Nosso objetivo era pressionar o
governo iraquiano para que deixasse de impedir o
processo de inspeção e apresentasse uma declaração
completa de seu programa nuclear, sem nada ocultar.
A princípio, os iraquianos continuavam negando. O
presidente do Comitê de Energia Atômica iraquiano, Dr.
Human Abdel Khaliq Ghaffour12, insistia em que Blix e eu
confiássemos nas palavras dos iraquianos. Quando
estávamos juntos no carro, ele nos jurou – apesar das
provas no sentido contrário – que o Iraque não realizara
quaisquer atividades de enriquecimento não declaradas.
Insistiu em dizer que o programa nuclear iraquiano era
totalmente pacífico.
Mas a pressão internacional era crescente. O Conselho de
Segurança da ONU estabeleceu um prazo, deixando claro
que estava pronto para autorizar ações extras. Uma nova
equipe de inspeção da AIEA chegou ao local, preparada
para seguir novas pistas.
Em 7 de julho, as autoridades iraquianas finalmente
cederam, fornecendo à AIEA uma extensa lista de
equipamentos, acompanhada de sua localização. Essa
nova declaração incluía não apenas o enriquecimento do
tipo EMIS, mas também atividades de enriquecimento
químico e em centrífugas, bem como o reprocessamento
que haviam realizado a fim de separar alguns poucos
gramas de plutônio. A declaração incluía ainda uma lista
de instalações de manufatura e de manutenção. Revelava
a existência de quase 400 toneladas de urânio não
enriquecido, parte das quais fora importada do Brasil, do
Níger e de Portugal, mas que jamais tinham sido
declaradas à AIEA.
Guardo uma lembrança nítida de uma cena dessa visita.
Blix e eu havíamos acompanhado os membros de uma
equipe de inspeção, que incluía funcionários tanto da
UNSCOM quanto da AIEA, a um local no meio do deserto.
Os iraquianos nos mostraram, então, o que alegavam ser
equipamentos calutron, que haviam destruído e enterrado
para que não fossem detectados. Estávamos em pleno
verão iraquiano, com altíssimas temperaturas; nossos
inspetores, tendo de medir e catalogar aqueles enormes
pedaços de metal, claramente tinham diante de si uma
tarefa exaustiva.
De modo abrupto, David Kay13 – um ex-gerente de nível
médio no Programa de Cooperação Técnica da AIEA, com
pouca ou nenhuma experiência prévia em inspeções de
salvaguardas – decidiu que um dos principais cientistas
iraquianos devia ser interrogado ali mesmo. Erguendo o
braço de um modo melodramático, gritou: “Vamos dar
início às investigações!”. Blix e eu ficamos constrangidos.
De imediato, chamamos Kay de lado e lhe dissemos que
não era esse o nosso estilo de realizar as inspeções. Nesse
caso, nosso objetivo era trabalhar a fim de conseguir a
plena cooperação da parte dos iraquianos. Para nós, a
intimidação e a humilhação não eram táticas úteis.
Na época, a nomeação de Kay como inspetor de
salvaguardas da AIEA era, para mim, um mistério. Até
onde eu sabia, ele não tinha nenhuma experiência
científica ou tecnológica; sua formação era na área de
Relações Internacionais. Ele me parecia uma pessoa
brilhante, cortês e articulada. Mas, assim que a AIEA o
nomeou como integrante da Equipe de Ação no Iraque, ele
visivelmente passou por uma metamorfose. Viajamos
juntos para Nova York na época em que estava sendo
discutida a implementação da Resolução 687. Sem me
consultar nem me avisar previamente, Kay havia
agendado seus próprios encontros com autoridades do
governo dos EUA, um notável e radical desvio em relação
às práticas usuais da AIEA.
Analisando em retrospecto, é bem possível que o serviço
de inteligência norte-americano estivesse trabalhando por
intermédio de Kay para passar informações que pudessem
ser utilizadas pela equipe de ação da AIEA no Iraque. Sua
nomeação para integrar a equipe da AIEA tinha,
inicialmente, objetivos administrativos e gerenciais; no
entanto, lhe foi atribuída, de algum modo, a função de
liderar duas das inspeções mais importantes. Se Blix ou
Zifferero sabiam de alguma conexão entre Kay e o serviço
de inteligência dos EUA, não tenho conhecimento.
O estilo de inspeção de Kay – ao qual Robert Gallucci se
referiu como “estilo caubói”14 – era, felizmente, incomum
entre os inspetores da AIEA, mas com a UNSCOM a
situação era diferente. Na mesma viagem ao deserto,
testemunhei a cena de um importante cientista iraquiano
em prantos, indignado com o tratamento que recebera de
um inspetor da UNSCOM, que o acusara publicamente de
ter mentido. Mais tarde, na viagem de ônibus voltando do
deserto, olhei ao redor. Havia inúmeros norte-americanos
no ônibus. Muitos deles eram provenientes de laboratórios
domésticos nos EUA. Tecnicamente, eles eram altamente
qualificados, mas não faziam a menor ideia de como
deviam conduzir inspeções internacionais, tampouco das
nuances de como se comportar diante de culturas
diferentes. A julgar pelo tom insolente de suas conversas,
eles claramente acreditavam que, tendo sido enviados
para um país derrotado, tinham a liberdade de comportar-
se como bem entendiam.
Conversei com algumas das pessoas sentadas perto de
mim, no ônibus. Eu lhes dei informações básicas sobre a
abordagem feita pela AIEA: um profissionalismo com
marcas de tenacidade e respeito. Percebi que esse
profissionalismo era uma característica de nossos
inspetores e havia sido desenvolvido ao longo de anos de
experiência. Eu era crítico à rispidez que notava no
comportamento dos membros da UNSCOM.
O que se viu na sequência foi impressionante. Uma
versão distorcida da conversa foi retransmitida e ganhou
impulso. Finalmente, chegou à revista New Yorker como
relato supostamente factual, em um artigo de Gary
Milhollin, diretor do Projeto Wisconsin sobre o controle de
armas nucleares:

ElBaradei, recém-chegado àquele cenário, incorporava a tradição da AIEA.


Diante de um incrédulo grupo de inspetores, ele anunciava, como lembra
Kay: “Os iraquianos não possuem um programa de enriquecimento de
urânio. Sei disso porque eles são meus amigos e me garantiram isso”.
ElBaradei estava errado, é claro. Mas estava seguindo as instruções
determinadas por seus superiores da AIEA.15

Não afirmei nada disso. Os iraquianos já haviam


começado a admitir que operavam por meio de calutrons,
e nós tínhamos acabado de ver enterrado o material que
eles alegavam ser componentes de calutron. Começavam
a surgir, de vários lugares, provas de componentes e
instalações associadas ao enriquecimento. Teria sido um
tanto quanto estúpido de minha parte insistir na
inexistência desses programas. No entanto, isso não afetou
aquilo que foi publicado, nem mesmo as histórias
associadas ao episódio que circularam, as quais falavam
na incompetência da AIEA.
Alguns inspetores da UNSCOM continuavam a abusar de
sua autoridade, sem o devido respeito a aspectos
religiosos e culturais. Eles irrompiam em mesquitas e
igrejas, sem provas, a fim de buscar armas de destruição
em massa. Faziam inspeções durante feriados religiosos
locais, quando não havia urgência para tal procedimento.
Posteriormente, insistiram na necessidade de inspecionar
os palácios de Saddam Hussein, não porque tivessem
sólidas pistas fornecidas por serviços de inteligência, mas
aparentemente apenas para mostrar que eram capazes de
tais ações. Eu me perguntava, às vezes, como eles se
sentiriam se estivessem no lugar dos iraquianos.
Embora a maioria dos iraquianos sentisse repugnância a
Saddam Hussein por seu cruel estilo de governar, eles –
como grande parte do mundo árabe – viam essas ações
como uma afronta à dignidade dos iraquianos e como
humilhação. Longe de estimular a cooperação no Iraque, o
comportamento invasivo ao estilo “caubói” dos inspetores
naturalmente provocou um crescente ressentimento em
meio aos iraquianos, sobretudo porque essas intrusões
arbitrárias jamais deram resultado.
O verão de 1991 já estava no fim, e ainda não tínhamos
provas concretas sobre as intenções do Iraque em relação
às armas nucleares. Estava claro que o país ocultara suas
atividades de enriquecimento de urânio e de separação de
plutônio. Porém, eles continuavam a sustentar a posição
de que a finalidade do programa era pacífica.
O momento decisivo ocorreu no final de setembro,
durante a sexta inspeção da AIEA. Novamente,
informações secretas valiosas nos tinham sido
transmitidas, dessa vez apontando para dois edifícios no
centro de Bagdá, escritórios do Ministério da Indústria e da
Industrialização Militar. Um lapso no sistema de segurança
iraquiano deixara uma significativa coleção de registros
nesses edifícios. Quando os inspetores chegaram ao local,
sem aviso prévio, puderam analisar e apoderar-se de
muitos desses documentos.
Os iraquianos proibiram a equipe de deixar o local com
esses documentos; no entanto, os inspetores – liderados
por David Kay, da AIEA, e Robert Gallucci, da UNSCOM –
recusaram-se a ceder, permanecendo acampados no
estacionamento. O impasse durou três dias e três noites e
foi televisionado ao vivo. A cena ficou famosa como o
“confronto do estacionamento”.
No final, os iraquianos cederam. A documentação
apreendida incluía um relatório de atividades que, em
linhas gerais, continha os esforços iraquianos em relação
ao desenvolvimento de armas. Embora o documento
provasse que ainda precisariam de um ou dois anos até
que pudessem construir uma arma nuclear, ele
demonstrava claramente as intenções do governo
iraquiano, provando que esse aspecto de seu programa
nuclear era amplo, bem organizado e com bases sólidas.
Meses depois, quando Kay recebeu um prêmio da
agência, o embaixador iraquiano na AIEA, Dr. Rahim al-
Kital, apresentou uma queixa oficial a Blix. A queixa
denunciava a ocorrência de uma série de ações específicas
– por exemplo, os inspetores teriam jogado documentos
oficiais no chão e pisado sobre eles, ou ameaçado trazer
aviões de guerra dos EUA. De acordo com o memorando
de Al-Kital, membros da equipe de inspeção teriam
derrubado cercas, cortado linhas telefônicas e “aparecido
nus no pátio do edifício, à vista dos moradores dos
apartamentos residenciais ao redor”16.
Essas acusações jamais foram confirmadas. Mas ficou
claro que Kay e os outros membros da equipe julgavam
necessária alguma dose de agressividade, a fim de
conseguir a cooperação dos iraquianos. Embora no caso do
confronto no estacionamento possa ser usado o argumento
de que certo grau de intimidação era justificado e tinha
eficácia, em geral creio que o uso de tais táticas é, em
última instância, improdutivo. A longo prazo, uma
abordagem agressiva e arrogante destrói a cooperação.
Independentemente de suas motivações, o
comportamento da equipe deixou uma impressão
duradoura, particularmente no Iraque e no mundo
muçulmano. Após acabar de perder uma guerra, os
iraquianos não tinham outra escolha a não ser aceitar tais
comportamentos.
No entanto, a ação mais prejudicial foi a decisão tomada
por Kay e Gallucci de enviar ao Departamento de Estado
dos EUA o documento decisivo, antes que a AIEA ou a
UNSCOM o tivessem recebido. Gallucci argumentou que
eles agiram dessa forma pelo fato de essa linha de
comunicação ser “mais confiável”17. Entretanto, o
resultado dessa ação causou danos à reputação de ambos
os órgãos não apenas aos olhos dos iraquianos, que
acusaram a agência de ter se transformado num “órgão de
inteligência disfarçado de científico sob a tutela dos
Estados Unidos e seus aliados”, como também em toda a
comunidade internacional. Apesar do amplo apoio
internacional dado às inspeções, os Estados-membros
estavam atentos ao modo como as inspeções vinham
sendo conduzidas, e muitos deles tinham grande
habilidade em detectar quaisquer indícios de que os
inspetores internacionais estavam conspirando junto aos
EUA ou a outros serviços de inteligência. Essa percepção
continuaria a atormentar a UNSCOM, em particular, e
terminaria levando ao seu colapso.
A série posterior de inspeções nucleares no Iraque
percorreu três caminhos paralelos. O primeiro deles
buscava aprofundar nossa compreensão dos aspectos
relacionados às armas no programa nuclear iraquiano,
incluindo a identificação de locais planejados para testes
com altos explosivos. Um segundo caminho dava início à
preparação para a remoção do urânio altamente
enriquecido do país18. Um terceiro caminho tinha como
foco a destruição dos equipamentos de enriquecimento
que haviam sido acumulados. Rotores de centrífugas foram
destruídos. Ímãs foram retalhados por meio de
ferramentas de corte especializadas, feitas de plasma.
Aparelhos usados no manuseio de material nuclear, tais
como células quentes e caixas de luvas, foram inutilizados
com o rompimento dos cabos de controle e o
preenchimento de contêineres com cimento.
Depois de pouco menos de um ano no local, o
cumprimento da missão da AIEA no Iraque, sob a
Resolução 687, estava bem encaminhado. A origem do
programa de armas nucleares de Saddam Hussein tinha
ficado clara – assim como, em grande parte, suas
motivações. Os aspectos clandestinos do programa
começaram a aparecer em 1982, pouco depois do
bombardeio do reator de pesquisa de Osirak por Israel –
reator este que estava sob a salvaguarda da AIEA antes de
começar a operar. Fossem quais fossem as inclinações
prévias de Hussein e seus colegas para buscar as armas de
destruição em massa, isso só foi intensificado pela
humilhação provocada por essa experiência. O perceptível
desequilíbrio da região, sendo Israel o único detentor de
armas nucleares, ficou em grande evidência. A
condenação da ação israelense pelo Conselho de
Segurança, como clara violação do Direito Internacional,
não teve a mínima consequência. Israel simplesmente
ignorou as solicitações do Conselho de que colocasse suas
próprias instalações nucleares sob a salvaguarda da AIEA e
de que o Iraque fosse indenizado. Assim, Saddam Hussein
tomou para si a responsabilidade de enfrentar o problema.
Somos testemunhas, hoje, do resultado de tudo isso19.

Logo após a descoberta do programa nuclear clandestino


do Iraque, fiz duas visitas a Washington e tive várias
reuniões com indivíduos do Congresso e do Poder
Executivo. A pergunta que todos me faziam era: por que,
ao longo dos anos, a construção do programa nuclear não
declarado do Iraque não fora detectada pela AIEA?
Respondi de modo claro sobre as falhas do sistema.
Enfatizei que a agência deveria ter maior autoridade
jurídica. O momento era oportuno. Ninguém seria capaz de
argumentar que o sistema de salvaguardas do TNP
funcionava de modo adequado. O programa iraquiano fora
revelado somente depois de sua derrota militar.
De volta a Viena, na Secretaria da AIEA, começamos a
elaborar o conceito de um modelo de Protocolo Adicional, a
fim de dar maior solidez e maior clareza à autoridade de
verificação da agência dentro dos países. Da forma como
foi concebido, o Protocolo Adicional seria um adendo ao
acordo de salvaguardas que cada país-membro do TNP
devia assinar com a AIEA.
A iniciativa era complexa: uma mescla de considerações
técnicas, jurídicas e sobre linhas de ação. Um foco
frequente de debates era: em que medida os Estados-
membros seriam capazes de tolerar as inspeções? Não se
tratava de uma questão nova. No momento de negociação
do TNP, uma questão problemática central era a falta de
disposição dos países para conferir a excessiva autoridade
de inspeção da AIEA20. A descarada dissimulação
protagonizada pelo Iraque deixara claro que a
implementação da salvaguarda internacional por meio de
um “código de honra” não era mais uma medida
adequada; não bastava tampouco inspecionar apenas
aquilo que os países declaravam; a autoridade da AIEA
também não bastava. Porém tal realidade, embora fosse
amplamente reconhecida, não nos dava nenhuma garantia
de que os Estados-membros se sujeitariam a uma inspeção
mais ostensiva.
Infelizmente, o processo de desenvolvimento do modelo
do Protocolo Adicional causou um desentendimento entre
Blix e mim. Eu era favorável ao envolvimento dos Estados-
membros. Blix, por sua vez, defendia que se deixasse o
desenvolvimento do protocolo a cargo da secretaria. Nós
possuíamos os conhecimentos necessários, argumentava
ele. Os funcionários da AIEA deveriam esboçar um projeto
do documento, trazê-lo para a apreciação do Conselho de
Governadores – composto de representantes de 35
Estados-membros – e continuar com um processo de
análise e revisão até que ele fosse aprovado. Na opinião de
Blix, deixar a primeira versão do documento a cargo dos
Estados-membros era um indício de que o protocolo não
iria longe.
Logo ficou claro que a abordagem de Blix não estava
funcionando. Para poderem aceitar o conceito do Protocolo
Adicional, os Estados-membros deveriam envolver-se em
sua criação. Propus a Blix que criássemos um grupo de
trabalho com o envolvimento dos membros do Conselho.
Blix mostrou total reticência em relação à ideia.
Vários Estados-membros passaram a interpretar a sua
própria exclusão como uma falta de vontade da parte da
AIEA de desenvolver aquilo que claramente se tornaria um
mecanismo de políticas decisivo e capaz de exercer
influências. Representantes de um grupo de dez países
ocidentais, aos quais nos referíamos como “os anjos
brancos”, devido ao seu firme apoio à não proliferação, me
contactaram. Queriam que eu pedisse a Blix que
abandonasse o “apego” da Secretaria ao Protocolo
Adicional, permitindo um envolvimento do Conselho. É
claro que falei com Blix a esse respeito, e é claro que ele
não gostou do fato de esses representantes não terem
falado diretamente com ele.
Esse incidente um tanto quanto trivial representou um
marco nas claras tensões que continuariam a existir entre
nós dois. Talvez ele tenha achado que eu estava agindo às
suas costas. De qualquer modo, foi lamentável – sobretudo
porque foi Blix quem me contratou para trabalhar para a
agência, e foi sob sua supervisão que eu rapidamente
escalei os degraus da hierarquia interna, passando de
consultor jurídico a assistente do diretor-geral de Relações
Exteriores.
A controvérsia prosseguiu a portas fechadas. Por fim, o
presidente do Conselho à época, o embaixador canadense
Peter Walker, simplesmente informou a Blix que ele
assumiria a tarefa, solicitando o apoio da Secretaria.
Richard Hooper, um diretor do Departamento de
Salvaguardas que tinha bastante familiaridade com os
conceitos de salvaguarda, foi nomeado chefe do pessoal
técnico. Quanto a mim, passei a atuar como líder em
questões jurídicas e na elaboração de políticas. O
presidente do Conselho presidia também o grupo de
trabalho. Blix não compareceu a nenhuma das sessões. Era
uma tarefa longa e complicada, diante da qual muitos
governos se colocavam em postura defensiva. As batalhas
mais acirradas eram as políticas; em grande parte, o
sucesso se devia à hábil diplomacia praticada por vários
dos principais protagonistas.
Em 13 de maio de 1997, o modelo do Protocolo Adicional
foi finalmente aprovado pelo Conselho de Governadores da
AIEA. Tratava-se de um decisivo instrumento jurídico que
fortaleceria a eficácia do sistema de salvaguarda do TNP.
Então, o que havia mudado? Nos países que adotaram o
Protocolo Adicional, os inspetores da AIEA passaram a ter
maior liberdade in situ, com maior acesso às informações e
aos locais inspecionados, podendo agora realizar uma
busca mais eficaz de instalações e substâncias nucleares
não declaradas. No passado, a AIEA teoricamente podia
recorrer ao seu direito de buscar instalações e substâncias
não declaradas por meio de um mecanismo de “inspeção
especial”. No entanto, era difícil convocar tais inspeções, e
o mecanismo praticamente não era colocado em prática. O
Protocolo Adicional permitia maior acesso às inspeções de
rotina.
A adoção do modelo de Protocolo Adicional, um marco
importante na história da salvaguarda nuclear, tinha o
potencial de provocar uma grande mudança. Os países que
tinham em vigor apenas um acordo de salvaguarda
esperavam que a AIEA lhes desse uma garantia de que as
instalações e as substâncias nucleares declaradas não
seriam desviadas para finalidades não pacíficas. Mas, para
os que passaram a adotar o Protocolo Adicional, a AIEA
também seria capaz de proporcionar uma segurança
igualmente importante no tocante à ausência de
instalações e materiais nucleares não declarados.
Havia uma armadilha: enquanto o acordo de salvaguarda
era compulsório para os membros do TNP, o Protocolo
Adicional era um mecanismo facultativo. E permanece
sendo, até hoje. Os membros do TNP não são obrigados a
aceitá-lo, por mais que a AIEA ou os demais Estados-
membros os incitem a fazê-lo.
Eis outro importante obstáculo à compreensão pública do
papel da AIEA. Em certo sentido, a agência está à mercê
dos países que inspeciona. Ela pode apenas exercer a
autoridade que lhe é conferida. Quando comecei, por
exemplo, a viajar pelos países árabes na condição de
diretor-geral da AIEA, frequentemente fui alvo de críticas
pela incapacidade da AIEA de “fazer algo” a respeito do
programa nuclear de Israel. Eu poderia me desdobrar em
explicações, alegando que não tínhamos autoridade para
realizar inspeções em instalações israelenses: Israel,
embora fosse membro da AIEA, jamais assinou o TNP,
muito menos um acordo de salvaguarda abrangente com a
AIEA21. Para os povos árabes, no entanto, isso pouco
importava; na visão deles, éramos tendenciosos e
estávamos nos esquivando de nossas responsabilidades.
Na verdade, se o grande público tivesse a plena
compreensão da natureza irregular da autoridade da AIEA,
creio que haveria uma preocupação ainda maior. O desafio,
hoje, é como expandir essa consciência pública.
Considere a circunstância atual. No final de 2010, 13
anos depois da introdução do modelo de Protocolo
Adicional, muitos países signatários do TNP sequer
colocaram em prática os acordos de salvaguarda firmados
com a AIEA22. E, entre 189 membros do TNP, até agora em
apenas 102 o Protocolo Adicional começou a vigorar.
Considerando o elevado número de países que ainda não o
adotaram, quando se trata de oferecer à comunidade
internacional a segurança que ela deseja, as mãos da AIEA
continuam atadas.
É possível que outro Saddam Hussein esteja solto por aí,
despercebido, operando com armas nucleares
clandestinas? A resposta é: no que se refere aos países
que não aceitaram o Protocolo Adicional, realmente não
sabemos.

Em meados da década de 1990, a AIEA e a UNSCOM


deram continuidade às suas operações no Iraque. Todas as
substâncias nucleares que poderiam ser aproveitadas
como armas foram retiradas do país, e todo o restante –
aproximadamente 500 toneladas de urânio natural em
variadas formas e quase duas toneladas de dióxido de
urânio de baixo enriquecimento – foi colocado sob o
controle da AIEA. Passos semelhantes foram dados em
relação aos estoques de armas químicas.
Até outubro de 1997, a AIEA havia completado uma série
de 30 amplos programas de inspeção no Iraque. Cerca de
500 inspeções locais haviam sido feitas, envolvendo mais
de 5 mil dias de trabalho. Os inspetores da AIEA
acompanharam a destruição de mais de 50 mil m² de
instalações nucleares, aproximadamente 2 mil substâncias
usadas no ciclo de combustível ou relacionadas à
fabricação de armas e mais de 600 toneladas métricas de
ligas especiais. Por exemplo, as instalações de Al-Atheer,
projetadas para desenvolvimento, teste e produção de
armas nucleares, foram destruídas por meio de demolição
de explosivos, sob a supervisão da AIEA e da UNSCOM.
Todos os equipamentos e instalações para o
enriquecimento de urânio foram desmantelados.
Gradualmente, à medida que o trabalho autorizado pela
Resolução 687 ia sendo completado, o foco de ambas as
agências foi sendo alterado, passando do
desmantelamento dos equipamentos e da remoção de
material à monitoração e à verificação. A tarefa da AIEA de
eliminar o programa nuclear do Iraque, sob a Resolução
687, estava basicamente completa. Porém os norte-
americanos, agindo por meio do Departamento de Estado
e outros órgãos administrativos, instaram a AIEA a não
reportar suas conclusões ao Conselho de Segurança. Sua
intenção era continuar pressionando Saddam Hussein.
Para tanto, os Estados Unidos sugeriram que a AIEA
esperasse para reportar a conclusão de seu trabalho até
que a UNSCOM fizesse o mesmo. É claro que não havia
lógica nisso – conforme a argumentação de Blix, em suas
discussões com os EUA. Ele lhes disse que deveriam
pensar na UNSCOM e na AIEA como dois cavalos numa
corrida, e que não havia nada de errado se um dos dois
cruzasse antes a linha de chegada.
Blix concluiu seu relatório final para o Conselho de
Segurança quando ocupava o posto de diretor-geral, mas
já prestes a deixar o cargo, em outubro de 1997. Sua
percepção era a de que, já que estava saindo, lhe seria
mais fácil resistir às pressões dos EUA, e assim comunicou
ao Conselho que a AIEA tinha praticamente completado a
“fase de desarmamento” no Iraque e passara para a fase
seguinte. Segundo o relatório, a agência dedicava agora a
maior parte de seus recursos no Iraque à “monitoração e à
verificação em curso”, com apenas algumas poucas
questões pendentes.
A situação da UNSCOM era consideravelmente mais
complicada. Desde o início das inspeções no Iraque, a AIEA
e a UNSCOM vinham apresentando enormes divergências
tanto no que dizia respeito à sua formação quanto ao estilo
de inspeção. Mas uma diferença ainda mais perturbadora
surgiu posteriormente, na década de 1990. Os iraquianos
acusaram a UNSCOM de ser, na realidade, uma agência de
espionagem dos serviços de inteligência dos EUA e de
Israel, tentando colher informações além dos limites de
seus desígnios – isto é, usando a eliminação das armas de
destruição em massa como um biombo, atrás do qual
estaria coletando e transmitindo informações relacionadas
a armas convencionais e ao potencial militar que os
governos ocidentais poderiam utilizar a fim de criar alvos
militares.
Essas acusações feitas por Bagdá se intensificaram no
momento em que Richard Butler, um experiente diplomata
na área de controle de armamentos do Serviço de Relações
Exteriores da Austrália, assumiu em 1997 o cargo de
diretor da UNSCOM, sucedendo Rolf Ekeus. Butler, Scott
Ritter – um dos inspetores-chefe – e outros funcionários da
UNSCOM foram acusados pelos iraquianos de cooperação
com a CIA por meio da espionagem dos equipamentos
militares de Saddam Hussein. Além dessas acusações
feitas pelo Iraque, Butler e Ritter começaram a fazer
críticas recíprocas.
Dois anos mais tarde, tanto o Washington Post quanto o
Boston Globe noticiaram que os membros da UNSCOM
haviam colaborado com uma operação de escuta
eletrônica dos EUA que permitira aos agentes do seu
serviço de inteligência monitorar mensagens militares no
Iraque23. E o próprio Scott Ritter admitiu que a UNSCOM
estava sendo, em grande medida, manipulada24. Em 2002,
em uma entrevista à Fox News, afirmou:

Richard Butler permitiu que os EUA utilizassem o processo de inspeção de


armas da ONU como um Cavalo de Troia, a fim de infiltrar recursos do
Serviço de Inteligência no Iraque não aprovados pela ONU e que não
facilitavam o processo de desarmamento, mas cujo foco era a segurança de
Saddam Hussein e dos alvos militares... Richard Butler facilitou a
espionagem norte-americana no Iraque. Richard Butler tornou mais fácil a
manipulação do processo de inspeção para os EUA... Em quatro situações,
de março de 1988 até minha saída do órgão em agosto de 1998, escrevi a
Richard Butler um memorando, dizendo: “Chefe, se você continuar neste
caminho, estará facilitando a espionagem. Essa não é nossa intenção, e
você não pode deixar isso acontecer”. Ele recebeu o memorando e
desconsiderou meu alerta. No final das contas, façamos a nós mesmos a
pergunta: por que os inspetores não estão no Iraque, hoje?

Butler negou com veemência tais acusações, dizendo


que a alegação de Ritter de que ele havia vendido o ouro à
CIA era dramaticamente inverídica. Butler disse que, na
verdade, ele retrocedera ao estágio em que a UNSCOM fez
uso das informações do serviço de inteligência devido a
preocupações sobre a reputação e a necessidade de
proteger “a independência de atividades de
desarmamento multilaterais”. Admitiu que os membros da
UNSCOM, em ocasiões pontuais, se reportavam aos seus
governos de origem, mas negou categoricamente que a
UNSCOM estivesse sendo dominada pelos EUA,
qualificando as acusações de Ritter como
“quintessencialmente ridículas”25.
O que parece claro é o fato de Butler ter ideias
claramente preconcebidas sobre o Iraque e as intenções
do governo de Saddam Hussein. Antes que Rolf Ekeus
deixasse o cargo de primeiro diretor da UNSCOM, em 1997,
ele relatou que a maior parte de suas incumbências – no
que diz respeito à neutralização das armas químicas e
biológicas iraquianas – estava perto de ser concluída26.
Richard Butler discordava. Afirmava que o Iraque
continuava mantendo ocultas suas armas de destruição
em massa. Seu relatório ao Conselho de Segurança em 15
de dezembro de 1998 apresentou um cenário impiedoso
da falta de cooperação da parte do Iraque – um documento
considerado desproporcional e injusto por muitos.
O relatório de Butler acabou se tornando a justificativa
para a operação de bombardeios norte-americana
conhecida como Operação Raposa do Deserto. Os EUA
sugeriram que a UNSCOM retirasse seus inspetores do
país, por razões de segurança, exatamente no mesmo dia
em que Butler entregou seu relatório – uma indicação não
muito sutil de que os EUA sabiam do conteúdo do
documento27. Butler deu ordens para a retirada dos
inspetores da UNSCOM em 15 de dezembro, à meia-noite,
horário de Nova York. Pela manhã, quando os diplomatas
acordaram, a retirada dos inspetores já era fato
consumado.
A essa altura, eu assumira o cargo de diretor-geral da
AIEA, em substituição a Hans Blix. No início da manhã de
16 de dezembro, horário de Viena, fui despertado por um
telefonema de John Ritch, o então embaixador norte-
americano da AIEA. Ritch me informou sobre o conselho
dado por seu governo de retirar os inspetores da AIEA e da
UNSCOM, e comentou que Butler já tomara providências
para seguir tal conselho. Como a AIEA dependia da
UNSCOM no que dizia respeito ao apoio logístico, não
tínhamos outra opção a não ser partir.
Depois da conversa com Ritch, telefonei a Kofi Annan,
secretário-geral da ONU, que estava no Marrocos, para
discutirmos a ação de Butler. Fiquei chocado ao saber que
Annan não estava ciente dessa decisão.
Os inspetores partiram naquele dia. A operação de
bombardeios, de quatro dias de duração, começou
imediatamente, supostamente tendo como alvo várias
instalações militares iraquianas, incluindo as de pesquisa e
desenvolvimento de armas. Oficialmente, o bombardeio ao
Iraque ficou caracterizado como uma resposta ao seu
constante descumprimento das resoluções do Conselho de
Segurança da ONU e à sua interferência no trabalho dos
inspetores da organização.
A UNSCOM caiu em descrédito. O relatório de Butler foi
taxado de evidentemente injusto. Os governos da China,
da França e da Rússia se irritaram com a desmedida
influência dos EUA sobre a UNSCOM como órgão de
inspeção internacional. A UNSCOM perdera a credibilidade
para servir a comunidade internacional na condição de
representante confiável da ONU.
Em janeiro de 1999, redigi um documento oficioso28
intitulado “Inspeções de armas no Iraque” para o Conselho
de Segurança, expondo os parâmetros de como restaurar e
manter a integridade e a credibilidade de um sistema de
verificação de armas de destruição em massa. Nele, expus
claramente a necessidade de dissociar o órgão de inspeção
do Conselho de Segurança, a fim de evitar sua politização.
Recomendei que a organização contratasse funcionários
públicos da comunidade internacional, para que ela não
dependesse de “especialistas” sobre detalhes de seus
governos, pessoas que pudessem colocar a lealdade a
seus países em primeiro plano. Sugeri que fossem
estabelecidas regras mais claras para as inspeções, que
contivessem objetivos técnicos mais bem definidos.
Expliquei a importância de uma equipe de inspetores
técnicos que fosse mais diversificada do ponto de vista
geográfico. E solicitei que a organização respeitasse as
particularidades religiosas e culturais do país inspecionado
– simplesmente ignoradas pela UNSCOM no Iraque, em
muitos casos.
Tanto Kofi Annan quanto os russos e outros países me
felicitaram pela elaboração do documento. O
Departamento de Estado dos EUA, no entanto, ficou
enfurecido com o fato de eu não tê-los consultado antes de
divulgar o documento. John Ritch abordou-me para alertar
que alguns funcionários do governo norte-americano
estavam ameaçando pedir a William Safire, Charles
Krauthammer e outros colunistas conservadores que
lançassem uma investida contra a minha credibilidade.
No que dizia respeito ao Iraque, a reputação da UNSCOM
deixara de ter qualquer importância. O estrago já havia
sido feito. Naquele mesmo ano, a Comissão Especial foi
dissolvida pelo Conselho de Segurança e substituída pela
UNMOVIC29, uma nova agência com regras de operação
distintas. Porém, tendo sido alvo da Operação Raposa do
Deserto, Saddam Hussein não concordaria em readmitir
inspetores da AIEA e da ONU durante quatro anos. Tal
proibição estabeleceu as bases para a suposição de que
Saddam Hussein estava reconstituindo seus programas de
armas de destruição em massa – o que, por sua vez, criaria
o pretexto para uma nova guerra.
Embora a dissolução bem-sucedida do programa nuclear
iraquiano pela AIEA tenha silenciado muitos de seus
críticos e detratores, dando provas da eficácia da agência,
do ponto de vista do Iraque o processo de inspeção
culminara na Operação Raposa do Deserto, enviando-lhes
uma dura mensagem. Os norte-americanos não estavam
interessados na eliminação do programa nuclear do Iraque.
Os iraquianos compreenderam que, não importando quais
fossem suas atitudes, não havia luz no fim do túnel. A
Operação Raposa do Deserto convenceu algumas pessoas
de que o objetivo não era a eliminação das armas de
destruição em massa, e sim a mudança de regime. De
qualquer modo, sua desconfiança no processo de inspeção
só cresceu.
Quatro anos mais tarde, quando as inspeções foram
retomadas, notamos esse sentimento desolador
estampado no olhar de desalento e nas cínicas afirmações
feitas por nossos colegas iraquianos.
1 O IRT-500, um reator de pesquisas refrigerado a água, do tipo “swimming
pool”, fornecido pelos soviéticos; e o Tammuz-2, um reator de pesquisas,
também do tipo “swimming pool”, fornecido pela França.

2 A citação exata do Artigo VI do TNP: “Cada um dos signatários do tratado se


compromete a buscar negociações em boa-fé sobre medidas efetivas
relacionadas à cessação da corrida de armas nucleares o mais breve possível,
bem como ao desarmamento nuclear, e sobre um acordo visando ao
desarmamento geral e completo”.
3 O artigo IX do tratado define um Estado com armas nucleares como “aquele
que produziu e explodiu alguma arma nuclear ou outro aparato explosivo
nuclear antes de 1o de janeiro de 1967”. À época, a União Soviética era um dos
cinco Estados com tal status; porém, após seu desmantelamento, apenas a
Rússia manteve sua condição de Estado com armas nucleares. Os três outros
países da ex-União Soviética que possuíam armas nucleares abdicaram delas.

4 O uso de centrífugas é apenas uma das várias técnicas de enriquecimento de


urânio.

5 Pouco depois do início dos bombardeios, em 16 de janeiro de 1991, o


presidente George Herbert Walker Bush deu a seguinte declaração, em rede
nacional de televisão: “Estamos determinados a neutralizar o potencial de
bombas nucleares de Saddam Hussein”. Citado em “Iraq and the Bomb: Were
They Even Close?”, de David Albright e Mark Hibbs, Bulletin of the Atomic
Scientists, março de 1991.

6 “Early Western Assessments: What Did We Know and When Did We Know It?”.
Federation of American Scientists. Disponível em:
<www.fas.org/nuke/guide/iraq/nuke/when.htm>.

7 Um bom exemplo disso foi a afirmação de William Safire, no New York Times,
de que os cientistas iraquianos estavam enriquecendo urânio com 26
centrífugas. Referência feita por Albright e Hibbs, “Hyping the Iraqi Bomb”.

8 Sabia-se que o Iraque havia usado armas químicas durante a guerra contra o
Irã entre 1980 e 1988.

9 “Reflections on Establishing and Implementing the Post-Gulf War Inspections of


Iraq’s Weapons of Mass Destruction Programs”, transcrição de uma palestra de
Robert Gallucci no Institute for Science and International Security, 14/6/2001.

10 Ibid.

11 Projeto liderado pelos EUA para o desenvolvimento da bomba atômica


durante a Segunda Guerra Mundial.

12 Posteriormente, Ghaffour seria nomeado ministro iraquiano do Ensino


Superior e da Pesquisa Científica.

13 David Kay seria posteriormente nomeado pelo presidente Bush, em 2003,


como chefe do Grupo de Inspeção no Iraque.

14 Palestra de Gallucci, ver nota 9.

15 “The Iraqi Bomb”, New Yorker, 1/2/1993.


16 A descrição de Robert Gallucci sobre esta inspeção em particular deixa claro
que, embora ela fosse chefiada pela AIEA, apenas três dos 42 membros da
equipe eram, de fato, inspetores da AIEA. Os demais eram indivíduos com
“habilidades especiais”, cujos conhecimentos não eram da área de ciência
nuclear ou de armas de destruição em massa, em hipótese alguma; a
implicação é a de que eles foram designados para integrar a equipe a fim de
garantir que os documentos fossem conseguidos, não importando os meios
necessários para isso. Como disse Gallucci, “A equipe era muito, muito
especial”. Ver palestra de Gallucci, em suas “Reflexões”.

17 De acordo com Gallucci, “Como eu não sentia confiança em meu interlocutor


em Nova York, decidi contatar o Departamento de Estado”. Ibid.

18 Em meados de setembro, como parte da quinta inspeção pela AIEA, já


haviam sido feitos os preparativos para que se removessem do Iraque os seis
gramas de plutônio clandestinamente produzidos.

19 Fazia tempo que Saddam Hussein vinha sendo considerado um bem valioso
pelos EUA, pela Europa e pelos países árabes, que estimularam, apoiaram e
financiaram a guerra entre seu país e o Irã, entre 1980 e 1988, como maneira
de “conter a revolução iraniana”. É claro que esse aspecto contribuiu para a
desconfiança e o ressentimento do Irã em relação ao Ocidente, e é tido por
muitos como a gênese do programa nuclear iraniano, depois da utilização de
armas químicas pelo Iraque, durante a guerra entre os dois países.

20 Na época, o foco da verificação da AIEA eram os grandes países industriais,


tais como Japão, Alemanha, Itália e Canadá, considerando que a maioria dos
países em desenvolvimento não tinha uma infraestrutura nuclear significativa.

21 Esse é um aspecto que geralmente causa confusão. Ao tornar-se um membro


da AIEA (tornando-se um “Estado-membro”), um país se compromete a
defender os princípios do estatuto interno, passando a ter acesso às discussões
sobre proliferação nuclear. Entretanto, isso não obriga esse país a aceitar a
verificação, da parte da AIEA, de suas instalações e substâncias nucleares. Tal
obrigação passa a existir com a assinatura do Tratado de Não Proliferação
Nuclear e no momento em que se celebra um acordo de salvaguarda
abrangente com a AIEA.

22 Embora seja compulsório para os países signatários do TNP firmar acordos de


salvaguarda com a AIEA, a agência não tem o poder de penalizar os países que
não o fizerem.

23 “U.S. Spied on Iraq via U.N.”, Barton Gellman, Washington Post, 2/3/1999.
Uma matéria semelhante foi publicada no Boston Globe.

24 Posteriormente, Ritter ficaria célebre por suas críticas à política externa dos
EUA. Em março de 2003, defenderia publicamente que o Iraque não possuía
armas de destruição em massa em quantidade significativa.
25 “The Lessons and Legacy of UNSCOM: An interview with ambassador Richard
Butler”, Arms Control Today 29, n. 4, jun. 1999.

26 S/1997/301. Relatório do diretor-executivo da UNSCOM, 11/4/1997. Na


conclusão de seu relatório, Ekeus escreveu: “Os efeitos acumulados com o
trabalho realizado ao longo de seis anos, desde o início do cessar-fogo entre o
Iraque e a coalizão, é de natureza tal que não há muitas informações ignoradas
sobre o potencial de retenção de armas ilegais pelo Iraque”. Ekeus relatou ainda
que os esforços empreendidos entre outubro de 1996 e o início de 1997 se
concentravam em conformar “as principais questões pendentes a uma
quantidade administrável”, mencionando a satisfação generalizada em relação
às questões dos mísseis e das armas químicas. Observou que a apresentação
feita pelo Iraque sobre as armas biológicas continuava sendo “um tanto quanto
caótica”.

27 No livro de Butler, Saddam Defiant: The Threat of Weapons of Mass


Destruction, and the Crisis of Global Security (Nova York: Weidenfeld and
Bicolson, 2000), ele afirma que foi o embaixador norte-americano Peter
Burleigh, seguindo instruções dadas por Washington, que sugeriu a Butler que
retirasse a equipe da UNSCOM do Iraque, a fim de protegê-la dos iminentes
ataques aéreos dos EUA e do Reino Unido (p. 224).

28 No jargão diplomático, um documento oficioso consiste numa proposta por


escrito ou um conjunto de ideias apresentadas de modo informal, sem
compromisso e geralmente sem atribuição formal de crédito, como um modo de
gerar debates ou sugerir bases para a negociação. (N. dos TT.)

29 Sigla em inglês para a Comissão de Monitoração, Verificação e Inspeção das


Nações Unidas, criada pela Resolução 1284 de seu Conselho de Segurança, em
dezembro de 1999.
2 • Coreia do Norte
O CASO DO PLUTÔNIO DESAPARECIDO

Ao chegar em Pyongyang, na Coreia do Norte, em 4 de


dezembro de 1992, o primeiro sentimento que tive foi
gratidão, pois o avião pousou em segurança. Meus colegas
e eu viajamos de Pequim a Pyongyang pela Air Koryo, a
companhia aérea norte-coreana, e nossa aeronave era um
decadente modelo soviético. Não pude deixar de notar,
momentos antes da partida, que o piloto verificou a
pressão do ar dando leves pontapés nos pneus da
aeronave.
As pessoas que nos receberam nos amontoaram dentro
de viaturas oficiais – velhos Volvos série 200 – e nos
conduziram rumo à cidade. Era uma tarde de sexta-feira.
Disseram-nos que o transporte básico para o indivíduo
comum era caminhar; havia metrô, mas ele não
interconectava a cidade inteira, e a maioria das pessoas
era pobre demais para possuir bicicletas. Tínhamos
permissão para andar pela cidade, mas vimos pouca gente
nas ruas. Pyongyang era uma cidade fantasma. A sensação
é de que o lugar era, de modo geral, sinistro, com os
espaços públicos dominados por enormes estátuas de Kim
Il Sung, o “Grande Líder” (e pai do atual “Querido Líder”
Kim Jong Il). Fomos informados de que na manhã de
sábado todos os funcionários de governo norte-coreanos
compareceriam à sede do partido para “receber instrução
formal”.
Fomos instalados no Hotel Koryo, o melhor da cidade. O
conforto material era limitado; o hotel era
demasiadamente caro para os serviços que oferecia. Havia
pouca ou nenhuma luz elétrica. A alimentação consistia
apenas do essencial, com poucas opções: macarrão
instantâneo, carne e kimchee; nenhuma fruta ou salada.
Se você quisesse comer uma laranja, poderia encontrá-la
apenas na loja isenta de taxas do hotel, mediante
pagamento com moeda forte. E, apesar de ser inverno, o
aquecimento do hotel estava no mínimo. Tínhamos de usar
pilhas de cobertores à noite.
No quarto, liguei a televisão. Era um velho modelo preto
e branco. Os únicos canais que consegui sintonizar
passavam filmes sobre a Segunda Guerra Mundial e a
Guerra da Coreia, com ênfase no sofrimento e na matança
dos norte-coreanos nas mãos dos norte-americanos e seus
aliados.
Na noite seguinte, nossos anfitriões nos levaram ao
Teatro da Ópera, como entretenimento. O programa
consistia numa série de canções patrióticas encenadas no
palco. Todas elas terminavam com soldados coreanos
matando seus adversários norte-americanos. A cena me
remeteu a um espetáculo que assisti em Pequim em 1977,
logo após o fim da Revolução Cultural.

Essa visita a Pyongyang em 1992 surgiu como resultado de


graves preocupações criadas acerca do programa nuclear
da Coreia do Norte. O país assinara o Tratado de Não
Proliferação Nuclear em 1985, mas levou sete anos até que
cumprisse plenamente os termos compulsórios de seu
acordo de salvaguarda abrangente com a agência,
permitindo que a AIEA verificasse o programa nuclear do
país. O acordo de salvaguarda entrou em vigor em abril de
1992. Em 4 de maio, conforme requisitado, a Coreia do
Norte submeteu à AIEA sua declaração inicial de
substâncias nucleares. Segundo a declaração, o país
possuía sete instalações específicas e cerca de 90 gramas
de plutônio sujeitos à inspeção da AIEA. Como é de praxe
em todos os acordos de salvaguarda, a agência tinha
agora a responsabilidade de certificar-se de que essas
substâncias e as instalações nucleares eram usadas
exclusivamente para fins pacíficos.
Porém, por volta do meio do verão, começaram a surgir
dúvidas. Segundo a Coreia do Norte, as substâncias
nucleares eram resultado de um simples reprocessamento
de varetas de combustível defeituosas, ocorrido em 1989.
Dos 90 gramas de plutônio produzidos, 60 foram
verificados pela agência durante sua primeira inspeção. Os
norte-coreanos alegavam que a extração dos 30 gramas
restantes não fora bem-sucedida e que tal quantidade
estava presente no lixo nuclear. No entanto, não era o que
comprovava a análise de amostras ambientais colhidas.
A raiz dessa discrepância era a seguinte: a composição
do plutônio presente nas amostras de lixo nuclear não
correspondia ao plutônio trazido para verificação. Blix, com
sua usual habilidade no uso de metáforas, comparou a
situação com um par de luvas descasadas. Do ponto de
vista técnico, isso significava duas coisas. Primeiro, deveria
existir, em algum lugar, outro ajuntamento de lixo que
correspondesse ao produto verificado. Segundo, deveria
haver, em alguma parte, uma quantidade de plutônio
adicional que ainda não tínhamos visto. Um problema
essencial era que não sabíamos qual era a quantidade de
plutônio “adicional” que buscávamos – se estávamos
falando de gramas ou de quilogramas.
Os norte-coreanos ficaram visivelmente surpreendidos
com a sofisticação da análise feita pela agência. Nossas
técnicas de amostragem ambiental nos permitiram
determinar não apenas a exatidão das declarações norte-
coreanas, mas também se elas estavam ou não completas.
Eles começaram a mudar a versão de sua história. O país
reconheceu que havia realizado “um pequeno
experimento”, ao qual atribuíra a disparidade constatada
na análise da AIEA. Mas essa explicação não era adequada,
do ponto de vista técnico. O reator em questão, uma
máquina experimental Magnox, de 5 megawatts, de design
soviético, começara a operar em agosto de 1984. A partir
da análise das amostras, os peritos da agência
determinaram que o reprocessamento de combustível do
reator para fins de separação do plutônio ocorrera durante
um período mais longo de tempo e numa complexidade
maior do que a admitida. Os inspetores concluíram que,
durante os sete anos de operação do reator, a Coreia do
Norte provavelmente reprocessara combustível queimado
em pelo menos três ou quatro ocasiões, realizando
certamente mais do que “um pequeno experimento” como
diziam.
Uma segunda discrepância tinha a ver com o
ocultamento das instalações nucleares. O reator Magnox
estava localizado em Yongbyon, uma instalação a
aproximadamente 100 quilômetros ao norte de Pyongyang,
num percurso de carro em meio a vilarejos, entre duas e
três horas e meia – dependendo do clima. A agência sabia
da existência de uma instalação de armazenamento de lixo
nuclear no mesmo local, conhecida como Edifício 500.
Além disso, tínhamos visto uma série de imagens de
satélite, fornecidas pelos EUA, que mostravam o
ocultamento gradativo de um prédio de dois andares, que
se supunha ser outra instalação para lixo nuclear. Por fim,
os norte-coreanos ocultaram o prédio todo sob a terra,
cobrindo-o e plantando árvores em volta. Também foram
identificados dois locais para testes de altos explosivos,
um deles próximo ao reator em Yongbyon e um segundo a
20 quilômetros de distância dali.
No final de agosto de 1992, momento em que havia
apreensão crescente diante das respostas inadequadas
que os norte-coreanos nos forneciam, houve uma nova
inspeção. Novamente, o resultado foi um misto de
cooperação e ocultamento.
A visita foi coordenada por funcionários militares, e quem
cuidou pessoalmente de grande parte foi o comandante de
Yongbyon. Os norte-coreanos pareciam estar testando os
inspetores, para ver até onde ia nosso conhecimento.
Nossa solicitação inicial, de inspecionar os dois locais de
armazenamento de lixo e de testes com altos explosivos,
foi terminantemente recusada; a seguir, eles cederam e
permitiram que os inspetores visitassem o Edifício 500,
bem como as instalações com altos explosivos. No
entanto, a cooperação plena não passava de uma ilusão.
Numa das ocasiões, as pessoas que nos receberam
conduziram-nos ao lugar errado, e então se mostraram
zangadas quando lhes apontamos o engano. No final,
nossos colegas norte-coreanos negaram até mesmo a
existência do segundo local de armazenamento de lixo,
insistindo que aquilo não passava de trincheiras militares e
proibindo os inspetores da agência de inspecioná-las.
Entre setembro e o final de outubro, à medida que as
tensões cresciam, a AIEA realizou, em sua sede em Viena,
uma série de reuniões com o ministro de Energia Atômica
norte-coreano Choe Hak Gun e a delegação do país. Cada
vez que a AIEA lhes fornecia estatísticas que refletiam sua
análise, os norte-coreanos faziam ajustes em suas
declarações, conforme requeriam as circunstâncias.
Entretanto, ainda assim eles não foram capazes de
apresentar uma declaração que julgássemos completa e
adequada.
Finalmente, Blix decidiu me enviar a Pyongyang, numa
missão em que eu apresentaria as discrepâncias,
pressionaria para obter uma total transparência e insistiria
para que fossem apresentadas à AIEA uma declaração
nova e exata sobre o programa nuclear do país, incluindo
as instalações e as substâncias nucleares que,
acreditávamos, ainda não tinham sido reveladas.
Resumindo: estávamos lhes pedindo que cumprissem suas
obrigações previstas no acordo de salvaguarda firmado
com a agência; caso contrário, teríamos de convocar uma
“inspeção especial”, instrumento usado como último
recurso para ter acesso a locais suspeitos.
Portanto, a visita de dezembro de 1992 não foi
totalmente amistosa; tínhamos pela frente uma longa e
árdua tarefa. Àquela altura, eu já tinha assumido o posto
de diretor de Relações Externas da AIEA. Eu estava
acompanhado de Sven Thorstensen, diretor de
salvaguardas norueguês, responsável pelos assuntos
norte-coreanos, e Olli Heinonen, um finlandês que
trabalhava para Sven na época e que estivera plenamente
envolvido com as inspeções iniciais.
As discussões foram um verdadeiro tormento. Os norte-
coreanos se revelaram excelentes negociadores. Entre os
membros de sua delegação, havia uma divisão do estilo
“bom/mau policial”. Alguns deles nos acusavam de ser
agentes dos EUA e, diante de minha veemente reação a
isso, ensaiaram um pedido de desculpas. Outros adotavam
uma abordagem mais branda e, quando não funcionava,
davam vez aos colegas mais severos. Esse procedimento
se repetia com relação a diversos assuntos. Enquanto isso,
a mídia norte-coreana começou a fazer ataques a Blix, a
mim e à agência de modo geral, acusando-nos de agir
como fantoches dos EUA.
Essa rotina durou três penosos dias. No final de cada um,
eu telefonava para Blix do hotel para lhe dizer que não
estávamos tendo progresso; ele respondia que
precisávamos solicitar uma inspeção especial. Estávamos
certos de que nossos anfitriões faziam a escuta
clandestina de nossas conversas, portanto passamos a
mencionar a inspeção especial como uma forma de
pressioná-los.

Na última noite, estava claro que não houvera avanço


significativo em nossa visita. Fomos convidados para um
jantar com o vice-ministro das Relações Exteriores Kang
Sok Ju, evento em que os norte-coreanos nos serviram um
hambúrguer com ovo frito por cima.
No início de nossa conversa, fiz uma pergunta ao vice-
ministro que tinha mais a intenção de estabelecer um
diálogo do que a de provocar: “Por que o seu país tem um
ressentimento tão grande em relação aos Estados
Unidos?”.
A resposta dele não teve nada de casual. Transformou-se
numa arenga de 45 minutos, uma prolongada história das
relações entre a Coreia do Norte e os EUA, que remontava
à chegada da embarcação USS General Sherman à
península Coreana em meados do século XIX. O vapor
subira o rio Taedong até a periferia de Pyongyang. Numa
operação tida como uma vitória heroica contra invasores
estrangeiros, os nativos queimaram o navio e mataram
toda a sua tripulação. Conta-se que o bisavô do Grande
Líder Kim Il Sung participou do ataque.
E assim transcorreu o encontro: enquanto a comida
permanecia intocada diante de nós, o vice-ministro
recontava todas as interações entre Coreia do Norte e EUA
desde aquela época. Quando finalmente houve uma pausa,
eu lhe fiz, por educação, uma pergunta simples, dando
continuidade à conversa. Ele continuou durante mais 15
minutos. Sua obsessão era clara: a Coreia do Norte estava
completamente enredada numa longa luta contra os EUA,
certa de que os norte-americanos estavam determinados a
tentar mudar o regime do país.
No final da interlocução, olhei para os pratos. Nossos
ovos fritos tinham, agora, um indescritível tom cinza. Mas
a diplomacia não nos dava grandes oportunidades de
escolha. Começamos a comer.

De volta a Viena, depois de uma série de consultas, Blix


decidiu solicitar uma inspeção especial. Muito raramente a
agência adotava esse tipo de medida. Acontecera apenas
uma vez, na Romênia, logo após a deposição de Nicolae
Ceaus¸escu, quando o próprio novo regime romeno
solicitou uma inspeção especial, numa tentativa de
desacreditar ainda mais o ex-presidente comunista30. No
caso da Coreia do Norte, o pedido de uma inspeção
especial das instalações de armazenamento de lixo
significaria que a AIEA estava aumentando o valor das
apostas.
Como era de esperar, os norte-coreanos recusaram.
Estavam determinados a negar o acesso solicitado pela
agência.
O Conselho de Governadores da AIEA convocou uma
sessão especial. Foi uma reunião memorável, a portas
fechadas, restrita a poucos participantes. As preocupações
da agência em relação ao programa nuclear da Coreia da
Norte foram apresentadas em três partes: primeiro, o
conhecimento técnico no que dizia respeito às
discrepâncias observadas e analisadas; segundo, os
argumentos que justificavam um acesso mais amplo da
parte da agência; e terceiro, as provas de ocultamento.
A parte relativa às provas de ocultamento envolveu a
apresentação de imagens fornecidas pelo Serviço de
Inteligência dos EUA. Até então, as imagens de satélite das
instalações norte-coreanas só nos haviam sido
disponibilizadas durante relatos apresentados pela missão
dos EUA, situação em que um agente de segurança, um
senhor idoso, ficava postado à porta da sala –
supostamente para certificar-se de que os inspetores da
AIEA não fugiriam levando as imagens. Os Estados Unidos
alteraram substancialmente a resolução das imagens, a
fim de disfarçar seu verdadeiro potencial de vigilância.
Mesmo assim, as janelas do edifício estavam claramente
visíveis nas imagens.
Pela primeira vez na história da AIEA, sua secretaria
partilhava informações fornecidas pelo serviço de
inteligência de um Estado-membro, numa reunião de
conselho. Historicamente, os Estados-membros se
mostravam pouco à vontade em relação à utilização, da
parte da agência, de quaisquer informações obtidas
através dos serviços de inteligência dos países. O caso do
Iraque era uma exceção, mas as inspeções realizadas no
país ocorreram sob a autoridade extraordinária da
Resolução 687 do Conselho de Segurança. Essa reunião do
conselho sobre a Coreia do Norte representou, portanto,
um marco discreto: em anos posteriores, as referências ao
uso de informações dos serviços de inteligência passariam
a ser cada vez mais frequentes.
Cinco semanas depois, o Conselho da AIEA propôs uma
resolução com referência ao descumprimento norte-
coreano às determinações do Conselho de Segurança da
ONU. A resposta de Pyongyang foi rápida e decisiva. O
regime de Kim Il Sung baixou decretos sucintos,
restringindo as inspeções da agência e tornando
praticamente impossível a continuação das investigações
sobre a história de seu programa nuclear. Entretanto, a
Coreia do Norte permaneceu no TNP, e a agência pôde ao
menos dar continuidade ao processo de verificação das
substâncias nucleares declaradas por aquele país.
É possível que essa abertura tenha sido possível pelo
fato de o Conselho de Segurança não ter empreendido
nenhuma ação violenta. A China, com sua ênfase no
diálogo e na moderação, recusou-se a endossar certas
medidas, tais como a imposição de sanções ou a adoção
de uma resolução solicitando à Coreia do Norte que
concordasse em não produzir armas nucleares e em não se
retirar do TNP. Em razão da oposição feita pela China, a
resolução que finalmente foi adotada “solicitava”, mas não
“exigia” que a Coreia do Norte permitisse inspeções
adicionais da AIEA. A Resolução 825 foi aprovada em maio
de 1993, com a abstenção da China e do Paquistão.
Instalou-se, então, um impasse, que continuou ao longo
de boa parte de 1993. Os inspetores da AIEA tinham de
negociar cada inspeção individualmente, mesmo quando
estavam a serviço do monitoramento e da verificação de
filmes por parte da agência. Finalmente, na primavera de
1994, a situação atingiu seu clímax. Os norte-coreanos
anunciaram que começariam a remover o núcleo do reator
de Yongbyon – um total de 8 mil varetas de combustível
queimado – para fins de armazenamento e um possível
reprocessamento. Foi um momento decisivo. A partir de
uma série específica de amostras, os inspetores da
agência poderiam, a essa altura, verificar o histórico das
operações do reator. A questão central era: tratava-se do
núcleo original do reator, ou em algum momento do
passado um núcleo anterior fora removido e substituído,
sem que a AIEA fosse comunicada? Considerando que a
operação dos reatores produz o plutônio, um núcleo não
declarado de combustível queimado poderia já ter sido
utilizado secretamente, para a separação de plutônio. Pela
análise do material nessas amostras, a AIEA seria capaz de
determinar a quantidade de combustível queimado (e, por
tabela, a quantidade de plutônio) que a Coreia do Norte
poderia desviar para a fabricação de armas.
Os norte-coreanos não pareciam dispostos a cooperar, e
a certa altura descarregaram uma quantidade tão grande
de combustível que a AIEA perdeu a continuidade dessa
história. Mais uma vez, esse confronto foi motivo para a
elaboração de um relatório ao Conselho da AIEA;
novamente, a discussão levou ao envio de um relatório ao
Conselho de Segurança. Dessa vez, a resolução foi mais
drástica: ordenou-se que fossem feitos cortes na
cooperação técnica que a agência tradicionalmente dava
ao país em áreas como assistência médica, agrícola e
outras aplicações humanitárias da tecnologia nuclear.
A Coreia do Norte revidou, abandonando sua condição de
membro da AIEA, declarando que se retiraria do TNP. Na
sequência, tal retirada foi “suspensa” devido à insistência
dos Estados Unidos, apenas um dia antes de ela entrar em
vigor. Entretanto, a cooperação do país com a agência
estava em processo de rápida deterioração.
No verão de 1994, os Estados Unidos começaram a
negociar diretamente com a Coreia do Norte em Genebra,
num acordo bilateral com a intenção de melhorar a
situação. O ex-presidente Jimmy Carter teve um enorme
envolvimento nisso, na condição de cidadão; seus
encontros com Kim Il Sung em Pyongyang contribuíram
para o progresso das negociações. O resultado foi o
documento assim chamado “Estrutura de Acordo” (Agreed
Framework): um acordo ad hoc, único no gênero, que
permaneceria em vigor nos anos seguintes.
A “Estrutura de Acordo” baseava-se no princípio de “uma
ação em troca de outra”, seguindo um cronograma
preestabelecido. Suas condições básicas determinavam
que a Coreia do Norte congelaria as operações de seu
programa nuclear, incluindo o reator de pesquisa de 5
megawatts e as instalações de reprocessamento de
combustível nuclear de Yongbyon e duas outras
instalações que estavam sendo construídas: um reator de
50 megawatts e outro de 200 megawatts. Em
contrapartida, nesse meio-tempo Pyongyang receberia
dois reatores nucleares de 1.000 megawatts resistentes à
proliferação, sem qualquer custo, além do suprimento de
petróleo bruto para atender às necessidades de energia. O
acordo culminaria com a retomada, da parte da Coreia do
Norte, de sua plena participação no TNP, assumindo o
compromisso de normalizar suas relações com os Estados
Unidos.
Simplificando, a “Estrutura de Acordo” foi concebida a
fim de subornar os norte-coreanos. Segundo Robert
Gallucci, funcionário do governo norte-americano que
negociou o acordo, isso era o melhor que poderia ser feito.
A esperança era a que o regime norte-coreano implodisse
internamente, antes da plena implementação do pacto.
Minha reação inicial diante da “Estrutura de Acordo” foi
adotar uma postura crítica. A AIEA não participara das
negociações sobre o modo como as verificações nucleares
ocorreriam. Juridicamente falando, considerando que a
Coreia do Norte havia “suspendido” sua decisão de retirar-
se do TNP, cabia à AIEA a retomada das inspeções de
salvaguarda abrangentes. Entretanto, segundo as
cláusulas do acordo entre o país e os EUA, esse
procedimento era vetado à agência durante a fase inicial
da “Estrutura de Acordo”.
Essa situação colocou a Coreia do Norte em um estado
automático de descumprimento às normas. A AIEA só
poderia restabelecer a verificação do programa nuclear
muito mais tarde, depois que a Coreia do Norte e os EUA
tivessem cumprido seus compromissos e que os norte-
coreanos tivessem retomado por completo o TNP. Na visão
da AIEA, a aceitação desse acordo era algo estranho,
política e juridicamente falando. Além disso, esse pacto
não solucionou as discrepâncias relacionadas ao plutônio
contidas na declaração da Coreia do Norte, tampouco
respondeu às questões feitas pela AIEA sobre as
instalações não declaradas. Do ponto de vista técnico, as
limitações impostas às nossas inspeções sob a “Estrutura
de Acordo” poderiam mais tarde impossibilitar que se
voltasse a acompanhar o desenvolvimento do programa
nuclear norte-coreano.
O papel da agência consistia em monitorar o
“congelamento” – o estado de inatividade – das instalações
nucleares de Yongbyon: em especial, as instalações de
reprocessamento e o reator de 5 megawatts. Entretanto,
não poderíamos inspecionar, por exemplo, os outros dois
reatores em construção. O aspecto mais importante de
nosso papel de monitoramento era nos certificarmos de
que o combustível queimado de Yongbyon não seria
reprocessado com a finalidade de extrair o plutônio e ser
usado na fabricação de armas. A fim de monitorar o
“congelamento”, os inspetores da AIEA usavam lacres à
prova de manipulação e vigilância por vídeo ao realizar
inspeções em que o aviso era dado com pouca
antecedência.
Do ponto de vista técnico, não era necessário que nossos
funcionários permanecessem no país o tempo todo; isso
equivaleria a assistir ao crescimento da grama. Entretanto,
alguns Estados-membros, incluindo os Estados Unidos,
julgavam que nossa presença era importante do ponto de
vista político; assim, mantivemos dois ou três inspetores
no local. Era possível ter acesso a refeições decentes onde
nos hospedamos, mediante pagamento em moeda forte;
mas os inspetores não podiam sair dali ou da área ao
redor, portanto era como se estivéssemos em um centro
de detenção. Alternávamos os inspetores em um período
entre três e seis semanas, para evitar que eles
começassem a sofrer de algum distúrbio psicológico.

A descoberta de discrepâncias e do ocultamento de


plutônio na Coreia do Norte representou um sucesso no
programa de verificação da AIEA. O que não fica tão claro,
olhando em retrospectiva, é em que medida a solicitação
da agência para realizar uma inspeção especial em 1993
foi a abordagem correta. Tínhamos relativa certeza de que
a Coreia do Norte negaria a solicitação e de que muito
provavelmente o resultado seria um confronto. Baseados
em nossa experiência anterior, poderíamos prever que o
Conselho de Segurança, encarregado pelo Estatuto da AIEA
de garantir o cumprimento das normas, não adotaria
medidas enérgicas. Assim, a AIEA e a comunidade
internacional talvez teriam agido melhor se dessem
continuidade às negociações com a Coreia do Norte,
pressionando para conseguir progressos ainda
significativos.
O único trunfo que a Coreia do Norte tinha à sua
disposição era seu potencial nuclear; era evidente que ela
tiraria a maior vantagem possível desse fato. A crença de
que os EUA estavam determinados a conseguir a
deposição do regime era um fator recorrente, que
influenciou as negociações na área nuclear. Para
Pyongyang, a prioridade não era o bem-estar de seu povo,
nem o impacto de qualquer potencial repercussão advinda
de suas atividades nucleares, mas sim a sobrevivência do
regime. Da mesma maneira, a utilização de penalidades
para exercer alguma pressão sobre a Coreia do Norte
surtiria pouco efeito; o emprego da força bruta tampouco
era uma alternativa. Seul, a apenas 30 quilômetros da
fronteira, poderia muito bem ser pulverizada. De qualquer
modo, essa foi a última tentativa da agência de usar as
inspeções especiais como instrumento de verificação.
Continuaríamos limitados à nossa capacidade de
verificação de atividades não declaradas até a criação do
modelo do Protocolo Adicional, em 1997.
Depois do fracasso da abordagem por meio das
inspeções especiais, o único caminho sensato que restava
à comunidade internacional era a gradual reconstrução da
confiança mútua com a Coreia do Norte, para então tentar
barganhar com eles em suas alternativas nucleares,
mantendo as tensões em um nível mínimo, e ao mesmo
tempo esperando a mudança de regime. Foi esse o
objetivo almejado pela “Estrutura de Acordo”. Entretanto,
esse pacto, no final das contas, foi solapado por seus
aspectos bilaterais. Quando os Estados Unidos deixaram
de cumprir seus compromissos com a Coreia do Norte,
sobretudo no que diz respeito à entrega dos reatores de
energia prometidos, os norte-coreanos claramente
interpretaram isso como ausência de boa-fé por parte dos
norte-americanos.
A experiência coreana pode ser considerada um caso
clássico da inconveniência de tratar apenas os sintomas do
sentimento de insegurança, em vez de desenvolver uma
abordagem ampla e a longo prazo, com a finalidade de
amenizar as causas da tensão. As garantias de segurança
e o auxílio em relação ao desenvolvimento são sempre
mais eficazes do que medidas punitivas que,
inevitavelmente, acabam por provocar o aumento das
tensões.
30 O novo governo desejava mostrar que, no regime de Ceaus¸escu, a Romênia
havia reprocessado 100 miligramas de plutônio sem informar o fato à AIEA.
3 • Iraque, segundo round
A SEGUNDA GUERRA DO GOLFO

Em 2002, no que diz respeito à segurança, o cenário havia


sido consideravelmente alterado. Os ataques aos EUA, em
11 de setembro de 2001, provocaram várias mudanças de
percepção sobre a capacidade dos terroristas de realizar
complexas operações suicidas. Grupos extremistas haviam
demonstrado particular interesse na compra e na
utilização de armas de destruição em massa. Por sua vez,
a AIEA fizera uma completa revisão e expansão de seus
programas de assistência aos países, contribuindo para a
proteção de suas substâncias nucleares e para impedir seu
uso ilícito. As características da agência também
mudaram. O período de uma década lidando com desafios
tais como o Iraque e a Coreia do Norte nos proporcionara
uma maior gama de recursos e aumentara nossa
autoconfiança. Agora, era consideravelmente maior o
número de instrumentos jurídicos e tecnológicos à nossa
disposição.
O cenário fora também alterado devido à abordagem da
administração Bush em relação ao controle de armas
nucleares. Em dezembro de 2001, Bush tomou a decisão
unilateral de retirar os Estados Unidos do Tratado de
Mísseis Antibalísticos (ABM) – um marco no relaxamento
das tensões nucleares entre os EUA e a URSS desde 1972.
Em maio de 2002, Bush e Putin assinaram o Tratado de
Redução de Ogivas Estratégicas (SORT, na sigla em inglês),
um acordo conhecido nos círculos diplomáticos como “sort
of”31, tendo em vista que: (1) não incluía nenhuma
verificação da redução do arsenal nuclear prometida pelos
países; (2) não se exigia que a redução solicitada fosse
algo permanente; (3) para abandonar o acordo, eram
necessários apenas três meses de aviso prévio.
Na visão de peritos em política nuclear, os sinais
emitidos por tais ações eram claros. Os Estados Unidos não
levavam a sério os planos de dar continuidade às
obrigações relacionadas ao desarmamento previstas no
TNP. Pelo contrário, estavam dispostos a manter e até
mesmo reforçar seu status privilegiado de potência
nuclear, com uma mínima responsabilização. Ao mesmo
tempo, mostravam-se determinados a criticar com maior
veemência a potencial proliferação de armas de destruição
em massa por parte de outros países.
Era esse o contexto no final de 2002, quando a mira dos
bombardeios se voltou para o Iraque. Uma série de
afirmações começou a surgir em discursos, programas de
debate político e artigos de jornal. O tom variava, de
insinuações a declarações absolutamente diretas de que
Saddam Hussein tinha relações com a Al-Qaeda, ou que
ele tivera um papel ativo nos ataques de setembro de
2001. Particularmente interessantes foram as alegações
dos EUA e do Reino Unido sobre a existência de provas
conclusivas de que o líder iraquiano não havia
desmantelado seus programas de armas de destruição em
massa. A agência estivera ausente do Iraque desde nossa
saída apressada, pouco antes dos bombardeios da
Operação Raposa do Deserto, em 1998, o que limitou
gravemente nossa capacidade de estar atualizados com
relação aos eventos ocorridos no país nos quatro anos
seguintes.
O presidente Bush foi uma das pessoas que fizeram
afirmações mais incisivas. Seu discurso de 2 de outubro de
2002, em Cincinnati, Ohio, é um exemplo típico disso:

Há onze anos, como condição para o fim da guerra no golfo Pérsico, foram


exigidos do regime iraquiano a eliminação de suas armas de destruição em
massa, a interrupção do desenvolvimento de tais armas e que o país
deixasse de apoiar os grupos terroristas. O regime iraquiano violou todos
esses compromissos. O país possui e produz armas químicas e biológicas.
Eles continuam a buscar armas nucleares. O Iraque tem fornecido abrigo e
apoio ao terrorismo, praticando o terror contra seu próprio povo. O mundo
inteiro tem sido testemunha dos onze anos de provocação, dissimulação e
má-fé mostrados por esse país.

Mais adiante, em seu discurso, Bush afirmou:

Há provas de que o Iraque está reconstituindo seu programa de armas


nucleares. Saddam Hussein teve inúmeros encontros com cientistas
nucleares iraquianos, grupo que ele denomina de seu “mudjahidin nuclear”
– seus guerreiros nucleares sagrados. Imagens de satélite revelam que o
Iraque está reconstruindo instalações em locais que já fizeram parte de seu
programa nuclear no passado. O país tentou adquirir tubos de alumínio de
alta potência e também outros equipamentos necessários às centrífugas de
gás, que são usadas no enriquecimento de urânio para a fabricação de
armas nucleares.

Com afirmações desse gênero – repletas de informações


inexatas, sem comprovação, e que levam a conclusões
equivocadas –, os EUA começaram a pressionar
abertamente para provocar a mudança de regime.
Essa retórica agressiva não era em vão: sanções com
efeitos amplamente nocivos já vigoravam havia uma
década; os Estados Unidos e seus aliados tinham
recentemente deixado clara, no Afeganistão, a sua
disposição para uma ação militar decisiva. E, de fato, a
pressão sobre o Iraque aparentemente produzia
resultados. Embora negasse que o Iraque retomara seus
programas de armas de destruição em massa, Saddam
Hussein redigiu uma carta em que finalmente convidava os
inspetores de armas da ONU a retornar ao seu país. Depois
de muito debate, em 8 de novembro o Conselho de
Segurança aprovou por unanimidade a Resolução 1441,
que autorizava uma nova série de inspeções no Iraque.
As ações de bastidores mostravam uma coerência
inversamente proporcional ao seu caráter revelador. Um
bom exemplo disso foi o processo de elaboração da
Resolução 1441. Seu primeiro esboço não veio a público.
Formulada pelos EUA, ela faria os cinco membros
permanentes do Conselho de Segurança serem
firmemente colocados no comando do processo de
inspeção. Ela propunha que os inspetores fossem
acompanhados por escoltas militares em suas funções –
uma inovação em relação a procedimentos anteriores.
Propunha também que representantes do P532
integrassem as equipes e, pior ainda, que os inspetores da
ONU reportassem suas conclusões diretamente ao país que
solicitou a inspeção de um local particular, ou a entrevista
com um iraquiano em particular. Em resumo, sugeria uma
retomada da mesma orientação e dos mesmos
mecanismos que levaram ao descrédito da UNSCOM.
No início de outubro de 2002, antes da votação da
resolução – com seu texto final reelaborado –, Hans Blix e
eu fomos convidados a participar de uma reunião no
Departamento de Estado dos EUA. Colin Powell era nosso
anfitrião. Condoleezza Rice, Paul Wolfowitz e Lewis Libby33
completavam o grupo. Eu estava prestes a terminar meu
primeiro mandato como diretor-geral da AIEA. Blix, na
época já aposentado, tornou-se o diretor-executivo da
organização que sucedeu a UNSCOM: a UNMOVIC, que
desde sua criação estivera em relativa letargia devido ao
acesso negado ao Iraque. A UNMOVIC centraria seu foco
nas armas químicas e biológicas e na tecnologia de
mísseis.
O clima era tenso. Certamente a divergência interna
entre os norte-americanos em relação à melhor maneira
de proceder era profunda. Enquanto Powell defendia que
os EUA utilizassem o processo de uma inspeção típica da
ONU, Wolfowitz e outros adeptos da linha-dura preferiam
esquivar-se completamente da ONU, ou então, como
Condoleezza Rice, criar uma espécie de disfarce da ONU
para o que, em essência, seria um processo de inspeção
dirigido pelos EUA. Condoleezza chegou mesmo a sugerir
que o responsável, na UNMOVIC, pelo fornecimento das
informações do Serviço de Inteligência fosse um norte-
americano. “Confiamos em nosso povo”, disse ela. Blix,
relutante à ideia, rebateu que um canadense fora
nomeado para a função e a exerceria.
A sensação era a de que 1992 estava recomeçando.
O objetivo deles, com este encontro, era tentar nos
persuadir a aceitar algumas das cláusulas do projeto de
resolução em relação às quais tínhamos forte objeção. Blix
respondeu sem qualquer rodeio, dizendo a Condoleezza
que não agiria como “fachada” para uma operação dos
EUA. “Se você quiser realizar uma operação conduzida
pelos EUA e simplesmente abençoada pela ONU, poderá
criar uma nos moldes da operação sul-coreana nos anos
195034. Porém, se quiser uma operação da ONU, não
poderá contar com membros da equipe que não estejam
sob a autoridade dos diretores das organizações de
inspeção.”
Os pontos de vista de Condoleezza sobre o sistema da
ONU eram inequívocos. A certa altura da reunião, Blix
enfatizou a necessidade de que o projeto de resolução se
conformasse aos padrões da ONU e que as inspeções
fossem consideradas uma operação “legítima” da
organização. A réplica de Condoleezza foi brusca. “Sr.
Blix”, anunciou ela, “o Estatuto da ONU está baseado no
papel essencial e na responsabilidade dos cinco membros
permanentes do Conselho de Segurança. Como é de seu
conhecimento, a segurança dos Estados Unidos está sob
ameaça, e por esse motivo o país é livre para adotar as
medidas necessárias para sua proteção.” Fui tomado por
um sentimento de gratidão por ela não ter chegado ao
extremo de dizer que a Organização das Nações Unidas é o
Conselho de Segurança, e que o Conselho de Segurança
são os Estados Unidos35.
Wolfowitz parecia indignado com o mero fato de ter de
participar da reunião. Mostrava-se tenso e desinteressado;
sua linguagem corporal dava sinais de que o encontro – e
talvez a ideia, como um todo, de envolvimento da ONU –
não passava de tempo desperdiçado. Quando finalmente
pediu a palavra, seu tom era condescendente. “Sr. Blix”,
anunciou, inclinando-se na direção da mesa, “está
realmente ciente de que os iraquianos possuem armas de
destruição em massa?”
A discussão prosseguiu com balbucios de ambos os
lados, mas sem chegar a nenhuma conclusão. Frustrados,
Powell e Condoleezza conduziram Blix e a mim para uma
antessala. “Vocês não devem assumir o fardo das
implicações dos seus relatórios de inspeção”, Powell nos
disse, “pois qualquer decisão de usar a força será tomada
por chefes de Estado, não por vocês.” A intenção dele
talvez tenha sido nos reconfortar, mas, naquele contexto,
assumiu um tom paternalista.
No fim, conseguimos dissuadi-los de adotar algumas das
propostas mais beligerantes. Porém eles insistiam em uma
das medidas: a necessidade de entrevistar cientistas
iraquianos fora do Iraque, transportando suas famílias com
eles, a fim de evitar retaliações da parte do regime de
Saddam Hussein. Tentamos detalhar os problemas
envolvidos na imposição dessa condição. Procurei explicar
as nuances culturais de uma “família estendida” no
Oriente Médio. Perguntei-lhes: o que lhes dava absoluta
certeza de que um cientista iraquiano estaria disposto a
deixar seu país, numa viagem sem volta, a fim de
beneficiar os EUA ou o Ocidente? De que modo a ONU
poderia garantir que os cientistas que concordassem em
deixar o país não seriam ameaçados ou até mesmo
assassinados antes de sua partida? O que podíamos fazer
a fim de impedir que as “famílias estendidas” dos
cientistas fossem prejudicadas, como consequência dessa
ação?
Nada do que dissemos fez diferença. Os norte-
americanos, de fato, não queriam dar ouvidos a essas
considerações sobre direitos humanos. Estavam
convencidos de que entrevistar cientistas fora do Iraque
era uma ótima ideia; disseram que, de qualquer modo, não
eram capazes de fazer críticas à medida, já que ela fora
aprovada “nos mais altos escalões” do governo dos EUA. A
cláusula foi mantida na resolução (embora, nos meses
seguintes, tal disposição não fosse colocada em prática
nem uma vez sequer).
Poucas semanas depois, quando ainda estavam em curso
negociações sobre a resolução, Blix e eu fomos chamados
para uma rápida reunião com o presidente Bush na Casa
Branca. Quando estávamos a caminho, encontramos, pela
primeira vez, o vice-presidente Dick Cheney. Nosso contato
foi breve; Cheney estava sentado à sua mesa. Não
desperdiçou tempo em conversas triviais; tinha uma
mensagem direta e simples para nos comunicar. “Os EUA
estão preparados para trabalhar com os inspetores da
ONU”, disse, “mas estamos também preparados para
desacreditar os inspetores a fim de desarmar o Iraque.”
Tendo recebido esse alerta, fomos encontrar Bush. Além
de Condoleezza Rice e do chefe de Estado-maior de Bush,
Blix e eu éramos os únicos presentes. Numa espécie de
monólogo, Bush foi direto ao ponto. Afirmou que era
favorável ao uso das inspeções para tratar das questões
relacionadas às armas de destruição em massa do Iraque e
que preferia uma resolução pacífica para as preocupações
internacionais sobre o regime de Saddam Hussein. “Não
sou um caubói do Texas, com um revólver de seis tiros à
mão, preparado para abrir fogo”, gracejou ele, deslizando
para a frente com sua cadeira de braços, mãos nos
quadris, mostrando-nos como um caubói sacaria sua
pistola. Por outro lado, rebateu, se a abordagem pacífica
não desse resultado, não hesitaria em liderar uma
“coalizão dos que se mostrarem dispostos” a usar a força
militar. Foi um diálogo estranho: Bush continuava a repetir
que se sentia “honrado” em nos encontrar, mas não
estava minimamente interessado em nada do que
tivéssemos a dizer. Assim como na conversa com Cheney,
esse encontro nos mostrou claramente que a
administração dos EUA nos considerava meros figurantes
de uma operação que eles tinham a intenção de controlar.
Mesmo assim, quando a Resolução 1441 foi adotada,
uma semana depois, os Estados Unidos fizeram uma
última concessão. A intenção inicial era que a resolução
permitisse automaticamente o uso da força caso se
considerasse que o Iraque estava incorrendo numa
violação material de suas obrigações. Para muitos
membros do Conselho de Segurança, isso era inaceitável.
O P5 – sobretudo os franceses, os russos e os norte-
americanos – chegou a um meio-termo. A versão final do
texto simplesmente dizia que, se o Iraque incorresse em
violação material, o Conselho “analisaria” os passos que
deveriam ser dados na sequência.
Assim, após quatro anos ausente do Iraque, a agência
presenciou a reabertura das portas para suas inspeções no
país.

Para a AIEA, o passo inicial para a reentrada no Iraque


eram nossos parâmetros de dezembro de 1998: o
conhecimento que acumulamos sobre o potencial e as
instalações nucleares do país. Todo o ciclo de combustíveis
e as instalações relacionadas às armas, do início da década
de 1990, haviam sido completamente desmantelados;
todos os materiais utilizados na fabricação de armas foram
removidos em fevereiro de 1994; o que restava eram
substâncias nucleares de qualidade inferior e certas
instalações e substâncias de dupla finalidade (usadas tanto
para fins civis quanto militares) – e, certamente, o
conhecimento sobre determinados processos nucleares:
não há programa de inspeção que possa eliminar o
conhecimento já assimilado. Na época da primeira Guerra
do Golfo, o conhecimento dos cientistas nucleares de
Saddam Hussein não era suficiente para a construção de
uma arma nuclear, mas eles já haviam adquirido pleno
domínio, em escala de laboratório, de alguns processos de
enriquecimento de urânio e de técnicas de produção de
armas.
A tarefa que tínhamos à frente era determinar o que
havia mudado e quais atividades nucleares haviam sido
retomadas – se é que isso realmente ocorrera – durante os
quatro anos que se seguiram. Para obter uma resposta,
contaríamos com inspeções de instalações já conhecidas,
visitas a novos locais, a reativação dos sistemas de
vigilância, um extenso monitoramento ambiental, bem
como um exaustivo programa de entrevistas com
cientistas nucleares iraquianos e outros indivíduos
relevantes.
A essa altura, a AIEA já era uma organização experiente
e madura, composta de inspetores com um extenso
currículo, cuja lealdade já ficara evidente. Formávamos um
grupo funcional, plenamente versado para lidar com os
desafios relacionados à salvaguarda nuclear; para muitos,
o Iraque era terreno conhecido não apenas em termos
culturais, mas também em relação às instalações
nucleares. A equipe de inspetores do Iraque abrigava
indivíduos de dezenas de nacionalidades e pontos de vista
que cobriam todo o espectro político. Era inevitável que,
em relação ao país que era alvo da investigação, alguns
inspetores demonstrassem empatia; outros, hostilidade. Eu
estimulava o foco na objetividade técnica e na precisão
jurídica, mas também aceitava o fato de que os
julgamentos técnicos pudessem, às vezes, ser
obscurecidos por alguma ideia preconcebida. Assim,
tentávamos garantir a plena expressão de todas as
opiniões, incluindo os pontos de vista divergentes.
Eu confiava particularmente em Jacques Baute, um
brilhante físico francês que dirigia o Escritório de
Verificação Nuclear do Iraque, da AIEA, cuja experiência
prévia com o programa francês de armas nucleares o
dotou de uma sólida capacidade de julgamento do ponto
de vista técnico. Excelente administrador e estimado por
todos, Jacques foi o principal responsável pelo nosso plano
de trabalho no Iraque, dirigindo as operações de maneira
equilibrada e com uma forte compreensão da necessidade
de mostrarmos sensibilidade e respeito à cultura local, o
que possibilitou a eficácia de nossas interações. Estava
conosco também a norte-americana Laura Rockwood,
funcionária da área jurídica, uma mulher extrovertida,
experiente e determinada que vinha trabalhando a meu
lado desde meados da década de 1980. Ela ainda se
mostrava plenamente versada nos pormenores jurídicos da
missão iraquiana desde as inspeções do início da década
de 1990. No ambiente político altamente carregado em
que trabalhávamos, a possibilidade de contar com colegas
de tamanha confiança era um enorme trunfo.
As inspeções começaram formalmente em 13 de
novembro de 2002. A principal característica da nova
missão iraquiana era a urgência, baseada na ameaça
iminente de ação militar, no caso de o Iraque não
demonstrar plena disposição de cooperar, permitindo-nos
provar que o país renunciara às suas supostas armas de
destruição em massa. Essa ameaça, particularmente da
maneira como foi noticiada em relatos da mídia
convencional, em movimentações de bastidores e na
retórica das autoridades de governo ocidentais – sobretudo
dos EUA e do Reino Unido –, esteve em evidência durante
os meses de inspeção. Havia um obstáculo implacável:
todas as movimentações iraquianas eram consideradas
insuficientes. A acusação relacionada às armas de
destruição em massa – as tentativas iraquianas de obter
tubos de alumínio, seus supostos laboratórios itinerantes e
a suposta compra de urânio junto ao Níger – recebeu da
mídia uma cobertura sensacionalista, e foi tida como prova
das intenções malignas de Saddam Hussein. Porém,
quando as descobertas dos inspetores apontavam na
direção oposta, tais notícias eram contestadas ou
consideradas pouco relevantes.
Essa retórica inevitavelmente maculou o clima das
interações de alto nível que vínhamos tendo com as
autoridades de governo iraquianas, quer as reuniões
ocorressem em Bagdá, em Nova York ou em Viena. Em um
de nossos primeiros encontros em Nova York, o Dr. Jaffar
Dhia Jaffar, que foi encarregado do programa nuclear
iraquiano anterior, estava visivelmente irritado. Jaffar
sempre mostrou certa arrogância e reticência em relação a
todo o processo de verificação. Mas, nesse caso, ele foi
além. Acusou a AIEA de ser tendenciosa – basicamente, de
ser um instrumento do Ocidente – em nossa relutância em
simplesmente arquivar a documentação referente à
questão nuclear. Os comentários que dirigiu a Jacques
Baute passaram a ser de natureza pessoal e agressivos;
chegou até mesmo a criticar as habilidades linguísticas de
Jacques. “Seu inglês”, disse ele, “só melhorou quando você
se casou com uma britânica.”
Eu o interrompi bruscamente. “Não se esqueça”, disse,
“de que você e seus colegas trapacearam a AIEA durante
muitos anos. Portanto, você não tem nenhuma
credibilidade.”
O mais importante consultor científico de Saddam
Hussein, general Amir al-Sa’adi, que fora nomeado nosso
colega principal, tentou acalmar os ânimos. “Bem”, disse
ele, esboçando um sorriso, “não foi exatamente trapaça,
mas um subterfúgio.”
Revelou-se, depois, que Jaffar estava de péssimo humor
por ter chegado a Nova York sem as malas, o que
significava que sua aparência não podia ser das melhores.
Ele tinha certeza de que esse era um truque intimidatório
dos agentes de inteligência dos EUA, que vinham
perseguindo todos os principais cientistas do Iraque. Tanto
Al-Sa’adi quanto Jaffar me disseram que sempre que
viajavam para fora do Iraque eram abordados por
representantes dos serviços de inteligência ocidentais, que
tentavam recrutá-los.
À medida que as inspeções continuavam, a desconfiança
persistia, e nossas interações com as autoridades de
governo iraquianas continuaram tensas, em parte porque a
avaliação da extensão da cooperação do Iraque nunca foi
uma tarefa simples. Primeiro, ela era precedida de um
histórico de fraudes, o que nos fazia ver suas declarações
e atitudes com certo ceticismo. Em várias ocasiões, Blix e
eu afirmamos que ainda precisávamos ser convencidos de
que o Iraque apresentara todas as informações disponíveis
a respeito de seus programas de destruição em massa.
Certa vez, depois de eu ter afirmado isso, Al-Sa’adi disse
que minhas palavras estavam lhe provocando dor de
cabeça, pois ele não podia apresentar informações que
não tinha. Insistiu, dizendo que a AIEA tinha de acreditar
nas declarações dos iraquianos. Mas é claro que nossa
experiência anterior à Guerra do Golfo de 1991 não nos
inspirava confiança. Não podíamos, simplesmente,
acreditar em suas palavras.
Em segundo lugar, nossos colegas iraquianos
enfrentavam extremas limitações de um sistema
terrivelmente autoritário e claramente centralizado. Isso
tornava naturalmente mais lenta a sua capacidade de
tomar decisões e de reagir rapidamente, fazendo-os
parecer muito pouco transparentes. Nem Al-Sa’adi nem o
general Husam Amin, chefe do grupo iraquiano de
interface com a ONU, eram capazes de tomar qualquer
iniciativa de modo independente, sem consulta prévia.
Tampouco podiam falar informalmente a respeito de
Saddam Hussein ou do regime. Eles podiam ter suas
opiniões em ambientes reservados, mas sabiam as
consequências de dizer algo negativo, estando cientes de
que todas as conversas eram grampeadas.
Naji Sabri, ministro das Relações Exteriores do Iraque,
parecia preferir permanecer nos bastidores, no que dizia
respeito às inspeções. Era uma pessoa sempre agradável
mas distante. Invariavelmente, nos convidava para jantar
ao final de nossas visitas a Bagdá. Porém, toda vez que
tentávamos envolvê-lo em assuntos mais sérios, respondia
sempre de modo cauteloso, evitando qualquer
comprometimento36.
Era enorme o contraste entre a reserva de Sabri e a
postura do vice-presidente iraquiano, Taha Yassin
Ramadan, que acompanhou de perto o processo de
inspeção. Em nosso primeiro encontro, no gabinete da
vice-presidência, em 20 de janeiro de 2003, ele se mostrou
melancólico e formal, vestido em seu uniforme militar e
carregando uma pistola. Estávamos apenas nós três e mais
um intérprete. Ele nos disse que nossos inspetores
estavam criando problemas desnecessários, colocando
lenha na fogueira da suspeita internacional, em vez de
solucionar questões. Acusou-nos de falta de objetividade
em nossa abordagem. Sua fala era uma espécie de
discurso bombástico, em que atacava a totalidade de
nosso processo de inspeção.
Respondi a ele de maneira franca, passando a falar em
árabe, de modo a não deixar dúvidas quanto ao meu tom,
ou quanto ao significado de minhas palavras. “Estamos
aqui para ajudá-los”, eu disse, “mas, falando
sinceramente, só se vocês estiverem dispostos a ajudar a
vocês mesmos. É preciso que vocês cooperem e que
mostrem transparência, pois essas questões não serão
resolvidas se não forem proativos.” Mencionei o modo
como alguns membros da administração iraquiana
repetidamente acusavam os inspetores da ONU de ser
agentes secretos. “Simplesmente rotular os inspetores da
ONU como espiões”, eu lhe disse, “não ajudará vocês na
sua situação, de forma alguma.”
Para minha surpresa, Ramadan começou a acalmar-se.
Acredito que ele tenha compreendido a essência do que eu
estava dizendo: primeiro, que nosso papel e o de nossos
inspetores não era fruto de vingança pessoal, mas sim a
responsabilidade de cumprir um mandato internacional;
em segundo lugar, a cooperação da parte deles era a única
saída para a confusão em que estávamos metidos37.
Essa continuou sendo minha postura ao longo de todo o
processo, embora minha nacionalidade e herança cultural
pudessem criar expectativas diferentes. Desde o início,
frequentemente tive a sensação de que o mundo árabe –
bem como muitos ocidentais – esperava que eu, na
condição de árabe do Egito e muçulmano, fosse
tendencioso a favor do Iraque.
É claro que também ouvi que eu agia com rigor no caso
do Iraque apenas para provar que não era tendencioso.
Meu único viés era o de um funcionário público
internacional: a insistência em adotar uma postura
independente, com profissionalismo, tratando as partes
envolvidas com igual respeito. Os iraquianos logo
perceberam que eu não estava disposto a lhes fazer
nenhum favor em particular e que tampouco mostrava
nenhuma inclinação desfavorável a eles. Embora no final
eu tenha sido reconhecido pela maioria das pessoas e
grupos – ainda que com ressentimentos – por minha
objetividade, meu nome e minha origem étnica eram,
mesmo assim, repetidamente usados como um modo de
insinuar que meus julgamentos eram baseados em
preconceitos.
Pior ainda: minha firme imparcialidade talvez tenha sido
a motivação para várias situações curiosas. Em nossa
primeira visita a Bagdá, após o reinício das inspeções, em
novembro de 2002, um homem telefonou para o meu
quarto no hotel. Apresentou-se como advogado e disse que
desejava deixar o país. Queria me perguntar se Blix ou eu
podíamos ajudá-lo. Eu lhe disse que aquele assunto não
era responsabilidade nossa, e que estávamos na cidade
com a atenção voltada às inspeções. Ele me agradeceu e
desligou.
Em minha visita seguinte, o telefone tocou novamente.
Dessa vez, era uma mulher. Disse que era de
nacionalidade curda, trabalhava para a ONU no Curdistão e
estava enfrentando um problema com seu contrato. “Estou
sentada perto da piscina, neste momento”, disse ela.
“Talvez você possa me ajudar se eu puder lhe dar mais
detalhes sobre isso. Poderíamos nos encontrar?” Respondi
que eu não podia encontrá-la, mas que ela poderia me
escrever. Não me surpreende que eu não tenha mais
ouvido falar dela.
Ainda numa outra ocasião, fui abordado pelo próprio
ministro das Relações Exteriores, Sabri. Ele me chamou de
lado e perguntou se eu tinha familiares ou amigos que
pudessem estar interessados em transações comerciais no
setor petrolífero do Iraque. Em caso positivo, disse ele, que
eu o avisasse. A mesma oferta me foi feita,
posteriormente, pelo embaixador iraquiano em Nova York,
que representava o ministro das Relações Exteriores.
Deixei claro que eu não tinha o menor interesse em tal
“oportunidade”.
Acredito que essas situações eram ciladas do governo
iraquiano para me chantagear, ou me “persuadir
gentilmente”. Ninguém mais teria a ousadia de me
telefonar no hotel; qualquer habitante local teria
suspeitado, e com razão, que os quartos e os telefones
estavam todos grampeados.
Nos primeiros dois meses de inspeção, a AIEA conseguiu
um progresso substancial, restabelecendo sua
compreensão sobre o potencial nuclear do Iraque. A maior
parte de nossas inspeções era feita em instalações
industriais controladas pelo Estado ou privadas, em
centros de pesquisa e em universidades – com foco em
locais onde sabíamos que o Iraque mantivera recursos
técnicos significativos, em novos lugares sugeridos a partir
da análise de informações públicas, ou então em
instalações identificadas por meio de imagens de satélite,
construídas ou modificadas desde 1998. As inspeções
eram realizadas sem prévia notificação ao Iraque.
Os inspetores da agência também realizaram buscas
minuciosas e sistemáticas de modo mais genérico, usando
uma série de instrumentos. Seguindo pistas deixadas pela
“assinatura” ambiental de materiais radioativos,
reiniciamos o monitoramento dos rios, canais e lagos
iraquianos, para detectar a presença de radioisótopos
relevantes. Coletamos amostras de locais em todo o país,
que na sequência eram levadas a laboratórios da AIEA
para análise. Realizamos extensas pesquisas de radiação,
utilizando instrumentos sensíveis que haviam sido
transportados em veículos ou manuseados, mapeando
instalações industriais e outras áreas, em busca de
substâncias nucleares e radioativas. Entrevistamos vários
cientistas, gerentes e técnicos iraquianos – sobretudo em
seus locais de trabalho, durante as inspeções sem aviso
prévio –, a fim de recolher quaisquer informações sobre
programas realizados no passado e naquele momento.
Paralelamente a essas inspeções locais, analistas da sede
da AIEA em Viena examinavam atentamente as mais
recentes informações enviadas pelo Iraque, comparando-
as com os registros que havíamos acumulado entre 1991 e
1998, bem como outros dados que compilamos por meio
de monitoramento remoto durante os quatro anos que
estivemos longe do país. As declarações iraquianas
correspondiam ao que sabíamos sobre o programa nuclear
pré-1991 do Iraque, mas seguimos buscando
esclarecimentos nos pontos em que havia lacunas.
Tendo realizado 139 inspeções em 106 locais naqueles
primeiros 60 dias, não conseguimos descobrir nenhuma
prova de esforços empreendidos pelo Iraque ou por seus
cientistas com a finalidade de reativar o programa de
armas nucleares do país. As inspeções prosseguiam em
ritmo constante. Porém, duas questões técnicas em
particular predominavam no debate nuclear, a fim de
acelerar a marcha em direção à guerra: as tentativas do
Iraque de obter tubos de alumínio de alta resistência e a
suposta compra de urânio do Níger.
Os tubos de alumínio foram mencionados por
autoridades de governos ocidentais em inúmeras ocasiões,
como atestado das renovadas ambições nucleares do
Iraque. Como provas, as autoridades faziam referência à
apreensão na Jordânia, em junho de 2001, de um
carregamento de tubos que tinha o Iraque como destino
final. Condoleezza Rice, por exemplo, deu uma declaração
à CNN dizendo que esses tubos eram “apropriados apenas
para o uso em programas de armas nucleares”38. Tal
afirmação induzia a erro: havia muito tempo, os
especialistas do Departamento de Energia dos EUA davam
declarações públicas dizendo acreditar que esses tubos
eram mais apropriados para uso em mísseis de artilharia.
Nossos inspetores estabeleceram como principal
prioridade a visita à indústria de fabricação de metais em
Nasser, onde sabíamos que o Iraque fabricara mísseis de
artilharia de dimensões parecidas. Os engenheiros
iraquianos do local mostraram aos inspetores milhares de
mísseis já completos, fabricados com a mesma liga de
alumínio e com as mesmas tolerâncias dos tubos
interceptados na Jordânia. Os engenheiros alegaram uma
razão simples para a tentativa de obtenção desse material:
seus estoques estavam em baixa. Sobre o porquê de eles
terem adquirido aquelas especificações em particular, a
justificativa era igualmente direta: estavam em busca de
mísseis precisos, queriam minimizar as mudanças em
design e desejavam que os tubos fossem anodizados, para
evitar enferrujamento.
Em nenhuma parte encontramos provas de que um
programa de enriquecimento em centrífugas tivesse sido
reativado. Em 27 de janeiro de 2003, quando entreguei ao
Conselho de Segurança um relatório provisório, relatei
minha conclusão quanto a esses tubos: “Considerando a
análise que fizemos até hoje, parece consistente a
equivalência entre os tubos de alumínio e seus objetivos,
tais como declarados pelo Iraque; a menos que eles sejam
modificados, não são adequados para a fabricação de
centrífugas”.
A resposta – ou ausência dela – dos EUA foi notável. No
dia seguinte, o presidente Bush proferiu sua mensagem ao
Congresso, no discurso do Estado da União. Em um dos
discursos de maior audiência daquele ano, alegou
novamente que o Iraque estava tentando comprar tubos
de alumínio “apropriados para a produção de armas
nucleares”. Não havia nenhuma menção à conclusão da
AIEA, que contradizia tal declaração, conclusão baseada na
direta verificação dos fatos no Iraque. Bush tampouco fez
menção à análise, também divergente, elaborada pelo
Departamento de Energia dos EUA.
O dramático discurso de Colin Powell dirigido ao Conselho
de Segurança da ONU ocorreu uma semana mais tarde, em
5 de fevereiro. Seus ouvintes aguardavam uma
apresentação definitiva das informações secretas sobre o
programa iraquiano de armas de destruição em massa.
Com carisma e presença imponente, Powell tranquilizou
seus ouvintes: “Meus colegas, cada uma das afirmações
que faço aqui hoje está sustentada por fontes, e fontes
sólidas. Não se trata de declarações, apenas”. Quando o
assunto passou a ser os tubos de alumínio, reconheceu
que havia “diferenças de opinião”, mas declarou: “A
maioria dos especialistas dos EUA considera que a
intenção deles é servir de rotores em centrífugas utilizadas
no enriquecimento de urânio”.
Posteriormente, Powell me disse que passara uma
semana na sede da CIA, questionando seus funcionários
sobre cada “prova” em particular, lhes fazendo perguntas
para garantir a veracidade das informações. Acrescentou,
em tom de brincadeira, que, se tivesse incluído todas as
provas em sua apresentação ao Conselho, ela teria durado
horas.
No almoço oferecido pelo secretário-geral, na sequência
do pronunciamento de Powell na ONU, Dominique de
Villepin, o ministro das Relações Exteriores da França – um
diplomata e historiador bem-sucedido, cuja presença
equivalia à de Powell – dirigiu-se a ele em termos que,
analisados em retrospectiva, parecem proféticos: “Vocês,
norte-americanos”, disse ele, “não compreendem o Iraque.
Esta é a terra de Haroun al-Rashid39. Vocês podem destruí-
lo em um mês, mas precisarão de uma geração inteira
para construir a paz”.
Powell ficou visivelmente irritado. “Quem está falando em
guerra?”, rebateu – um comentário meio bizarro,
considerando que o discurso que acabara de pronunciar
apontava nessa direção.
No final das contas, uma análise meticulosa da questão
dos tubos de alumínio feita pelo New York Times, e
publicada quando a guerra já estava em seu segundo ano,
observou que, dois dias antes de sua fala no Conselho de
Segurança, os especialistas do Serviço de Inteligência
norte-americano enviaram a Powell um memorando,
confirmando que os EUA usaram um míssil tático de 70
mm que continha o mesmo alumínio de alta qualidade e
com especificações semelhantes40. No entanto, Powell
declarou que os tubos que o Iraque tentou obter exigiam
uma tolerância que “excede, em muito, os requisitos de
mísseis semelhantes”.
Outro aspecto essencial do caso, desfavorável ao regime
iraquiano, foi a alegação de que Saddam Hussein tentara
comprar urânio do Níger. O presidente George Bush deu
ênfase a esse ponto em sua mensagem ao Congresso de
janeiro de 2003: “O governo britânico obteve informações
de que Saddam Hussein recentemente obteve uma
significativa quantidade de urânio da África”.
Supostamente, entre 1999 e 2001, representantes de
Saddam tentaram adquirir 500 toneladas de óxido de
urânio – ou yellowcake – do Níger. No final de setembro de
2002, a administração Blair, do Reino Unido, revelou um
dossiê com informações secretas, incluindo tal afirmação.
Desde então, a AIEA vinha exercendo pressão para ter
acesso aos importantes documentos relacionados ao caso,
a fim de investigá-los; após meses de insistência com os
serviços de inteligência para que nos enviassem as provas
dessa transação ilícita, finalmente nos remeteram cópias
dos documentos, em 5 de fevereiro, mesmo dia da
mensagem de Colin Powell ao Conselho de Segurança.
Embora o Reino Unido e os EUA tenham levado mais de
três meses para apresentar as “provas” – um pequeno
maço de cartas e comunicados entre autoridades de
governo do Níger e do Iraque –, Jacques Baute e sua
equipe precisaram de poucas horas para perceber que os
documentos eram falsos. Uma das cartas, supostamente
redigida pelo presidente do Níger Mamadou Tandja, estava
repleta de imprecisões e sua assinatura era obviamente
falsificada. Outra carta, do ministro da Cooperação e das
Relações Exteriores, tinha sido “assinada” por Allele
Habibou; porém, o ministro Habibou deixara o cargo em
1989.
A mencionada venda também não tinha a menor lógica.
O Níger é um dos maiores produtores de urânio do mundo.
A produção das duas minas de urânio em questão
representa uma commodity valiosa, uma importante linha
de fornecimento para as empresas nucleares do Japão, da
Espanha e da França. Tanto as vendas quanto a produção
são constantemente supervisionadas não apenas pelo
Níger, mas por organizações de outros países. A ideia de
que 500 toneladas de yellowcake – suficientes para
produzir cerca de cem bombas nucleares – pudessem ter
sido despachadas para o Iraque despercebidas soava
absurda.
Ainda mais intrigante é que uma fraude não detectada
ao longo de meses de exame realizados pelos melhores
serviços de inteligência do mundo foi imediatamente
descoberta por um físico da AIEA, que se valeu de buscas
no Google e do bom senso. Munido de suas conclusões
sobre os documentos do Níger, Jacques consultou várias
autoridades de governos ocidentais. Elas nada tinham a
dizer. Nos dias que se seguiram, nenhuma autoridade do
governo norte-americano ou britânico contestou sequer
uma única vez a lógica contida na análise da AIEA.
Com extremo cuidado, ponderei sobre como anunciar a
notícia ao Conselho de Segurança sem causar um grande
constrangimento a Washington ou a Londres. No voo rumo
a Nova York, após ter consultado Jacques Baute e Laura
Rockwood, finalmente decidi usar uma terminologia menos
espetacular, descrevendo os documentos como “não
autênticos”. Mas a mensagem era clara: a alegação de
venda de urânio pelo Níger – um aspecto central da
argumentação dos EUA e do Reino Unido, que insistiam em
que o Iraque reconstituíra seu programa de armas
nucleares – estava baseada numa fraude.
Era clara a insatisfação dos Estados Unidos quando
reportei essa conclusão ao Conselho de Segurança. Ela
agravava ainda mais a desmistificação que fizéramos da
questão dos tubos de alumínio. Colin Powell, que sempre
manteve a calma e me tratava com extrema gentileza,
reagiu de modo irritado na reunião do Conselho,
observando que a agência “deixara o Iraque escapar” em
1991.
Na mídia, a reação foi desanimadora. Os mais
importantes veículos de comunicação na época aceitaram
por completo as acusações de armas de destruição em
massa feitas pelo governo dos EUA. Nossas descobertas,
por sua vez, foram desconsideradas, sob o pretexto de
serem pouco importantes. O Washington Post, na edição
de 1o de março, fazia referência aos documentos do Níger
como “pequenas provas, secundárias”. Para não ficar
atrás, o Wall Street Journal publicou, em 13 de março, um
editorial incisivo intitulado “Bush em Lilliput”. “O Sr.
ElBaradei”, dizia o texto, “fez alarde público na semana
passada sobre uma acusação dos EUA e do Reino Unido
que se revelou falsa, mas que, de qualquer modo, era
periférica em relação às armas de destruição em massa do
Iraque.” Nenhum dos jornais se deu o trabalho de
mencionar que, menos de dois meses antes, a venda de
urânio do Níger havia sido significativa o bastante para
que o presidente dos EUA a incluísse em sua mensagem do
Estado da União ao Congresso. A cobertura feita pelo New
York Times também desconsiderava esses fatos. Em 8 de
março, a questão do Níger foi mencionada de passagem
numa reportagem de capa cujo foco era a “divisão da
ONU”. No dia seguinte, a notícia recebeu uma cobertura
mais ampla (“Peritos forenses descobriram fraude no
Iraque, diz um inspetor”), mas foi relegada à página 13.

Na fronte diplomática, os esforços também pareciam


fadados ao fracasso. Quando os estados árabes se
encontraram em Sharm el-Sheikh, numa cúpula
emergencial antes da guerra, em 2 de março, a reunião se
transformou em um festival de desacordos e troca de
insultos. Havia propostas sérias a serem discutidas sobre o
envio de uma delegação ao Iraque, a fim de lhe oferecer
soluções possíveis contra a guerra. Alguns pretendiam
incentivar Saddam Hussein a renunciar. O mandatário dos
Emirados Árabes Unidos na época, o xeique Zayed,
prontificou-se a oferecer asilo a Saddam Hussein, para que
ele fosse preservado.
Outros líderes árabes, entretanto, pareciam apoiar a
guerra. Eles mostravam uma clara aversão a Saddam
Hussein e tinham esperanças de que uma invasão poderia
fazê-los ficarem livres dele em definitivo. No início do
processo de inspeções, encontrei-me com o então
presidente do Egito, Hosni Mubarak, que alimentava um
claro ressentimento pessoal em relação a Saddam Hussein;
dizia repetidas vezes que Saddam o havia traído na
primeira Guerra do Golfo, quando invadiu o Kuwait depois
de lhe dar garantias de que não o faria. Passei a Mubarak
um resumo de nossas atividades no Iraque, mas também
tentei direcionar a conversa para um tema mais amplo e
importante, incentivando-o a liderar um movimento de
modernização e moderação no mundo árabe. “Se isso
acontecesse”, eu disse, “o Egito obteria apoio de todos os
lados, tanto política quanto economicamente.”
Mubarak e eu conversamos novamente sobre o Iraque
quando lhe pedi para intervir junto a Saddam Hussein, a
fim de melhorar sua cooperação com a ONU. Mubarak
mencionou uma carta que recebera de Saddam Hussein,
que dizia: “Não se preocupe, está tudo certo”. Também me
transmitiu uma informação: “Sei que Saddam Hussein
possui armas biológicas”, me disse, “e ele as esconde nos
cemitérios”. Foi a primeira e última vez em que ouvi este
boato41.
Com tais sentimentos em processo de fermentação, a
reunião dos países árabes inevitavelmente degenerou em
uma série de argumentos virulentos. A proposta de asilo
feita pelo xeique Zayed não foi incluída na agenda. Com
isso, o xeique e sua delegação ficaram furiosos com o
secretário-geral da Liga Árabe, Amr Moussa. A proposta de
enviar uma delegação ao Iraque foi completamente
descartada. Sem uma posição unificada, os líderes do
mundo árabe praticamente não tinham voz ou qualquer
influência em relação a uma guerra deflagrada em sua
região – além de, em alguns casos, oferecer bases a
instalações para as tropas dos EUA.
Nem sequer os políticos mais experientes e pragmáticos
pareciam capazes de exercer qualquer influência
diplomática. O presidente francês Jacques Chirac
expressou uma veemente discordância da doutrina Bush –
do tipo “ou vocês estão conosco, ou contra nós”. Sua
franqueza ficou em evidência quando Blix e eu nos
encontramos com ele em meados de janeiro, no Palácio
Elysée, ocasião em que reclamamos do fato de não
conseguirmos muitas informações junto aos serviços de
inteligência ocidentais quanto aos supostos programas
iraquianos de armas de destruição em massa. A resposta
de Chirac mostrou uma sinceridade impressionante. “Vocês
sabem por que não conseguem obter as informações”,
declarou. “É porque eles não têm informação nenhuma.”
Na verdade, os especialistas do Serviço de Inteligência
francês nos haviam dito que estavam certos de que o
Iraque ainda possuía “pequenas quantidades” de armas
biológicas e químicas. O diretor do Serviço de Inteligência
francês por acaso estava presente na reunião, e o
comentário de Chirac o fez desviar o olhar. Chirac não
prestou atenção nisso, e seguiu falando, sem rodeio: os
serviços de inteligência, segundo ele, tinham o hábito de
primeiro tirar conclusões, para depois elaborar os
argumentos que as embasassem. A essa altura, o diretor
do Serviço de Inteligência prosseguia olhando fixamente
para o carpete.
Para mim, foi estimulante ouvir um líder da estatura de
Chirac expressar de maneira tão franca aquilo que nós, da
agência, tínhamos em mente. Ele disse que a ameaça feita
por Bush ao Conselho de Segurança – de que a ONU
passaria a ser inútil se não adotasse uma resolução para o
uso da força – era um total absurdo. Se os Estados Unidos
resolvessem agir por conta própria, disse Chirac, “Os EUA é
que serão considerados fora da lei, e não a ONU”.
Infelizmente, nos Estados Unidos de então, o
posicionamento de Chirac em relação ao Iraque foi
marginalizado, chegando mesmo a ser ridicularizado42.
Logo em seguida, no início de fevereiro, Blix e eu nos
encontramos com o primeiro-ministro britânico Tony Blair,
em seu modesto gabinete em Downing Street. Ele recebeu
cada um de nós separadamente: Blix primeiro e a mim na
sequência. Era uma prática incomum; a maior parte de
nossas interações naquele nível se dava de modo
conjunto. Blair mostrava-se relaxado e vestia-se de
maneira informal, sem usar o paletó. Ao sair, depois de ter
conversado com Blix, anunciou, em tom de brincadeira: “O
próximo!”, como se estivéssemos no dentista.
O clima da reunião era positivo. Expressei a Blair minha
preocupação de que iniciar uma guerra contra o Iraque por
causa das armas de destruição em massa poderia
desencadear tensões regionais. “No Oriente Médio, a
percepção”, expliquei, “é de que o Iraque não é foco das
atenções por causa das armas propriamente ditas, e sim
porque é um país muçulmano e árabe, e por isso não tem
a permissão – ao contrário de Israel – de possuir tais
armas.” Dei ressonância a uma fala de Chirac: que a
impaciência em partir para a ação no Iraque não seria
bem-vista em comparação com a inércia diante do conflito
entre israelenses e palestinos. Também mencionei as
críticas que vinha recebendo em relação à disparidade de
tratamento entre o Iraque e a Coreia do Norte.
Blair pareceu compreender meu ponto de vista e
compartilhou de minhas preocupações sobre a inércia na
questão palestina. Afirmou que Bush prometeu cuidar
dessa situação, uma vez que “a questão iraquiana”
estivesse resolvida.
Foi Jack Straw, ministro britânico das Relações Exteriores,
quem explicou a lógica da atitude de seu país: eles
tentavam dar total apoio aos norte-americanos em público
para poderem influenciar as decisões dos EUA de modo
privado. Esse ponto de vista parecia consistente: seria
muito mais perigoso deixar que os EUA agissem por conta
própria; ao “abraçar” os norte-americanos, o Reino Unido
aumentava sua capacidade de controlar as ações deles.
Honestamente, não percebi o menor indício de influência
britânica sobre a política norte-americana durante a
administração Blair. Essa via sempre me pareceu ser de
mão única, com os britânicos agindo como porta-vozes ou
apologistas do comportamento dos EUA.

Dispondo de tão poucos elementos para justificar seus


argumentos na questão nuclear – além da alegação
relacionada aos tubos de alumínio e o fiasco do yellowcake
do Níger –, muitas autoridades do governo dos EUA ainda
assim alimentavam a certeza de que o Iraque havia
acumulado pelo menos alguma quantidade de armas
químicas e biológicas. Com relação às armas nucleares, as
hipóteses soavam, às vezes, bizarras: lembro-me de uma
reunião no Departamento de Estado dos EUA com o
secretário-assistente John Wolf, na qual ele
insistentemente repetia que nossos inspetores deveriam
apreender o disco rígido de todos os computadores dos
cientistas iraquianos, para ter acesso ao que estava
acontecendo. Em outra ocasião, estive reunido com o
Comitê de Relações Exteriores, presidido por Henry Hyde.
Dávamos explicações sobre o progresso das inspeções
quando Tom Lantos, um eminente congressista democrata,
interrompeu: “Tenho uma solução para vocês”, disse ele.
“Leve todos os cientistas iraquianos a um cruzeiro de duas
semanas, e com isso conseguirão obter todas as
informações de que precisam sobre o programa do
Iraque.” Considerei a sugestão como uma piada. Não
respondi.
Decerto, o que Chirac disse era verdadeiro: nem os
Estados Unidos nem outros países detinham uma
significativa quantidade de informações secretas que
pudesse justificar suas convicções sobre o
desenvolvimento de armas nucleares pelo Iraque. Durante
o período de inspeções da AIEA, um número muito
pequeno de pistas nos foi passado pelos norte-americanos,
em forte contraste com a extensa quantidade de
informações filtradas pelos EUA para a AIEA e a UNSCOM
no início da década de 1990.
Não podendo contar com tais informações secretas, os
norte-americanos depositavam sua esperança na defecção
dos cientistas iraquianos, que, segundo eles, certamente
revelariam informações secretas sobre a localização e os
programas de armas sobre cuja existência os EUA tinham
certeza. Era essa a motivação por trás da estratégia de
levar os cientistas e suas famílias para fora do país, a fim
de serem entrevistados. Entretanto, grande parte dos
especialistas nucleares do Iraque não tinha sequer a
disposição de ser entrevistada na ausência de um
representante das autoridades iraquianas, ou sem a
utilização de um gravador. Estavam determinados a evitar
mal-entendidos – com as autoridades iraquianas ou com os
inspetores. Não podíamos forçá-los a deixar o país,
tampouco eles estavam dispostos a fazê-lo, tendo em vista
a potencial repercussão que isso teria para suas famílias e
amigos.
Além disso, percebemos que contávamos com meios
suficientes para facilitar nossas inspeções sem ter de
recorrer a essa medida adicional: estávamos confiantes de
que, podendo trabalhar com um prazo razoável,
descobriríamos quaisquer atividades existentes
relacionadas a armas de destruição em massa. Os
inspetores da AIEA estavam bastante familiarizados com o
potencial científico e tecnológico do Iraque e com a
topografia do país. Mesmo depois de um hiato de quatro
anos, os inspetores da AIEA não precisaram de muito
tempo para recuperar uma compreensão básica do
potencial nuclear do Iraque.
No entanto, essa credibilidade estava sendo descartada;
a autonomeada “coalizão dos que se mostraram dispostos”
decidira ignorar os nossos conhecimentos. Apesar da
experiência prática adquirida pelos inspetores da ONU,
estávamos perdendo a batalha da informação na imprensa
ocidental e, em alguma medida, aos olhos da opinião
pública. As afirmações feitas pela AIEA e pela UNMOVIC
eram desconsideradas, ou citadas de modo seletivo,
embora fôssemos, aos olhos e ouvidos da comunidade
internacional, os que tinham acesso aos fatos verdadeiros.
A guerra estava começando a parecer inevitável –
independentemente dos fatos. Tropas se concentravam no
golfo Pérsico. Nosso tempo estava terminando.

Em 12 de março, Tony Blair e Jack Straw submeteram à


ONU um projeto de resolução, num aparente esforço para
impedir a guerra. Ele continha seis “testes” sobre o
desarmamento. Se o Iraque fosse aprovado em tais testes
até 17 de março, Saddam Hussein teria a permissão de
permanecer no poder, e a ação militar não ocorreria.
Os seis testes eram, basicamente, compromissos que o
Iraque assumiria:

[2] Veicular uma declaração pública feita por Saddam


Hussein, em transmissão ao vivo no Iraque, na qual ele
admitiria a posse de armas de destruição em massa,
prometendo renunciar a elas.
[3] Permitir que cientistas iraquianos fossem entrevistados
por inspetores da ONU fora do Iraque.
[4] Entregar os 10 mil litros de antraz que, segundo os
britânicos, ainda estavam em posse do Iraque.
[5] Destruir todos os mísseis proibidos.
[6] Apresentar um relatório de suas aeronaves não
tripuladas e dos mísseis de controle remoto.
[7] Entregar todos os laboratórios itinerantes de
bioprodução, para que fossem destruídos.

O projeto de resolução não foi aprovado. Ainda que isso


tivesse acontecido, teria sido inviável atender pelo menos
três dos requisitos, já que não existia essa quantidade de
antraz, muito menos os laboratórios itinerantes, e Saddam
Hussein não podia admitir a posse de armas que não tinha.
Ainda mais curioso é o fato de que os britânicos
permitiriam a permanência de Saddam no poder. Isso
contrariava declarações posteriores de que a mudança de
regime no Iraque era, em si, suficiente para justificar a
invasão.
À medida que se aproximava o fim de semana entre 14 e
16 de março, os britânicos pareciam desesperados para
encontrar uma solução diplomática. Como última tentativa,
propuseram que se fizesse uma “avaliação de
desempenho”, ou seja, uma lista de certas tarefas que
caberia ao Iraque cumprir a fim de provar sua disposição
de cooperar. Sugeri a possibilidade de Blix e eu irmos a
Bagdá, de posse dessa avaliação, para negociar junto às
autoridades iraquianas. Os britânicos pareceram satisfeitos
com a sugestão.
Paralelamente, eu vinha pressionando Al-Sa’adi para que
convidasse Blix e a mim a um encontro direto com Saddam
Hussein. Essa carta-convite chegou no sábado, 15 de
março. Conversei com os alemães e com os franceses para
saber se eles apoiariam tal visita como uma ocasião
diplomática. Na opinião dos britânicos, os franceses
deveriam tomar a iniciativa.
Porém, nem os franceses nem os alemães demonstraram
grande entusiasmo. A percepção deles era que a decisão
de ir à guerra já havia sido tomada em Washington. Se eles
apoiassem uma missão diplomática envolvendo um
encontro com Saddam Hussein e esta fosse malsucedida, o
fracasso em si poderia representar um pretexto a mais, ou
a justificativa para a agressão militar – um pretexto que
eles não estavam dispostos a dar aos americanos. Assim,
eles se negaram a apoiar a missão. Revelou-se, então, que
o próprio Blix não estava disposto a visitar Bagdá
novamente; para ele, já era “tarde demais”.

Blix e eu formávamos uma boa parceria, mas nossos


pontos de vista nem sempre convergiam. Embora nossas
diferenças raramente aparecessem em público, às vezes
discordávamos de modo incisivo. Eu tinha interesse
particular em que ele se juntasse a mim para solicitarmos
mais tempo à continuidade dos procedimentos de
inspeção, considerando que não havíamos encontrado
provas da existência de armas de destruição em massa ou
de qualquer ameaça iminente, mas ele não se mostrou
interessado. A raiz de tal relutância talvez fosse, em parte,
o contraste entre as equipes de inspetores sob nossa
direção. A UNMOVIC era uma organização nova; seus
inspetores, ainda que tecnicamente habilidosos, eram em
sua maioria novos – novos no Iraque, novos na UNMOVIC,
novos no processo de inspeção e novos para Blix. Blix
tampouco podia contar com consultores técnicos
experientes em questões químicas e biológicas ou em
tecnologia de mísseis. Demetrius Perricos, o principal
conselheiro técnico de Blix, era um ex-membro da AIEA, de
alto nível e de grande experiência, além de confidente de
longa data; sua especialidade, porém, era a área nuclear.
Como muitos inspetores da AIEA estavam retomando o
contato com um terreno bastante familiar e com rostos
conhecidos, a agência, da mesma forma, depositava uma
confiança maior em suas avaliações.
Blix também tinha a sensação de ter sido traído pelo
Iraque no início da década de 1990 – só ouviu mentiras
deslavadas do diretor da Organização de Energia Atômica
do Iraque e de todos os seus subordinados. Teve também
de enfrentar uma hostil campanha da mídia, que
injustamente o acusava de ser moralmente fraco pelo fato
de a AIEA não ter descoberto o programa nuclear do Iraque
antes da primeira Guerra do Golfo – na época, a imprensa
não foi capaz de compreender as limitações da autoridade
da agência. Agora, na condição de diretor da UNMOVIC,
Blix podia se permitir rigidez em suas negociações com os
iraquianos.
Antes mesmo do retorno dos inspetores, os iraquianos
haviam solicitado “discussões técnicas” com a UNMOVIC e
com a AIEA, a fim de identificar claramente quais eram as
questões ainda pendentes relacionadas ao desarmamento
e o que podia ser feito pelo Iraque para dar um desfecho
satisfatório a essas questões. Blix negou o pedido.
Revelou-me sua suspeita de que o Iraque queria manipular
tais discussões para “descartar” pontos relevantes. Essas
discussões não ocorreriam, disse ele, antes do retorno dos
inspetores da UNMOVIC ao Iraque.
A AIEA já estava envolvida em discussões semelhantes
com nossos colegas iraquianos, com resultados positivos.
Essa interação ajudava nossa preparação e poderia
aumentar a eficácia de nossos inspetores no momento em
que as portas finalmente lhes fossem reabertas no Iraque.
E é claro que a AIEA não permitiria que nenhuma questão
fosse descartada. “Você é o diretor da UNMOVIC”, eu disse
a Blix. “Ninguém pode dar as questões da UNMOVIC por
encerradas sem o seu consentimento.”
A certa altura dessas discussões preliminares, numa
reunião no Hotel Sacher, em Viena, com a presença do
secretário-geral da ONU, Kofi Annan, Blix me acusou de
estar tomando partido do Iraque. “Isso é injusto”, Annan
disse a Blix. “Qual é o sentido de estarmos fazendo essas
reuniões com os iraquianos se você não está disposto a
discutir com eles quais são as questões de desarmamento
ainda pendentes?” Mas Blix recusava-se a ceder.
Para ser justo com ele e com a UNMOVIC, não era fácil
para eles, ao longo das inspeções, chegar a conclusões
sobre as verificações, pois, mesmo que os serviços de
inteligência tenham afirmado o oposto, os iraquianos não
conservaram registros precisos das armas químicas e
biológicas que destruíram na década de 1990. Além disso,
nem sempre Blix podia contar com dados exatos
fornecidos pelos iraquianos. Em uma reunião em Bagdá,
por exemplo, ele disse aos iraquianos que a lista de
cientistas que constava da declaração deles não estava
completa, portanto apresentou os nomes de mais quatro
ou cinco indivíduos. O general Al-Sa’adi consultou sua
equipe, e então explicou que os cientistas mencionados
haviam morrido ou deixado o país; ou então seus nomes
constariam do relatório, mas com pequenas variações de
grafia, devido à transcrição do árabe para o inglês.
Em um relatório ao Conselho de Segurança, Blix também
incluiu uma afirmação que foi indevidamente usada,
posteriormente, pelos EUA e pelo Reino Unido, a fim de
pressionar na direção do conflito. Tínhamos o hábito de
trocar esboços de nossos relatórios na noite que antecedia
nossos encontros; nesta ocasião em particular, não
fizemos isso. Blix escreveu em seu relatório: “O Iraque não
adotou a decisão estratégica do desarmamento, e não está
fazendo isso agora”. Achei que havia compreendido a
gênese de seu comentário. Numa das cartas enviadas
pelos iraquianos, eles se referiam às inspeções como
“assim chamadas” questões de desarmamento. Blix
interpretou essa frase como um sinal de arrogância, um
indício de que os iraquianos não estavam levando a sério
sua obrigação de prosseguir com o desarmamento. Na
mesma declaração para o Conselho de Segurança, ele
afirmou: “Não tenho prova nenhuma de que eles ainda
possuam armas”. Porém, esse trecho do relatório não teve
a mesma divulgação. A ironia, claro, é que, como foi
revelado mais tarde, não havia problemas relacionados ao
desarmamento no Iraque.
Quando, nas semanas que antecederam a guerra, pedi a
Blix que me acompanhasse na tentativa de pedir mais
tempo ao Conselho de Segurança, ele negou. Disse que
isso poderia dar a entender que ele seria capaz de atingir
determinados resultados com prazo marcado, e ele não
tinha certeza de que a UNMOVIC poderia cumprir tal tarefa.
“Mas”, disse ele, “se eles me perguntarem se precisamos
de mais tempo, direi que sim.”

Em 16 de março, quatro dias antes do início da guerra, o


presidente Bush e o primeiro-ministro Blair encontraram-se
com o premiê espanhol, José María Aznar, no arquipélago
dos Açores. Foram recebidos pelo primeiro-ministro de
Portugal, José Manuel Barroso. Das informações que
consegui obter sobre esse encontro, a proposta britânica
de “avaliação de desempenho” recebeu não mais que uma
atenção secundária. As conversas centraram-se em um
assunto diferente: se a assim chamada “hora da verdade”
havia ou não chegado. Blair e Aznar deixaram claro que
ainda estavam dispostos a dar uma chance à diplomacia.
Bush não tinha disposição para esperar: os procedimentos
que determinariam o destino do Iraque, insistiu ele, seriam
decididos naquele mesmo dia.
De fato, naquela manhã, Dick Cheney deu, nos Estados
Unidos, uma entrevista ao programa Meet the Press. O
apresentador, Tim Russert, perguntou sua opinião sobre a
conclusão da AIEA, segundo a qual o Iraque não havia
reconstituído seu programa de armas nucleares.
“Acreditamos que, de fato, Saddam Hussein retomou seu
programa de armas nucleares”, disse Cheney.
“Honestamente, penso que o Sr. ElBaradei está
equivocado.”
Na época do alerta feito por Cheney, dado antes do início
das inspeções, julguei que ele estava disposto a
desacreditar os resultados. Agora, na iminência da guerra,
era justamente isso que ele estava tentando fazer. “Se
você olhar para o histórico do desempenho da Agência
Internacional de Energia Atômica e para esse tipo de
questão, particularmente no que diz respeito ao Iraque”,
Cheney disse a Russert, “verá que eles sistematicamente
subestimaram ou deixaram de perceber a movimentação
de Saddam Hussein. Não tenho razão alguma para crer
que suas conclusões têm maior validade hoje do que já
tiveram no passado.”
É claro que não posso imaginar – tampouco conseguia
fazê-lo na época – o que Cheney sabia ou acreditava em
relação aos programas iraquianos de armas de destruição
em massa. No entanto, ele sabia exatamente o porquê de
uma validade muito maior ser atribuída às conclusões da
AIEA em 2003 a respeito do Iraque do que aquilo que foi
concluído em 1991. Ele sabia, tão bem quanto qualquer
pessoa, que na década de 1990 éramos autorizados a
verificar apenas aquilo que o governo de Hussein nos
reportava. Não nos era permitido viajar a outros lugares do
país, procurar instalações nucleares clandestinas,
tampouco investigar a fundo as transações de substâncias
nucleares ilícitas.
Ele também tinha uma forte percepção de que os tempos
haviam mudado. A AIEA passara anos no Iraque,
inspecionando “a qualquer momento, em qualquer lugar”.
Percorremos várias vezes o país todo. Entrevistamos todos
os cientistas nucleares à disposição. Destruímos
equipamentos, confiscamos registros, fizemos o material
nuclear restante passar pela certificação da AIEA e
explodimos as instalações de produção nuclear em Al
Atheer. Comparar 2003 a 1991 era uma distorção.
Aparentemente, a sorte havia sido lançada.

O telefonema aconteceu no início da madrugada, cerca de


1 da manhã, horário de Viena, numa segunda-feira, 17 de
março. Quem ligava era Ken Brill, embaixador dos EUA na
AIEA, para dizer que o governo nos aconselhava a deixar
Bagdá. A julgar pela maneira como Brill nos dava o recado,
a intenção de Washington era avisar com antecedência, de
modo que pudéssemos preparar nossa equipe no Iraque.
Liguei imediatamente para Hans Blix – que recebera um
telefonema semelhante – e para Kofi Annan, que
claramente queria evitar uma guerra por meio de uma
solução diplomática. Annan realizara um grande esforço
para manter a legitimidade da ONU e para impedir que o
Conselho de Segurança fosse manipulado em nome do
interesse de alguns poucos países. Em um discurso
proferido um mês antes, no William and Mary College, ele
declarou: “Esta é uma questão a ser tratada não por um
único Estado, mas pela comunidade internacional de modo
geral”. E acrescentou: “Quando os Estados decidem usar a
força não em autodefesa, mas para lidar com ameaças
mais abrangentes à paz e à segurança internacionais, não
existe um substituto para a legitimidade excepcional
garantida pelo Conselho de Segurança”.
Kofi Annan vinha sendo duramente criticado por uma
atitude que tomara em 1998, depois de uma pressão bem-
sucedida exercida sobre Saddam Hussein, para que
permitisse a entrada em oito locais – palácios presidenciais
– que estavam fora dos limites de acesso. À época, ele
disse: “Posso confiar em Saddam Hussein? Penso que é
possível fazer negócios com ele... Acho que não estou tão
pessimista como alguns de vocês”. A reação de algumas
pessoas foi ridicularizar o secretário-geral, chamando-o de
ingênuo.
Nesse momento decisivo, me peguei desejando que
Annan, um homem de fala mansa, tivesse elevado o tom
de voz em relação ao Iraque, particularmente diante das
acusações feitas por Bush em novembro, de que a ONU
não tinha força moral e que se tornaria uma organização
irrelevante. Eu ficara bastante impressionado com o
empenho determinado de Annan em envolver a sociedade
civil e explicar o papel da ONU, pressionando por ações
globais para tratar de assuntos como a pobreza e a
disseminação do HIV. Embora ele não exercesse nenhuma
autoridade no processo de inspeção, teria refletido sobre o
ponto de vista da esmagadora maioria da opinião pública,
em nível global, caso fosse mais ativo na defesa dos
princípios de ordem mundial expressos no Estatuto da
ONU. Porém, na época, seu foco estava centrado na
resolução do caso da divisão do Chipre.
Nos momentos aflitivos daquela madrugada de 17 de
março, quando conversamos por telefone, Annan revelou
sua intenção de adiar a tomada de decisão sobre a retirada
dos funcionários do Iraque até a manhã seguinte, horário
de Nova York, para poder discutir o assunto com o
presidente do Conselho de Segurança e conversar com
Powell. Também liguei para o presidente do Conselho de
Segurança para informá-lo sobre a mensagem que
havíamos recebido. Do mesmo modo, ele decidiu discutir a
questão com seus colegas pela manhã. Blix queria retirar-
se imediatamente de Bagdá em virtude das preocupações
relacionadas à segurança dos funcionários da ONU. A meu
ver, devíamos esperar – não deveríamos partir
simplesmente por causa da ordem dada pelos EUA.
Desliguei o telefone. Demoraria para pegar no sono.
Estava quase amanhecendo quando falei com minha
esposa, Aida, minha conselheira predileta. Juntos,
especulamos sobre os desdobramentos disso tudo. Quanto
tempo duraria a guerra? Qual seria o número de mortos e
feridos? Não havia mais nada que eu pudesse fazer. Meus
sentimentos oscilavam entre a raiva, uma sensação de
impotência e um grande pesar pela perda de vidas que
estava por vir. Qual era a justificativa para aquilo tudo?
É verdade que, ao longo das inspeções, acreditei que os
iraquianos pudessem ter agido com maior rapidez e
mostrado maior transparência. Nunca tive plena certeza do
porquê de isso não ter acontecido. Em parte, creio que eles
desejavam preservar sua dignidade: o respeito é a moeda
mais valiosa nas negociações realizadas no Oriente Médio
e teria sido inaceitável, para os iraquianos, parecer que
foram intimidados ou humilhados pelas inspeções. Talvez
tenha havido uma contínua suspeita de que as inspeções
da ONU eram um instrumento para a coleta de
informações secretas, para a preparação de uma guerra.
Ou talvez eles simplesmente acreditassem que, uma vez
que não havia armas de destruição em massa a serem
descobertas, a verdade, no fim das contas, prevaleceria.
Os iraquianos também compreenderam que os Estados
Unidos não tinham a intenção de permitir que Saddam
Hussein escapasse às suas responsabilidades. Nesse
contexto, é possível que a transparência e o pleno apoio às
inspeções não parecessem o caminho para uma solução. E
é claro que muitos acreditavam que a guerra era
inevitável, que não havia luz no fim do túnel.

Hans Blix, Kofi Annan e eu voltamos a nos reunir numa


teleconferência naquela mesma manhã de segunda-feira.
Sentíamo-nos paralisados, por concordar com a adoção de
medidas em que nenhum de nós acreditava. Annan decidiu
recomendar ao Conselho de Segurança, por razões de
segurança, a suspensão de todas as operações da ONU no
Iraque. A resposta do Conselho foi que “tomariam nota da
decisão”. Alguns membros, como foi o caso dos russos e
dos sírios, não ficaram satisfeitos; mas é claro que o
Conselho, de modo geral, compreendia o contrassenso de
– ao mostrar-se contrário às ações da coalizão – colocar em
risco a segurança dos funcionários da ONU. Tendo em vista
que a AIEA dependia da UNMOVIC em questões logísticas,
não tivemos outra escolha a não ser a adesão a essas
ações. Emiti um comunicado determinando que nossos
inspetores voltassem para casa.
Por coincidência, naquele mesmo dia começou o
encontro do Conselho de Governadores da AIEA, um dos
cinco encontros regulares que ocorrem ao longo do ano.
Neste houve várias expressões de reconhecimento ao
nosso trabalho. Diversos países, como África do Sul, Japão,
França, Alemanha e Brasil, enalteceram a agência por seu
profissionalismo e integridade na condução das inspeções
no Iraque.
As palavras do embaixador sul-africano na AIEA, Abdul
Minty, indicavam um mau presságio em particular. Além de
o mundo estar diante da lamentável perspectiva de uma
guerra com amplas consequências, disse ele, a
desconsideração pelo papel das Nações Unidas teria um
impacto profundo sobre as futuras relações internacionais.
As declarações do embaixador dos EUA, por sua vez,
causavam um enorme contraste; ele sequer mencionou o
Iraque. Os britânicos tampouco comentaram o assunto. A
maioria dos diplomatas presentes estava completamente
ocupada com os preparativos para a guerra iminente.
Eu não tinha ânimo para conversar. Quando chegou
minha vez de me dirigir ao Conselho, terminei minha fala
com uma citação: “Com relação a todas as nossas
atividades”, disse “me lembro das palavras de Adlai
Stevenson, em 1952: ‘O mal não está no átomo, mas na
alma dos homens’ ”.
O papel da AIEA na narrativa sobre o Iraque não terminou
com o início da guerra, em março de 2003. Nossa
incumbência de realizar as inspeções, conferida pelo
Conselho de Segurança, continuava em vigor. Estávamos
preocupados com a integridade das substâncias nucleares
armazenadas sob a aprovação internacional. Também
ouvimos boatos, transmitidos por nossos contatos no
Iraque, de preocupações relacionadas à segurança sobre a
pilhagem descontrolada em locais anteriormente
submetidos a um rígido controle.
Circularam boatos, vindos do Centro de Pesquisa Nuclear
de Tuwaitha, por exemplo, de que tambores de metal
contendo material radioativo estavam sendo esvaziados e
usados pela população civil para armazenar e transportar
água potável, leite e outros bens de consumo, e também
para lavar roupas. As implicações dessa prática, no que se
referia à segurança, eram terríveis. Fomos também
informados de que moscas-varejeiras não irradiadas, que
poderiam causar problemas nocivos à saúde humana e ao
gado, foram soltas em laboratórios43. Era difícil saber em
que acreditar. Tuwaitha era uma instalação enorme, com
centenas de estruturas; várias toneladas de óxido de
urânio yellowcake eram armazenadas ali, uma quantidade
muito menor de urânio de baixo enriquecimento, vários
isótopos radioativos e outros materiais perigosos. A
perspectiva de que Tuwaitha e outras instalações nucleares
fossem abandonadas sem segurança, à disposição de civis
sem treinamento específico – ou mesmo de militantes que
poderiam fazer uso do material radioativo para a
fabricação de uma bomba suja44, ou vendê-lo no mercado
negro internacional – era terrível.
Em entrevistas à imprensa, comecei a pressionar para
que os inspetores da agência pudessem retornar ao Iraque.
Enviei um comunicado à imprensa em 11 de abril, com a
observação de que eu escrevera aos norte-americanos
ressaltando a importância da segurança e da proteção
física de Tuwaitha, dizendo que recebera deles uma
garantia verbal.
Também deixei claro para qualquer um disposto a ouvir
que a situação exigia o conhecimento técnico da AIEA.
Segundo a Associated Press, um grupo de fuzileiros navais
norte-americanos, ao entrar na instalação de Tuwaitha,
acreditou ter encontrado provas do programa nuclear
clandestino de Saddam Hussein em “uma rede clandestina
de laboratórios, armazéns e escritórios à prova de
bombas”. A verdade é que os fuzileiros não encontraram
nada de novo. Eles haviam rompido os lacres da AIEA.
Aquele material estava controlado; eles simplesmente não
sabiam o que tinham diante dos olhos45.
Conforme eu disse a Wolf Blitzer, da CNN, em 27 de abril,
a AIEA era o único órgão com autoridade legal e com a
devida experiência de campo para realizar tais buscas.
“Estamos no Iraque há mais de dez anos. Conhecemos as
pessoas. Conhecemos a infraestrutura. Conhecemos a
documentação. Sabemos para onde ir. Por que deveríamos
reinventar a roda?” Na condição de funcionários públicos
internacionais, nossa credibilidade também era maior.
O embaixador dos EUA na AIEA, Ken Brill, telefonou para
David Waller, meu vice-diretor de administração e o norte-
americano de mais alto cargo dentro da agência, para
dizer que desagradara a Washington o fato de eu estar
“extrapolando os limites técnicos em minhas falas”. Em
meu encontro seguinte com Brill, expressei meu desalento
em relação às críticas feitas à agência. Ele disse que eu
não deveria dar conselhos aos EUA ou à coalizão sobre as
políticas de ação e sobre o que deveria ser feito. Respondi:
“Enquanto eu acreditar que esse aspecto das políticas faz
parte de minhas responsabilidades, e enquanto eu estiver
ocupando este cargo, continuarei expressando minhas
opiniões”.
No final de abril, me encontrei em um café da manhã
com John Wolf, secretário-assistente de Estado dos EUA
para a Não Proliferação. Ken Brill também estava presente.
Eles me disseram que o Departamento de Estado não era
mais o único a ter informações privilegiadas sobre o
Iraque; o Departamento da Defesa tinha agora o controle
sobre elas. No entanto, insistiram em que eu não
pressionasse para que os inspetores da AIEA retornassem
ao país. Se eu fizesse isso, disseram eles, “você terá uma
resposta que não irá lhe agradar”.
“Vocês têm uma agenda política”, eu lhes respondi,
“mas, na condição de diretor da AIEA, minha agenda é
diferente: é fornecer fatos à comunidade internacional e
fazer uma avaliação técnica, sem nenhuma manipulação
política.” Prometi a eles que a agência, caso recebesse a
permissão para retornar, seria transparente e objetiva
como de costume.
Logo depois disso, enviei uma carta aos Estados Unidos,
dizendo que nós precisávamos voltar ao Iraque para
continuar com as inspeções. Não tive resposta. Quando me
encontrei com Jack Straw em 12 de maio, novamente
insisti nesse ponto. A essa altura, reportagens começavam
a chamar a atenção para os riscos – humanitários, entre
outros – das substâncias nucleares não protegidas46. Disse
a Straw que, considerando os riscos relacionados à
segurança, a inércia da parte da coalizão basicamente
transmitia a mensagem de que as vidas dos iraquianos
eram descartáveis.
Straw pareceu compreender e concordou com minha
solicitação de que deveríamos retornar, especialmente a
Tuwaitha. Porém, segundo ele, Washington estava dividida
quanto a essa questão. Straw telefonaria a Colin Powell
naquele mesmo dia para insistir nesse ponto. Também deu
ordens a um de seus assistentes para pedir a Blair que
trouxesse o assunto à pauta quando falasse com Bush,
momentos depois. Além disso, estava sendo elaborado um
projeto de resolução do Conselho de Segurança cujo
objetivo era, entre outras coisas, revogar algumas das
sanções impostas ao Iraque, interrompendo o programa de
troca de petróleo por mantimentos e dando à coalizão um
estatuto jurídico de força de manutenção da paz. Contudo,
fui informado posteriormente de que, tendo em vista que
os britânicos não conseguiam obter o aval dos EUA, a
resolução não incluiu o retorno dos inspetores da AIEA47.
Depois de muita polêmica, a coalizão fez uma concessão,
concordando em fornecer apoio logístico aos inspetores
para que realizassem uma “inspeção material de
inventários” em Tuwaitha. A inspeção ocorreu em meados
de junho, com alcance limitado. Não podíamos investigar
os potenciais efeitos provocados à saúde dos civis em
decorrência da pilhagem. Tampouco pudemos retomar
nossas tarefas regulares de inspeção no Iraque, ou mesmo
concluí-las. Porém, àquela altura, os EUA e seus aliados
haviam criado um órgão à parte, com a finalidade de
buscar as armas de destruição em massa “desaparecidas”
do Iraque: o Grupo de Inspeção no Iraque.

A conclusão mais abrangente da AIEA sobre o Iraque no


período anterior à guerra – de que não havia provas sobre
o regime de Saddam Hussein ter reconstituído seu
programa de armas nucleares – estava sendo duramente
criticada. O fato de a UNMOVIC não ter conseguido revelar
armas biológicas e químicas também levantou suspeitas. A
coalizão estava determinada a provar, nem que fosse após
a ocorrência dos fatos, que as reservas de armas de
destruição em massa iraquianas e a infraestrutura a elas
associada – a razão de ser da guerra – de fato existiam.
Essa missão coube ao Grupo de Inspeção no Iraque,
composto de mais de mil especialistas dos EUA, do Reino
Unido e da Austrália, acompanhados de suas equipes de
apoio. Eles deveriam reportar-se diretamente ao secretário
da Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld.
David Kay reapareceu em cena com a função de liderar o
Grupo de Inspeção no Iraque. Kay deixara a AIEA ao
término de sua missão no Iraque no início da década de
1990, presumivelmente devido ao fato de não lhe terem
oferecido um posto mais alto. Assumira um cargo no
Instituto do Urânio48, um grupo de defesa da indústria
nuclear. Mas deixou o órgão quando declarações suas,
criticando a AIEA, supostamente desagradaram a
indivíduos próximos à organização, algo que teria
consequentemente enfraquecido os esforços do Instituto
do Urânio em promover a energia nuclear. Nos meses que
antecederam a guerra, Kay foi entrevistado como
especialista sobre os programas de destruição em massa
do Iraque, e declarou: “O Iraque está claramente violando
as determinações internacionais de livrar-se dessas
armas”.
Mas é claro que o Grupo de Inspeção no Iraque não
encontrou nenhuma prova que pudesse embasar tal
alegação. Kay demitiu-se em janeiro de 2004 e foi honesto
o bastante para confessar ao Comitê das Forças Armadas
do Senado dos EUA: “Todos nós estávamos errados”. Ele
foi sucedido por Charles Duelfer, ex-vice-diretor-executivo
da UNSCOM, e a busca prosseguiu de modo obstinado.
Finalmente, no início de 2005, após dois anos e meio de
inspeções no Iraque, a um custo de US$ 3 bilhões, o grupo
foi dissolvido. Não foi encontrado nada que pudesse
contradizer as conclusões da AIEA e da UNMOVIC. Para se
ter uma ideia, US$ 3 bilhões equivalem, aproximadamente,
ao orçamento de verificações para inspeções no mundo
inteiro num período de 25 anos.

Com o passar dos meses, as tragédias e as ironias da


guerra continuavam a crescer. Em 14 de agosto de 2003, a
Missão da ONU de Assistência para o Iraque, cuja função
era coordenar a assistência humanitária e outros assuntos,
instalou-se no Canal Hotel em Bagdá, onde a AIEA e a
UNSCOM já haviam fixado suas sedes. Cinco dias depois,
um ataque suicida com um enorme caminhão-bomba
atingiu o hotel. Mais de 20 pessoas morreram, incluindo
Sergio Vieira de Mello, o alto-comissário da ONU para os
Direitos Humanos, que havia sido nomeado representante
especial no Iraque. Vieira de Mello era um verdadeiro
astro: carismático e brilhante, além de pragmático e com
uma ação voltada à obtenção de resultados. Muitos o viam
como um possível sucessor de Kofi Annan.
Naturalmente, o ataque foi um choque. Perdemos
colegas valiosos. Conheci muitas pessoas que perderam a
vida, além de Vieira de Mello. Porém, igualmente
significativo foi o fato de o incidente ter simbolizado um
momento decisivo para a imagem da ONU. Durante
décadas, o icônico capacete azul da organização
representou um sinal de imparcialidade – e, por tabela, de
imunidade. Agora estávamos sendo tratados como os
auxiliares de uma força de ocupação que agia em benefício
das grandes potências.
Um mês depois, outro carro-bomba foi detonado do lado
de fora do Canal Hotel, matando um policial iraquiano e
ferindo mais funcionários da ONU. Os cerca de 600
funcionários da organização em Bagdá foram retirados do
país; outras organizações de assistência também retiraram
seus funcionários. Na reunião seguinte com os chefes das
agências da ONU em Nova York, enfatizei a urgência de
que a ONU e as suas agências voltassem a ser concebidas
como entidades politicamente independentes.
No fim de outubro de 2004, às vésperas da eleição
presidencial nos EUA, surgiu uma nova polêmica. O
ministro iraquiano da Ciência e Tecnologia escreveu à AIEA
em 10 de outubro, dizendo que uma quantidade imensa de
explosivos HMX e RDX – suficientes para a fabricação de
700 mil carros-bomba – havia sido saqueada de uma
instalação de munições em Al-Qa’qaa, que estivera sob
monitoramento da AIEA49. Antes de avisar ao Conselho de
Segurança, resolvi primeiro informar aos Estados Unidos. A
notícia então vazou de Bagdá para a mídia, resultando em
grandes reportagens no New York Times e no programa 60
Minutes50. Enviei, então, uma carta ao Conselho de
Segurança, conforme exigido por meu mandato da AIEA,
fornecendo as informações que a agência tinha em relação
à questão.
Seguiu-se um tumulto político: fui acusado de tentar
manipular a eleição presidencial dos EUA, como se, de
algum modo, eu tivesse influenciado o timing das
revelações. William Safire deu sua contribuição,
comparando-me a Osama bin Laden, acusando-me de dar
meu voto a John Kerry pelo fato de ter retransmitido o
relatório sobre Al-Qa’qaa ao Conselho de Segurança51. Foi
um golpe baixo. Safire foi impiedoso: “Bin Laden foi o
segundo forasteiro a tentar influenciar as nossas eleições,
numa ‘surpresa de outubro’. Suspeito que o primeiro tenha
sido Mohamed ElBaradei, o inspetor-chefe de armas
nucleares da ONU”.
Colin Powell me telefonou em Nova York, onde eu estava
para assistir à Assembleia Geral da ONU. Não fez nenhuma
acusação sobre o vazamento de informações, mas disse,
em tom amistoso, que eu deveria ter cautela durante a
época eleitoral, caso alguém da mídia me perguntasse
sobre a questão.
Expliquei a Powell a maneira como os acontecimentos
tinham sido divulgados. Observei que, depois de ter
recebido a carta do Iraque, informei primeiramente aos
EUA, por meio da missão norte-americana em Viena. Minha
expectativa era que ainda poderia restar alguma chance
de as tropas de coalizão encontrarem parte dos explosivos,
antes que a notícia viesse a público. Naturalmente, eu
estava ciente da complexidade do timing.
Porém, assim que a notícia vazou do Iraque e alcançou a
mídia, não tive muita oportunidade de escolha quanto ao
modo de proceder. O embaixador britânico na ONU, Sir
Emyr Jones-Parry, telefonou para nosso escritório em Nova
York para saber mais sobre o fato. Juridicamente falando,
os explosivos de Al-Qa’qaa estavam sob nossa custódia.
Era absolutamente necessário que reportássemos seu
desaparecimento ao Conselho de Segurança.
Eu disse a Powell que, a meu ver, a questão fundamental
era por que os iraquianos teriam escolhido aquele exato
momento para reportar o desaparecimento dos explosivos.
O problema central, obviamente, era a falta de controle
generalizada sobre o Iraque naquele momento; essa era
apenas uma das várias instalações essenciais que a
coalizão deixara desprotegida. Lembrei-me da doutrina de
Powell, de longa data: se você decide ir à guerra, deve
garantir um número adequado de soldados.
O chargé d’affaires do Iraque em Viena me disse,
posteriormente, que a decisão de reportar ou não à AIEA o
desaparecimento dos explosivos foi longamente discutida
em Bagdá. O consultor político da embaixada norte-
americana em Bagdá aconselhou os iraquianos a não nos
informar, pois, a seu ver, o mandato que o Conselho de
Segurança nos havia conferido tinha sido suspenso. Porém,
após ter discutido a questão com seu ministro de Ciência e
Tecnologia, Dr. Rashad Omar, decidiu que deveria reportar
o fato. O porquê de eles terem redigido a carta algumas
semanas antes da eleição e se estavam ou não cientes de
suas implicações ainda são um mistério.
David Sanger, do New York Times, me informou que Karl
Rove, o principal conselheiro de Bush, acreditava
firmemente que eu havia arquitetado o vazamento da
história dos explosivos de Al-Qa’qaa para a mídia. Rove
também teria ficado enfurecido com minha franqueza
numa palestra na Universidade de Stanford, em 4 de
novembro, poucos dias depois das eleições nos EUA. A
intenção de meu discurso era extrair lições do colapso
iraquiano e enfatizar a importância de trabalhar por meio
de instituições multinacionais e de ações coletivas. Eu
disse acreditar que as inspeções vinham sendo eficazes e
questionei se uma ação militar preventiva justificava-se de
acordo com os princípios descritos no Estatuto da ONU.
Também lembrei que todas as partes perdem quando a
comunidade internacional está dividida em questões
decisivas sobre paz e segurança:

A coalizão, no entender de determinadas pessoas, perdeu em credibilidade


ao decidir pelo uso da força sem ter o endosso do Conselho de Segurança. A
ONU perdeu em credibilidade, como organismo que conduz as ações contra
o Iraque em nome da legitimidade internacional, e como consequência
passou a ser considerada em alguns meios – especialmente por muitos no
Iraque – como um mero auxiliar da Força de Coalizão, e não mais como uma
instituição independente e imparcial. E talvez tenha sido o povo iraquiano
quem sofreu a maior perda: após anos de sofrimento sob uma ditadura
brutal e uma série de dificuldades em um extenso período de sanções, lhe
foi causado um sofrimento ainda maior com a devastação da guerra e o
imprevisto e prolongado período de revoltas e distúrbios civis.

Considerando o que fora constatado por inúmeros


analistas políticos desde então, não havia nada de
chocante nessas observações. O problema era que, à
época, praticamente ninguém, em nenhum meio
diplomático de destaque, estava disposto a questionar
publicamente as ações do governo dos EUA. A manchete
do San Francisco Chronicle no dia seguinte só agravou a
situação: “Inspetor de armas nucleares faz duras críticas à
administração Bush”.

A experiência mais chocante da Guerra do Iraque e seu


prolongado período subsequente – um aspecto
alarmantemente minimizado pelas reportagens da mídia
ocidental – é a perda de vidas de civis iraquianos.
Estimativas chegam a contabilizar 800 mil mortos durante
os três primeiros anos da guerra – número que não leva
em conta os milhões de mutilados ou feridos, ou os
milhões de desabrigados e privados de seus meios de
subsistência. Os EUA e o Ocidente mantiveram, em geral,
um registro preciso do número de seus soldados mortos.
No entanto, a população civil iraquiana permanece privada
de rostos ou de identidade nas reportagens da mídia. O
mesmo tem acontecido, numa escala razoavelmente
menor, no Afeganistão.
Como é que os líderes ocidentais podem deixar de
compreender o ultraje – o sentimento de injustiça,
humilhação e amargura – causado por essa tragédia, ou as
sequelas culturais com as quais provavelmente
conviveremos durante, pelo menos, uma geração?
Em janeiro de 2005, encontrei-me com Muwafaq al-
Rubaie, conselheiro de Segurança Nacional iraquiano, no
Fórum Econômico Mundial em Davos. Ele vinha
trabalhando em estreita cooperação com o governo dos
EUA, mas afirmou que a maneira como os norte-
americanos estavam conduzindo a ocupação no Iraque era
“criminosa”. Al-Rubaie disse que, quando as tropas dos
EUA entraram em Fallujah e mataram centenas de civis,
ele protestou ao general George Casey, o mais alto
comandante norte-americano no Iraque naquele momento,
que aquele não era um modo humano de conduzir a
guerra. A resposta de Casey, do modo como Al-Rubaie a
transmitiu, carecia – para usar uma expressão amena – de
qualquer piedade: “Sou um fuzileiro naval, e é assim que
faço as coisas”.
As ações realizadas pelos EUA e pela coalizão no Iraque
e, de maneira geral, na assim chamada “guerra ao terror”
foram consideradas precursoras de um choque de
civilizações e excelentes instrumentos para os extremistas
usarem como recrutamento. Os exemplos mais extremos
incluíam as “rendições” da CIA52, o presídio da Baía de
Guantánamo e os abusos praticados no presídio Abu
Ghraib. Essas imagens – um cardápio quase diário de
violências impostas a civis, filmadas no Iraque e no
Afeganistão e transmitidas pela televisão árabe –
permitiam entrever um desprezo fundamental pelos
direitos humanos, uma flagrante discriminação e o
desrespeito pelas normas internacionais sobre
procedimentos em tempos de guerra (tais como a proteção
de civis e o uso indiscriminado da força).
De maneira trágica, essas ações também macularam a
percepção de democracia no mundo árabe e muçulmano.
Longe de promover os valores americanos de liberdade e
respeito pela dignidade humana – valores que aprendi a
estimar e nos quais acreditei firmemente enquanto fui
estudante em Nova York –, os EUA e seus aliados
fomentaram um ethos de violência e de divisão cultural
que nos remete a eras passadas da história humana.
Na condição de diretor da AIEA, passei a me preocupar
seriamente com a reputação das instituições
internacionais, incluindo a nossa agência.Tinha receio que
nos considerassem agentes dos EUA e de seus aliados
ocidentais. Para mim, talvez o aspecto mais difícil de
aceitar em relação às inspeções do Iraque é elas terem
sido, em essência, um exercício burlesco; ou seja, os
Estados Unidos e seus aliados mais próximos jamais
pretenderam levar o resultado das inspeções a sério,
exceto na medida em que elas reforçavam seus
argumentos a favor da mudança de regime mediante o
emprego da força militar.
Desde o início da década de 1990, eu estava ciente de
que o regime de não proliferação nuclear havia entrado
numa nova fase, caracterizada pela atividade clandestina e
pela disposição de alguns países de praticar fraudes em
grande escala, a fim de atingir objetivos políticos e
relacionados à segurança, em um cenário que às vezes se
mostrava favorável a tais fraudes. A lição que aprendi com
a Guerra do Iraque foi que essas fraudes deliberadas não
se limitavam a países pequenos governados por
impiedosos ditadores. Mais do que nunca, os princípios
essenciais da agência, de preservar a independência e a
objetividade – ou, como os inspetores gostavam de dizer,
“Verificar, verificar, verificar” –, tornara-se um código ético
que bem definia a integridade de nossa organização.
Em última instância, a história da Guerra do Iraque talvez
possa ser resumida por uma série de questões diretas e
reveladoras. Se a comunidade das nações deseja viver de
acordo com as normas da lei, então quais medidas devem
ser tomadas quando as violações da lei internacional
resultam em um número imenso de mortes? Quem deve
ser responsabilizado quando a ação militar preventiva for
adotada em contravenção à lei, tal como foi codificada no
Estatuto da ONU – ou, ainda pior, quando é constatado que
a ação militar baseou-se em informações falsas, no
tratamento deliberadamente seletivo das informações, ou
na disseminação de informações equivocadas?
O Estatuto da ONU proíbe o uso unilateral da força militar
imposto por um Estado a outro, exceto em casos de
autodefesa contra um ataque armado. Quando se trata de
uma ameaça iminente, é utilizado o argumento de que a
“autodefesa preventiva” também se justifica,
particularmente em assuntos nucleares. A mudança de
regime, entretanto, não constitui uma motivação legítima
para a guerra. Tampouco é legítimo inventar argumentos
para uma guerra quando a mudança de regime é a
motivação maior. E, no momento em que uma guerra é
declarada, o texto da 4a Convenção de Genebra é muito
claro em relação à necessidade de proteger civis, da
mesma forma que o Direito Humanitário Internacional
claramente proíbe o uso indiscriminado da força53.
Em um artigo da Newsweek intitulado “O dilema da
divergência” e em seu recente livro, War of Necessity, War
of Choice [Guerra da necessidade, guerra de escolhas],
Richard Haass relata que, em julho de 2002, já havia
expressado a Condoleezza Rice sua preocupação sobre
atitudes que julgava ser a preparação para a guerra no
Iraque. Segundo Haass, antes que ele pudesse se estender
no assunto, ela o interrompeu: “Você pode economizar
saliva, Richard. O presidente já tomou sua decisão sobre o
Iraque”. Haass acrescenta: “A maneira como ela disse
aquilo deixou claro que Bush decidira ir à guerra”54.
O mesmo ficou implícito por meio de outras fontes de
informação internas. O embaixador britânico em
Washington, Sir Christopher Meyer, alegou que a decisão
de ir à guerra fora tomada em 2002, em Camp David, em
um encontro entre Tony Blair e Bush. Vários outros relatos
insinuam que, após os ataques terroristas de setembro de
2001, a obsessão neoconservadora era punir um país
muçulmano, de preferência árabe – o Iraque era o alvo
predileto. De acordo com essas interpretações, a Guerra do
Iraque era uma guerra ideológica, motivada pelas fantasias
de estabelecer esse país como um oásis de democracia
que, por sua vez, transformaria o cenário geopolítico do
Oriente Médio.
Tanto Blair quanto Bush deram indicações de que a
motivação essencial para ir à guerra era a mudança do
regime, independentemente das justificativas que
apresentaram. Assim como vários de seus parceiros
principais, eles exageraram de modo significativo a
iminência da ameaça nuclear de Saddam Hussein, que na
verdade não existia55. Em setembro de 2003, Dick Cheney
deu uma entrevista ao programa Meet the Press, da
MSNBC, em que, respondendo a questões contundentes,
reconheceu que havia “se expressado com inexatidão”
antes da guerra: “Jamais tivemos provas de que Saddam
Hussein possuía qualquer arma nuclear”.
Bush e Blair também fizeram declarações que
comprovadamente tinham frágil sustentação em fatos, tais
como a divulgação da importação, pelo Iraque, do urânio
do Níger, baseada numa clara fraude (Bush), ou a
declaração da capacidade do Iraque de lançar um ataque
com armas químicas em 45 minutos (Blair). Ambos se
mostraram deliberadamente seletivos no uso dos fatos à
sua disposição. E ambos administraram uma guerra na
qual, repetidas vezes, campanhas de bombardeio e
ataques blindados envolviam limitadas tentativas de
proteger a população civil contra o uso indiscriminado da
força, referindo-se às mortes e aos ferimentos dos civis
com o eufemismo “danos colaterais”.
O que deve ser feito em relação a essa ladainha? A ONU
deveria solicitar uma opinião à Corte Internacional de
Justiça quanto à legitimidade da Guerra do Iraque? Se a
guerra foi, de fato, ilegítima – e mais, se for levada em
consideração a imensa quantidade de mortes de civis –, a
Corte de Crimes Internacionais não deveria investigar se
isso constitui um “crime de guerra” e determinar quem é
responsável por ele?56 O Iraque deveria pedir reparações
junto à Corte Internacional de Justiça, ou a outro fórum,
pelos danos causados durante uma guerra iniciada em
violação do direito internacional e baseada em falsidades?
Se seguirmos os preceitos da lei, então a acusação para
quem cometeu crimes de guerra não deve limitar-se
àqueles que perderam – os Slobodan Miloševic´s do mundo
– ou aos Omar a-Bashirs, que são originários de regiões
pobres e há muito tempo oprimidas. Para que tenham
legitimidade, as normas jurídicas devem ser uniformes em
sua aplicação. Caso contrário, na condição de comunidade
internacional, somos culpados por aplicar dois pesos e
duas medidas.
Na condição de comunidade das nações, temos
sabedoria e coragem para adotar medidas corretivas
necessárias, a fim de garantir que uma tragédia como esta
não ocorra nunca mais?
31 “Até certo ponto”, ou “mais ou menos (um tratado)”. (N. dos TT.)

32 O P5 é uma sigla simples, usada em referência aos cinco membros


permanentes do Conselho de Segurança da ONU – China, França, Rússia, Reino
Unido e EUA. Não é mera coincidência que esses também sejam os cinco países
aos quais o TNP faz referência como detentores de armas nucleares.

33 Na época, Condoleezza era a conselheira de Segurança Nacional. Wolfowitz


era o vice-secretário da Defesa. Libby era o chefe do Estado-Maior do vice-
presidente Cheney.

34 O Comando das Nações Unidas (Coreia) do início da década de 1950 era uma
estrutura de comando que combinava forças militares de múltiplos países, a fim
de dar assistência à Coreia do Sul, para que repelisse as hostilidades da Coreia
do Norte. A Resolução 84 do Conselho de Segurança recomendava que os
países-membros da ONU se colocassem “à disposição de um comando unificado
sob a direção dos Estados Unidos da América”, oferecendo suas tropas e outros
tipos de assistência.

35 Um ponto de vista subjacente voltava a surgir: determinadas facções


políticas dos EUA têm, em geral, considerado a ONU um mero instrumento a ser
usado quando for conveniente, como um modo de tornar as ações lideradas
pelos EUA mais palatáveis aos demais países, mas a ser descartado ou evitado
sempre que seus objetivos não atenderem aos interesses dos EUA. Esses
indivíduos ou grupos tendem a não considerar os EUA como um membro da
ONU – não seriam, de fato, um país da comunidade das nações –, e sim como
uma espécie de patrono ou guardião dela, isento das regras que ajuda a
estabelecer para os demais. Tal ponto de vista talvez tenha ficado em evidência
durante a administração George W. Bush.

36 Posteriormente, foi veiculada (pela NBC Nightly News e pelo programa 60


Minutes) a informação de que Sabri era uma fonte de serviços secretos para a
CIA. De qualquer modo, quando a guerra começou, Sabri não constava da lista
dos 55 iraquianos mais procurados, e, assim que possível, deixou discretamente
o Iraque e fixou residência no Qatar.

37 Posteriormente, Ramadan foi incluído na lista norte-americana dos iraquianos


mais procurados. Foi capturado em agosto de 2003 e executado em março de
2007.

38 8 de setembro de 2002. Foi durante esse pronunciamento que Condoleezza,


acrescentando um esplêndido toque de melodrama, cunhou a frase: “Nós não
queremos que uma prova irrefutável se transforme em uma nuvem de poeira
radioativa”.

39 Haroun al-Rashid, que governou o império árabe a partir de Bagdá, no final


do século VIII, é uma figura histórica de proporções míticas, sendo considerado o
maior dos califas abássidas. O reinado de Al-Rashid tornou-se célebre por sua
extraordinária prosperidade cultural, científica e política.

40 “How the White House Embraced Disputed Arms Intelligence”, de David


Barstow, William J. Broad e Jeff Gerth, New York Times, 3/10/2004.

41 O presidente Bush, em suas memórias Decision Points, afirma que Mubarak


dissera ao general norte-americano Tommy Franks que “o Iraque tinha armas
biológicas e certamente as usaria no ataque contra suas tropas”. Essa
informação, segundo Bush, influenciou suas ideias sobre o status do Iraque
como país detentor de armas de destruição em massa e sobre a necessidade de
uma ação militar. Citado em: “Bush: Mubarak Informed U.S. that Iraq Had
Biological Weapons”, de Diaa Bekheet. Voice of America, 11/11/2010. Disponível
em: <www.voanews.com/english/news/Bush-Says-Egypts-Mubarak-Informed-US-
that-Iraq-Had-Biological-Weapons-107247693.html>.

42 Muitos líderes norte-americanos caracterizaram a posição francesa sobre a


guerra no Iraque como deslealdade; membros do Congresso chegaram a pedir
que as batatas fritas (French fries) e as torradas (French toast) do cardápio da
cafeteria da Casa fossem renomeadas como “batatas da liberdade” e “torradas
da liberdade”.

43 Uma praga carnívora, as moscas-varejeiras foram, em grande medida,


eliminadas da América do Norte e de outras regiões por meio da “técnica de
insetos estéreis”, na qual moscas macho saudáveis são irradiadas – o que as
torna estéreis – e então liberadas no meio ambiente para acasalamento. Dado
que as fêmeas só conseguem reproduzir uma única vez em seu ciclo de vida,
isso reduziu rapidamente a população dessa espécie. A AIEA ajudou muitos
países no desenvolvimento dessa técnica para as varejeiras e outras pragas. O
Iraque possuía um inventário de moscas-varejeiras com essa finalidade.

44 A bomba suja, também conhecida como “bomba de dispersão radiológica”, é


um dispositivo de baixa tecnologia que poderia ser usado por grupos
extremistas. Basicamente, ela consiste em explosivos convencionais atados a
um material nuclear ou radioativo. Não resulta em uma explosão nuclear, mas
ainda assim ela poderia dispersar seu conteúdo de modo eficaz, por exemplo,
em vários quarteirões de uma cidade, contaminando a área e provocando
pânico generalizado, além de provocar graves consequências econômicas.

45 “Experts Say U.S. ‘Discovery’ of Nuclear Materials in Iraq Was Breach of UN-
Monitored Site”, de William J. Kole, Associated Press, 10/4/2003.
46 Por exemplo, dois artigos de Barton Gellman, publicados no Washington Post,
em 25 de abril e 4 de maio, descreviam em detalhes os esforços desordenados
para controlar as instalações nucleares conhecidas no Iraque.

47 A última das sanções impostas ao Iraque só foi revogada em 15/12/2010,


liberando o país, por exemplo, de desenvolver um programa nuclear de natureza
civil e devolvendo o controle das receitas de petróleo e gás natural ao governo
iraquiano a partir de 30/06/2011. “UN Lifts Nuclear Weapons Sanctions on Iraq”,
Associated Press, 15/12/2010.

48 Posteriormente rebatizado de Associação Nuclear Mundial.

49 O HMX e o RDX são poderosos explosivos químicos. Ambos eram controlados


pela AIEA, pois, embora tenham muitas aplicações de finalidade não nuclear,
podem ser usados como substância detonadora de uma arma nuclear.

50 “Huge Cache of Explosives Vanished from Site in Iraq”, New York Times,
25/10/2004.

51 Artigo “Osama Casts His Vote”, New York Times, 1/11/2004.

52 A “rendição” à qual se faz referência, às vezes como “rendição


extraordinária”, consiste no processo de transferência de presos de um país
para outro sem que haja procedimentos jurídicos. Havia rumores de que as
rendições da CIA nesse período tinham o objetivo de enviar prisioneiros a países
onde se praticava a tortura. Tais rendições foram objeto de inúmeras
investigações e relatórios. Exemplo disso é o relatório do Comitê sobre Assuntos
Jurídicos e Direitos Humanos do Conselho Europeu, de junho de 2007, intitulado
“Detenções secretas e transferências ilegais de detentos envolvendo os
Estados-membros do Conselho Europeu: 2o relatório”. Documento disponível
em: <http://news.bbc.co.uk/2/shared/bsp/hi/pdfs/mary_08_06_07.pdf>.

53 As quatro Convenções de Genebra, de 1949, bem como seus protocolos


adicionais, compõem a base do Direito Humanitário Internacional, instituto
jurídico que regula a conduta em conflitos armados e procura limitar seus
efeitos. Em particular, elas protegem as pessoas que não estão tomando parte
das hostilidades (civis, trabalhadores na área da saúde e na de assistência
humanitária) e aqueles que deixaram de participar das hostilidades, como os
soldados feridos, os doentes e os que sofreram naufrágio e prisioneiros de
guerra. O Conselho de Segurança da ONU concluiu, em 1993, que as
convenções passaram a integrar o Direito Internacional Consuetudinário,
tornando-as compulsórias para todos os países, incluindo os não signatários.

54 Richard Haass é o atual presidente do Conselho de Relações Exteriores e, na


época da invasão iraquiana, era um consultor de confiança de Powell. Seu artigo
foi publicado na Newsweek em 2/5/2009. Seu livro War of Necessity, War of
Choice: A Memoir of Two Iraq Wars foi publicado pela editora Simon and
Schuster em 2009.
55 Ao testemunhar no Inquérito Chilcot, Blair afirmou que seu apoio à ação dos
EUA foi impelido pelo medo de “consequências desastrosas provocadas por uma
posição inflexível em relação às armas de destruição em massa e sua
proliferação, e em prol do relacionamento entre o Reino Unido e os EUA”. Blair
também afirmou ter dito a Bush, no final de 2001, que “se a mudança de regime
revelar-se a única maneira de lidar com a questão, estaremos dispostos a
participar”. Em meados de 2002, quando Colin Powell redigiu um memorando
dizendo: “Precisamos apresentar estes argumentos. Precisamos ter uma
campanha de informações do estilo Rolls Royce, semelhante à que tivemos no
final da campanha do Afeganistão, antes de começarmos no Iraque”, Blair
acrescentou, à margem do documento: “Concordo plenamente com isso”.
Richard Norton Taylor, “Tony Blair’s Promise to George Bush”, The Guardian,
21/1/2011. Disponível em: <www.guardian.co.uk/politics/2011/jan/21/tony-blair-
george-bush-iraq/>.

56 Se o promotor da Corte de Crimes Internacionais instalasse uma ação


criminal contra indivíduos específicos, qualquer país-membro da convenção
poderia, então, efetuar a prisão legal dessas pessoas, no caso de elas
desembarcarem em seu território.
4 • Coreia do Norte
O CLUBE DAS POTÊNCIAS NUCLEARES GANHA MAIS
UM MEMBRO

Por volta do final de 2002, menos de um mês depois de os


inspetores da ONU receberem a permissão para retornar
ao Iraque, a saga norte-coreana teve sua própria
reviravolta dramática. Nos anos seguintes, seria possível
observar os dois principais protagonistas desse drama – a
Coreia do Norte e os EUA – desempenhando papéis em um
enredo incrivelmente familiar de provocação e revanche,
lances diplomáticos arriscados e negociações
intermitentes, uma dinâmica que o restante da
comunidade internacional não tinha instrumentos para
mudar.
Já fazia tempo que o bastão nuclear fora passado a Kim
Jong Il, filho de Kim Il-Sung, e poucas mudanças ocorreram.
A Estrutura de Acordo, pacto firmado com os EUA que
especificava medidas a fim de resolver tensões sobre o
programa nuclear da Coreia do Norte, ainda vigorava.
Porém ambos os lados estavam frustrados: os norte-
coreanos, em razão do atraso dos EUA na entrega dos dois
reatores a água leve, prometidos em troca de uma
paralisação nas conhecidas operações nucleares da Coreia
do Norte; e os norte-americanos, porque o regime não
entrou em colapso, tampouco permitiu o acesso às suas
atividades nucleares do passado. Entre um e outro, a AIEA
continuava presente em Yongbyon, monitorando a
paralisação das instalações nucleares, mas incapaz de
realizar verificações significativas de salvaguarda em
outras partes do país57.
Houve indícios de reaproximação na relação entre os EUA
e a Coreia do Norte nos últimos meses de 2002. A
secretária de Estado, Madeleine Albright, prestes a deixar
o cargo, prestara uma homenagem em Washington ao
emissário de Kim Jong Il58. Pyongyang convidara o
presidente norte-americano para uma visita. A própria
Albright foi calorosamente recebida por Kim Jong Il. Pouco
tempo depois, o novo secretário de Estado, Colin Powell,
deu sinais de sua intenção em continuar o diálogo. “Temos,
realmente, planos de estabelecer relações significativas
com a Coreia do Norte, continuando o trabalho a partir do
ponto deixado pelo presidente Clinton e sua
administração”, disse Powell. “Elementos promissores
foram deixados na mesa de negociação, e vamos examinar
tais elementos”59. No entanto, as perspectivas do
presidente Bush eram diferentes. Em um encontro naquele
mesmo mês com Kim Dae Jung, presidente sul-coreano
que ganhara o Prêmio Nobel da Paz por sua “Política Raio
de Sol”, de abrandamento das hostilidades com seu
vizinho do norte, Bush deixou clara sua aversão ao contato
com o regime norte-coreano. Em janeiro de 2002, a Coreia
do Norte passou a ser considerada membro do “eixo do
mal”, ao lado do Irã e do Iraque. Bush teria se referido a
Kim Jong Il como “criança mimada” e “pigmeu”60.
Os últimos e frágeis sinais de progresso surgiram mais
tarde, naquele verão, quando – com muitos anos de atraso
– o primeiro bloco de concreto foi finalmente colocado no
local das prometidas instalações dos reatores de energia
nuclear a água leve, que pretendiam se transformar na
pedra angular de um programa de energia nuclear pacífico
da Coreia do Norte. Em setembro, o primeiro-ministro
japonês Junichiro Koizumi foi recebido por Kim Jong Il em
Pyongyang – uma importante conquista diplomática –, e os
dois países anunciaram sua intenção de normalizar as
relações61. Foi quando tudo mudou. O fator desencadeador
foi um relatório enviado a Washington pelo secretário-
assistente de Estado norte-americano para assuntos da
Ásia Oriental e do Pacífico, James Kelly, com relação a um
encontro recente com autoridades do governo norte-
coreano. Os detalhes desse encontro continuam obscuros
até hoje, mas, aparentemente, Kelly acusou os norte-
coreanos de conduzir um programa secreto de
enriquecimento de urânio. Segundo Kelly, seu colega
norte-coreano havia reconhecido a existência desse
programa; contudo, não foram revelados detalhes sobre
sua natureza ou extensão.
Os Estados Unidos exigiram a inspeção desse suposto
programa de enriquecimento. A notícia vazou para a
imprensa: imediatamente, surgiram relatos na mídia
afirmando que a Coreia do Norte havia trapaceado com os
termos da Estrutura de Acordo. Em vez de continuar o
diálogo e investigar a origem dessas “revelações”,
abordando-as dentro dos limites da Estrutura de Acordo, os
EUA persuadiram o Conselho Executivo da Organização de
Desenvolvimento de Energia da Península Coreana (ou
KEDO, na sigla em inglês, organização formada para
implementar as cláusulas da Estrutura de Acordo) a
suspender a entrega de óleo combustível pesado para a
Coreia do Norte62. Assim, as remessas desse componente
energético essencial para aquele país foram abruptamente
interrompidas.
A resposta de Pyongyang foi enérgica: declarou extinta a
Estrutura de Acordo – devido à interrupção norte-
americana do fornecimento de petróleo – e anunciou que
retomaria a operação do reator de Yongbyon. A Coreia do
Norte ameaçou expulsar os inspetores da AIEA, reiniciar as
operações de reprocessamento de seu combustível
queimado e retirar-se do TNP.
Não era blefe. No dia seguinte, Pyongyang solicitou
oficialmente à AIEA que retirasse seus lacres e
equipamentos de vigilância das instalações de Yongbyon.
Durante alguns dias, trocamos mensagens com nossos
colegas norte-coreanos. Era época de Natal, e eu
trabalhava em um resort numa praia em Colombo, no Sri
Lanka, onde minha família passava as férias. Concedi
entrevistas por telefone à CNN de nosso quarto de hotel,
usando meu filho, Mostafa, como assistente. Mantive o
Conselho de Governadores da AIEA informado sobre a
situação que se deteriorava. Em coordenação com minha
equipe em Viena, tentamos todos os argumentos possíveis
para dissuadir Pyongyang de uma ação intempestiva.
Em 26 de dezembro, dei uma declaração condenando
essas ações em virtude das “sérias preocupações com a
proliferação” por elas geradas, criticando a Coreia do Norte
por suas atitudes diplomáticas arriscadas no plano
nuclear”. Porém ninguém estava disposto a ceder. O
diretor-geral do Departamento Geral de Energia Atômica
da Coreia do Norte, Ri Je Son, nos solicitou formalmente a
remoção imediata de nossos inspetores. Não tivemos outra
escolha a não ser trazê-los de volta a Viena.
Numa reunião de emergência, o Conselho da AIEA
aprovou uma resolução lamentando as ações unilaterais da
Coreia do Norte e exigindo do país a cooperação em
relação aos protocolos de verificação da AIEA. Quatro dias
depois, em 10 de janeiro de 2003, a Coreia do Norte
anunciou sua saída do TNP. No período de algumas
semanas, técnicos norte-coreanos começaram a remover e
a desabilitar os equipamentos de monitoração da AIEA.
Deram início a reparos a fim de reiniciar o reator,
começaram a transportar as varetas de combustível e
adotaram medidas para reiniciar o reprocessamento de
combustível queimado.
Insisti publicamente para que Pyongyang revertesse sua
decisão, argumentando que isso era contraproducente
diante dos esforços de alcançar a paz e a estabilidade na
península coreana. Na verdade, autoridades de governo
em nível ministerial encontraram-se posteriormente,
naquele mesmo mês, a fim de buscar uma saída
diplomática. Mas estava claro que o dano já tinha sido
feito, pelo menos temporariamente.

Os políticos linha-dura dos EUA estavam claramente


satisfeitos com essa interrupção do processo de
reaproximação com a Coreia do Norte. Para eles, a mera
ideia de envolver-se com o regime de Kim Jong Il era
repugnante. Tampouco lhes agradava a Estrutura de
Acordo, que eles caracterizavam como um pacto que
recompensava a Coreia do Norte por sua violação do TNP.
Embora a Estrutura de Acordo contivesse imperfeições, a
alternativa a ela iria se revelar muito pior.
O Conselho da AIEA encaminhou o caso ao Conselho de
Segurança, mas este não tomou nenhuma medida. Sua
atenção, bem como a do restante do mundo, estava
totalmente voltada à catástrofe que acontecia no
continente ao lado, no Iraque. Mas a razão verdadeira foi a
China, membro do P5, que exercia seu poder de veto e
cujas decisões tinham grande influência. A China se ateve
à sua crença habitual, e justificável, de que a única
maneira de resolver a crise norte-coreana ou questões
semelhantes era por meio das negociações e do diálogo.
Assim, em abril de 2003, Pequim serviu de anfitriã para
conversas diretas entre os EUA e a Coreia do Norte. Porém
as duas partes fizeram pouco progresso; as tentativas de
diplomacia a portas fechadas davam lugar a exigências, a
acusações públicas e à recusa de propostas.
Logo depois, a Coreia do Norte anunciou a cessação de
seu último pacto de não proliferação: um acordo bilateral
com a Coreia do Sul para retirar armas nucleares da
península. Sem mostrar sinais de desânimo, a China
continuou a pressionar no intuito de uma solução
diplomática, abrigando o primeiro entre os assim
chamados encontros “de seis nações” ou “seis partes”:
uma longa série de negociações que, além da Coreia do
Norte e dos EUA, incluiria Japão, Rússia e Coreia do Sul.
À AIEA não coube papel nenhum nos encontros entre as
seis partes. Na verdade, em todos os sentidos práticos, os
anos subsequentes à saída da Coreia do Norte do TNP, em
2003, foram uma caixa-preta. Ficamos completamente no
escuro. Não tínhamos autoridade de inspeção naquele
país. Embora eu fosse favorável aos esforços de envolver
os norte-coreanos em um diálogo, por meio dos encontros
com as demais partes, o fato de não haver uma resposta
internacional unificada e consistente à escalada norte-
coreana estava, a meu ver, criando um perigoso
precedente. Por um lado, no caso do Iraque, o governo
havia convidado os inspetores internacionais de armas,
que não encontraram provas da continuação dos
programas de armas de destruição em massa; no entanto,
as conclusões da inspeção foram descartadas, favorecendo
o argumento pró-invasão (supostamente baseado em uma
“ameaça à paz e à segurança internacionais”). Por outro
lado, o governo norte-coreano não respondera às questões
sobre o plutônio escondido, sobre as instalações secretas e
sobre seu supostamente não declarado programa de
enriquecimento; inspetores da agência foram expulsos do
país, e os norte-coreanos se retiraram do TNP, dando
assim fortes sinais quanto às suas intenções. Ainda assim,
não houve nenhuma condenação coletiva feita pelo
Conselho de Segurança, e a AIEA, órgão encarregado da
prevenção da proliferação nuclear, nem sequer fazia parte
das conversas que estavam em curso63.
Em cada reunião do Conselho da AIEA, manifestei minha
preocupação e nossa disposição de trabalhar com as
partes envolvidas na busca de uma solução abrangente,
que contemplaria tanto os interesses norte-coreanos na
área de segurança quanto as prioridades da comunidade
internacional em relação à não proliferação. Nos
bastidores, pedi aos membros das seis partes envolvidas
que me fornecessem informações, mas não parecia haver
muito que relatar.
Também fui a fóruns públicos a fim de expressar minha
insatisfação. Durante um debate aberto no Conselho de
Relações Exteriores, disse ao grupo: “O que me preocupa
em relação à Coreia do Norte é que eles nos enviam os
piores sinais de serem potenciais proliferadores: se você
está disposto a proteger a si mesmo, deve acelerar seu
programa nuclear, pois, assim, de alguma maneira estará
imune. Dessa maneira, as pessoas se sentarão à mesa de
negociação com você. E se isso não for feito o mais rápido
possível, estará sujeito a uma possível ação preventiva” –
referência, é claro, à ação militar no Iraque64.
Encontrei-me com Colin Powell em Washington, em junho
de 2004. Àquela altura, as seis partes estavam prestes a
terminar sua terceira rodada de encontros, sem que
nenhum progresso significativo tivesse sido alcançado.
Powell me disse que estava disposto a adotar uma postura
mais flexível em relação à Coreia do Norte. Para ele, no
entanto, os norte-coreanos iriam obstruir o diálogo até
novembro. “Se eu fosse os norte-coreanos”, disse ele,
“esperaria o resultado das eleições, pois se os democratas
chegarem à Casa Branca é bem provável que adotem uma
abordagem mais flexível.”
A partir das informações que pude obter, além da
construção dos dois reatores de energia, a Coreia do Norte
estava pressionando para obter maior assistência, bem
como garantias de segurança e, no fim, uma normalização
das relações com os EUA em troca da renúncia ao seu
programa nuclear. Os Estados Unidos, e em certa medida o
Japão, pressionavam no sentido contrário. Queriam que a
Coreia do Norte desmantelasse completamente suas
instalações nucleares, impedindo o reinício da operação do
ciclo de combustíveis; os EUA também exigiram que se
suspendesse a ajuda internacional até que a Coreia do
Norte adotasse medidas de peso e passíveis de
verificação. A China, a Rússia e a Coreia do Sul eram
favoráveis a uma abordagem mais moderada, baseada na
adoção de atitudes de ambas as partes.
Nenhuma das partes cedia.
O cenário diplomático ficava gradativamente mais
sombrio. No momento da quarta rodada de encontros, a
Coreia do Norte se recusou a comparecer, culpando os EUA
por sua postura “hostil”. Quando visitei a Coreia do Sul e o
Japão, durante a primavera, percebi que os demais
membros dos encontros entre as seis partes também se
mostravam insatisfeitos com a postura linha-dura dos
norte-americanos. O vice-ministro das Relações Exteriores
da Coreia do Sul atribuiu o problema a uma diferença de
perspectiva: segundo ele, para os EUA, a Coreia do Norte
era simplesmente mais um caso de país envolvido com
armas de destruição em massa, enquanto “para nós, os
norte-coreanos são nossos inimigos, mas também nossos
irmãos”. O Japão, segundo me disseram, preferiria centrar
o foco no processamento de plutônio pela Coreia do Norte,
um risco de proliferação que não estava sendo contestado,
e postergar a questão do suposto enriquecimento de
urânio. Com a AIEA fora do país, não havia “paralisação”
em vigor que pudesse impedir a Coreia do Norte de
reprocessar seu combustível queimado, processar plutônio
ou construir armas nucleares.
Perto do final daquele ano, Bill Richardson, governador
do Novo México, me procurou em segredo. Eu conhecia
Richardson desde a época em que exerceu o cargo de
embaixador dos EUA na ONU, entre 1997 e 1998, e
posteriormente, quando foi secretário de energia. Ele
queria saber se eu poderia mediar o debate e estava
interessado em ir para a Coreia do Norte na condição de
meu enviado – uma proposta incomum, porém aceitável.
Acrescentou que gostaria de manter a linha-dura em
questões de política externa, com as quais obviamente não
estava lidando em sua função de governador.
Richardson tinha experiência com a diplomacia norte-
coreana: no cargo de representante do Congresso dos EUA
em 1996, garantiu com êxito a libertação de Evan
Hunziker, cidadão norte-americano mantido sob a custódia
norte-coreana; e no início de janeiro de 2003, quando a
situação norte-coreana estava entrando em colapso,
Pyongyang mandou seus enviados para um encontro com
Richardson no Novo México, com a suposta expectativa de
usá-lo como intermediário. Ele fora também enviado a
Bagdá para garantir a libertação de dois trabalhadores
norte-americanos da indústria aeroespacial, durante a
presidência de Bill Clinton, e viajara a Bangladesh em
1996, quando conseguira a absolvição de uma mulher
norte-americana acusada de tráfico de heroína. Portanto,
ele tinha um histórico de sucessos como mediador em
áreas problemáticas, que geralmente recebiam uma
significativa cobertura da mídia.
Concordei em apoiar a missão de Richardson. Seu
objetivo era obter, também, a aprovação do Departamento
de Estado, que se materializou na forma de promessa de
transporte aéreo militar, acompanhada do alerta de que
ele não negociaria em nome do governo dos EUA. Logo em
seguida, Richardson me enviou um fax: os norte-coreanos,
que tinham se mostrado receptivos à sua visita, haviam
mudado de ideia.
Em outra curiosa reviravolta, amigos sul-coreanos que eu
conhecera na Conferência de Pugwash65 pediram que eu
me encontrasse com um banqueiro sueco chamado Peter
Castenfelt – segundo eles, o consultor de uma autoridade
de governo norte-coreana equivalente ao cargo de
primeiro-ministro. Embora cético, concordei com o
encontro. A aparência de Castenfelt, no escritório da AIEA
em Viena, não me transmitia a mínima confiança: suas
roupas estavam amarrotadas; seu cabelo, despenteado.
Sorriu ao apertar minha mão, me olhando através de seus
óculos demasiadamente grandes.
Ao sentarmos, Castenfelt foi direto ao ponto. Kim Jong Il,
disse ele, enfrentava um dilema. Desejava a abertura do
país para tirar a Coreia do Norte de sua situação de
isolamento. O problema eram os velhos generais do
exército da geração de seu pai, que se opunham a
qualquer medida de reaproximação com a comunidade
internacional. Segundo Castenfelt, os norte-coreanos
reconheciam a importância do restabelecimento de
relações com a AIEA. Eles haviam redigido uma carta me
convidando a visitá-los, mas adiaram o envio pelo fato de
eu ter dado uma declaração sobre eles que não lhes
agradou. Castenfelt prometeu marcar um encontro com o
embaixador norte-coreano na ONU durante minha viagem
a Nova York. Porém o encontro não aconteceu.
Peter Castenfelt era uma figura enigmática, uma espécie
de empresário político a serviço de vários governos. Pelo
que pude descobrir, ele estivera a serviço da Rússia na
época de Boris Yeltsin, intercedendo para obter
empréstimos para a Rússia junto ao Fundo Monetário
Internacional. Posteriormente, a Alemanha e a Rússia o
enviaram aos Bálcãs para persuadir Slobodan Miloševic´ a
cessar o bombardeio do Kosovo. Ele parecia ter conexões
de alto nível em toda parte, incluindo Estados Unidos e Irã.
Nunca consegui saber ao certo o que ele buscava com
esse papel de mediador ad hoc, e ele abandonou a cena
norte-coreana da mesma maneira repentina que nela
entrou.

De repente, o cenário foi tomado por nuvens negras. A


quarta rodada dos encontros entre as seis partes chegou a
um impasse em agosto de 2005, mas foi retomada em
setembro, quando todos os envolvidos chegaram a uma
consensual Declaração Conjunta, que estabelecia os
princípios com base nos quais abordariam a situação
norte-coreana. A declaração incluía a aceitação, da parte
da Coreia do Norte, de abandonar o programa de armas
nucleares e de retornar ao TNP e à salvaguarda da AIEA.
O que havia mudado? A meu ver, a diferença essencial
foi Condoleezza Rice, a então secretária de Estado, que
conseguiu convencer Bush (a despeito da oposição de seus
colegas, particularmente Dick Cheney e seu grupo) sobre a
necessidade de uma mudança de rumo. A influência dela
ficou evidente com a nomeação do embaixador
Christopher Hill como chefe da delegação dos EUA para os
encontros dos seis países e como secretário-assistente de
Estado para assuntos da Ásia Oriental e do Pacífico alguns
meses depois. Hill, um homem pragmático que acreditava
na gradativa construção do sentimento de confiança por
meio do diálogo, rompeu com os hábitos precedentes e
começou a contatar diretamente seus colegas em
Pyongyang. Considero Hill uma commodity rara, um
funcionário de alto nível da administração Bush capaz de
uma abordagem não ideológica e dotado de bom senso
para lidar com crises geopolíticas. Hill foi
extraordinariamente habilidoso ao se utilizar de diplomacia
com os norte-coreanos; correram boatos de que os
japoneses começaram a tratá-lo, em situações reservadas,
como “Chris Jong-Hill”.
Ficou claro que Hill tinha pouca paciência para lidar com
os políticos linha-dura de Washington; a certa altura,
enquanto conversávamos a sós, ele me disse: “O corpo de
John Bolton pode não estar mais aqui, mas as mãos dele
estão” – em referência à contínua influência exercida por
Bolton em Washington. Hill e eu geralmente
concordávamos sobre questões de cunho preocupante: o
valor do diálogo, a falta de visão tão característica das
atitudes sem comprometimento e a importância de uma
abordagem pragmática, comprometida e adotada passo a
passo em relação à Coreia do Norte. Infelizmente, segundo
ele me confidenciou no final, surgiu todo tipo de
obstáculos para impedir seu progresso na situação nuclear
da Coreia do Norte. Certa vez, mencionei a ele que achava
insuficiente o número de funcionários no Departamento de
Estado com o devido conhecimento sobre controle de
armas. Ele deu um largo sorriso e disse que era por isso
que estava sendo tão mal aconselhado.
Diferentemente da Estrutura de Acordo, a Declaração
Conjunta não incluía prazos específicos, nem mesmo um
roteiro. Algumas pessoas nos EUA se referiam a ela como a
“filha da Estrutura de Acordo”, sugerindo com isso que,
três anos depois de descartar a Estrutura de Acordo, a
administração dos EUA simplesmente a substituiu por uma
alternativa de qualidade inferior. Ainda assim, era um
importante passo adiante. A Coreia do Norte prometeu
fazer concessões em troca de assistência no plano
energético. Os Estados Unidos declararam não ter intenção
de invadir a Coreia do Norte, que providenciariam uma
garantia de segurança com esse propósito, e
comprometeram-se a respeitar a soberania norte-coreana.
Então, mais uma vez, as negociações foram
interrompidas. Os EUA, mencionando uma investigação,
ainda em curso, do Departamento do Tesouro norte-
americano, congelou aproximadamente US$ 25 milhões
em bens norte-coreanos no Banco Delta Asia em Macau,
alegando que eles estavam associados a lavagem de
dinheiro e a falsificações. Isso provocou a ira de
Pyongyang, mas os norte-coreanos propuseram retomar os
encontros entre os seis países caso os EUA liberassem os
fundos. Os EUA se recusaram, dizendo que não havia
relação entre questões nucleares e financeiras.
Com as conversas ainda em impasse, a Coreia do Norte
anunciou que realizaria seu primeiro teste nuclear. E seis
dias mais tarde, em 9 de outubro, Pyongyang cumpriu a
promessa. A detonação foi bastante pequena pelos
padrões dos testes; nos círculos nucleares, havia grandes
dúvidas em relação à eficácia da tecnologia norte-coreana.
Mas não havia como negar um aspecto bastante sério:
mais um país – isolado, empobrecido, sentindo-se
enormemente ameaçado pelos EUA, porém ainda assim
com uma postura de desafio – havia se juntado ao clube
exclusivo dos Estados detentores de armas nucleares.
Se a intenção do teste nuclear norte-coreano foi chamar
a atenção, foi bem-sucedida. O Conselho de Segurança da
ONU emitiu uma resolução condenando o teste,
acrescentando sanções pouco enérgicas e que, em alguns
casos, repetiam o que já estava em vigor. O ex-secretário
da Defesa dos EUA, William Perry, em artigo no
Washington Post, afirmou que o teste foi uma
demonstração do “total fracasso das políticas da
administração Bush em relação à Coreia do Norte”66. O ex-
presidente Jimmy Carter adotou uma postura mais
conciliadora, observando que ainda era possível retomar a
Declaração Conjunta de 2005: “O que se deve evitar”,
escreveu, “é permitir que um Estado nuclear sitiado tenha
a convicção de que está permanentemente excluído da
comunidade internacional, permitir que seu povo sofra
privações terríveis e que os adeptos da linha-dura exerçam
total controle das condições militares e políticas existentes
no país”67.
Uma perspectiva radicalmente oposta, mas que refletia
os pontos de vista dos falcões dos EUA, foi apresentada
por David Frum, que trabalhara redigindo os discursos do
presidente Bush e que alegava ser o autor do conceito de
“eixo do mal”. Em artigo no New York Times, um dia após
os testes, ele defendeu medidas severas: acelerar o
emprego dos sistemas de defesa contra mísseis dos EUA;
cessar a ajuda humanitária à Coreia do Norte; trazer vários
países asiáticos para dentro da OTAN. Frum ainda teve
outra ideia: “Os EUA”, escreveu, deveriam “estimular o
Japão a renunciar ao Tratado de Não Proliferação Nuclear e
criar seus próprios impedimentos nucleares”68. Suspirei
aliviado por Frum ter deixado de fazer parte do processo
de elaboração de políticas.
Com um novo clima de urgência pairando no ar, os
encontros entre as seis partes rapidamente foram
retomados. Condoleezza Rice, num encontro no final de
outubro, perguntou-me se eu achava que a AIEA poderia
desempenhar algum papel para ajudar na resolução do
impasse da Coreia do Norte. “Não basta a mera declaração
da Coreia do Norte de sua disposição de desnuclearizar a
península coreana”, disse ela. “É necessário que se faça
algo de concreto.”
Sem dúvida, estávamos dispostos a um envolvimento
capaz de amenizar a crise. “Poderíamos começar com
algumas atividades de inspeção consensuais”, respondi, “e
agir progressivamente a partir daí.” Condoleezza
concordou. Não pude deixar de pensar que, depois de todo
aquele tempo, estávamos, no fundo, reinstaurando a
abordagem “uma ação em troca da outra”, própria da
Estrutura de Acordo, descartada havia tempos. Mais
peculiar ainda, considerando o que veio à tona no Iraque
sobre o presente comportamento dos EUA em relação ao
programa nuclear do Irã, era o fato de que os norte-
americanos estavam retomando sua participação em
conversas com os norte-coreanos – e mostrando-se
aparentemente abertos à possibilidade de ceder aos
desejos desse país – quase imediatamente depois que eles
detonaram sua primeira arma nuclear.
A fim de amenizar as tensões, os Estados Unidos
começaram a estudar uma maneira de seus advogados e
elaboradores de políticas “descongelarem” os fundos
norte-coreanos no banco de Macau. Em fevereiro de 2007,
a Coreia do Norte concordou em iniciar o fechamento do
reator de Yongbyon e permitiu que os inspetores nucleares
da AIEA retornassem ao país em troca de assistência – o
primeiro passo para um novo acordo de desarmamento. No
dia 23 do mesmo mês, recebi uma carta-convite para
visitar o país. O convite citava meu comentário de que a
única forma de resolver a questão coreana era por meio do
diálogo e do engajamento pacíficos, e não por meio de
pressão. Foi um sinal de boas-vindas. Publiquei o
documento, afirmando que “este é um passo na direção
correta”.
Numa conversa telefônica com Condoleezza, no dia
seguinte, brincamos a respeito de minha visita iminente.
“Muito obrigado”, disse ironicamente, “por ter
providenciado minha próxima visita à Coreia do Norte
durante o inverno.” Relatei a ela o frio que fazia em minha
visita anterior, em 1992, lembrando o quanto tremi no
quarto do hotel.

Minha partida rumo a Pyongyang foi precedida de uma


revelação impressionante. Trata-se de um artigo veiculado
pela Agence France Presse69, baseado em testemunhas
parlamentares, afirmando que a confiança dos EUA nas
informações secretas sobre o suposto programa de
enriquecimento de urânio norte-coreano – informações que
haviam arruinado a Estrutura de Acordo em 2002 –
encontrava-se em um “nível médio”, o que significava que
ainda havia informações duvidosas ou conflituosas.
Fiquei perplexo. O programa secreto de enriquecimento
de urânio foi a razão apresentada pelos EUA para cortar o
fornecimento de combustível para a Coreia do Norte, o
fator que desencadeou uma sequência inteira de
manobras políticas nos quatro anos subsequentes – a
expulsão da Coreia do Norte da AIEA, seu abandono do
TNP, a aceleração de seu programa de armas, as
conversações intermitentes, as ameaças e sanções e, por
fim, o teste de um aparato nuclear. Tudo isso teve origem
em uma alegação incerta. A revelação foi um golpe
adicional à credibilidade e ao manuseio competente de
informações secretas do Serviço de Inteligência dos EUA.
Posteriormente, Christopher Hill me disse que lera as
atas do encontro original, no qual a Coreia do Norte fazia
“confissões” ao seu predecessor, James Kelly. Ele fez uma
careta e deu de ombros; parecia-me óbvio que Hill não
estava convencido da natureza das confissões.
Na condição de diretor da AIEA, eu não podia expressar
abertamente a minha discordância em relação à forma
como a questão estava sendo tratada. Mas não precisei
fazer isso: vários críticos, incluindo alguns que se
mantiveram em silêncio na época da invasão do Iraque,
agora expressavam sua opinião. A reação exagerada a
informações secretas questionáveis levara uma nação
pária a um isolamento ainda maior. E esse isolamento dera
aos generais e cientistas norte-coreanos o tempo e a
motivação adicionais para desenvolver e detonar uma
arma nuclear.
O aspecto fundamental é que Pyongyang agora estava
numa posição mais sólida para negociar do que
anteriormente. Trata-se de um exemplo infeliz de ideologia
e de absolutismo a atravancar o caminho do bom senso e
do pragmatismo.

Meu retorno à Coreia do Norte, em março de 2007 – o


primeiro em 15 anos –, foi marcado por um revés. Eu havia
feito, com antecedência, uma solicitação ao governo
chinês para que marcasse um encontro com o alto escalão
dos norte-coreanos. A caminho de Pequim, fui informado
de que desagradou aos norte-coreanos o fato de eu não tê-
los abordado diretamente, tendo em vista que foram eles,
afinal de contas, que me enviaram o convite para retornar
ao seu país. Expliquei que a AIEA não dispunha mais de um
embaixador norte-coreano oficialmente reconhecido, um
canal direto de comunicação. Mas estava claro o ponto
principal da declaração deles: não queriam ser vistos como
um satélite da China.
A única companhia aérea a voar entre Pequim e
Pyongyang era a Air Koryo, a empresa oficial da Coreia do
Norte. Tendo em mente a lembrança de minha experiência
com a Air Koryo em 1992, decidimos voar em um pequeno
jato privado. Quando chegamos, o aeroporto de Pyongyang
estava deserto.
Até onde pude perceber, não havia outros voos chegando
ou partindo. Éramos os únicos passageiros no terminal.
Disseram-me que o volume total de tráfego aéreo em
Pyongyang consistia em um único voo para Pequim a cada
dois dias.
O mesmo clima orwelliano das lembranças de minha
visita de 1992 impregnava a cidade: nas ruas, não havia
carros particulares, motocicletas, nem mesmo bicicletas,
apenas alguns veículos oficiais. A maioria das pessoas que
vimos na rua eram pedestres. Tocava-se música patriótica
nos alto-falantes em vários locais da cidade, incluindo a
área em que ficamos hospedados.
O Hotel Koryo estava deserto, com exceção dos
funcionários e um punhado de estrangeiros, entre os quais
uma delegação australiana que fora à cidade debater a
assistência humanitária. Reservaram-me um quarto de
primeira classe: uma suíte deteriorada de cor bege
desbotada, contendo um quarto e uma sala grande. A
mobília era uma miscelânea de estilos dos anos 1950. As
instalações do banheiro também eram velhas. Não havia
serviço de quarto. A diária era de aproximadamente 200
dólares.
A situação financeira do país era evidentemente sombria.
Mesmo na condição de convidados do governo norte-
coreano, tivemos de bancar todas as despesas, incluindo
os carros que nos levavam de um local a outro. A comida
do hotel era adequada, mas o chefe da equipe australiana
comentou que 60% das crianças norte-coreanas com
menos de dois anos tinham traços evidentes de
crescimento atrofiado, causados por desnutrição. O chargé
d’affaires egípcio me disse que, até mesmo nos setores
diplomáticos, eles só podiam contar com eletricidade e
água encanada durante poucas horas do dia.
Minha expectativa com essa breve visita era organizar as
bases para o restabelecimento das relações entre a Coreia
do Norte e a AIEA. Uma pequena equipe da AIEA me fazia
companhia, e estávamos prontos para examinar questões
técnicas e políticas a fundo, caso Pyongyang nos desse o
sinal verde. Nossa agenda de reuniões, que incluía vários
níveis do governo norte-coreano, parecia promissora.
No entanto, a boa recepção que tivemos foi seguida de
uma frustrante série de sinais políticos ambíguos, típicos
de Pyongyang. Nosso encontro com o vice-ministro, que
representava a Coreia do Norte nos encontros entre as seis
partes, foi cancelado na última hora. Informaram-nos que
ele estava doente, mas grande parte da mídia interpretou
o gesto como uma descortesia intencional.
Antes do encontro com o vice-diretor do Presidium, ou
Parlamento, nos levaram a um pequeno tour. Na Câmara
dos Deputados, tivemos de esticar o pescoço para avistar
uma estátua, de 15 metros de altura, de Kim Il-Sung, o
“eterno” presidente. A situação me lembrou o encontro
com o emir de Zaria, no norte da Nigéria, onde os
habitantes locais são obrigados a engatinhar no chão como
sinal de respeito. Aqui, um semelhante status de divindade
era atribuído a uma pessoa falecida. “Retomemos o
encontro”, eu disse, com visível irritação.
Na hora do tradicional chá de ginseng, o vice-diretor
começou a descrever a “política norte-coreana centrada no
exército”, afirmando que todo o país “compartilha da
mesma opinião”. Respondi dizendo que os países e os
governos são, em última instância, julgados pela satisfação
de seu povo, com o direito de viver em liberdade e com
dignidade. Nenhum país podia se permitir o isolamento do
resto da comunidade internacional. O intérprete riu de
modo nervoso com meus comentários críticos, me
deixando na dúvida se o vice-diretor havia compreendido a
mensagem.
O encontro seguinte, com o vice-ministro das Relações
Exteriores, também pareceu seguir um roteiro ensaiado. A
Coreia do Norte, disse ele, tinha um “histórico
desagradável” de situações em que se deparou com a
postura tendenciosa da AIEA. Garanti ao vice-ministro que
tentávamos cumprir com nossas responsabilidades de
maneira objetiva. Os norte-coreanos assentiram com a
cabeça e disseram que gostariam de olhar para o futuro.
Eu lhes sugeri que considerassem a possibilidade de
voltarem a ser membros da agência. O vice-ministro
afirmou que, antes de tudo, eles teriam de ver como os
Estados Unidos iriam se comportar, mas me elogiou por ter
apoiado publicamente uma resolução pacífica da questão
nuclear e por ter enfatizado a necessidade de levar em
conta as preocupações com a segurança e a economia do
país.
O encontro mais agradável que tivemos foi com Ri Je
Son, diretor-geral da Agência Geral de Energia Atômica da
Coreia do Norte. Ocorreu em nosso hotel e incluiu refeições
saborosas: pratos coreanos tradicionais à base de carne e
peixe, kimchee e legumes acompanhados de vinho e soju,
um destilado feito de arroz. Numa impressionante
demonstração de honestidade, Ri Je Son confessou, em
resposta a uma pergunta minha, que seu povo não tinha
condições de alimentar-se com carne todos os dias. Do
ponto de vista diplomático, contudo, ele também aderiu
cuidadosamente às orientações do partido – a “experiência
ruim” que tiveram com a AIEA, no passado, e o desejo de
concentrar-se no futuro.
De volta à gelada suíte do hotel, me dei conta de que, a
despeito de toda a pose dos norte-coreanos e de não ter
havido avanços significativos, a mera retomada do diálogo
contribuiria para facilitar as interações que teríamos nos
meses seguintes. Liguei a TV e assisti à programação
previsível: mais filmes de guerra descrevendo as
atrocidades cometidas pelos EUA e o Japão no país. Senti
alívio por estar numa visita breve.

Em 19 de março de 2007, Chris Hill declarou que os fundos


norte-coreanos retidos no Banco Delta Asia estavam sendo
“descongelados”, em resposta às ações positivas de
Pyongyang. A transferência, de fato, fora adiada para
junho, quando os russos intervieram para ajudar no
transporte físico dos fundos de Macau para a Coreia do
Norte. A Coreia do Sul também desempenhou um papel no
processo, enviando uma significativa remessa de óleo
combustível ao vizinho do norte, em julho. Quando,
naquele mês, me encontrei com o presidente sul-coreano
Roh Moo Hyun, ele lamentou a ineficácia do processo de
negociações e o tempo perdido. “Levamos cinco anos”,
disse ele, “apenas para convencer os norte-americanos a
conversar bilateralmente com Pyongyang.”
A transferência de fundos teve como resultado um rápido
progresso. Os norte-coreanos começaram a fechar o reator
em Yongbyon, conforme prometido. A AIEA também
respondeu prontamente. No dia 17 de julho, uma equipe
de dez inspetores da agência concluiu a verificação do
fechamento de todas as instalações nucleares da Coreia do
Norte, aplicando lacres da AIEA e dando início à instalação
dos equipamentos de vigilância.
A série de fatos que se seguiram, num período que se
prolongaria durante quase todo o ano de 2008, marcou o
mais significativo e constante progresso na resolução de
assuntos relacionados ao programa nuclear norte-coreano
desde o final de 2000. Os encontros das seis partes
continuaram, entrando numa “segunda fase” de ações sob
a Declaração Conjunta. Remessas de óleo combustível
continuavam a chegar, conforme prometido. O Japão e a
Coreia do Norte decidiram restabelecer suas relações. Os
norte-coreanos concordaram em apresentar uma
declaração completa e precisa de seus materiais e
instalações nucleares. O desmantelamento das instalações
continuava seguindo o cronograma estipulado. Foi dada a
permissão para que delegações de especialistas dos EUA,
China e Rússia visitassem Yongbyon. Quando Chris Hill
viajou a Pyongyang para participar de outras reuniões,
levou consigo uma carta cordial do presidente Bush,
endereçada a Kim Jong Il.
Organizações da mídia ocidental chegaram a ser
convidadas a visitar as instalações nucleares fechadas. Em
fevereiro de 2008, Christiane Amanpour, da CNN, fez uma
reportagem ao vivo nas instalações de Yongbyon,
declarando que a Coreia do Norte havia “retirado o véu
nuclear”. Técnicos do Departamento de Energia dos EUA
estavam no local, disse Amanpour, ajudando a
desmantelar partes das instalações nucleares norte-
coreanas. “Parece haver uma enorme diferença em relação
às hostilidades evocadas pelo ‘eixo do mal’ . A Filarmônica
de Nova York e seu regente Lorin Maazel desembarcaram
em Pyongyang – um pequeno passo na longa estrada rumo
à normalidade”, nas palavras de Amanpour70.
Entretanto, o status da AIEA perante a Coreia do Norte
estava numa espécie de limbo. Quando as seis partes nos
pediram para verificar o fechamento das instalações de
Yongbyon, respondemos prontamente. Porém, sob os
termos da Declaração Conjunta, os EUA haviam começado
a desabilitar as instalações da Coreia do Norte sem o
envolvimento da AIEA, preferindo agir de modo bilateral.
Eu hesitava em me queixar, pois o progresso na direção do
desmantelamento em si estava sendo estimulante. A AIEA
obtivera um acordo tácito dos EUA de que os norte-
americanos envolvidos “observariam” o processo,
mantendo registros a fim de garantir que a agência
continuasse recebendo as devidas informações, mas
nossos inspetores, ainda assim, tinham a preocupação de
que, se não estivessem presentes ao longo de todo o
processo, perderiam informações essenciais, o que,
posteriormente, tornaria a verificação do controle das
substâncias nucleares mais difícil.
John Rood, subsecretário de Estado interino de Controle
de Armas e Segurança Internacional, veio ao meu encontro
em Viena, em 6 de maio de 2008. Disse-me que os EUA
tinham a expectativa de que a Coreia do Norte
apresentasse sua declaração nuclear aos chineses, e que a
AIEA verificasse essa declaração para certificar-se de que a
reaproximação com a Coreia do Norte era um processo
multilateral, e não bilateral. Eu disse que teríamos prazer
em fazê-lo, mas transmiti a ele a informação que
ouvíramos dos norte-coreanos de que os EUA não queriam
o envolvimento da agência.
Concordaríamos em fazer o processo de verificação
independentemente das circunstâncias, mas fiz questão de
que Rood compreendesse a posição ambígua da AIEA. Na
visão de alguns países, incluindo a maior parte dos países
europeus e o Japão, a Coreia do Norte continuava sendo
membro do TNP – nesse caso, cabia à AIEA a obrigação
jurídica de verificar suas declarações. Outros países, como
os EUA, acreditavam que a Coreia do Norte não mais
integrava o TNP. Em minha opinião como advogado, estava
claro que a Coreia do Norte apresentara uma notificação
jurídica de sua saída do TNP em janeiro de 2003, e, por
esse motivo, não era mais membro do tratado.
Insisti com o Conselho da AIEA para que tivéssemos um
esclarecimento de nossa situação. As partes do TNP, disse
eu, deviam decidir se a Coreia do Norte continuava ou não
sendo membro do tratado e fornecer à agência as devidas
orientações. De minha parte, queria ter a certeza de que a
agência não poderia ser culpada por não pressionar para
exercer suas responsabilidades. Não recebi resposta; na
verdade, a questão continua sem solução até hoje.
Em 26 de junho, as autoridades norte-coreanas
entregaram à China a sua declaração, com ampla
documentação descrevendo o passado de seu país e o
atual programa nuclear. Um dia depois, em um gesto
simbólico, a demolição de uma torre de resfriamento de 18
metros de altura, no reator de Yongbyon, foi assistida por
uma pequena multidão de jornalistas e diplomatas
internacionais. Logo em seguida, Chris Hill desembarcou
em Viena para me colocar a par de suas negociações com
Pyongyang em relação às modalidades de verificação. As
seis partes queriam que a agência desempenhasse um
papel de liderança, mas a Coreia do Norte mostrou-se
intransigente em relação ao nosso envolvimento. Tal
opinião vinha do alto escalão do governo. Aparentemente,
para alguns norte-coreanos, as inspeções feitas pela
agência em 1993 eram uma lembrança desagradável. Ouvi
também que a Coreia do Norte tinha a expectativa de que
uma inspeção realizada pelas seis partes seria uma
“verificação superficial”, se comparada com a abordagem
rigorosa da agência.
Fosse qual fosse o caso, Hill mostrou-me o projeto de
uma proposta que sugeria que a AIEA agisse como “órgão
consultor quando relevante” para as seis partes. A
verificação real e a avaliação dos resultados da verificação
seriam feitos pelos seis. A agência trabalharia, assim, sob
seus “auspícios”.
Rejeitei os termos da proposta. Disse a Hill que não
aceitava que a autoridade de verificação e o papel da AIEA
fossem comprometidos daquela maneira. Claro que eu
compreendia que as seis partes desejavam uma
credibilidade que resultaria do envolvimento da agência,
mas na verdade o contrário é que ocorreria: as inspeções
não teriam credibilidade caso fossem realizadas sob os
auspícios de um grupo ad hoc de países. Realizaríamos as
verificações sob os auspícios da comunidade internacional,
como vínhamos fazendo havia 50 anos, ou então eles
estavam livres para encontrar alguém disposto a tal tarefa.
Pedi que meus colegas da AIEA transmitissem a mesma
mensagem aos demais membros dos encontros das seis
partes.
Quando li uma cópia da declaração norte-coreana, que
deveria conter todas as atividades nucleares, passadas e
presentes, ficou evidente que o documento estava
incompleto. Nele, constava a declaração da quantidade de
plutônio produzido, mas não havia nenhuma informação
sobre o programa de armas nucleares do país no passado,
ou sobre a quantidade de armas. Também não havia
nenhuma menção às supostas atividades de
enriquecimento de urânio.
Hill concordou: para ele, os norte-coreanos
provavelmente continuariam a manter suas armas
nucleares durante o tempo que fosse possível. Entretanto,
tinha havido um verdadeiro progresso, pois pelo menos o
programa de armas do país fora congelado no nível atual,
como resultado do desmantelamento das instalações.
Seriam necessários mais tempo e paciência para que se
chegasse a uma resolução final. Até mesmo a verificação
do plutônio declarado significaria um processo longo e
complexo.
Na época, fiz uma anotação particular do comentário
feito por Hill de que, tendo em vista a percepção do Japão
quanto à sua própria segurança, alguns observadores não
mais excluíam a possibilidade de o Japão repensar seu
status de potência nuclear. Hill não aprofundou a questão,
e eu não o pressionei para fazê-lo. Mas lembrei que, em
outubro de 2006, tanto o ministro das Relações Exteriores
japonês, Taro Aso, quanto o presidente do Partido Liberal
Democrata, Shoichi Nakagawa, sugeriram que se iniciasse
um debate sobre um programa de armas nucleares
japonês71. Na visão de acadêmicos japoneses, esse foi um
evento impressionante. O apoio dado pelo Japão ao TNP
era considerável; até mesmo a menção pública sobre o
fato de o país considerar seu potencial nuclear era um
tabu de longa data.
Isso apenas reforçou minha opinião de que, para
qualquer país, as considerações sobre a intenção de
desenvolver, possuir ou utilizar armas nucleares estão
sujeitas a mudanças a qualquer momento, dependendo da
maneira como esse país percebe sua atual situação quanto
à segurança. Enquanto as alternativas estiverem em
aberto, jamais poderão ser excluídas. Mudanças de
percepção sobre a segurança nacional ou regional podem
ser o suficiente para que políticas de longa data sejam
revertidas.
No entanto, o pêndulo voltou a oscilar no verão de 2008.
Pyongyang desentendeu-se com Washington pelo fato de
os EUA não terem retirado a Coreia do Norte de sua lista
de países que apoiam o terrorismo. Sob os termos da
Declaração Conjunta, esse era o combinado depois que a
Coreia do Norte desmantelasse suas instalações em
Yongbyon. O problema, me disseram, era que os adeptos
da linha-dura na administração dos EUA tinham a
expectativa de conseguir “algo a mais” da Coreia do Norte
antes de retirarem o país da lista: em particular, um
progresso maior na verificação da declaração norte-
coreana de não ter armas nucleares.
Naturalmente, Pyongyang interpretou isso como um sinal
de recuo dos EUA diante de mais um compromisso. De
imediato, os especialistas nucleares norte-coreanos
receberam a ordem de começar a reinstalação dos
equipamentos nos locais desmantelados. Em 8 de outubro
de 2008, os inspetores da AIEA foram proibidos de realizar
novas inspeções em Yongbyon.
Três dias depois, os EUA recuaram. A Coreia do Norte foi
retirada da lista dos países que apoiam o terrorismo. No
dia seguinte, a Coreia do Norte recomeçou seu processo de
desmantelamento. Mais uma vez, a AIEA pôde ter acesso
às instalações de Yongbyon.
Porém, na primavera de 2009, surgiria um novo
obstáculo. A despeito da pressão internacional no sentido
contrário, em 5 de abril a Coreia do Norte fez um
“lançamento de satélite”, uma espécie de teste de seus
mísseis de longo alcance. O presidente Barack Obama
qualificou o teste como “provocação”, e insistiu para que o
Conselho de Segurança da ONU agisse. Em 13 de abril, o
Conselho condenou a Coreia pelo lançamento. Pyongyang
respondeu com uma ira previsível, declarando que o país
jamais participaria novamente dos encontros entre as seis
partes. Os inspetores da AIEA foram novamente solicitados
a deixar o país.
Naquela época, a Coreia do Norte enfrentava uma crise.
A pobreza atingira níveis extremos: a quantidade de arroz
destinada a cada habitante caíra para 200 gramas por dia,
muito abaixo do mínimo recomendado em uma dieta
nutricional. Enquanto isso, a saúde precária de Kim Jong Il
criava um conflito entre o já idoso ditador – que desejava
fazer de um de seus filhos, Kim Jong Un, o seu sucessor – e
os generais de alta patente do exército, que viam a
situação como uma oportunidade de tomar o poder.
Qualquer confronto externo era um pretexto para que os
adeptos da linha-dura exigissem uma atitude dramática.
O pêndulo não se inclinara completamente para o outro
lado. Em 25 de maio de 2009, a Coreia do Norte testou sua
segunda arma nuclear, obtendo êxito. Para os padrões, era
um artefato pequeno, mas nitidamente mais poderoso do
que o primeiro. O teste foi condenado pelo Conselho de
Segurança da ONU e pelos outros cinco Estados que
compunham o grupo dos seis, cujas conversas estavam
então suspensas.
O programa de enriquecimento do país – que há muito se
alegava estar em desenvolvimento – também voltou à
tona. Dessa vez, na forma de uma usina de
enriquecimento de urânio completamente equipada e
orgulhosamente revelada pelos norte-coreanos, em
novembro de 2010, para Siegfried S. Hecker, professor da
Universidade de Standford e ex-diretor do Laboratório
Nacional de Los Alamos72. Hecker e seus colegas foram
conduzidos a uma sofisticada sala de controle e a um salão
de enriquecimento equipado com 2 mil centrífugas que,
segundo os norte-coreanos, já produziam urânio de baixo
enriquecimento. As instalações estavam situadas em um
antigo centro de produção de combustível, deixando claro
que a usina de enriquecimento fora construída depois de
abril de 2009 – data da última visita dos inspetores ao país.
A velocidade da construção levou muitos a supor que a
Coreia do Norte provavelmente tinha outras operações de
enriquecimento de urânio em outras partes do país73. A
revelação era mais uma prova impressionante da futilidade
das tentativas de conter as ambições de proliferação por
meio de confrontos, de sanções e do isolamento.

A meu ver, o segundo teste nuclear norte-coreano foi


muito mais decepcionante do que o primeiro. Nos dois
anos seguintes, houve um considerável progresso no caso
norte-coreano. E a detonação aconteceu numa época em
que, considerando as políticas da nova administração
norte-americana, as perspectivas de progresso em relação
ao desarmamento nuclear global eram melhores do que
jamais foram no passado recente.
Mas a maior fonte de frustrações tem sido, de longe,
observar os altos e baixos nas relações da Coreia do Norte
com o Ocidente. As ações e reações da Coreia têm sido,
em grande parte, previsíveis. No momento em que
Pyongyang esteve envolvida em diálogos significativos, a
situação, de modo geral, melhorou. Quando o diálogo foi
interrompido e houve troca de insultos, e quando foi
reinstaurada uma política de isolamento, a situação se
deteriorou. É absurdamente simples.
Assim, a condenação do lançamento do míssil norte-
coreano, feita pelo Conselho de Segurança, certamente
agravou a situação. Muito possivelmente, com a nova
administração dos EUA no poder, a Coreia do Norte agiu de
modo provocativo, na expectativa de atrair a atenção da
administração Obama e de receber um tratamento melhor
do que tivera com Bush. De qualquer modo, os norte-
coreanos certamente reagiriam exageradamente, como
em cada uma das situações anteriores. Eu me perguntava:
será que os diplomatas e políticos haviam tido sua atenção
voltada de tal forma à questão específica do momento que
acabaram perdendo de vista as etapas finais do processo
de desarmamento?
Invariavelmente, ao lidar com a Coreia do Norte ou com
outro caso de proliferação nuclear, o Conselho de
Segurança parecia estar excessivamente dividido ou
limitado em suas alternativas de apresentar algo que fosse
além de declarações inócuas ou atitudes que causavam
consequências indesejadas. Em cada caso particular, as
atitudes tomadas pelo Conselho de Segurança em resposta
à ameaça de proliferação nuclear foram superficiais e
ineficazes. Para que o Conselho fosse bem-sucedido, vários
ajustes eram necessários: o foco nas causas primordiais –
e não apenas nos sintomas – da insegurança; uma
agilidade maior e realismo ao lidar com o descumprimento
das normas, prevenindo em vez de remediar; medidas
eficazes de aplicação das normas que teriam como alvo os
regimes em questão, em vez de civis inocentes; e
consistência na abordagem ao lidar com situações
semelhantes74.
Em nenhuma outra situação essas necessidades de
ajuste seriam mais dramáticas do que na abordagem do
programa nuclear da República Islâmica do Irã.
57 Os inspetores da AIEA estavam lá para garantir que a Coreia do Norte não
estava reprocessando seu combustível queimado em plutônio, mas as
atividades de verificação da agência limitavam-se às instalações declaradas e
sujeitas a paralisação.

58 Vice-marechal Cho Myong Rok, considerado o segundo-comandante por Kim


Jong Il.

59 “Did Bush Bungle Relations with North Korea?”, Jake Tipper, Salon, 15/3/2001.

60 “I Sniff Some Politics”, de Howard Fineman, Newsweek, 27/5/2002.

61 Declaração Japão–DPRK, Pyongyang, 17/9/2002.

62 A KEDO foi fundada em 1995 pelos EUA, Coreia do Sul e Japão com o objetivo
de implementar as principais cláusulas relacionadas à energia na Estrutura de
Acordo, incluindo a construção dos dois reatores nucleares de água leve. Até
que a construção dos reatores fosse concluída, a Coreia do Norte receberia 500
mil toneladas métricas de óleo combustível pesado anualmente. Como já dito, o
país asiático já se queixava da falta de boa-fé da parte dos EUA e da KEDO em
razão dos atrasos na construção do reator. A suspensão das remessas de
petróleo foi a gota d’água.

63 Tendo em vista que a saída do TNP leva três meses para entrar em vigor, a
decisão da Coreia do Norte tornou-se oficial em 10 de abril de 2003. Embora o
Conselho da AIEA tenha encaminhado a questão para que o Conselho de
Segurança tomasse medidas, este não emitiu nenhuma resolução sobre o
assunto; após um encontro a portas fechadas, em 9 de abril, o presidente do
Conselho, Adolfo Aguilar Zinser, do México, simplesmente disse aos repórteres
que seus membros “expressaram suas preocupações” e continuariam a
deliberar sobre a questão.

64 14/5/2004. O debate foi moderado por Graham Allison, diretor do Centro


Belfer para a Ciência e Assuntos Internacionais, John F. Kennedy School of
Government, Harvard University.

65 A Conferência de Pugwash sobre Ciência e Assuntos Mundiais é um evento


anual em que um grupo internacional busca identificar soluções para ameaças à
segurança internacional, incluindo a proliferação de armas nucleares. A
Conferência de Pugwash e seu líder, Joseph Rotblat, receberam o Prêmio Nobel
da Paz em 1995 por seu trabalho pela promoção do desarmamento nuclear.

66 “In Search of a North Korea Policy”, 11/10/2006.

67 “Solving the Korean Stalemate, One Step at a Time”, New York Times,
11/10/2006.

68 “Mutually Assured Disruption”, New York Times, 10/10/2006.

69 “U.S. Now Uncertain About North Korea Uranium Enrichment”, AFP, 1/3/2007.

70 “North Korea Lifts Nuclear Veil”, CNN, 26/2/2008.

71 Em 18/10/2006, durante uma sessão do Comitê do Congresso, o ministro das


Relações Exteriores afirmou: “Uma possibilidade é não permitir debates, nem
mesmo falar a respeito da posse das armas nucleares no momento em que um
país vizinho está prestes a adquiri-las, mas é importante que haja vários
debates”. No dia seguinte, ele teria dito: “O Japão tem a capacidade de produzir
armas nucleares”. Mas acrescentou: “Não estamos dizendo que temos planos de
possuir armas nucleares”.

72 “North Koreans Unveil New Plant for Nuclear Use”, de David E. Sanger, New
York Times, 20/11/2010.

73 “U.S. Concludes North Korea Has More Nuclear Sites”, de David E. Sanger,
New York Times, 14/12/2010.

74 O Conselho certamente deve ser reconstituído para se tornar representativo


do século XXI. É um absurdo o fato de o P5 – os membros permanentes do
Conselho – não incluir países como o Brasil, a Índia e a África do Sul.
5 • Irã
TAQQIYA

Como se não bastassem duas situações dramáticas de


verificação nuclear em meados de 2002, a AIEA começou a
receber informações sobre um terceiro caso. Imagens de
satélite de Natanz, pequena cidade da província de
Isfahan, região central do Irã, mostravam a construção de
uma grande instalação industrial com detalhes
perceptíveis, sugerindo que podia se tratar de uma usina
de enriquecimento de urânio. Por volta de agosto, o
Conselho Nacional de Resistência do Irã75 reuniu uma
coletiva de imprensa em Washington, na qual afirmou que
o país estava construindo uma usina nuclear secreta em
Natanz.
A agência iniciou as investigações. Em setembro, na
Conferência Geral da AIEA, evento anual realizado em
Viena, abordei Gholamreza Aghazadeh, um homem de
baixa estatura e sério que ocupava dois cargos: vice-
presidente do Irã e diretor da AEOI, sigla em inglês para a
Organização de Energia Atômica do Irã. Chamei-o de lado.
“Conte-me sobre essa usina em Natanz”, eu lhe pedi; “ela
é usada para o enriquecimento, como as imagens do
satélite sugerem? Talvez precisemos fazer uma visita ao
local.”
Aghazadeh sorriu. “Em breve convidaremos vocês para
uma visita, sem dúvida”, respondeu de modo afetuoso.
“Então, esclareceremos tudo.”
A ambiguidade da resposta de Aghazadeh não me
tranquilizava. Ainda mais inquietante foi a longa lista de
desculpas para o adiamento da prometida visita: o
presidente Khatami estava “em viagem”; o presidente
Khatami estava “doente”; as datas escolhidas eram
“inconvenientes”. Essa situação se prolongou durante
meses.
Nesse ínterim, em um encontro em Washington com
Colin Powell e Richard Armitage, vice-secretário de Estado,
eu lhes informei que a política dos EUA no Irã – de alta
dependência de sanções e de um boicote, a fim de impedir
o desenvolvimento de armas – não estava sendo eficaz. A
meu ver, as ações punitivas, que não se relacionavam com
as razões implícitas à busca de desenvolvimento nuclear
da parte de um país, não constituíam uma política –
tampouco uma estratégia, em nenhum sentido pragmático
– e, em último caso, só provocariam o atraso de um
programa de armas nucleares. Se um país como o Irã
estivesse disposto a adquirir armas nucleares, as medidas
dos EUA não seriam o bastante para impedi-lo. Powell não
fez comentários a esse respeito, mas Armitage concordou
comigo, o que interpretei como um sinal de esperança.
Naquela época, eu me inspirava nas experiências da AIEA
com a Argentina, o Brasil e a África do Sul. A despeito de
anos de restrições às exportações para tais países, os dois
primeiros desenvolveram o desejado know-how nuclear
para o ciclo de combustível, enquanto o terceiro, de fato,
adquiriu armas nucleares (renunciando a elas,
76
posteriormente) . Pelo que pudemos observar repetidas
vezes, uma política de isolamento e de sanções servia
apenas para estimular o sentimento de orgulho nacional
de um país; na pior das hipóteses, ela poderia fazer do
projeto nuclear do país-alvo uma questão de prioridade
nacional.
Quando os iranianos finalmente marcaram uma visita
para a terceira semana de fevereiro de 2003, seu timing
estava longe de ser o ideal. A Coreia do Norte acabara de
se retirar do TNP. O Conselho de Segurança da ONU
travava batalhas internas sobre o uso da força no Iraque,
portanto uma invasão militar parecia iminente. Nossa
equipe de inspeções havia – no mínimo – atingido os seus
limites.
Mas ainda precisávamos obter respostas em relação a
Natanz. Aceitei o convite e pedi a Pierre Goldschmidt,
cientista nuclear belga que atuava como vice-diretor-geral
de salvaguardas na agência, que me acompanhasse, junto
com Olli Heinonen.
No encontro de abertura em Teerã, Aghazadeh e seus
colegas da AEOI admitiram, de imediato, que as
instalações em construção em Natanz eram uma usina de
enriquecimento de urânio. Contudo, enfatizaram o fato de
que não tiveram a intenção de escondê-la da agência77.
Segundo eles, seu acordo de salvaguardas não lhes
impunha nenhuma obrigação jurídica de passar
informações à AIEA até 180 dias antes das primeiras
experiências com as substâncias nucleares. E nos
garantiram que, em relação a esse ponto, seus registros
respeitavam os limites legais: nenhuma substância nuclear
fora usada e nenhum processo de enriquecimento fora
feito dentro das instalações.
No dia seguinte, nos dirigimos a Natanz, pequena cidade
nas colinas, famosa por seus pomares, e oculta em meio a
templos religiosos esparsos. Estávamos acompanhados de
Aghazadeh e seu vice, Mohammad Saeedi, além de um
grupo de engenheiros e técnicos iranianos. Nossa primeira
parada foi em uma construção inclassificável, de coloração
bege, parecida com um armazém quando vista por fora.
Dentro, um amplo salão dividido em seis blocos de
concreto. Segundo Aghazadeh, esta era uma usina-piloto
de enriquecimento. Aproximadamente 20 centrífugas
haviam sido montadas. Cada um dos blocos, no final,
abrigaria uma longa série de 164, em um total de pouco
menos de mil.
Descemos, então, ao subsolo. Mesmo munidos de
algumas informações prévias sobre o que iríamos
encontrar, ficamos impressionados com o imenso salão
principal. Estava completamente vazio, mas fora
construído para abrigar mais de 50 mil centrífugas – um
projeto muito mais ambicioso. Aghazadeh e seus colegas
se mostravam de bom humor e falantes, orgulhosos por
nos apresentarem as instalações e respondendo de bom
grado às perguntas de natureza técnica feitas por Pierre e
Olli.
Dois aspectos dessa visita chamaram a atenção.
Primeiro, a escala das ambições nucleares do país, que
exigiram uma atenta reavaliação de nossa parte. Até
então, o traço distintivo do programa nuclear do Irã era um
reator de energia em fase de construção em Bushehr, para
o qual a Rússia firmara um contrato de fornecimento de
combustível de urânio enriquecido78. No entanto, Natanz,
quando estivesse em plena operação, teria a capacidade
de suprimento de combustível para dois ou três reatores
de 1.000 megawatts. Que outras usinas a AEOI estaria
planejando ou construindo?
O segundo aspecto era ainda mais inquietante.
Aghazadeh nos relatou que o programa de centrífugas do
Irã foi integralmente desenvolvido no país. Os iranianos
ainda enfatizaram que não usaram nenhuma substância
nuclear em testes no local. Nossos especialistas receberam
a notícia com ceticismo.
Tal ceticismo só foi reforçado pelo encontro que tive com
o presidente do Irã, Sayyid Mohammad Khatami. Elegante
e poliglota, Khatami, líder religioso e ex-diretor da
Biblioteca Nacional do Irã, assumira o poder em 1997,
apoiado numa plataforma de reformas sociais. No plano
doméstico, defendia a liberdade de expressão e apoiava a
expansão da sociedade civil, além de ser
internacionalmente conhecido por sua defesa de um
“diálogo entre civilizações”. Embora não tivesse realizado
todas as reformas prometidas, Khatami manteve sua
popularidade entre os moderados e particularmente em
meio à juventude iraniana, que a ele se referia como o
“homem com o manto de chocolate”, em razão das roupas
na cor marrom que ele apreciava vestir.
Em nosso encontro, Khatami estava acompanhado
apenas de Ali Akbar Salehi79, embaixador iraniano na AIEA,
que atuou como intérprete. Khatami me cumprimentou de
forma calorosa, com o tradicional beijo nas duas
bochechas. Líder religioso instruído no Alcorão, ele falou
em árabe durante alguns minutos antes de passar para o
persa [parse], com a tradução feita por Salehi. “Você não
tem motivos para se preocupar com nosso programa”,
disse Khatami. “Usamos apenas o gás inerte na operação
de nossa cascata de centrífugas.”
Esse detalhe em sua declaração me pareceu estranho. O
presidente Khatami, líder religioso por formação, acabara
de se referir a um meio de testar uma centrífuga a frio sem
o uso de substância nuclear. Seu argumento era que o Irã
não violara nenhuma exigência de declaração de
substâncias nucleares. Mas por que Khatami possuiria
conhecimentos sobre o teste com gás inerte? Era o que eu
me perguntava.
Nos meses seguintes, a AIEA começou a revelar algumas
respostas.

Informações confidenciais nos alertaram sobre a Kalaye


Electric Company, uma usina na periferia sul de Teerã onde
os iranianos haviam testado um pequeno número de
centrífugas do mesmo modelo que as de Natanz. Kalaye
não era uma instalação nuclear declarada. Nossos colegas
iranianos nos garantiram que somente “estudos de
simulação” haviam ocorrido ali e que nenhuma substância
nuclear fora usada nessas simulações. Se isso era verdade,
então era direito deles não ter reportado o fato à AIEA. Mas
como poderíamos ter certeza disso se não tivemos
permissão para verificar? Estávamos presos em um beco
sem saída no TNP: os iranianos não haviam declarado a
Kalaye Electric Company em seu acordo de salvaguarda,
portanto não tínhamos autorização para inspecioná-la, já
que, segundo eles, estava isenta de substâncias nucleares.
Essa era a lacuna fundamental que levou à criação do
Protocolo Adicional, mas o Irã não havia aderido a ele.
Decidimos desmascarar o Irã. Fazendo menção aos
compromissos públicos e privados de Teerã com a total
transparência em suas negociações com a AIEA,
solicitamos aos iranianos a permissão para visitar Kalaye.
Pedimos autorização também para colher amostras
ambientais.
A autorização foi dada de má vontade e de modo
gradativo. O Irã permitiu que a agência tivesse acesso a
Kalaye, mas negou a coleta de amostras. Por fim, eles
deixaram que os inspetores retornassem e colhessem
amostras ambientais com o uso de “cartões magnéticos” –
pequenos quadrados de pano, que eram passados sobre
algumas superfícies selecionadas. Os inspetores
observaram que as instalações haviam sido
consideravelmente alteradas desde a primeira visita, e a
preocupação era que tais mudanças poderiam afetar a
exatidão das análises. Porém, quando os cartões foram
analisados nos laboratórios dos Estados-membros (com o
uso de duplos-cegos, a fim de ocultar sua origem), os
resultados se mostraram definitivos: o espectro das
partículas de urânio enriquecido nas amostras
demonstrava que substâncias nucleares haviam sido
usadas nos testes com as centrífugas. O Irã foi pego, e
havia provas para acusar o país.
Pouco a pouco, a história começou a mudar. Apesar das
alegações da AEOI de que seu programa de centrífugas
fora desenvolvido dentro do país, os especialistas em
centrífugas da AIEA notaram uma grande semelhança com
o design europeu. Ao ser confrontada com os resultados de
amostras que também foram colhidas na usina-piloto de
centrífugas em Natanz – que indicou a presença de
partículas de baixo e de alto enriquecimento –, a AEOI
admitiu que os componentes foram realmente importados,
aventando a possibilidade de que a origem das partículas
fossem as peças contaminadas. Na verdade, viríamos a
descobrir que a quase totalidade da tecnologia de
centrífugas iraniana fora importada de outros países.
A questão de as centrífugas do Irã terem ou não sido
produzidas no próprio país era relevante. A resposta,
pendendo para um lado ou outro, nos forneceria as
informações de que tanto precisávamos. Se o Irã tivesse
produzido as centrífugas em nível doméstico, isso teria
envolvido uma operação de pesquisa e desenvolvimento
muito mais elaborada do que a que estava sendo
reconhecida, quase certamente incluindo testes com
substâncias nucleares. Se, por outro lado, o Irã tivesse
importado todas as peças, isso significava que outro país
ou países haviam fornecido a tecnologia.
Também começaram a surgir substâncias nucleares não
declaradas. Reservas de urânio natural importado da China
foram descobertas no laboratório multiúsos Jabr Ibn Hayan
(JHL), no Centro de Pesquisa Nuclear de Teerã. Nem a
substância nem o laboratório foram previamente
declarados à AIEA. Grande parte desse urânio fora
convertida em metal de urânio, um formato com um
número relativamente baixo de aplicações nucleares
pacíficas. Três cilindros de gás de urânio na forma de UF80
– a matéria-prima para o enriquecimento – foram
encontrados no estoque; revelou-se que um dos cilindros
menores era de “gás desaparecido”. Os colegas iranianos
disseram que ele devia “ter vazado”.
Desde cedo, me dei conta de que estávamos lidando com
pessoas dispostas a praticar fraudes a fim de alcançar
seus objetivos, portanto não deveríamos aceitar nenhum
certificado sem a devida verificação do local. Certamente,
a verificação é um princípio central das inspeções da AIEA
em qualquer circunstância, mas ela era duplamente
essencial nesse caso, devido à fraude que, de modo
inquietante, fora endossada e levada adiante nos altos
escalões do governo iraniano. Já em maio de 2003,
Aghazadeh proferiu um discurso diante das missões
diplomáticas em Viena, no qual negou categoricamente
que o Irã houvesse usado qualquer substância nuclear em
seu teste com centrífugas.
Todos os principais líderes iranianos com que me reuni –
o presidente Khatami, o porta-voz do Majlis (parlamento do
Irã), Mehdi Karroubi, e o ex-presidente do Irã e atual diretor
do Conselho dos Guardiães Ali Akbar Rafsanjani – insistiam
no fato de que o programa nuclear iraniano tinha objetivos
unicamente pacíficos. O discurso deles era eloquente e
transmitia convicção; suas camisas impecavelmente
engomadas e mantos bem cortados emprestavam à sua
fala um ar de sofisticação e de devoção. Todos se
mostravam completamente atualizados e com amplas
noções sobre o programa de enriquecimento.
Rafsanjani, com quem me encontrei no palácio6, e que
me pareceu o político mais sensato do grupo, falou de
modo efusivo: “Vi muitas pessoas de nosso povo sendo
assassinadas pelas armas químicas durante a guerra
contra o Iraque. Não posso defender o diálogo entre as
civilizações e, ao mesmo tempo, desenvolver armas
nucleares”.
Fui informado por várias pessoas, incluindo o então
presidente Mubarak, do Egito, que, segundo preceitos da
teologia xiita, é aceitável, em determinadas situações,
ludibriar alguém por uma causa justa. Esse conceito é
chamado taqqiya, que significa proteger a si mesmo ou a
outrem contra algum dano. Deixei claro para nossos
colegas iranianos que, independentemente das origens
desse comportamento, suas negativas e ocultamentos
haviam afetado seriamente a sua credibilidade perante a
comunidade internacional. Desde o início, eles cavaram
um buraco que iria minar suas próprias iniciativas
diplomáticas, uma atitude que considerei um “déficit de
confiança”.
No entanto, mesmo depois de terem sido confrontados
com provas que atestavam suas fraudes, os iranianos não
pareceram particularmente constrangidos. Eles fizeram
menção a um longo histórico daquilo que consideravam
atitudes hipócritas da parte do Ocidente. Na era do xá, o
Irã anunciou planos de construir 23 grandes reatores de
energia nuclear, com o apoio manifesto de EUA, Alemanha,
França e outros países. Em 1975, o país assinou contrato
com a Kraftwerk Union, uma empresa alemã, para a
construção da primeira usina em Bushehr. O Irã também
adquiriu 10% das ações da Eurodif, companhia
multinacional que operava uma usina de enriquecimento
de urânio na França. Porém, tudo mudou com a Revolução
de 1979. A Kraftwerk Union recusou-se a continuar com a
construção das usinas em Bushehr. Os Estados Unidos
interromperam o fornecimento de combustível para o
reator de pesquisas. A França também se negou a
continuar fornecendo urânio enriquecido para o Irã –
apesar das inúmeras tentativas e do investimento iraniano
na Eurodif.
Considerando seu próprio histórico, os iranianos insistiam
no fato de que suas atitudes se justificavam. A ciência e a
tecnologia nucleares com fins pacíficos continuavam a ser
centrais nos objetivos nacionais do país. O argumento era
que precisavam de um ciclo de combustíveis por não
contarem com fornecimento de combustível do exterior,
além daquele que recebiam dos russos – que nem sempre
era confiável, pois lhes cobravam preços excessivos. Em
relação aos seus segredos do passado, insistiam em dizer
que essa tática havia sido necessária: as sanções impostas
a eles pelos EUA e seus aliados proibiam qualquer
importação de itens relacionados à área nuclear, incluindo
tecnologia para fins pacíficos. Apesar de conduzir suas
operações em segredo, haviam pago o dobro, o triplo ou
mais pela tecnologia e pelas substâncias que compravam
do exterior. Ter mantido o programa em segredo pelo
tempo que fosse possível foi uma necessidade política,
insistiam eles.
Em círculos diplomáticos em Viena, os norte-americanos
não estavam dispostos a levar em conta os argumentos do
Irã – a despeito do fato de, há mais de duas décadas,
ocuparem a liderança dos esforços para isolar o país. O Irã
ter mentido era, na visão deles, a prova definitiva da
intenção de Teerã de produzir armas nucleares. É claro que
essa conclusão era totalmente prematura em termos de
um processo de verificação; o que a AIEA precisava era de
provas concretas. Mas as declarações norte-americanas,
expressando a certeza quanto à intenção do Irã com as
armas nucleares, logo começaram a encontrar ressonância
no Ocidente. Por outro lado, vários representantes dos
países em desenvolvimento mostraram empatia quanto à
necessidade do Irã de agir secretamente, a fim de escapar
das sanções.
O precedente criado pelo Irã era perturbador, e me
preocupava o fato de o Conselho de Governadores da AIEA
começar a divergir em termos de uma divisão norte-sul
entre os países.

Discrepâncias e questões sérias relacionadas ao programa


iraniano continuaram a emergir ao longo do verão e do
outono de 2003. Resultados de amostras adicionais e
observações feitas pelos inspetores tornaram o relato
iraniano ainda mais implausível. Os inspetores estavam
cada vez mais convencidos de que o amplo programa
nuclear do Irã não poderia ter atingido tamanho nível de
sofisticação sem que tivesse havido um número maior de
experimentos e testes do que os iranianos revelavam.
As visitas da AIEA a um laboratório de laser em Lashkar
Ab’ad, por exemplo, revelaram a sofisticação no uso de
laser a vapor, que poderia ter tido uma aplicabilidade
direta no enriquecimento de urânio81; entretanto, os
iranianos declararam não ter feito nenhum enriquecimento
a laser. Os inspetores observaram também que os projetos
do IR-40, um reator de pesquisas a água pesada,
programado para ser construído em Arak em 2004, não
incluíam planos para “células quentes”, câmaras especiais
equipadas com um equipamento de manuseio remoto, de
modo que o processamento de material radioativo,
incluindo a separação do plutônio, pudesse ocorrer sem
qualquer risco de radiação; porém, havíamos tido provas
dos esforços iranianos para obter, no exterior, os
manipuladores e as janelas de chumbo que seriam usadas
nas células quentes82. As usinas de conversão de urânio
em Isfahan e em laboratórios em outras partes do Irã
tinham um design sofisticado e eram amplamente
equipadas; entretanto, os iranianos alegavam que não
haviam sido feitos testes com a conversão de urânio.
Somente quando lhes foram apresentados resultados
contraditórios de amostras e com as insistentes questões
formuladas pelos inspetores da agência, os iranianos,
ainda que relutantes, recuaram em sua postura de
negação, passando a aceitar o fato de que os cientistas
nucleares iranianos realmente realizaram experiências em
quase todas as fases da conversão de urânio.
Era o momento de confrontar os iranianos. Em 16 de
outubro, retornei a Teerã, dessa vez para uma reunião com
Hassan Rowhani, secretário do Conselho Nacional de
Segurança do Irã. Este encontro foi essencial. Após a
costumeira troca de gentilezas, apresentei uma série de
questões substanciais – o teste com as centrífugas, a
separação do isótopo de laser, a conversão de urânio, o
projeto do reator a água pesada e os resultados das
amostras da AIEA – de maneira inequívoca. Disse a ele que
não era mais possível manter sua política de fraudes e
recuos.
Rowhani veio preparado para o encontro. Sem desculpar-
se diretamente pelos ocultamentos e pelas fraudes do
passado, afirmou que o Irã estava disposto a começar uma
nova fase em suas relações com a agência. Segundo ele,
as lideranças iranianas haviam concordado em apresentar
à AIEA, ao longo da semana seguinte, uma declaração
completa das atividades passadas e atuais do Irã. O país
estava também preparado para firmar um Protocolo
Adicional e, até que ele começasse a vigorar, a agir em
conformidade com suas cláusulas, permitindo à agência
um amplo acesso às inspeções.
Nos bastidores, Rowhani estivera negociando, em nome
do Irã, com os ministros das Relações Exteriores da França,
da Alemanha e do Reino Unido (o EU-3). Em 21 de outubro,
os quatro Estados emitiram uma declaração à qual se
referiam como Declaração de Teerã, que reafirmava os
compromissos básicos que Rowhani assumira diante de
mim, dias antes, quanto à intenção do Irã de cooperar com
a AIEA e de implementar um Protocolo Adicional. A
declaração também incluía a aceitação do Irã de
suspender suas atividades de enriquecimento e
reprocessamento enquanto as negociações com o EU-3
estivessem em curso, visando ao estabelecimento de
relações de confiança. Em contrapartida, o EU-3 concordou
em reconhecer os direitos nucleares do Irã, bem como
descrever maneiras específicas para que o país
apresentasse “garantias objetivas” sobre a natureza
pacífica de seu programa nuclear. Uma vez apresentadas
tais garantias, o EU-3 facilitaria ao Irã o acesso à
tecnologia moderna, incluindo a nuclear.
Dois dias depois, a AIEA recebeu uma carta de
Aghazadeh, na qual declarava que o Irã estava “iniciando
uma nova fase de confiança e de cooperação”. Em sua
mensagem, reconhecia as inúmeras atividades que o país
negara anteriormente e acrescentava novas e
significativas informações sobre o programa nuclear
iraniano. Revelou-se que o Irã testara centrífugas com
substância nuclear na Kalaye, usando o gás UF6 que
“desaparecera” de um dos cilindros no JHL. O país fizera
experiências com enriquecimentos a laser ao longo dos
anos 1990, conduzira experiências de reprocessamento no
Centro de Pesquisas Nucleares de Teerã e separara uma
pequena quantidade de plutônio. Uma quantidade
adicional de substâncias nucleares, não declaradas
anteriormente, fora usada em inúmeras experiências de
conversão de urânio. Nenhuma dessas atividades
apontava, de modo explícito, na direção de um programa
de armas nucleares, mas o conjunto delas constituía um
programa de ciclo de combustível nuclear de significativa
abrangência, a maior parte do qual fora conduzida em
segredo.
Em 10 de novembro de 2003, submeti meu relatório ao
Conselho de Governadores da AIEA. O documento era
detalhado e completo, com uma grande quantidade de
informações. Descrevi as inúmeras vezes em que o Irã,
num longo período de tempo, deixou de declarar
substâncias e instalações nucleares à AIEA. Afirmei que a
postura do país, durante as inspeções recentes, foi a de
adotar uma “política de ocultamento” e oferecer uma
cooperação “limitada” e “reativa”. Por outro lado, elogiei a
iniciativa iraniana de mudar, prometendo uma “plena
cooperação” com a agência, conduzindo seus passos na
direção da transparência, dispondo-se a suspender as
operações de enriquecimento e reprocessamento e
tomando a decisão de assinar e implementar um Protocolo
Adicional.
Nada disso se revelaria polêmico. Porém, nos parágrafos
finais do relatório, incluí a conclusão provisória da AIEA
sobre o Irã em relação à proliferação de armas nucleares:
“Até o momento”, escrevi, “não há provas de que as
substâncias e as atividades não declaradas previamente às
quais se faz referência neste relatório estejam relacionadas
a um programa de armas nucleares. No entanto, tendo em
vista a postura de ocultamento do país no passado, levará
algum tempo até que a agência possa concluir que o
programa nuclear iraniano tem fins exclusivamente
pacíficos”.
Tratava-se de uma afirmação fatual, imparcial e direta.
Mas causou uma reação negativa. John Bolton,
subsecretário de Estado norte-americano para o Controle
de Armas e Segurança Internacional, ficou furioso com o
fato de a AIEA não ter adotado uma postura mais linha-
dura com o Irã. Veio à tona uma discussão descabida nos
bastidores diplomáticos em relação ao termo ‘provas’, tal
como usado no relatório da AIEA. Bolton elaborou uma
réplica severa. O embaixador norte-americano na AIEA,
Ken Brill, recebeu ordens de ler um comunicado dizendo
que “a instituição encarregada pela comunidade
internacional de examinar os riscos de proliferação nuclear
está descartando fatos importantes, descobertos em sua
própria investigação”. “Levaria tempo”, continuava a
declaração, para “reparar os danos causados à
credibilidade da agência.”
Em um gesto atencioso, Brill compartilhou comigo uma
cópia da declaração, antes de expô-la ao grupo. Ainda
assim, fiquei irritado quando ela foi lida em voz alta para o
Conselho. Pedi a palavra ao presidente e dei minha
resposta ali mesmo, de improviso, defendendo a
integridade da agência e de seus inspetores. Chamei a
atenção para o enorme progresso que havíamos feito ao
apresentar um quadro do programa nuclear iraniano – em
dez meses, um progresso mais significativo do que os
melhores serviços de inteligência do mundo haviam obtido
nos dez anos anteriores. Apresentei também uma violenta
refutação ao enfoque obsessivo – e logicamente incorreto –
naquilo que eles chamavam de “provas” das intenções
iranianas em relação às armas nucleares. Meu exemplar do
Blackstone Legal Dictionary, dos tempos da Faculdade de
Direito da New York University, trinta anos antes,
novamente mostrou serventia.
“Francamente”, disse eu, “vejo pouca sinceridade no fato
de este termo, ‘provas’, ter se transformado, de repente,
em objeto de polêmica. Na verdade, a credibilidade da
agência aumentou desde o episódio do Iraque por causa
de nossa objetividade.” Minhas referências eram claras: se
alguém perdera a credibilidade devido ao uso pouco
cauteloso do termo “provas”, esse alguém foram os norte-
americanos e seus aliados, em sua catastrófica pressa de
declarar guerra contra o Iraque. Deparávamo-nos com
provas diárias, no Iraque, das consequências da avidez
norte-americana e britânica em apresentar informações
secretas não verificadas como provas. Atacar a AIEA por
sua fidelidade aos fatos era uma atitude descaradamente
hipócrita.
A sala ficou em silêncio. As pessoas ficaram
impressionadas diante da discussão pública entre os norte-
americanos e o diretor-geral da AIEA, que ocorria em um
ambiente diplomático. Permaneci sentado; não levantei o
tom de voz. Porém, a franqueza de minhas observações
não dava margens a equívocos. Quando o presidente da
assembleia dirigiu a atenção ao próximo que faria uso da
palavra, percebi que precisava deixar a sala para me
recompor. Após a reunião, vários membros do Conselho me
disseram que havia sido um “dia histórico”, por terem
deparado com um funcionário público internacional
enfrentando a intimidação imposta pelos Estados Unidos, o
país que, como todos nós sabíamos, era responsável pelo
suprimento de 25% de nosso orçamento.

Logo após a revelação pública das atividades não


declaradas do Irã, escrevi um artigo para a revista The
Economist solicitando que a operação do ciclo de
combustível nuclear ocorresse sob um controle
multinacional conjunto. Essa ideia não era nova; ciclos de
combustível operados internacionalmente haviam sido
objeto de estudo e assunto discutido em comitês já em
meados da década de 1970. Até mesmo o discurso
“Átomos para a paz” de Eisenhower, presidente dos EUA,
em 1953, fazia alusão a esse objetivo.
Porém, em virtude da rápida disseminação da tecnologia
e do know-how nucleares, tanto por meios legítimos
quanto clandestinos, havia uma urgência renovada. Se
cada país começasse a desenvolver seu próprio ciclo de
combustíveis, seria aberta uma caixa de Pandora de riscos
de proliferação. A adoção de uma abordagem
multinacional – por meio da construção de instalações
centralizadas de ciclo de combustível sob os auspícios de
vários países e para a utilização de todos os participantes –
seria capaz de recolocar a tampa sobre a caixa. Os
usuários legítimos da energia nuclear poderiam garantir
um fornecimento de combustível confiável para os seus
reatores. As vantagens econômicas eram consideráveis:
seria eliminada a necessidade de fábricas, extremamente
onerosas e adaptadas às particularidades de cada país,
para o enriquecimento de urânio e a produção de plutônio.
Mais importante que tudo: cairia drasticamente o risco de
substâncias nucleares serem desviadas para a fabricação
de armas nucleares.
O artigo teve grande repercussão, e a ideia ganhou vida
própria. Os Estados Unidos e seus aliados começaram a
pressionar em prol de uma “Parceria Global de Energia
Nuclear (GNEP)”. O presidente russo, Vladimir Putin,
sugeriu a criação de uma rede de centros internacionais de
ciclo de combustível. A Alemanha propôs o
estabelecimento de uma central na qual a AIEA operaria
uma usina internacional de enriquecimento de urânio.
Uma abordagem criativa foi apresentada por Ted Turner e
Sam Nunn83, este último diretor da Iniciativa contra a
Ameaça Nuclear84, que convenceu o investidor e filantropo
norte-americano Warren Buffett a contribuir com US$ 50
milhões para financiar uma reserva de combustível sob a
custódia da AIEA. Os fundos destinados ao projeto
motivaram os governos a contribuir também, reservando
US$ 100 milhões como um primeiro e simbólico passo no
caminho da multinacionalização do ciclo de combustível.
No entanto, um sentimento de desconfiança logo surgiu.
Estados Unidos, Rússia, França, Alemanha, Holanda e
Reino Unido apresentaram uma proposta à AIEA que
começava de modo generoso, garantindo o fornecimento
de combustível para o reator, mas apenas se os países
beneficiados abdicassem dos direitos que lhes foram
garantidos pelo TNP – de enriquecimento e
reprocessamento.
Isso indicava uma diferença fundamental no tipo de
abordagem. A meu ver, a criação de centros multinacionais
do ciclo de combustíveis era a primeira de várias etapas de
um processo que reduziria a divisão existente entre os
países detentores de tecnologia nuclear e os não
detentores, restringindo a proliferação e, em última
instância, abrindo caminho na direção do desarmamento
nuclear. A proposta dos seis países atendia apenas ao
objetivo mais imediato – a prevenção de casos “adicionais”
de proliferação. E ainda de uma maneira que só fazia
exacerbar as divisões na área nuclear: basicamente,
continuamos possuindo a tecnologia e ninguém mais tem
acesso a ela. Tratava-se de um mandato agressivo e
provocativo, um pedido franco e direto para que os países
participantes abdicassem de um direito que lhes era caro.
Eu conseguia ver o desastre iminente: implorei aos
defensores da proposta para que não condicionassem o
plano à renúncia dos países aos seus direitos. Mas os
Estados Unidos insistiram: essa condição continuaria
válida. A proposta foi repassada a todos os membros do
Conselho.
O resultado, como eu havia previsto, foi um grande
sentimento de apreensão não apenas entre os países em
desenvolvimento, mas também do Canadá, da Itália e da
Austrália, países que não possuíam um ciclo de
combustíveis completo, mas que desejavam manter suas
opções em aberto para o futuro. Outros países, tais como
Japão, Alemanha, Holanda, Brasil e Argentina, se
colocaram em cima do muro: não possuíam armas
nucleares, mas tinham o know-how para produzir
substâncias nucleares, o que elevava seu status. Nenhum
dos países que dispunha de tal vantagem estava disposto
a abdicar dela a fim de dar continuidade a um programa
multinacional que reduziria o risco de proliferação.
Essa primeira proposta envenenou a água do poço. Os
países sem tecnologia nuclear avançada passaram a
enxergar com suspeita cada uma das propostas
subsequentes – como uma série de artifícios cujo objetivo
era privá-los de seus direitos. Essa desconfiança entre os
países com tecnologia nuclear e os que carecem dela
começaria a dominar lentamente os bastidores da
diplomacia nuclear internacional.
Desde a época em que a primeira bomba atômica foi
lançada sobre Hiroshima, o fato de um número limitado de
países deter armas nucleares tem servido como
provocação e estímulo à competição para aqueles que não
as têm. A recusa da parte da maioria dos Estados
detentores de armas nucleares em reconhecer essa
relação de causa e efeito só confirma isso. Embora o TNP
tenha deixado claro que o fato de apenas cinco países
possuírem armas nucleares representa apenas uma fase
transitória, uma passagem para o desarmamento nuclear,
35 anos depois o desarmamento se encontrava em um
virtual estado de paralisação. Cada simples declaração
feita por um dos Estados detentores de armas nucleares a
fim de “reafirmar” o valor restringente das armas, cada
atitude visando à renovação ou à modernização de um
arsenal nuclear, significava, para os países sem essa
tecnologia, um sinal adicional de falta de boa-fé.
Cada vez mais esse contexto determinou a natureza do
debate entre os membros do Conselho da AIEA em relação
às atividades nucleares iranianas do passado e às mais
recentes. Poucos deles – ou nenhum – mostraram-se
indulgentes com o desenvolvimento secreto pelo Irã de um
programa nuclear, embora pudessem compreender as
razões para tanto. Todos exigiam do Irã uma completa
transparência. Porém, ao mesmo tempo, muitos se
ressentiam do caráter de exclusividade do clube nuclear e
eram capazes de entender o desejo iraniano de adquirir a
tecnologia do ciclo de combustíveis. Na ausência de provas
de que o Irã estava, de fato, em busca de armas nucleares,
esses países não se dispunham a condenar abertamente
as ações de Teerã. A pressão exercida pelos Estados
ocidentais servia apenas para aprofundar essa divisão.

O período entre o fim de 2003 e a primavera de 2005


marcou uma fase discreta no confronto entre o Irã e a
comunidade internacional quanto ao programa nuclear
iraniano. Caracterizado, de um lado, pelo otimismo
transmitido pela Declaração de Teerã e pelo anunciado
compromisso de mostrar transparência e, de outro, por
sérias divergências internacionais sobre como lidar com o
caso iraniano, esse período foi marcado por uma
extraordinária e complexa controvérsia em relação ao
desenvolvimento nuclear do Irã: o sacrifício do
pragmatismo ao mais vago dos “princípios”; os resultados
negativos da tática adotada pelos adeptos da linha-dura; e
o constante aumento dos riscos que acompanhavam cada
nova atitude de oposição.
Da perspectiva da agência, durante esses anos a AIEA –
ou, mais especificamente, as reuniões de nosso Conselho –
se transformou em um campo de batalha no qual posições
conflitantes sobre o Irã se enfrentavam. Um dos primeiros
exemplos disso ocorreu antes da reunião do Conselho em
março de 2004, durante a qual expressamos a
preocupação sobre respostas que havíamos recebido do
Irã. Uma das questões estava relacionada à tecnologia de
centrífugas do país. Tais centrífugas estavam em
conformidade com um design chamado P-1, fornecido pelo
Paquistão. Contudo, por meio de inspeções e investigações
fora do Irã, a AIEA passou a ter motivos para suspeitar que
o Irã talvez tivesse adquirido um modelo mais avançado, o
P-2. Aparentemente, ambos os modelos foram concebidos
no estilo de centrífugas europeias mais antigas e copiados
pelo cientista nuclear paquistanês A. Q. Khan na época em
que ele trabalhou para a Urenco, uma usina de
enriquecimento na Holanda.
Até então, os inspetores da AIEA não tinham detectado
nenhum indício de trabalhos realizados nas máquinas P-2.
Mas sabíamos que os iranianos haviam tentado levar
adiante a pesquisa e o desenvolvimento do maior número
possível de aspectos do ciclo de combustíveis nuclear. O
modelo P-2 era mais avançado que o P-1, com uma
capacidade maior de enriquecimento. Parecia pouco
provável que os iranianos, caso tivessem tido a
oportunidade, se recusassem a trabalhar com os modelos
P-2.
Os inspetores da agência insistiram nesse aspecto. Em
janeiro de 2004, os iranianos reconheceram que, em 1994,
eles de fato receberam projetos do modelo da centrífuga P-
2. Engenheiros de uma empresa privada em Teerã
realizaram um número limitado de testes – sob contrato
com a Organização de Energia Atômica do Irã – em um
design P-2 modificado. O Irã foi negligente ao não incluir a
menção a esse fato em sua declaração à agência feita em
outubro de 2003.
Outra questão envolveu o Centro de Pesquisas Técnicas
Lavizan-Shian, situado em um subúrbio de Teerã, que foi
citado como um possível instituto de pesquisas de armas
de destruição em massa. A agência recebeu informações
de que detectores de radiação haviam sido adquiridos para
ser usados nesse local. Imagens de satélite mostravam
que, após agosto de 2003, o local foi destruído, suas
construções derrubadas e o terreno, esvaziado, o que
indicava uma tentativa de ocultamento.
Os iranianos afirmaram que Lavizan-Shian havia sido
uma instalação do Ministério da Defesa, que realizava
pesquisas sobre como reagir a ataques e acidentes
nucleares. O local foi destruído depois que o ministério foi
instruído a devolver a terra à prefeitura de Teerã, após
uma controvérsia entre as duas organizações
governamentais.
Naturalmente, tendo em vista as práticas anteriores do
Irã de ocultamento e de fraudes, tanto os testes com as
centrífugas P-2 quanto a demolição de uma suposta
construção para armas de destruição em massa
imediatamente levantaram suspeitas. A situação era
complexa. De modo geral, o Irã deu passos significativos
em sua cooperação com a AIEA; desde outubro de 2003,
devido à implementação provisória de seu Protocolo
Adicional, podíamos visitar instalações de enriquecimento
e outros fins sem a necessidade de discutir se substâncias
nucleares tinham sido utilizadas. Nossa percepção era que
estávamos, enfim, obtendo uma compreensão mais ampla
das atividades nucleares iranianas.
Porém, em outros aspectos, o Irã não estava facilitando
as coisas para si mesmo: algumas atitudes faziam a
cooperação parecer esporádica. A agência havia marcado
uma inspeção, para meados de março, da usina-piloto de
enriquecimento de combustíveis em Natanz, além de
visitas a locais relacionados à atividade da centrífuga P-2.
Em 5 de março, as autoridades iranianas repentinamente
adiaram as inspeções da AIEA, alegando a proximidade da
data com as celebrações do Ano-Novo iraniano. É claro que
isso era bobagem: a época do Ano-Novo não era
exatamente algo imprevisto, mas o Irã pareceu pouco
disposto a revelar a causa verdadeira do atraso.
Novamente, os iranianos passaram a impressão de que
escondiam algo.
Com esse pano de fundo, Hassan Rowhani me procurou
duas vezes para pedir que a agência retirasse o programa
nuclear da agenda da reunião do Conselho em março. Na
expectativa do Irã, isso seria interpretado como um sinal
de que nosso nível de preocupação havia diminuído. Os
europeus deram apoio à solicitação. A delegação francesa
me perguntou por que eu produziria um novo relatório
sobre o Irã. No entanto, os norte-americanos, que
pressionavam para submeter o caso iraniano ao Conselho
de Segurança, insistiram para que esse item
permanecesse na agenda.
A todas as delegações meu recado foi o mesmo: a
agenda do Conselho não seria usada como instrumento
para negociações políticas. Seu conteúdo era resultado de
avaliações técnicas. “Terei satisfação de remover este item
da agenda amanhã”, eu disse aos iranianos e aos
europeus, “mas somente se as questões pendentes no Irã
forem resolvidas. Enquanto ainda tivermos questões não
respondidas, o programa nuclear iraniano continuará na
agenda do Conselho.”
De qualquer modo, o instrumento oficial dos Estados-
membros da AIEA para registrar suas posições sobre o
programa nuclear não era a agenda, e sim as resoluções
adotadas nas reuniões do Conselho. Habitualmente, as
resoluções são esboçadas e negociadas por cada
representante dos Estados-membros, sem nenhum
envolvimento da Secretaria. No caso do Irã, os projetos
geralmente eram esboçados pelo grupo EU-3 – tendo em
vista sua iniciativa ao tentar encontrar uma solução –, e
depois apresentados aos demais países.
No entanto, nesse ponto o processo se mostrava
igualmente confuso. Havia uma divisão sem precedentes
entre os países ocidentais. Os norte-americanos, apoiados
pelos canadenses e australianos, insistiam na inclusão de
uma linguagem mais veemente, condenando o Irã. Já os
países do EU-3 tentavam amenizar o tom da resolução. No
Irã, os negociadores da questão nuclear vinham
anunciando à imprensa iraniana e ao establishment
político os benefícios de uma maior cooperação com a
AIEA; portanto, eles provavelmente perderiam o apoio
doméstico caso o Conselho da AIEA emitisse uma
resolução negativa. Os países em desenvolvimento
também não estavam nada satisfeitos com a linguagem
empregada no esboço inicial do documento.
Adotando uma medida incomum, os iranianos insistiram
comigo para que eu os ajudasse. O embaixador norte-
americano também apresentou uma mensagem de Colin
Powell, que indagava se eu podia me envolver com sua
posição. No final, todos assinaram uma resolução
consensual, que agradou tanto aos iranianos quanto aos
norte-americanos. A reunião foi encerrada sem maiores
empecilhos, mas as controvérsias que a precederam
demonstravam em que medida as ações do Conselho
estavam se transformando em um palco de confrontos
sobre o Irã, representando um presságio de divisões ainda
mais profundas no futuro.
Poucos dias depois da reunião do Conselho, viajei para
Washington a fim de encontrar o presidente Bush. Fiquei
um pouco surpreso com o convite. Não havia muito tempo,
o New York Times publicara um artigo meu falando do
desarmamento, no qual abordei assuntos sobre os quais
Bush também havia opinado85. Colin Powell me telefonou
logo depois, dizendo que Bush gostaria de se encontrar
comigo. Naturalmente, aceitei o convite, mas esperei a
reunião do Conselho, em março, para evitar qualquer
aparente indício de influência dos EUA sobre meu relatório
ao Conselho ou sobre quaisquer declarações que eu
pudesse dar.
Antes de meu encontro com Bush, conversei com Richard
Armitage, vice-secretário de Estado. Ele lembrou-me da
solidariedade que os EUA prestaram ao Irã, após o
devastador terremoto em Bam86. O plano era fornecer
assistência humanitária, oferta que foi rejeitada, embora o
país tenha recuado da decisão dias mais tarde.
Coincidentemente, o terremoto ocorreu apenas uma
semana depois de o Irã ter assinado seu Protocolo
Adicional, uma concessão significativa. Alguns
comentaristas observaram que a convergência desses
eventos talvez tenha criado uma oportunidade para
expandir a cordialidade nas relações com os EUA,
particularmente depois que Colin Powell apoiou a
possibilidade de um diálogo futuro87. Porém, até então,
não houvera nenhum sinal de tal expansão.
“Ouvi dizer que você torce para o Yankees?”, foi um dos
primeiros comentários de Bush na Sala Oval. O presidente
estava acompanhado de Armitage, de Condoleezza, do
secretário da Energia, Spencer Abraham, e de Bob Joseph,
que trabalhava com Condoleezza no Conselho de
Segurança Nacional. A meu lado estava David Waller, vice-
diretor-geral de administração dos EUA e amigo de
confiança.
“Sim”, respondi sorrindo, “e acho que pagamos uma
quantia alta demais pela contratação de Alex Rodriguez.”
Os Yankees tinham acabado de comprar Rodriguez do
Texas Rangers. Eu sabia que Bush tinha sido coproprietário
do Rangers. Ele explicou alguns dos termos da negociação
com Rodriguez, e logo passamos a falar de negócios. “Ouvi
dizer que você tem sugestões para fortalecer o regime de
não proliferação”, começou ele.
Mencionei, de memória, alguns dos conceitos que
abordei em meu artigo. “Primeiro, precisamos nos livrar de
todo urânio de alto enriquecimento que possa existir no
ciclo civil”, eu disse. Afirmei que havia cerca de cem
instalações em 40 países com esse tipo de urânio. Muitas
delas eram reatores de pesquisa que poderiam ser
convertidos para o uso de urânio de baixo enriquecimento,
diminuindo assim o risco de proliferação. Regulamentar
todo o urânio de alto enriquecimento custaria cerca de 50
milhões de dólares anuais, no período de quatro ou cinco
anos.
“Bem, não me parece uma quantia muito grande”,
respondeu Bush. Ele olhou para Spencer Abraham.
“Spencer, isso é viável?”
“Sim, é claro que podemos fazer isso”, respondeu
Abraham. Como eu viria a saber mais tarde, o
Departamento de Energia já estava trabalhando em um
plano semelhante, porém, após essa reunião, as ordens
que lhes vinham de cima partiam do presidente.
Falei sobre a necessidade de controlar a disseminação
das instalações de ciclo de combustível, observando que
havia 13 países com potencial para o reprocessamento, ou
então para o enriquecimento. “Se tentarmos impedir os
outros de se juntarem a esse grupo”, eu disse, “os que
estão prestes a desenvolver esse potencial não ficarão
muito satisfeitos.” Tal comentário nos levou à questão do
Irã. Como a discussão caminhava bem, decidi ousar. “A
meu ver”, eu disse, “teologias e ideologias à parte, temos
de subornar o Irã” – com um pacote de incentivos
atraentes demais para ser rejeitado – “e então pressionar
por uma moratória voluntária para quaisquer outros países
que estejam desenvolvendo um ciclo de combustível.”
“Gosto do estilo pragmático desse rapaz”, Bush afirmou,
me surpreendendo. Ele disse que gostaria de decretar uma
moratória legal, permitindo que os países com instalações
de ciclo de combustível as mantivessem, mas impedindo
que novos países se juntassem ao grupo. Observei que
isso faria que fossem negados aos Estados-membros os
seus direitos previstos no TNP. Havia uma maior
probabilidade de êxito por meio da combinação de uma
moratória voluntária e a garantia de fornecimento de
combustível – além de uma reafirmação, da parte dos
Estados detentores de armas nucleares, de seu
compromisso com o desarmamento88. Em relação ao Irã,
enfatizei a necessidade de não apenas fazer ameaças, mas
de oferecer recompensas. “Uma solução baseada na
diplomacia e nas verificações”, concluí, “é a melhor saída
possível para a questão iraniana.”
Bush me surpreendeu novamente: “Não é apenas a
melhor solução”, respondeu ele, “é a única solução – além
da apresentada por Israel. Você sabe que existe a
preocupação de os israelenses quererem empregar a
força”.
Esperei para ouvir o que mais ele teria a compartilhar
comigo sobre os detalhes da ameaça israelense, mas ele
se mostrou bastante vago, parecendo não saber se Israel
estava disposto a lançar uma ofensiva militar. Ou, pelo
menos, não me revelou nada a respeito. Deixou implícito
que a abordagem dos EUA de aumentar a pressão sobre o
Irã tinha a intenção de evitar que Israel empreendesse tal
ação. Lembrei-me de uma conversa que tive com Jack
Straw e com o ministro das Relações Exteriores alemão
Joschka Fischer, na qual eles afirmaram que o EU-3 estava
tentando agir como uma espécie de “escudo humano”, por
meio de seu diálogo com o Irã, a fim de proteger-se contra
o risco de ações militares da parte dos EUA ou de Israel.
Naquela época, havia uma divergência interna
considerável no governo dos EUA: os falcões pareciam
defender um ataque militar e a mudança de regime em
Teerã, apesar das lições da Guerra do Iraque. Eles viam o
Irã como uma ameaça a Israel e se opunham a qualquer
diálogo com Teerã que pudesse “legitimar” o regime
iraniano. Outros – entre os quais, pelo que me constava, o
presidente Bush e Condoleezza Rice, apesar de sua
retórica em público – acreditavam que o melhor caminho
era a diplomacia, mas que seria necessário preencher uma
série de pré-requisitos antes de negociar. Outros, ainda,
como Powell e Armitage, eram favoráveis à negociação e
ao diálogo sem pré-condições em busca de uma solução
diplomática.
Eu trouxera comigo uma mensagem escrita por Hassan
Rowhani, em nome do regime iraniano, afirmando que o Irã
estava pronto para iniciar um diálogo com os EUA sobre
todas as questões, incluindo o programa nuclear iraniano e
assuntos mais amplos, relacionados à segurança regional.
A mensagem foi escrita em folha de papel não timbrado e
não foi assinada quando a recebi. Entreguei-a a Bush,
garantindo-lhe a autenticidade do documento, enfatizando
o quanto eu considerava importante que os EUA iniciassem
o diálogo com o Irã.
“Eu gostaria de conversar de líder para líder”, respondeu
Bush, “mas não estou certo de que o líder iraniano esteja
disposto a ter esse diálogo.” Ele se referia ao aiatolá
Khamenei, Líder Supremo do Irã. “Acho que ele está
determinado a destruir Israel.”
Ele abordou outras questões, incluindo os cerca de 40
agentes da Al-Qaeda de origem saudita ou egípcia que
estavam sendo retidos pelo Irã, indivíduos nos quais os
Estados Unidos tinham interesse. Segundo Bush, os
iranianos estavam mantendo esses detentos para uso
como moeda de troca.
Minha percepção foi a de que Bush, a seu modo, estava
confirmando meu ponto de vista de que um diálogo entre
os EUA e o Irã poderia proporcionar benefícios múltiplos e
recíprocos, entre os quais a assistência na área de
segurança que o Irã poderia oferecer ao Iraque, em razão
de seus vínculos com a população xiita desse país. O
diálogo, disse eu, era um sinal de respeito, e o respeito –
especialmente no ambiente cultural do Oriente Médio – era
o primeiro passo na direção de uma resolução pacífica de
conflitos. Muitos membros do establishment político
iraniano desejavam, acima de tudo, restabelecer conexões
com os Estados Unidos, de preferência como parte de uma
“grande negociação” que envolveria a segurança, o
comércio, a percepção de Israel quanto a uma ameaça
militar iraniana e outras questões referentes à completa
normalização das relações. Essa era a ideia central da
mensagem de Rowhani. Porém, na época, nem Bush nem
Condoleezza pareciam abertos a tais perspectivas.
Perto do final da reunião, sugeri a convocação de um
encontro internacional a fim de discutir modos de
fortalecer os pedidos de não proliferação. Condoleezza
concordou: “Sempre achei que precisávamos organizar um
encontro como esse”, disse ela. Os EUA estavam
claramente em busca de alguma forma de demonstrar sua
liderança, particularmente em um ano de eleições no qual
o assunto das armas de destruição em massa e do
terrorismo ganhava enorme evidência89.
Saí animado. Meu encontro com Bush revelou-se muito
mais substancial do que eu esperava. Um estímulo ainda
maior nasceu durante meu encontro seguinte, em Langley,
na Virgínia, com George Tenet, diretor da CIA, um
profissional que demonstrou franqueza em sua fala.
Percebi nele certa cautela e a preocupação em não fazer
afirmações exageradas. Tal postura era bastante distinta
das alegações feitas pelos serviços de inteligência que
ouvimos no período que antecedeu a Guerra do Iraque.
O próprio Tenet tinha convicção de que dentro do
programa nuclear iraniano havia a intenção de
desenvolver armas nucleares, mas admitiu não ter provas,
tampouco “informações que justificariam a adoção de
medidas legais”, expressão do jargão dos serviços de
inteligência. Basicamente, a expectativa dele era a de que
os iranianos, em algum momento do processo de inspeção,
cairiam em contradição.
O ponto de vista de Tenet me permitiu compreender
melhor a retórica política da campanha da mídia norte-
americana, que vivia repetindo que os EUA “sabiam” que o
Irã possuía um programa de armas nucleares, mas não
apresentavam nenhuma prova concreta. A julgar pelas
informações de que eu dispunha, a CIA, por meio de
escutas telefônicas e outros tipos de vigilância,
provavelmente tinha indícios de que a Guarda
Revolucionária do Irã estava envolvida no processo de
aquisição e em outros aspectos do programa nuclear; no
entanto, não havia nenhum indício de associação com o
desenvolvimento de armas. A única estratégia dos EUA,
portanto, era exercer pressão sobre o Irã por meio da AIEA
e da imprensa, na expectativa de que provas essenciais
viessem à tona, ou que um informante aparecesse com
uma “prova definitiva”.
O Irã não estava colaborando para melhorar o quadro. O
ocultamento de suas operações com a centrífuga P-2 e o
cancelamento repentino das inspeções em Natanz e em
outras instalações só contribuíram para aumentar nosso
sentimento de inquietação. Era o momento de lhes
transmitir uma mensagem firme, que decidi fazer
pessoalmente, numa visita a Teerã.
Em todos os meus encontros naquela viagem – com
líderes como o presidente Khatami e o ministro das
Relações Exteriores Kamal Kharazi –, eu afirmei que estava
farto de seus adiamentos e atrasos. Diante do presidente
Khatami, mostrei frieza, já que ele havia trapaceado em
nossa conversa anterior. Não o confrontei em relação a
isso de modo direto, mas deixei claro que minha postura
diante dele havia mudado. Também esclareci para ele e
para os demais que a paciência do Conselho da AIEA
estava se esgotando; o Irã perdia apoio entre alguns
Estados-membros, e a questão, de modo geral, estava
virando motivo de discórdia. Qualquer atitude dos
iranianos que não demonstrasse uma transparência plena
e consistente só contribuiria para depor contra eles.
Transmiti a Rowhani e a Khatami os aspectos essenciais de
minha conversa com o presidente Bush: o ceticismo em
relação à disposição dos iranianos em ter um diálogo sério;
e que os EUA queriam, com urgência, que os detentos da
Al-Qaeda fossem repatriados para seus respectivos países.
Mencionei ainda que a recusa inicial do Irã em aceitar a
ajuda norte-americana depois do terremoto representou
um abalo na confiança dos EUA.
Khatami ficou indignado com o ceticismo dos EUA. Fez
menção à reaproximação entre os países durante a
administração Clinton, quando deu o primeiro passo, com o
pedido de desculpas às famílias dos norte-americanos
mantidos reféns em Teerã. Madeleine Albright respondeu
com o reconhecimento do papel da CIA no golpe de 1953,
que causou a destituição do primeiro-ministro Mohammad
Mossadegh e reempossou o xá, seguido da suspensão das
proibições à importação de determinados artigos de luxo
iranianos, tais como pistache, caviar e carpetes, um gesto
simbólico que valia milhões de dólares.
Foi a administração Bush, insistiu Khatami, que minou o
progresso das relações entre os EUA e o Irã. O Irã apoiou
os norte-americanos durante a Guerra do Afeganistão e em
seus preparativos para a Guerra do Iraque. Khatami fez
menção a reuniões específicas em Sulaymaniyah, no
Curdistão iraquiano e em Londres, das quais o Irã
participou. “Como retribuição à nossa participação e
cooperação”, disse Khatami, irritado, “a única coisa que
recebemos em troca foi o rótulo de fazermos parte de um
‘eixo do mal’.”
Kharazi, ministro das Relações Exteriores, também
estava indignado com a oferta feita pelos EUA após o
terremoto. “Depois de décadas de sanções e boicotes”,
observou, “os EUA ainda nos insultam, nos oferecendo 10
milhões de dólares como gesto de caridade?” Ele balançou
a cabeça. “Essas pessoas não compreendem a
mentalidade dos outros.” Kharazi disse que o governo
iraniano teria prazer em discutir o assunto dos detentos da
Al-Qaeda, mas também desejava obter dos EUA uma ajuda
para as negociações com o Mujadehin-e Khalq, grupo de
dissidentes iranianos que defendia a destituição do
governo do Irã.
Os iranianos concordaram em intensificar a cooperação
com a AIEA, mas enfatizaram que a percepção
predominante em Teerã era a de que o trabalho conjunto
com a agência não levara a nada. Os adeptos iranianos da
linha-dura, que haviam recentemente conquistado a
maioria no parlamento Majlis, consideravam a suspensão
voluntária das atividades de enriquecimento do Irã como
uma traição, um ato de curvar-se diante do Ocidente. Já os
“moderados”, que eram a favor de uma solução
diplomática e da normalização de relações com o
Ocidente, estavam perdendo terreno. Rowhani disse que,
se meu relatório a ser entregue em junho ao Conselho da
AIEA fosse negativo, duvidava que ele e seus colegas
conseguiriam manter o atual nível de cooperação com a
agência, ou até mesmo os seus cargos. A expectativa dos
moderados era, no mínimo, ter uma reação positiva da
parte dos europeus, de modo que pudessem relatar à
opinião pública iraniana que suas políticas eram
compensadoras.
A meu ver, a dificuldade dos iranianos era que seu
governo havia superestimado os méritos de seu programa
nuclear. Eles o haviam apresentado como a joia da coroa
de Teerã, uma conquista científica para a nação. Com isso,
ficou difícil para o país explicar o porquê de estar
suspendendo o programa. É claro que eles foram
negligentes ao não mencionar para a opinião pública que a
suspensão ocorreu como consequência de terem enganado
a AIEA durante anos. Em vez disso, argumentaram que a
pressão dos EUA sobre a agência estava atrasando o
processo de verificação.
Eis outro traço distintivo da situação iraniana não muito
diferente de outras crises nucleares, como a do Iraque ou a
da Coreia do Norte: a desculpa utilizada, tanto em Teerã
quanto em Washington, da suposta má vontade da outra
nação. Uma vez liberto, era difícil de conter esse gênio da
lâmpada. O tratamento a mim dado pela mídia iraniana
refletia o modo como se formava a opinião pública; por
exemplo, um artigo no Tehran Times noticiou que
“observadores em Viena disseram que ElBaradei... ficou
deprimido e mostrou-se passivo”, devido à extrema
pressão que eu vinha sofrendo dos norte-americanos90.
Durante minha visita, repórteres iranianos me
perguntaram, repetidas vezes, como eu estava lidando
com tal pressão. “Sofro pressão de todos os lados”,
respondi, sorrindo. “Dos norte-americanos, dos iranianos e
de todos os demais.” Mas minha preocupação era maior do
que eu deixava transparecer. Para mim, as perguntas que
me faziam e a atitude demonstrada pela imprensa iraniana
deixavam claro que o programa nuclear estava se
transformando numa questão de orgulho nacional. Isso não
era um bom sinal.
As autoridades iranianas também acreditavam ter as
próprias cartas para usar nesse jogo. Se as relações com
os norte-americanos não melhorassem, disse Rowhani, o
Irã estava certo de que podia dificultar ainda mais a
situação no Iraque. Desaconselhei qualquer tipo de
retaliação.
Ao retornar da viagem a Teerã, insisti com Ken Brill,
embaixador dos EUA, e John Wolf, secretário-assistente de
Estado, para que buscassem uma forma de iniciar o
diálogo com o Irã ou, pelo menos, dessem um aceno
positivo. “Se temos um objetivo em comum – de que não
queremos armas nucleares no Irã –, devemos elaborar uma
estratégia coerente”, eu disse. Fiz propostas semelhantes
aos embaixadores do EU-3. Expliquei que os adeptos da
linha-dura no Irã estavam consolidando seu poder devido
aos resultados negativos da cooperação com a AIEA. A
política de exercer pressão, isoladamente, não funcionaria,
acrescentei, “especialmente porque ninguém no Ocidente
tem provas concretas de um programa de armas nucleares
iraniano”. Não contando com nenhum incentivo, os
iranianos poderiam tomar uma série de medidas, tais
como reiniciar seu programa de enriquecimento, recuar de
seu Protocolo Adicional, ou mesmo retirar-se do TNP.
Talvez eu devesse ter poupado minhas energias. Em
junho, o Conselho da AIEA emitiu uma resolução em que
“lamentava” a ausência de uma cooperação “plena,
oportuna e proativa” iraniana. É claro que as críticas
tinham algum fundamento, mas os iranianos ficaram
enfurecidos. Os adeptos da linha-dura dentro do governo
podiam agora dizer “Eu avisei vocês”. Menos de uma
semana depois, o país informou à AIEA que retomaria a
fabricação e o teste com as centrífugas, embora sem o uso
de substâncias nucleares. Pedi a eles que reconsiderassem
a decisão, mas sem sucesso. Os lacres da agência foram
removidos e os engenheiros das centrífugas iranianas
voltaram ao trabalho, interrompendo a suspensão
voluntária da pesquisa do programa de enriquecimento.
Após a reunião do Conselho, em junho, fiz apelos durante
encontros com Colin Powell e seus colegas no
Departamento de Estado para que tratassem diretamente
com o Irã. Dentro de seis meses, o programa de
enriquecimento de urânio do país se tornaria um fato
consumado, e o preço para interrompê-lo seria muito mais
alto. Também avaliei que não haveria nenhuma vantagem
em submeter o caso iraniano ao Conselho de Segurança da
ONU, como, mais uma vez, alguns estavam
recomendando. O Irã poderia se retirar do TNP, e então
teríamos mais uma Coreia do Norte em mãos.
Durante meu encontro com Powell, ele disse: “Se
dependesse de mim, iria encontrar o ministro das Relações
Exteriores Kharazi amanhã de manhã”. No entender de
Powell, o problema era que o ressentimento em relação ao
Irã, desde a crise envolvendo os reféns, continuava muito
presente nos Estados Unidos. Seria difícil iniciar um diálogo
direto. Condoleezza Rice também foi surpreendentemente
receptiva, me perguntando a respeito de Rowhani, que, na
época, ocupava uma função mais ou menos equivalente à
dela. “Que tipo de personalidade ele tem?”, perguntou, me
passando a impressão de que pelo menos ela aventava a
possibilidade de tratar com os iranianos.
Uma contribuição construtiva foi dada pelo presidente
russo Vladimir Putin, que visitei em sua casa de veraneio
em Moscou. Contrariando algumas afirmações feitas em
certas ocasiões pelo Ocidente, Putin era totalmente
contrário à obtenção de armas nucleares pelo Irã,
questionando sua necessidade de enriquecimento nuclear;
porém concordava que deveria ser oferecida àquele país
uma assistência com elementos atrativos, incluindo a
tecnologia nuclear, e era favorável a uma garantia
internacional de fornecimento de combustível para
reatores. Putin também apresentou a proposta de um
repositório internacional para combustível queimado, que
elogiei. Um depósito controlado de forma multilateral
contribuiria para minimizar os riscos de proliferação desse
estágio sensível do ciclo de combustível e incrementaria a
expansão de energia nuclear segura. Passei a alimentar
esperanças de que a Rússia pudesse ajudar a encontrar
uma solução para a situação iraniana91.
Enquanto isso, os inspetores da AIEA redobravam os
esforços a fim de determinar a origem das partículas de
urânio enriquecido encontradas em vários locais do Irã.
Para comprovar ou refutar a argumentação iraniana – de
que tal origem consistia na contaminação de componentes
de centrífuga importados do Paquistão –, precisávamos de
amostras ambientais de centrífugas paquistanesas para
compará-las com os resultados de nossa amostragem do
equipamento do Irã. O Conselho da AIEA fez um apelo aos
principais “países do Terceiro Mundo” para que ajudassem
a esclarecer a questão, mas, segundo o embaixador
paquistanês Ali Sarwar Naqvi, os norte-americanos haviam
dito ao Paquistão que deram suficiente apoio à AIEA.
Aparentemente, alguns indivíduos em Washington não
estavam preocupados em solucionar a questão da
contaminação.
Farto dessa manipulação nos bastidores e do lento
progresso que dela resultava, pressionei os paquistaneses
para obter sua colaboração, pois eles (que não fazem parte
do TNP) relutavam em permitir a inspeção das instalações
de enriquecimento, localizadas em bases militares.
Concordaram, porém, em apenas colher amostras para
nós, utilizando técnicas de análise que minimizariam
qualquer potencial de manipulação dos resultados.
Em meados de agosto de 2004, recebemos nossas
primeiras análises. As amostras estavam fortemente
correlacionadas à maior parte da contaminação com urânio
altamente enriquecido que havíamos encontrado em
Natanz e na Kalaye Electric Company. As provas ainda não
eram definitivas, mas tendiam a confirmar as explicações
dadas pelo Irã.
Com a aproximação da reunião do Conselho, em
setembro de 2004, pressenti surgir um já conhecido
comportamento de manipulação política. Pouco antes, ou
mesmo ao longo da reunião, viria a público uma afirmação
sensacionalista acusando o Irã de um novo ocultamento.
Instalou-se, na sequência, uma blitz liderada pelos norte-
americanos, a qual apresentava de modo sensacionalista a
importância dessas “novas provas” sem garantia, exigindo
uma ação enérgica. Os iranianos, de sua parte, poderiam
fornecer à agência informações essenciais ou o acesso a
um local solicitado de última hora, dando às vezes um tiro
no próprio pé, pelo fato de não haver tempo suficiente
para incluir a análise da AIEA no relatório do Conselho.
Dessa vez, o impulso para exercer influência sobre as
discussões do Conselho foi dado, como de hábito, por John
Bolton. Em entrevista ao programa Newsnight, da BBC2,
ele chamou a atenção para a renovada fabricação de
centrífugas pelo Irã. O fato, disse ele, de o caso nuclear
iraniano estar sendo cuidado pela AIEA, “uma agência
maravilhosa porém obscura de Viena”, não era mais
suficiente92. Em vez disso, o caso iraniano deveria ser
submetido ao Conselho de Segurança da ONU. A situação
era irônica, considerando que Bolton raramente defendia
uma postura de multilateralismo.
Assim, no terceiro dia de reunião do Conselho, pouco
antes dos debates sobre o programa nuclear do Irã, o
Instituto para a Ciência e a Segurança Internacional (ISIS,
na sigla em inglês) – grupo de especialistas com sede nos
EUA que tem como foco as questões de proliferação
nuclear – divulgou uma série de imagens de satélite de
uma base militar em Parchin, situada a cerca de 40
quilômetros a sudeste de Teerã. As imagens foram
mostradas na ABC News, acompanhadas de comentários
técnicos e dramáticos de David Albright, presidente da
ISIS, sobre o potencial dos testes com explosivos
relacionados à área nuclear em Parchin93. No dia seguinte,
a Associated Press divulgou um artigo, no qual um “alto
funcionário não identificado da delegação dos EUA” na
AIEA manifestava seu “alarme”, classificando de “omissão
séria” o fato de eu não ter mencionado Parchin em meu
relatório ao Conselho94.
Além de tolice, isso era uma tentativa nada sutil de
convencer os Estados-membros de que a AIEA agia, em
certa medida, de modo tendencioso. A agência vinha
examinando dados sobre Parchin havia algum tempo, e
tínhamos discutido com o Irã sobre nosso interesse em
visitar esse local e outras bases militares. Sabíamos que
Parchin era uma instalação militar na qual o Irã produzia e
testava explosivos químicos. Continuaríamos a questionar
o país sobre o local; porém, a essa altura, não tínhamos
nenhuma prova de atividades nucleares sendo
desenvolvidas ali. É claro que essas manipulações em
nada contribuíam para interromper a retomada da
produção de centrífugas pelo Irã.

Uma conquista importante ocorreu em meados de outubro


de 2004. Representantes do EU-3, que continuavam em
busca de uma solução diplomática, trouxeram de Teerã a
notícia de que o Irã estava disposto a iniciar sérias
negociações sobre o futuro de seu programa nuclear. Como
pré-requisito, os líderes do EU-3 solicitaram novamente ao
país que suspendesse a pesquisa e o desenvolvimento do
seu programa de enriquecimento e reprocessamento, e a
resposta foi positiva: os iranianos estavam dispostos a
suspender voluntariamente todas as suas atividades de
enriquecimento e reprocessamento enquanto as
negociações estivessem em curso.
O timing era decisivo. Os políticos do Irã demonstravam
uma postura de vigilância cada vez mais estreita. Eu
acabara de conversar com Sirus Nasseri, importante
negociador na área nuclear e sagaz observador político.
Praticamente todos os candidatos para a eleição
presidencial do ano seguinte, no entender de Nasseri,
apoiariam um confronto com o Ocidente. Uma plataforma
anti-EUA contribuiria para que fossem eleitos, ainda que
provavelmente tentassem atribuir a eles próprios o crédito
por ter chegado a um acordo com os EUA, um ano mais
tarde. Uma postura de confronto provavelmente também
reforçaria a influência da Guarda Revolucionária do Irã,
provocando o retrocesso de reformas ocorridas nos últimos
anos. Por razões de ordem interna, seria impossível para o
Irã, na visão de Nasseri, cessar de modo permanente o seu
programa de enriquecimento, independentemente de
quem fosse eleito. Nenhum político iraniano se arriscaria
ao descrédito perante a opinião pública, interrompendo um
programa para o qual o país dedicou tamanho empenho.
Eles tampouco estavam preocupados com a possibilidade
de ocorrerem ataques militares dos EUA ou de Israel às
suas instalações, assunto que fora discutido em
profundidade, segundo Nasseri. Uma vez desenvolvido o
know-how tecnológico, os iranianos poderiam, em questão
de meses, reconstruir qualquer instalação que fosse
destruída.
Nessas circunstâncias, uma suspensão voluntária
representava uma grande oportunidade. O problema era
que as partes não chegavam a um consenso sobre a
definição da extensão das atividades de enriquecimento a
serem suspendidas.
Essa discussão vinha de longa data. A Declaração de
Teerã, de outubro de 2003, estava parcialmente baseada
na suspensão voluntária, da parte do Irã, de “todas as
atividades de enriquecimento de urânio e
reprocessamento”. Porém isso incluía a fase preparatória
da conversão de urânio? Incluía a fabricação das
centrífugas? Após horas de discussão sobre a definição de
tal suspensão, ficou óbvio que um árbitro externo se fazia
necessário. E, assim, os ministros dos países do EU-3 e
seus colegas iranianos decidiram recorrer à AIEA.
Novamente, nos vimos na fronteira entre tecnologia e
política. Segundo uma definição puramente técnica, o caso
demandaria apenas a suspensão da introdução de
substâncias nucleares em uma cascata de centrífugas de
enriquecimento. Os iranianos ficariam satisfeitos com isso;
queriam estar sujeitos à mínima limitação possível. Porém,
como a intenção era usar a suspensão como um modo de
fortalecer as relações de confiança, os europeus viram a
necessidade de uma definição mais ampla para o termo.
Apesar do empenho da AIEA em esclarecer os limites das
“atividades de enriquecimento e reprocessamento”, as
divergências continuariam ao longo de todo o ano de 2004.
Desagradara ao Ocidente o fato de o Irã dar seguimento
aos testes de seus processos de conversão, incluindo os
que envolviam a produção de UF6, matéria-prima para o
enriquecimento. Mais recentemente, em agosto, o Irã
iniciara o processamento de 37 toneladas de yellowcake,
um concentrado de urânio, como teste em grande escala
de sua linha de produção na usina de conversão de urânio
em Isfahan.
Por fim, a AIEA chegou a uma definição razoável que
agradou a todas as partes envolvidas, abrindo caminho
para as negociações. Em 14 de novembro, em Paris, o Irã e
o EU-3 assinaram o documento que ficaria conhecido como
Acordo de Paris. Ambos os lados se comprometeram a
negociar em boa-fé. O Irã concordou em suspender todas
as atividades de conversão de urânio, a montagem e os
testes, e até mesmo a importação de componentes para as
centrífugas. Especificou-se, no acordo, que a fidelidade do
Irã à suspensão seria um elemento necessário à
continuidade das negociações. Numa visão otimista, os
limites projetados para as negociações transcendiam em
muito a questão nuclear, além de buscar acordos de
cooperação sobre uma série de questões de natureza
econômica, política e de segurança, incluindo “garantias”
para a cooperação na área de tecnologia nuclear com fins
pacíficos. O EU-3 prometeu apoiar as negociações para
que o Irã aderisse à Organização Mundial do Comércio.
Ambos os lados concordaram em combater o terrorismo,
incluindo as operações da Al-Qaeda e do Mujahedin-e
Khalq. Ambos também confirmaram seu apoio ao processo
político para instalar um governo eleito
constitucionalmente no Iraque.
No momento da assinatura do acordo, Rowhani, na
condição de principal negociador da questão nuclear no
Irã, enfatizou alguns aspectos, pedindo a todos os
governos envolvidos que os reconhecessem. Primeiro, a
suspensão era voluntária; não era, sob nenhum aspecto,
legalmente compulsória. Em segundo lugar, as
negociações não deveriam transformar-se num meio de
pressionar o Irã na direção de uma cessação completa de
suas atividades com o ciclo de combustível nuclear. Isso
estava fora de questão. Os europeus concordaram: não
tinham a expectativa de que a cessação ocorresse, mas
tão-somente obter “garantias objetivas de que o programa
nuclear iraniano tivesse objetivos exclusivamente
pacíficos”.
O Irã agiu rapidamente a fim de implementar o acordo.
Uma semana depois, os inspetores da AIEA confirmaram
que a suspensão estava em vigor.
A assinatura do Acordo de Paris criou um clima otimista
para a reunião do Conselho em novembro. No início, até
mesmo os norte-americanos pareciam satisfeitos,
mostrando simpatia em relação à abrangente sinopse que
lhes fiz sobre as inspeções realizadas no Irã até aquele
momento. O acordo representava uma impressionante
evolução diante da atitude anterior dos EUA, quando
haviam criado celeuma em relação às imagens de Parchin.
Em novembro, os norte-americanos chegaram a desistir
da tentativa de bloquear a resolução do Conselho sobre o
Irã, embora não estivessem satisfeitos com ela. Jackie
Sanders, representante dos EUA e protegida de Bolton,
insinuou que não ocorrera nenhuma mudança significativa
no caso iraniano, dizendo ao Conselho que as expectativas
eram “lamentavelmente familiares”. Ela deixou claro que
os Estados Unidos estavam dispostos a, se necessário,
submeter o Irã unilateralmente ao Conselho de Segurança,
sem a aprovação consensual deste. Mas, ainda assim, a
resolução foi aprovada.
De sua parte, os iranianos se sentiam esperançosos por
terem chegado a um momento decisivo. Sirus Nasseri
fingiu dormir durante a fala de Sanders, na sala do
Conselho. Hassan Rowhani referiu-se ao endosso do
Conselho ao Acordo de Paris como uma “grande vitória”.
Em declaração à BBC, disse que “o mundo inteiro recusou
os apelos dos EUA” de submeter o Irã ao Conselho de
Segurança. Empregando, de certo modo, uma hipérbole –
muito provavelmente para agradar à sua plateia em Teerã
–, descreveu a representante dos EUA na AIEA como
“descontrolada e em prantos”. As iminentes negociações
eram, disse ele, uma “oportunidade histórica para o Irã e a
Europa provarem ao mundo que o unilateralismo está
condenado”95.
Revelou-se que o acordo era a parte fácil do processo.
Em minhas discussões com os europeus, eles pareciam
compreender claramente a importância de apresentar aos
iranianos, como resultado das negociações, um pacote
concreto e significativo. Os alemães eram os mais
otimistas. Os britânicos se mostravam mais conservadores,
tentando agradar aos norte-americanos. Os franceses
ficaram numa espécie de meio-termo. Mas as três partes
pareciam confiantes, além de contar com um endosso
dado pelo G-896 a que fossem oferecidas significativas
concessões aos iranianos.
Durante vários meses, foi grande a expectativa de que as
negociações conduzissem a uma solução diplomática
global. A cooperação entre o Irã e a AIEA permaneceu
sólida; havia apenas algumas questões de inspeção
pendentes. Na reunião do Conselho de março de 2005,
pela primeira vez em quase dois anos o programa nuclear
iraniano não foi incluído na pauta – fato que os
negociadores iranianos rapidamente interpretaram como
indício de progresso. Chegou a ser afirmado que os EUA
estavam considerando a possibilidade de juntar-se à União
Europeia no esforço de oferecer incentivos ao Irã97.
Entretanto, no Irã as preocupações eram crescentes. Não
havia um progresso visível nas negociações. Rowhani
estava sofrendo pressão de seu governo para mostrar
progressos – na forma de “provisões” concretas – como
resultado de sua abordagem cooperativa. Ele também
vinha pressionando seus colegas europeus para que ao
menos permitissem aos iranianos retomar brevemente
algumas partes de suas operações nucleares, ainda que
apenas no nível de pesquisa e desenvolvimento. Pelo que
pude compreender, o plano iraniano sempre foi concluir
uma usina de conversão e uma pequena usina-piloto de
enriquecimento, e então concordar – como parte de suas
negociações com os europeus – em congelar as instalações
de enriquecimento em escala industrial em Natanz durante
alguns anos.
Em março de 2005, Rowhani submeteu ao EU-3 um
documento contendo a essência dessa proposta. Ela previa
que o Irã daria início ao enriquecimento com 500
centrífugas em sua usina-piloto, passando, com o tempo, a
ter 3 mil centrífugas – um número bastante aquém das 54
mil de uma usina operando em plena capacidade. Essa foi
a proposta inicial, obviamente aberta a discussões. Para
Rowhani, o aspecto principal era ser capaz de transmitir à
opinião pública iraniana que o processo de enriquecimento
do Irã ainda estava em curso. A AIEA poderia monitorar de
perto as atividades na usina-piloto. O Irã “congelaria” seu
empenho de operar em escala industrial. Em
contrapartida, o país esperava obter a tecnologia nuclear –
entre outras –, acordos comerciais e incentivos adicionais.
As eleições presidenciais no Irã aconteceriam no mês de
junho, e o clima de retórica política estava em ebulição.
Em maio, considerando que a ausência de uma proposta
da parte dos europeus era uma violação do Acordo de
Paris, os iranianos ameaçaram interromper a sua
suspensão. Os europeus pediram mais tempo para
elaborar uma proposta mais detalhada. O Irã concordou
em esperar até agosto.
No final de junho, o país elegeu Mahmoud Ahmadinejad,
prefeito de Teerã, um homem profundamente religioso e
um dos adeptos mais fervorosos da linha-dura entre todos
os candidatos à presidência. Logo após a eleição, e muito
antes de receberem a proposta europeia, as autoridades
iranianas começaram a dar sinais de que não manteriam
completamente a suspensão. O clima nos círculos
diplomáticos rapidamente ficou sombrio.
Menos de dois meses depois, as negociações
subitamente entraram em colapso. A proposta feita pelos
europeus continha poucos dos benefícios discutidos na
época do Acordo de Paris. Ela não incluía os reatores de
energia nuclear, apenas os reatores de pesquisa. Os
franceses poderiam fornecer ao Irã a tecnologia de energia
nuclear; porém, a Areva, empresa francesa nessa área,
não estava disposta a colocar em risco suas relações com
os EUA, seu principal mercado. Os EUA haviam se recusado
a dar o sinal verde à Areva; portanto, a proposta dos
europeus simplesmente incluiu uma vaga declaração sobre
conceder ao Irã o acesso aos mercados estrangeiros de
tecnologia nuclear.
Fui informado de que a tentativa dos europeus era imitar
um “estilo-bazar” de negociações, abstendo-se de
apresentar sua proposta integral de um modo direto e
aberto. A tática se revelou um desastre. Além de a
proposta ser escassa, o tom na qual foi apresentada era
paternalista, beirando a arrogância. Chegava a prometer
que os europeus ficariam responsáveis pelos cientistas
iranianos que perderiam seus empregos no momento em
que o enriquecimento fosse suspendido. O Acordo de Paris,
assim como a Declaração de Teerã original, fazia menção à
obrigação do Irã de apresentar “garantias objetivas”
quanto à natureza pacífica de suas atividades nucleares.
Em oposição direta a todas as declarações feitas por
Rowhani e seus colegas, os europeus interpretaram tal
obrigação como uma completa interdição das atividades
de ciclo de combustível nuclear.
Os iranianos tentaram convencer os europeus a
considerar a possibilidade de pelo menos continuar com a
conversão de urânio. Isso os ajudaria a preservar sua
imagem perante a opinião pública iraniana, um sinal de
que o país não abandonara completamente suas
conquistas no plano nuclear. Propagou-se a ideia de que o
Irã era capaz de produzir UF6, e então exportá-lo para a
África do Sul para armazenamento. No entanto, os países
ocidentais não estavam sequer dispostos a fazer essa
concessão. Pouco antes de a proposta ser divulgada, insisti
com os europeus – acolhendo uma sugestão dada por
Nasseri – para que, em um documento anexo,
mencionassem no mínimo as operações de conversão
como uma possibilidade de discussão, na esperança de
impedir um colapso completo nas negociações. Tendo em
vista que os franceses estavam elaborando os termos da
proposta, enviei minha solicitação diretamente ao
representante político francês, Stanislas de Laboulaye, mas
me disseram que era tarde demais. Os europeus já haviam
chegado a um consenso e não podiam alterá-lo.
Pouco antes de a proposta da EU-3 ser divulgada, os
franceses deram aos iranianos uma indicação do que
estava por vir. Quando os iranianos se deram conta da
pequena quantidade de benefícios que lhes estava sendo
oferecida depois de meses de negociação, perderam
completamente a crença no processo todo.
Em 3 de agosto de 2005, Ahmadinejad tomou posse na
presidência e começou a compor os nomes de seu
gabinete. Dois dias depois, Rowhani e sua equipe foram
substituídos. Ali Larijani foi anunciado como o novo
secretário do Conselho Supremo de Segurança Nacional do
Irã. Os iranianos rapidamente começaram a alimentar com
óxido de urânio uma seção não lacrada da usina de
conversão de Isfahan. Em 10 de agosto, após o
recebimento formal da proposta dos europeus, o país
removeu os lacres da AIEA do restante da usina.
O Conselho da AIEA reuniu-se numa sessão especial e
emitiu uma resolução exigindo que o Irã restabelecesse
sua suspensão. Em 24 de setembro, na reunião seguinte, o
Conselho foi além, caracterizando pela primeira vez o
histórico iraniano de ocultamento e de não prestação de
contas como um “descumprimento das normas”. O uso de
tal termo ratificou a certeza da necessidade de submissão
do caso iraniano ao Conselho de Segurança da ONU.
Começava uma nova etapa na crise nuclear iraniana.

O acordo-padrão de salvaguardas do TNP deixa a critério


do Conselho da AIEA a decisão de submeter os casos de
“descumprimento” ao Conselho de Segurança da ONU. No
caso iraniano, há muito eu vinha sendo cauteloso, evitando
o uso do termo “descumprimento”, preferindo usar
“rompimento” ou “violação”, a fim de não predispor os
membros do Conselho. No passado, o Conselho se
recusara a enquadrar o Irã, mantendo tal possibilidade
como uma moeda de barganha nas negociações. A
intenção dos norte-americanos era submeter o Irã ao
Conselho já desde o primeiro dia, tendo feito críticas
específicas à agência por não empregar o termo
“descumprimento”.
O que fez a submissão do caso iraniano ao Conselho dar
motivos para o cinismo é que não havia nada de novo
nesse seu “descumprimento” – tratava-se de um fato
conhecido havia dois anos. Desdobramentos recentes
tinham sido positivos: a agência conquistara um progresso
substancial em sua verificação do programa nuclear
iraniano. A submissão do caso ao Conselho, quando
ocorreu, foi basicamente uma tentativa de induzi-lo a
interromper o programa de enriquecimento do Irã, usando
o Capítulo VII do Estatuto da ONU para caracterizar o
enriquecimento do país – legítimo, pelas cláusulas do TNP –
como “uma ameaça à paz e à segurança internacionais”.
Diversas vezes me perguntaram se eu não achava que a
comunidade internacional perdera uma oportunidade, a
essa altura, de chegar a uma resolução pacífica da questão
nuclear iraniana. Se os europeus tivessem sido mais
diligentes, ou se os norte-americanos não tivessem
bloqueado a exportação de tecnologia francesa e
compreendido o valor dos incentivos dados ao Irã, será
que a crise já não teria sido solucionada?
Não há como saber o que teria acontecido se esta ou
aquela variável tivesse sido diferente. A situação era
extraordinariamente complexa para cada um dos
protagonistas envolvidos – e ainda mais complexa na
combinação de todos. Era praticamente impossível
interpretar com certeza as variadas intenções dos
governos em questão – Irã, EUA, os países do EU-3 e
outros.
O que é evidente, contudo, é a crença do Irã de que sua
cooperação com a agência impediria que seu caso fosse
submetido ao Conselho de Segurança, e de que as
negociações com os europeus fossem vistas como um
estágio intermediário, rumo a uma ampla negociação com
os EUA. Eram esses os objetivos essenciais de sua política.
No momento em que esses resultados não se
materializaram – uma realidade que ficou dolorosamente
transparente com a proposta de agosto de 2005 e a
posterior submissão do caso iraniano ao Conselho, por
descumprimento de normas –, o Irã imediatamente
diminuiu seu nível de cooperação com a agência, muito
possivelmente na expectativa de obter uma concessão
junto ao Ocidente.
Ficou igualmente evidente, nos meses e anos
posteriores, que a insistência do Ocidente em adotar a
linha-dura – recusando a solicitação do Irã de que partes
de seu programa nuclear pudessem ser mantidas – não
levou a nada. Mesmo o mais amorfo dos princípios
defendia o pragmatismo. Se o EU-3 tivesse oferecido ao Irã
um pacote razoável, com benefícios concretos, creio que
os iranianos teriam se mostrado dispostos a suspender seu
programa de enriquecimento, ou pelo menos a limitar-se a
uma operação reduzida de pesquisas e desenvolvimento
enquanto estivessem em curso as discussões visando a
uma negociação ampla. A demanda do Irã era ter acesso à
tecnologia ocidental – tanto a tecnologia de energia
nuclear quanto outros tipos de tecnologia lhes tinham sido
negados, devido às sanções dos EUA. Em razão da
oposição feita pelos EUA, tal proposta não se materializou.
O resultado – inevitável e facilmente previsível – foi uma
elevação dos riscos: o Irã retomou as operações de
conversão de urânio e, posteriormente, o enriquecimento.
À medida que o tempo passava, mais elevado se tornava o
“preço” do Irã.
A comunidade internacional não desistiu imediatamente
de tentar buscar uma via de negociação. Em novembro de
2005, foi feita uma nova proposta, que permitiria ao Irã a
conversão de urânio em Isfahan e o despacho do UF6
remanescente para a Rússia, para que posteriormente
fosse enriquecido para o uso no combustível do reator
iraniano. No entanto, as forças contrárias à proposta eram
demasiadamente poderosas.
75 O NCRI (na sigla em inglês) é um grupo de oposição iraniano com sede em
Paris, que se considera uma coalizão de indivíduos e grupos democráticos
iranianos com o objetivo de compor um governo provisório no caso de o regime
atual ser destituído. Tanto o Irã quanto os EUA classificam o NCRI como uma
organização terrorista, mencionando seus laços com o Mujahedin-e Khalq,
organização religiosa filiada ao NCRI e com um histórico de violência. O NCRI fez
repetidas declarações sobre o programa nuclear clandestino do Irã, algumas das
quais vieram a ser fundamentadas posteriormente por investigações da AIEA.
Tenho me perguntado, com frequência, se o NCRI foi usado pelos serviços de
inteligência ocidentais a fim de disseminar informações sobre as atividades
nucleares do Irã.

76 Em cada um desses três casos, o programa nuclear foi desenvolvido antes de


o país aderir ao TNP.

77 Tendo em vista as dimensões da usina de Natanz, é provável que a intenção


dos iranianos não fosse simplesmente “escondê-la”. Seu objetivo, acredito, era
adiar a apresentação de um relato sobre esse local até onde fosse juridicamente
possível, sob os termos de seu acordo de salvaguardas, e retardar a inspeção da
AIEA até que tivessem completado a construção da usina e obtido todo o
conhecimento e a tecnologia necessários, os quais vinham aprendendo por meio
de canais clandestinos em razão das sanções. Posteriormente, fui informado que
o fato de declarar as instalações de Natanz deixaria exposta a rede de
suprimentos dos iranianos.

78 Durante uma década, os Estados Unidos fizeram tudo o que estava ao seu
alcance, adotando medidas políticas em todo o mundo para dissuadir os russos
de auxiliar o Irã com o reator de Bushehr. O argumento era o seguinte: se os
iranianos adquirissem uma usina nuclear, teriam também um pretexto para
desenvolver o ciclo de combustíveis. Mas os EUA não tiveram êxito nessa
política.

79 Salehi sucedeu Aghazadeh no cargo de diretor da AEOI, foi vice-presidente


do Irã e, posteriormente, nomeado ministro das Relações Exteriores.

80 Palácio dos Espelhos, um dos antigos palácios do xá.

81 Enriquecimento de urânio por meio do processo de separação isotópica


atômica por laser de vapor, ou AVLIS, na sigla em inglês.
82 Vidros ou câmaras de chumbo possibilitam que os operadores tenham uma
visão interna do trabalho que está sendo feito, por meio do uso de
equipamentos manuseados por controle remoto.

83 Ex-presidente do Comitê das Forças Armadas do Senado dos EUA e um dos


principais especialistas norte-americanos na área de políticas de defesa, além
de leal defensor dos ideais da AIEA.

84 A NTI (na sigla em inglês) é uma organização sem fins lucrativos que financia
projetos selecionados com o objetivo de reduzir as ameaças da proliferação de
armas nucleares.

85 Tanto meu artigo quanto o discurso feito por Bush na National Defense
University refletiam uma consciência emergente em relação à rede clandestina
de suprimentos nucleares de A. Q. Khan e seus comparsas. Uma discussão
aprofundada sobre o assunto se encontra no Capítulo 7.

86 O terremoto de 26 de dezembro de 2003 no sudeste do Irã, o mais


devastador na história do país, matou mais de 25 mil pessoas, deixando
dezenas de milhares de feridos e desabrigados.

87 Paul Reynolds, “The Politics of Earthquakes”, BBC News Online, 30/12/2003.

88 Em meu artigo na The Economist, de outubro de 2003, deixei claro meu


ponto de vista de que submeter as instalações de ciclos de combustível a um
controle multinacional era apenas um passo em um processo que, no final,
conduziria ao desarmamento nuclear.

89 Infelizmente, os planos de realizar um encontro internacional não foram


adiante. Fui informado de que John Bolton era contrário à ideia e encontrou uma
maneira de evitar que o evento acontecesse.

90 “IAEA Breaches Legal Commitments Towards Iran”, Tehran Times, 19/2/2004.

91 Encontrei-me com Putin no recém-reformado Kremlin, durante o primeiro ano


de seu mandato na presidência. Embora a questão nuclear iraniana não fosse
objeto de discussão naquele momento, notei um grande envolvimento dele com
os assuntos nucleares. Posteriormente, em diversas ocasiões, ele fez
declarações de apoio à AIEA, em resposta às críticas feitas pelos EUA.

92 Entrevista com Gavin Esler sobre o tema “Iran’s Nuclear Capacity” no


programa Newsnight da BBC2, 26/8/2004.

93 “Photos of Suspected Secret Iranian Nuclear Site Released”, Agence Free


Press, 16/9/2004. A linguagem usada neste artigo da AFP é um exemplo da
tendência da mídia a dar uma promoção exagerada a tais questões. Parchin é
descrito como “um amplo complexo industrial oculto num aglomerado de vales
e fissuras”; o artigo relata que a estrada de acesso ao local “serpenteia por
entre colinas desertas”.

94 George Jahn, “U.S. Alarmed Over Suspected Iran Nuke Site”, Associated
Press, 16/9/2004.

95 BBC News, 30/11/2004.

96 O grupo G-8 é o fórum dos países industrializados mais importantes.


Conhecido anteriormente como G-7, incluía Canadá, França, Alemanha, Itália,
Japão, Reino Unido e Estados Unidos. Passou a ser denominado G-8 com a
inclusão da Rússia, em 1997.

97 Robin Wright, “Bush Weighs Offers to Iran; U.S. Might Join Effort to Halt
Nuclear Program”, Washington Post, 28/2/2005.
6 • Líbia

Tive o primeiro indício de que havia algo errado com as


ambições nucleares da Líbia durante um encontro na
embaixada britânica, em Viena. Era maio de 2003. A
primeira das revelações feitas relacionava-se ao Irã;
porém, quase que como uma reflexão tardia, um alto
membro do MI6, o Serviço de Inteligência britânico,
mencionou que poderia também haver preocupações
relacionadas à Líbia. Ele se referia a um reator de
pesquisas em Tajura, pequena cidade a leste de Trípoli,
mas não revelou o motivo. Quando perguntei por mais
detalhes, ele prometeu que me faria um convite para ir a
Londres e me colocaria a par da situação.
No momento em que certos funcionários do
Departamento de Estado dos EUA ficaram sabendo que o
MI6 tinha planos de me encontrar, intervieram, insistindo
para que o Reino Unido não passasse informações à AIEA.
Isto era típico: os EUA tendiam a ser relutantes quanto ao
compartilhamento de serviços secretos, mesmo se o
diretor da organização da ONU fosse o encarregado de
prevenir a proliferação de armas nucleares. Nesse aspecto,
os britânicos tinham uma postura mais relaxada98. De
qualquer modo, oito meses depois, eu ainda não tinha sido
colocado a par da situação conforme prometido.
Em 18 de dezembro de 2003, Graham Andrew, meu
assistente e confidente britânico, veio ao meu escritório.
Segundo uma mensagem que ele recebera do Serviço de
Inteligência britânico, estava prestes a ocorrer um
importante pronunciamento em relação à Líbia. Ele seria
feito pelo presidente Bush, em conjunto com o primeiro-
ministro Blair. Graham sugeriu que talvez fosse melhor eu
adiar a viagem – planejada havia certo tempo – à Índia,
marcada para o dia seguinte. Naquela noite, recebi um
telefonema de Matouq, Mohammed Matouq, vice-ministro
da Ciência e Tecnologia da Líbia. Ele disse que o ministro
das Relações Exteriores estava prestes a tornar pública a
decisão da Líbia de desmantelar seus programas de armas
de destruição em massa. A existência do desenvolvimento
de tais programas no país era novidade para mim. Matouq
perguntou se poderia me visitar em Viena, para me dar
mais detalhes a respeito. Minha viagem à Índia teria de
esperar.
No dia seguinte, Matouq apareceu, acompanhado de um
pequeno exército de cerca de 20 diplomatas, cientistas e
outras autoridades da Líbia. Baixo, de olhar penetrante e
com os cabelos tingidos de preto, ele foi membro do alto
escalão do país durante muitos anos. Era respeitoso e
profissional, mas seu tom não era o de quem pede
desculpas. Realizadas as apresentações, tivemos um
encontro a sós, passando logo ao assunto principal.
Em resumo, a história é que a Líbia desenvolvia havia
anos um programa de enriquecimento de urânio99. Eles
tinham recebido equipamentos, know-how e suporte em
design por intermédio do cientista nuclear e empresário
paquistanês A. Q. Khan e de uma rede de empresas e
indivíduos. Enquanto ouvia os líbios, me dei conta de estar
recebendo pela primeira vez uma explicação mais
detalhada sobre a extensão e a complexidade do mercado
negro nuclear. Matouq falou sobre a assistência que a Líbia
obtivera de contatos na África do Sul. Relatou um incidente
que, em sua própria revelação, continha um toque
multinacional: uma pista dos serviços de inteligência dos
EUA e do Reino Unido motivara uma incursão feita pelos
italianos, na costa de Taranto, a um cargueiro alemão, o
BBC China, flagrado no momento em que trazia para a
Líbia equipamentos nucleares produzidos por uma
empresa na Malásia.
O mais inquietante é que, na mais recente visita de A. Q.
Khan a Trípoli, ele carregava consigo duas sacolas de
compras que estampavam o nome de um alfaiate de
Karachi (cidade paquistanesa), contendo os projetos de
uma arma nuclear. “Você pode precisar disso um dia”,
Khan teria dito a Matouq. Desde então, segundo Matouq,
as sacolas do “alfaiate de boa aparência” têm sido
mantidas em seu cofre.
Fiquei impressionado com a extensão das atividades
nucleares clandestinas da Líbia, do modo como foram
descritas por Matouq. Mas eu estava também antenado a
um caminho paralelo, analisando em que medida a
Agência estava preparada para descobrir todas essas
atividades por meio das inspeções, já que a Líbia era
membro do TNP.
Matouq revelou que durante nove meses a Líbia estivera
em contato com autoridades britânicas e norte-
americanas, negociando um acordo por meio do qual
renunciaria aos seus programas de armas de destruição
em massa. “Desde o início, nossa intenção foi informar a
agência”, disse Matouq, “mas eles não me permitiam.”
Fiquei indignado, mas não disse uma palavra.
No dia seguinte, representantes dos serviços de
inteligência norte-americano e britânico vieram me visitar.
Eu estava irritado e deixei que minha indignação viesse à
tona. “O que é que não está claro em relação às suas
obrigações legais com o TNP?”, perguntei a eles. “A Líbia,
os EUA e o Reino Unido são signatários do tratado. Se você
descobre que um membro está violando o acordo nuclear
de salvaguardas, tem a obrigação legal de informar a
organização de inspeções, a AIEA, para que tomemos as
medidas necessárias.”
Não fizeram nenhuma refutação a isso. Logo após a
reunião, Jack Straw telefonou de Londres, dizendo que
apenas três ou quatro pessoas do governo britânico
haviam tido acesso a tais informações; pediu desculpas
por eu não ter sido informado sobre isso. Colin Powell
também ligou, transmitindo basicamente a mesma
mensagem: eles mantiveram as informações em um nível
de extrema restrição, devido às incertezas quanto ao
resultado das negociações. Não queriam passar por um
constrangimento caso esse resultado não fosse o desejado.
A explicação de Powell não fazia o menor sentido. Fiquei
sabendo, posteriormente, por um funcionário do MI6, que a
verdadeira razão para o segredo nas negociações com a
Líbia era manter as discussões longe do campo de ação
dos EUA. O receio, me disseram, era que eles pudessem
tentar arruinar uma resolução pacífica do caso líbio. Assim,
foram informados apenas quando a negociação já estava
concluída.
Resolvi tirar o melhor proveito possível da situação e
seguir imediatamente para a Líbia. Acompanhado de um
pequeno grupo de especialistas da AIEA, voei para Trípoli,
numa viagem de alguns dias entre o Natal e o Ano-Novo.
Fomos levados por nossos colegas líbios a uma série de
armazéns onde os equipamentos nucleares eram
mantidos. A dimensão do programa da Líbia era pequena.
Disseram-nos que haviam começado a instalar algumas
pequenas cascatas de centrífugas apenas como teste, mas
somente uma delas – de apenas nove centrífugas – estava
de fato completa, com os equipamentos elétricos e de
processo já conectados. Não foram usadas substâncias
nucleares em nenhuma das centrífugas. Os líbios
afirmaram que ainda não haviam começado a construção
de uma instalação em escala industrial, tampouco a
infraestrutura a ela associada. De qualquer modo, já
estava em funcionamento um programa de armamento
nuclear.
No cômputo geral, eles aparentemente possuíam cerca
de 20 centrífugas completas e componentes para outras
200 do design P-1, o modelo de primeira geração que
havíamos visto no Irã. Fizeram o pedido de 10 mil
centrífugas do modelo P-2, o mais avançado. Contudo,
muitos dos componentes do P-2, incluindo rotores
essenciais, ainda não tinham sido entregues100.
Aparentemente, a intenção de A. Q. Khan era que os
rotores fossem produzidos por uma empresa sul-africana e,
quando isso se mostrou inviável, recorreu a uma firma da
Malásia. Porém, na época em que a Líbia revelou
informações sobre seu programa, os rotores ainda não
tinham sido fabricados.
Ao transmitir à imprensa informações sobre o que
tínhamos visto, caracterizei o estágio do programa líbio
como “nascente”. Mas eu estava preocupado. O
equipamento de conversão de urânio havia sido montado
cuidadosa e metodicamente em um padrão modular –
prova da sofisticada assistência externa que os líbios
haviam recebido. Esse padrão modular era particularmente
inquietante: tinha a aparência de uma espécie de “kit
nuclear faça você mesmo”. O projetista do equipamento
parecia ter em mente a intenção de que o produto fosse
facilmente replicado.
Apenas um pequeno grupo teve acesso às transações
feitas com a rede de Khan, embora tenhamos ouvido a
opinião de diversas pessoas e os boatos fossem
abundantes. Além dos interlocutores ali presentes, um
pequeno número de altas autoridades da Líbia sabia das
quantias recebidas por Khan pelos seus produtos e
serviços.
A inquietante pergunta que nos atormentava era simples:
“Quem mais?”. Quem são os outros clientes que fizeram
compras nessa rede clandestina de suprimentos
nucleares?
Em minha estadia na Líbia, fui convidado para um encontro
com o coronel Muammar al-Gaddafi, líder da Revolução. A
reunião se deu no quartel militar de Bab al-Azizia, no
centro de Trípoli. Tive de aguardá-lo em uma sala fria perto
da entrada, aliviado por estar vestindo meu casaco. Bashir
Saleh Bashir, um dos assistentes mais próximos de
Gaddafi, apareceu para me receber e reiterar a promessa
de plena cooperação feita por seu governo. Pouco tempo
depois, o ministro das Relações Exteriores, Abd al-Rahman
Shalgem, surgiu e me pediu que entrasse.
Fui conduzido a uma ampla biblioteca aquecida. Nela,
poucos móveis, apenas uma grande mesa na frente de
fileiras de estantes contendo alguns livros em árabe. O
coronel Gaddafi, sentado à mesa e vestindo seu tradicional
robe, pediu a Shalgem e a mim que ocupássemos as
cadeiras à sua frente. O clima da reunião combinava com o
aspecto espartano do local.
Gaddafi era uma pessoa mais afável do que eu esperava,
apresentando uma estranha mistura de simpatia e reserva.
Sua primeira fala foi memorável: “Não sei bem como dizer
isso, mas por que o governo egípcio odeia vocês?”.
Acrescentou, rapidamente: “Os egípcios alegam ser
capazes de nos ajudar a abandonar nosso programa de
armas com mais eficácia do que você e seus colegas da
AIEA”.
Gaddafi perguntou, então, se eu era nasserista. “Você
cresceu durante o regime de Nasser no Egito”, disse ele.
“Deve ser um fã de Nasser.”
“Não sou”, respondi, provavelmente para sua decepção,
já que supostamente Nasser era um ídolo seu. “Nasser
tinha uma visão de mundo e um conjunto de princípios
muito bons, mas o resultado disso tudo foi limitado.”
Gaddafi deu início a um monólogo sobre a decisão de
encerrar seus programas de armas de destruição em
massa. Chegara à conclusão de que tais armas não
contribuíam com a segurança da Líbia. O país deveria
livrar-se delas; não apenas a Líbia, mas também o Oriente
Médio e todo o resto do mundo. É claro que concordei
energicamente.
Ele começou a divagar. Falava entusiasmado sobre o
papel da Líbia nos assuntos mundiais, histórias que nem
sempre eram dignas de admiração. “Esta pequena Líbia”,
dizia ele com orgulho, referindo-se ao histórico de seu país
em influenciar eventos mundiais.
Percebi que Gaddafi não estava tão bem informado sobre
as alianças de segurança global e suas estruturas. Quando,
por exemplo, descrevi o “guarda-chuva nuclear” da OTAN,
cuja função é proteger seus membros, Gaddafi empunhou
um lápis e um pequeno bloco, e começou a fazer
anotações. Porém falou com sinceridade de seu desejo de
desenvolvimento da Líbia: queria uma melhor
infraestrutura no país; queria mais estradas; queria que os
estudantes líbios recebessem bolsas para frequentar
universidades ocidentais; queria seu país na vanguarda
nas áreas de ciência e tecnologia. Perguntou se eu podia
ajudá-lo a enfatizar esses aspectos a George Bush e Tony
Blair.
Também insistiu para que eu me referisse publicamente
à Líbia como um exemplo para o Oriente Médio abdicar das
armas de destruição em massa. Garanti-lhe que eu era
favorável a um Oriente Médio livre de armas nucleares.
Também concordei em conversar com meus contatos
norte-americanos e britânicos, em relação ao apoio
econômico à Líbia. E, de fato, dei continuidade a esse
assunto com Jack Straw e algumas autoridades do governo
dos EUA, que disseram ter planos de atender às
necessidades da Líbia. Para eles, seria vantajoso a todos se
o país melhorasse suas condições financeiras e
econômicas, além de normalizar as relações com a
comunidade global.
Em Washington, o fato de eu ter ido imediatamente à Líbia,
após a declaração conjunta de Bush e Blair, não agradou
algumas pessoas. Elas queriam ter certeza de que
receberiam o crédito exclusivo pela descoberta do
programa clandestino da Líbia e pelas negociações com
Gaddafi. Para mim, tal crédito era o que menos importava.
A meu ver, os governos do Reino Unido e dos EUA não
cumpriram a obrigação de informar a AIEA sobre as
atividades nucleares secretas da Líbia. Porém, agora que a
agência estava na posse de tais informações, era nossa
obrigação legal dar continuidade às investigações desse
material.
Em 2 de janeiro de 2004, o New York Times publicou uma
matéria em que mencionava Shukri Ghanim, primeiro-
ministro líbio, compelindo os Estados Unidos a cumprir sua
parte no acordo – basicamente, a suspensão de sanções de
longa data que haviam impedido empresas petrolíferas dos
EUA de trabalhar com a Líbia, além de congelar US$ 1
bilhão em bens do país101. Ghanim também deixou claro
que considerava a AIEA a responsável pelo processo de
desarmamento nuclear da Líbia.
O comentário de Ghanim, feito logo após a minha visita,
tocou em pontos claramente delicados. A matéria também
fazia menção a uma não identificada “autoridade
importante da administração Bush”, referindo-se à minha
viagem como um golpe publicitário praticado sob “maus
conselhos”. Essa mesma autoridade sugeria que
funcionários dos serviços de inteligência britânico e norte-
americano e especialistas nucleares “assumiriam,
efetivamente, a responsabilidade pelo desarmamento”.
Aparentemente, não levaram em conta o fato de que cabe
unicamente à AIEA a jurisdição legal para verificar
atividades nucleares em países signatários do TNP.
Também desagradou aos norte-americanos que eu tenha
caracterizado o programa nuclear líbio, à primeira vista,
como “nascente”. A manobra dos serviços de inteligência
teria parecido mais significativa caso o programa líbio
tivesse uma extensão maior ou estivesse mais próximo da
produção de uma arma nuclear. De qualquer modo, minha
avaliação foi confirmada quando a equipe de inspeções da
AIEA retornou ao país para verificar exaustivamente o
programa, nas semanas e meses seguintes.
Um bom exemplo disso foi a Usina de Conversão de
Urânio em Salah Eddin. Revelou-se que cientistas líbios
vinham conduzindo atividades de conversão de urânio em
escala laboratorial e industrial desde a década de 1980,
apoiados por um cientista estrangeiro. Em 1984, a Líbia
encomendou a um país estrangeiro uma usina-piloto de
conversão de urânio, na forma de componentes portáteis.
Os componentes foram entregues em 1986 e, em seguida,
armazenados em vários locais nos arredores de Trípoli até
1998, quando foram parcialmente montados e
transportados para uma instalação chamada Al-Khalla. Em
fevereiro de 2002, cientistas líbios iniciaram os testes a
frio. Porém, dois meses depois, preocupados com uma
possível violação no sistema de segurança, eles
desmontaram a usina, embalaram todos os componentes e
transportaram tudo para a sua atual localização, em Salah
Eddin.
Portanto, qual é a extensão das instalações de conversão
de urânio em Salah Eddin? Conforme nossas análises de
amostras, a Líbia jamais usou, de fato, o urânio na usina. A
usina-piloto tinha uma capacidade muito pequena e
nenhum potencial para produzir o gás hexafluoreto,
matéria-prima para o enriquecimento de urânio. Mesmo
em escala de laboratório, os cientistas líbios nunca tiveram
uma produção doméstica de UF6.
Havia limitações semelhantes quanto à extensão, à
capacidade e ao know-how em outras etapas do ciclo de
combustíveis nucleares da Líbia. Basicamente, eles não
realizavam operações de mineração ou de moagem. Sua
capacidade de enriquecimento, como observei, limitava-se
a um pequeno número de centrífugas, sem que houvesse a
produção ou o teste de substâncias nucleares. Eles
tentaram adquirir equipamentos e máquinas de precisão
para a produção doméstica de centrífugas, mas as peças
ainda se encontravam dentro dos caixotes de remessa de
mercadorias. Em seu reator de pesquisa em Tajoura,
irradiaram algumas dúzias de alvos de urânio, a maior
parte deles com a dimensão aproximada de 1 grama, e, a
partir de dois desses alvos, separaram uma quantidade
minúscula de plutônio. Não fizeram nenhum trabalho no
sentido de produzir armas nucleares. Receberam projetos
de design de armas nucleares, mas estes permaneceram
trancados dentro do cofre de Matouq102.
Nossas inspeções ainda estavam em curso quando a
Reuters e outras agências começaram a veicular notícias
de que especialistas dos EUA e do Reino Unido estavam
prestes a viajar a Trípoli a fim de remover os equipamentos
nucleares da Líbia. Imediatamente, telefonei para Peter
Jenkins, embaixador britânico na AIEA. Disse a ele que, se
isso acontecesse antes que a agência pudesse concluir
seus trabalhos, eu convocaria uma reunião extraordinária
do Conselho. “Por favor, informe a seu governo”, disse eu,
“que relatarei ao Conselho que não estou mais na posição
de cumprir minhas responsabilidades sob o TNP por causa
da interferência dos britânicos e dos norte-americanos.” Eu
estava farto dessa palhaçada. Se fosse necessário, traria
essa questão a público. Se os EUA e o Reino Unido
continuassem determinados a querer assumir o papel e as
responsabilidades das instituições multilaterais, calado é
que eu não iria ficar.
Poucos dias depois, Colin Powell me telefonou para dizer
que enviaria Bolton e seu colega britânico William Ehrman
a Viena, para que discutissem comigo as possíveis formas
de cooperação com a Líbia. “Temos de respeitar os seus
trunfos”, disse Powell, em referência aos conhecimentos da
agência e a suas áreas de jurisdição. “E é claro que temos
nossos próprios trunfos.”
“Compreendo”, respondi, “mas os Estados-membros da
AIEA depositaram confiança em mim, e eu não posso trair
tal confiança.”
Powell não insistiu. “Encontrei-me com Bolton ontem à
noite e nesta manhã”, disse, “e ele quer muito ter uma
reunião com você.”
Fiquei desconfiado. Eu havia me encontrado com Bolton
uma vez, em 2001, assim que ele assumira o posto de
subsecretário de Estado para o Controle de Armas e
Segurança Internacional. Concordamos em realizar um
trabalho conjunto sobre a não proliferação e outras
questões relacionadas ao controle de armas. “Sob vários
aspectos, terei de agir de um modo contrário à minha
própria teoria”, disse ele em tom de brincadeira, em
alusão, penso eu, a seus irônicos comentários sobre a
ONU103. Era essa sua medida de apoio ao trabalho da AIEA.
Porém Powell me reconfortou: Bolton recebera a instrução
explícita de não criar problemas.
E, de fato, não houve incidentes em nossas interações.
Nosso encontro, uma espécie de briefing técnico, ocorreu
em 19 de janeiro de 2004 na missão permanente dos EUA,
a menos de um quarteirão da sede da AIEA. Bolton
mostrou-se gentil: nos cumprimentamos e passamos
rapidamente ao assunto. Em um gesto louvável, ele
centrou o foco na busca de um acordo, e eu deixei claro,
desde o princípio, que não hesitaria quanto ao papel da
agência. Concordamos que, antes de tudo, a agência
precisava concluir seus trabalhos – mensurações, amostras
e outras medidas de verificação – e que somente depois os
EUA e o Reino Unido poderiam retirar os equipamentos do
país, segundo o acordo que firmaram com a Líbia.
Ao final do encontro, o clima era visivelmente amistoso,
para grande alívio de William Ehrman, que aparentemente
previa um conflito. No plano prático, nosso acordo também
funcionou: no próprio local das operações, o
relacionamento entre os inspetores da AIEA e os
especialistas dos EUA e do Reino Unido se deu de maneira
tranquila.
Os procedimentos foram facilitados com a plena e
consistente cooperação da Líbia. Sua disposição de
fornecer informações e acesso fez o trabalho de verificação
técnica dos inspetores da AIEA se tornar, para nosso alívio,
claro e objetivo. Matouq passou a me visitar regularmente
em Viena, a fim de garantir que as inspeções estavam
saindo conforme o previsto e para resolver possíveis
pendências. Foi uma mudança marcante em relação às
experiências que tivemos no Iraque, na Coreia do Norte e
no Irã. No fim de janeiro, os inspetores da agência já
tinham concluído grande parte do trabalho de verificação
de substâncias nucleares sensíveis e, logo em seguida, um
grande conjunto de equipamentos de ciclo de combustível
nuclear foi desmontado e, nos termos do acordo entre
Líbia e EUA, despachado para os Estados Unidos.
Em 23 de fevereiro, retornei a Trípoli para me atualizar
sobre a situação. O hotel onde me hospedei estava
agitado, cheio de ocidentais, gente do meio empresarial.
Uma notícia estava no ar: em breve, as sanções seriam
suspensas, e a Líbia estaria livre para a realização de
negócios. Notamos, em particular, um grande número de
representantes de empresas petrolíferas na expectativa de
fechar negócios que lhes dessem acesso aos abastados
recursos naturais da Líbia. Ao presenciar as autoridades
líbias tentando lidar com as rápidas mudanças em várias
frentes, era inevitável não prever o risco de eles estarem
sendo explorados.
“O problema”, me disse Shalgem, o ministro das
Relações Exteriores, “é a nossa carência de
administradores.” Isso era bastante claro. A Líbia estivera
isolada durante mais de 20 anos. Grande parte de seus
mais talentosos profissionais deixara o país. À exceção de
um punhado de profissionais com formação no Ocidente,
incluindo alguns cientistas nucleares, o país contava com
uma burocracia bastante inexperiente.
Moussa Koussa, chefe do Serviço de Inteligência, havia
morado algum tempo nos EUA. Ele se formou em
sociologia pela Universidade de Michigan e escreveu uma
biografia de Gaddafi como dissertação de mestrado.
Shalgem também morou fora do país durante muitos anos,
ocupando o posto de embaixador da Líbia na Itália. Ambos
demonstravam ter uma sólida compreensão dos assuntos
mundiais. Conversamos sobre a importância de aprender a
negociar e obter um bom preço na venda de recursos e
bens líbios. Discutimos também as relações críticas entre a
Líbia e outros países do norte da África e do Oriente Médio.
A Líbia vinha sendo alvo de inúmeras críticas do mundo
árabe: a percepção era a de que o país agia como “traidor”
depois de ter adotado, por 30 anos, uma postura assim
chamada “revolucionária” em várias questões. Os egípcios,
particularmente, ficaram irados com o fato de os líbios não
os terem informado a respeito de seus programas de
armas de destruição em massa, tampouco sobre as
negociações feitas com EUA e Reino Unido. Poucos meses
antes, o então presidente Mubarak afirmou, em um
discurso público: “Eu sei o que a Líbia tem em termos de
armas de destruição em massa: absolutamente nada”.
Analisando friamente, contudo, vemos que essa
declaração é um tanto quanto constrangedora.
Os líbios enviaram Abdallah el-Senusi, chefe do Serviço
de Inteligência militar e cunhado de Gaddafi, para tentar
solucionar as questões com Mubarak. Porém, quando as
críticas à decisão da Líbia de renunciar ao seu programa
de armas começaram a ser divulgadas na mídia egípcia,
Gaddafi retaliou, impondo restrições aos cidadãos egípcios
que desejassem cruzar a fronteira com a Líbia. Foi uma
medida severa: na época, cerca de meio milhão de
egípcios trabalhavam na Líbia. Com isso, os egípcios
cessaram as críticas e enviaram um grupo de ministros a
Trípoli para pedir a Gaddafi que reconsiderasse sua
decisão. Percebia-se, com muita clareza, que as relações
entre o Egito e a Líbia eram pautadas mais por caprichos e
por jogos de poder do que por um planejamento racional.
De sua parte, as autoridades líbias se mostravam
bastante críticas em relação ao governo egípcio. Segundo
elas, Mubarak estava velho demais para exercer uma
liderança significativa, fosse na política doméstica, fosse
no mundo árabe de modo geral. Certa vez, uma dessas
autoridades me disse: “O mundo árabe não é capaz de ir a
parte alguma sem o Egito; se os egípcios tomarem a
liderança, os demais o seguirão”.

Um show exclusivo protagonizado na mídia pelo secretário


da Energia dos EUA, Spencer Abraham, não contribuiu para
os esforços da Líbia de manter sua reputação no mundo
árabe. Fiquei sabendo do fato por meio de um telefonema
de Matouq, em 16 de março. Ele estava furioso. Um grupo
de 45 jornalistas foi enviado, em voo fretado, para o
Complexo Y-12 de Segurança Nacional, em Oak Ridge, no
Tennessee. O assunto, prestes a ser divulgado na mídia,
era uma dramática exibição de equipamentos nucleares da
Líbia. O pódio de Abraham foi estrategicamente colocado
em frente a uma coleção de grandes caixotes de remessa,
alguns dos quais foram abertos, de modo a deixar visíveis
os componentes de centrífugas. Ele qualificou aquilo de
“uma grande vitória, muito grande”, observando que o
equipamento ali exibido era apenas “a ponta do iceberg”.
“Segundo critérios objetivos”, afirmou Abraham, “os EUA
e as nações do mundo civilizado estão agora mais seguras
com o resultado desses esforços de salvaguardar e
remover as substâncias nucleares da Líbia”104. Deixando
de lado o insulto implícito de Abraham ao sugerir a
existência de nações não civilizadas, sua avaliação sobre o
programa líbio foi um tanto pretensiosa. Sua alegação de
que os líbios tinham 4 mil centrífugas era inexata, já que a
maioria das centrífugas estava incompleta. Especialistas
em não proliferação contestaram as declarações. David
Albright, do Instituto pela Ciência e Segurança
Internacionais, emitiu uma réplica, observando que a
exibição continha apenas as embalagens das centrífugas,
sem os rotores que as tornariam operacionais. “Não
tenham dúvidas”, disse ele, “de que o programa líbio era
sério e que estamos satisfeitos por ele ter sido
interrompido... O problema, a nosso ver, é que a Casa
Branca, que basicamente organizou a exibição, está tão
preocupada em receber os créditos por toda a operação
que acaba exagerando na medida.”105
Quando Matouq me telefonou, eu estava em Washington,
onde teria um segundo encontro com o presidente Bush.
Matouq pediu que eu intercedesse junto aos norte-
americanos. A exibição no Complexo Y-12, disse ele,
causara danos à Líbia perante a opinião pública árabe, e
também no plano doméstico, pois transmitira a impressão
de que os norte-americanos, de modo unilateral,
desarmaram a Líbia utilizando a força. Das duas, uma: ou
os norte-americanos não perceberam o desrespeito
envolvido nesse evento, ou então não lhe deram a menor
importância. Para os líbios, era importante que o
desmantelamento tivesse sido resultado de um acordo
mútuo, após uma ampla negociação, e que os passos no
sentido de interromper o programa líbio de armas de
destruição em massa fossem conduzidos sob a lei
internacional e por uma organização internacional.
Considerando o crescente ressentimento no Oriente Médio
em relação aos EUA, na época, a última coisa que a Líbia
queria era passar a impressão de ter se submetido à
intimidação norte-americana.
Encontrei-me com Bush no dia seguinte. Quando
abordamos o assunto “Líbia”, ele logo de início me
agradeceu pela cooperação entre a agência e os Estados
Unidos. Respondi que o assunto era delicado sob vários
aspectos, sendo um deles o efeito pernicioso da exibição
ostensiva dos equipamentos nucleares à mídia. Disse
também que, a meu ver, os EUA deveriam ter cuidado para
não retratar Gaddafi perante o mundo árabe como um
traidor que se vendeu ao Ocidente. Os críticos a Gaddafi já
existiam; se os EUA e o Reino Unido continuassem a
retratá-lo como um derrotado, sua nova parceria com a
Líbia seria cada vez mais difícil.
Bush compreendeu de imediato. Uma segunda exibição
estava marcada, mas ele cancelou o evento. Disse que Bill
Burns, secretário-assistente de Estado para Assuntos do
Oriente Próximo, seria enviado a Trípoli como forma de
demonstrar reconhecimento e respeito pela decisão líbia.
“Comprometo-me a normalizar nossas relações com a
Líbia”, disse Bush, e me pediu que, quando surgisse a
oportunidade, transmitisse a Gaddafi essa mensagem
sincera.
Ainda assim, a insistência dos EUA em mostrar um papel
relevante no desarmamento da Líbia não havia cessado.
No fim de maio de 2004, Matouq me disse que John Bolton
estava pressionando a Líbia para assinar um acordo
bilateral sobre as armas de destruição em massa. O
documento autorizaria os EUA a adotar medidas especiais,
incluindo inspeções, caso a Líbia violasse as obrigações
previstas no acordo ou no TNP. Segundo Matouq, os norte-
americanos queriam que ele retirasse do acordo a cláusula
de confidencialidade dos registros da AIEA sobre a Líbia, de
modo que os EUA pudessem ter acesso a eles.
Aconselhei Matouq que não fizesse nem uma coisa nem
outra. A cláusula de confidencialidade era um
procedimento padrão para todas as atividades de
salvaguarda da agência; em minha opinião, ninguém
deveria ter acesso aos novos arquivos. Além disso, eu
considerava que a Líbia não tinha necessidade de
mecanismos adicionais de verificação de cumprimento das
cláusulas; os que constavam no acordo de salvaguardas
com a agência bastavam. A menos que os líbios quisessem
dar aos EUA a liberdade de intervenção no momento em
que os norte-americanos bem entendessem; mesmo
assim, essa não parecia ser uma boa medida. Não foi difícil
convencer Matouq disso.

No início de junho, encontrei-me com Shukri Ghanim,


primeiro-ministro e posteriormente ministro do Petróleo da
Líbia, em uma conferência em Talloires, na França. Éramos
amigos desde a época em que ele foi diretor de estudos
nos escritórios da OPEC, em Viena. Viria acompanhado de
uma pessoa que gostaria que eu encontrasse: Saif al-Islam
al-Gaddafi, segundo filho mais velho do coronel Gaddafi,
que estava encarregado das negociações líbias com os
norte-americanos e os britânicos.
Quando chegaram à minha casa em Viena, Ghanim
apresentou-me a Saif e depois foi embora. Logo ficou claro
que Saif queria saber meu ponto de vista e receber
conselhos sobre vários assuntos. Começou perguntando de
que maneira os líbios eram vistos nos EUA e no Ocidente,
de modo geral.
Não vi nenhum sentido em esconder o jogo. “Eles não
têm a mínima confiança em vocês”, eu disse. “Vocês terão
de construir essa confiança com o tempo.” Por outro lado,
prossegui, os líbios estavam agora demonstrando
seriedade em suas intenções de conduzir o país a uma
nova direção, como membro responsável da comunidade
internacional. Como tal, estariam aptos a solicitar
assistência em termos de educação, finanças e outros
aspectos de necessidade nacional.
Saif comentou sobre a escassez de administradores
experientes e bem treinados nos círculos governamentais
líbios, o que era verdade. Sugeri a ele que enviasse alguns
administradores de nível médio para treinamento no
exterior, ou então trouxesse para Trípoli um curso de
treinamento de administradores, acompanhado de
assistência externa, para que começassem a preencher
tais lacunas. Quanto mais demorasse a tomar alguma
atitude, maior a dificuldade de reverter os danos à
infraestrutura líbia.
Percebi que o isolamento da Líbia nas décadas recentes
cobrara um preço altíssimo. Em 1964, havia um voo direto,
sem escalas, entre Nova York e Trípoli, considerada na
época uma capital mediterrânea cosmopolita. Em 1970, o
xeique Zayed bin Sultan al-Nahyan, então presidente dos
Emirados Árabes, viajou à Líbia para obter um empréstimo
e fazer uma cirurgia. Desde então, os Emirados se
transformaram num importante polo de atividade
econômica, ao passo que a Líbia tem apresentado um
constante declínio.
O estilo de Gaddafi como chefe de Estado era, para dizer
o mínimo, singular. Em determinado momento, proibiu a
atividade dos barbeiros, por avaliar que não era uma
profissão produtiva. Durante certo tempo, os líbios foram
obrigados a cortar o próprio cabelo, ou a se encontrar com
seus barbeiros secretamente.
Seu estilo de tratar os líderes mundiais também chamava
a atenção. Segundo um relato, quando Kofi Annan esteve
no país, Gaddafi, insatisfeito com as sanções recém-
impostas pela ONU, anunciou que se encontraria com Kofi
dentro de uma barraca no deserto, no meio da noite. A
comitiva de Gaddafi conduziu Kofi de carro até o local do
encontro por um desvio, numa estrada completamente
escura, durante duas horas. O silêncio da noite era de vez
em quando rompido por ruídos de animais que Kofi não
conseguia ver. Outra história envolveu a primeira visita de
Jacques Chirac à Líbia, em novembro de 2004. O encontro
com Gaddafi também foi em uma barraca. No meio da
conversa, empregados da limpeza entraram para passar
aspirador de pó e, depois, uma cabra começou a
perambular no ambiente. O significado desses episódios
bizarros – se forem mesmo verdadeiros – nunca ficou muito
claro. Supostamente, tinham o propósito de demonstrar
insatisfação com certas políticas da ONU ou da França, ou
deixar claro que Gaddafi não obedecia a protocolos
externos para receber esses dignitários.
De qualquer modo, as consequências dos anos de
isolamento da Líbia e de sua inexperiência global
permaneciam em evidência – em relação à sua escassez
de administradores bem treinados, à sua falta de
infraestrutura moderna e à sua singular política externa e
interna – à medida que governos e empresas ocidentais
avançavam a fim de lucrar com as posses do país.
Enquanto eu observava a reaparição da Líbia na cena
internacional, uma série de insights me deixava inquieto.
Primeiro, me intrigava a facilidade de um país um tanto
quanto isolado – sob o efeito de sanções internacionais e
dotado de uma sofisticação científica e industrial
relativamente mínima – em obter armas de destruição em
massa, incluindo os elementos básicos de um programa de
armas nucleares.
Em segundo lugar, era vergonhoso constatar a avidez de
alguns países da comunidade internacional em
providenciar um “conserto rápido” para tal situação. Na
Líbia, como em qualquer parte, as motivações e as
condições que possibilitaram o surgimento de um
programa nuclear clandestino foram desenvolvidas ao
longo de décadas. Não é possível transformar ou erradicar
tais motivações por meio de um acordo – muito menos
com o emprego de sanções concebidas de modo
apressado, com uma rápida campanha de bombardeios, ou
com acessos esporádicos de diplomacia. A remoção de
substâncias e equipamentos perigosos é apenas a primeira
etapa de um complexo processo. A mudança significativa,
em tais casos, requer um compromisso a longo prazo, com
um relacionamento baseado no respeito mútuo e na
confiança. O relativo sucesso da Líbia em chegar a tal nível
de relacionamento com seus principais parceiros
internacionais só poderá ser compreendido com o passar
do tempo.
Por fim, foi inquietante constatar a disposição das várias
partes em trapacear ou sonegar informações, numa
flagrante contradição dos compromissos firmados em nível
internacional: a Líbia, ao fingir ser um membro do TNP de
boa reputação, ao mesmo tempo em que desenvolvia
programas secretos de armas de destruição em massa; os
EUA e o Reino Unido, por sonegarem informações sobre a
atividade nuclear clandestina até o estágio em que lhes
convinha revelá-las para a AIEA, exagerando então sua
importância a fim de obter dividendos políticos. Pergunto-
me: até que ponto a comunidade internacional será capaz
de tolerar esse tipo de comportamento, antes que a
integridade das normas do TNP seja colocada em dúvida?
98 Essa não era a única diferença. Os norte-americanos geralmente mostravam
pontos de vista definitivos em relação ao modo de interpretar a informação
bruta que recebiam, ao passo que os britânicos se revelavam menos
dogmáticos, deixando que os fatos falassem por si. Curiosamente, meus
contatos no MI6 me disseram que, embora o diretor da CIA transmitisse
informações ao presidente dos EUA todas as manhãs, a CIA, diferentemente do
MI6, raramente se envolvia com o efetivo processo de tomada de decisões.

99 Fui informado de que a gênese do programa de armas nucleares da Líbia –


bem como outros programas de armas de destruição em massa de Gaddafi –
ocorreu em retaliação aos bombardeios feitos pelos EUA em abril de 1986, nos
quais a filha adotiva de Gaddafi, Hannah, foi morta.

100 Rotor é o núcleo cilíndrico e oco de uma centrífuga, através do qual é


escoado o urânio – a matéria-prima. Como esses rotores giram numa velocidade
extremamente alta durante longos períodos de tempo, exigem uma fabricação
que envolva alta precisão e materiais de alta qualidade, capazes de suportar
uma grande pressão.

101 “Lybia Presses UN to Move Quickly to End Sanctions”. New York Times,
2/1/2004.

102 Para nosso alívio, os especialistas em armas da AIEA constataram que


faltavam peças importantes nesses projetos de armas. A. Q. Khan não era um
projetista de armas, sendo muito provável que ele tenha repassado à Líbia todo
e qualquer material que conseguiu obter no Paquistão.

103 Creio que Bolton estivesse se referindo a declarações como aquela feita em
um debate na Associação Federalista Mundial, em 1994: “Não existe uma coisa
chamada Nações Unidas”. E prosseguiu: “O prédio da Secretaria tem 38
andares. Se, hoje, você perdesse dez desses andares não faria a menor
diferença”. Citado em “Bolton: An Unforgiveable Choice as UN Ambassador”,
Council on Hemispheric Affairs, 10/3/2005. Disponível em:
<www.scoop.co.nz/stories/WO0503/S00185.htm>.

104 Jody Warrick, “U.S. Displays Nuclear Parts Given by Libya”, Washington Post,
16/3/2004. Fico muitas vezes consternado com afirmações discriminatórias
como essa, feitas por políticos dos EUA inteligentes e de boa formação, dando a
entender que o “mundo civilizado” inclui apenas um determinado grupo especial
de nações. Seria possível inferir, a partir dessa fala, que os líbios e os países
vizinhos podem ser considerados “não civilizados”.

105 “Was Lybian WMD Disarmament a Significant Success for Nonproliferation?”,


de Sammy Salam, pesquisador-associado, Center for Nonproliferation Studies,
setembro de 2004. Disponível em: <www.nti.org/e_research/e3_56b.html>.
7 • O “bazar” nuclear de A. Q. Khan

A descoberta da rede de A. Q. Khan foi o marco da terceira


de uma série de profundas mudanças no statu quo nuclear.
A primeira delas ocorreu no início da década de 1990,
quando países como o Iraque e a Coreia do Norte, ambos
membros do TNP, violaram, de modo deliberado e secreto,
suas obrigações no acordo. A Líbia era apenas o exemplo
mais recente.
A segunda mudança remonta à epoca dos ataques
terroristas aos Estados Unidos, em 11 de setembro de
2001, que levaram à constatação de que não apenas os
Estados, mas também grupos extremistas, eram
consumidores de materiais radioativos. Para especialistas
na área nuclear, a sofisticação dos ataques de 11 de
setembro fez soar um alarme: e se um grupo extremista
tivesse acesso a poderosas fontes radioativas a fim de
construir uma bomba suja106? Ou ainda pior: e se eles
conseguissem substâncias nucleares em quantidade
suficiente para construir uma arma nuclear em estado
bruto? O risco ficou ainda maior com o surgimento de
provas das pretensões da Al-Qaeda de obter armas de
destruição em massa.
A comunidade internacional reagiu com uma reavaliação
drástica do modo como os países protegem suas
instalações nucleares e suas substâncias radioativas. No
período de alguns meses, o orçamento anual de segurança
na área nuclear da AIEA saltou de US$ 1 milhão para US$
30 milhões, quantia financiada, em grande parte, por
contribuições voluntárias. A AIEA enviou missões para
localizar materiais radioativos abandonados na Geórgia e
em outras áreas da ex-União Soviética. Medidas de
segurança foram aperfeiçoadas em usinas nucleares,
reatores de pesquisa e outras instalações em todo o
mundo. Foram reavaliados cenários propícios a uma
potencial sabotagem das instalações nucleares.
A resposta à ameaça não foi uniforme. Governos
ocidentais e até mesmo ONGs fizeram significativas
contribuições não solicitadas para ajudar no – cada vez
mais volumoso – trabalho relacionado à segurança nuclear.
Todavia, grande parte dos países em desenvolvimento
opunha-se a qualquer tentativa de incluir a expansão do
financiamento para a segurança nuclear no orçamento
básico da AIEA. Nos bastidores, eles mencionavam a
tradição da agência de manter o equilíbrio entre o
financiamento voltado à promoção da tecnologia nuclear –
assim como o da assistência que damos ao tratamento do
câncer ou a melhorar a produtividade agrícola – e o
financiamento voltado à regulação nuclear. Eles temiam
que, se os novos e substanciais investimentos em
segurança nuclear se transformassem em parcela
permanente do orçamento da agência, uma contribuição
nesse sentido lhes seria solicitada.
Esse dilema foi mais um indício perturbador da divisão
entre Norte e Sul. Na avaliação de muitos países em
desenvolvimento, os alvos das ameaças à segurança
nuclear eram, essencialmente, os maiores países
industrializados (ocidentais, sobretudo), e eles julgavam,
por esse motivo, que o Ocidente devia pagar o preço por
isso. Tal visão era míope: a ameaça era igualmente
significativa em países menores e menos desenvolvidos,
como ficou provado em situações que testemunhamos de
tentativas de contrabando de materiais nucleares e
radioativos, e também pela solicitação de nossos serviços
de segurança em todo o mundo. De fato, nos anos
seguintes, a AIEA contribuiu com o aperfeiçoamento da
proteção material em mais de cem locais, em 30 países;
realizou centenas de workshops e cursos sobre segurança
nuclear em aproximadamente 120 países; distribuiu mais
de 3 mil instrumentos de detecção de radiação; e colocou
sob salvaguarda aproximadamente 5 mil fontes radioativas
em países de todo o mundo.
No início de 2004, baseados no que estávamos
presenciando no Irã e na Líbia, sabíamos que estávamos
diante de uma terceira mudança no cenário nuclear: a
expansão de um mercado negro de substâncias e
equipamentos nucleares. Na equação “oferta e demanda”,
os dois primeiros novos desenvolvimentos eram prova da
existência da demanda – seja dos Estados seja de grupos
extremistas interessados na obtenção de substâncias
perigosas e da tecnologia de armas nucleares. O
desenvolvimento de uma rede ilícita de obtenção de
substâncias nucleares chefiada por A. Q. Khan contribuiu
com o lado “oferta”. Nos anos seguintes, à medida que
nossa monitoração e produção de relatórios se
intensificava, nosso banco de dados chegaria a registrar
mais de 1.300 casos de tráfico ilícito de substâncias
nucleares e radioativas. Foi o início de nosso processo de
revelação de um mercado nuclear virtual.

Que motivações pode ter um indivíduo como A. Q. Khan?


Parte da resposta pode estar associada à formação que
recebeu. Quando adolescente na Índia, testemunhou o
massacre de muçulmanos pelos hindus; logo depois
migrou com a família para o Paquistão, durante a partilha
do território, em 1947. Duas décadas mais tarde, enquanto
cursava o doutorado na Bélgica na área de metalurgia, o
Paquistão foi devastado por uma guerra contra a Índia. O
exército de seu país foi dizimado e a porção leste do
território, separada, transformando-se no atual
Bangladesh. Em 1971, mais ou menos na época em que a
Índia explodiu seu primeiro artefato, Khan começou a
trabalhar para um subcontratante na Urenco107, consórcio
formado por Reino Unido, Alemanha e Holanda que
desenvolvia centrífugas de alta velocidade para o
enriquecimento de urânio e que rapidamente se tornou
uma das maiores empresas a atuar no mercado de
combustíveis nucleares.
Terá sido o nacionalismo exacerbado que alimentou as
iniciativas de Khan? Ou a ambição pessoal e a cobiça? Ou
foi o fanatismo religioso – uma forma de colocar armas
nucleares nas mãos dos muçulmanos, que se sentiam
oprimidos? É difícil afirmar com certeza; jamais se permitiu
que a AIEA fizesse tal pergunta diretamente a Khan. Mas
está claro que, quando ele retornou ao Paquistão,
assumindo a posição de diretor do Laboratório de
Pesquisas em Engenharia – posteriormente rebatizado
Laboratório de Pesquisas Khan –, dispunha de meios para
expandir drasticamente a capacidade nuclear de seu país:
cópias roubadas de projetos de centrífugas da Urenco e um
grande número de contatos e empresas que lhe poderiam
fornecer substâncias, equipamentos e outras partes do
ciclo de combustível nuclear. Também é certo que as
proezas alcançadas por Khan no mercado negro nuclear,
que aparentemente tiveram início perto do final da década
de 1980, lhe asseguraram uma considerável fortuna,
supostamente mais de US$ 400 milhões. Na época em que
foi descoberta, a rede de fornecedores, produtores e
intermediários na área nuclear construída por Khan já tinha
um alcance sofisticado, complexo e de atuação global.
Depois que conseguimos obter uma visão parcial das
atividades de A. Q. Khan no Irã e na Líbia, Olli Heinonen,
diretor da equipe de salvaguardas da AIEA e responsável
pelo Irã, iniciou uma profunda investigação dessa rede
ilícita. Por meio da análise de Olli e de vários colegas seus,
conseguimos juntar muitas peças do quebra-cabeças:
dezenas de transações, nomes e endereços dos principais
fornecedores e o modus operandi de alguns de seus
intermediários. Os maiores serviços de inteligência
certamente estavam seguindo as mesmas pistas, em
operações muito maiores e mais sofisticadas, fornecendo-
nos dicas relevantes para nossa tarefa essencial: revelar a
história dos programas nucleares no Irã, na Líbia, na Coreia
do Norte e em outros países.
Grande parte do trabalho investigativo da AIEA envolvia
a localização da variada rede de fornecimento. Endereços,
nomes de empresas e contatos eram obtidos por meio de
ordens de compra, documentos de expedição de
mercadorias, registros operacionais e extratos financeiros.
Etiquetas eram usadas na identificação de possíveis
fornecedores; foram pesquisados números de série para a
identificação de datas específicas de produção de
materiais e sua localização (a menos que tivessem sido
riscados); e, claro, também foram feitas entrevistas, num
exaustivo esforço de comparar as informações passadas
pelos cientistas e autoridades da Líbia com as histórias
relatadas pelos intermediários que tinham algum papel
importante no processo.
O quadro começava a ser delineado.
A primeira transação da rede de Khan de que se tem
notícia ocorreu em 1987, quando dois parceiros dele e três
iranianos chegaram a um acordo, num encontro em Dubai,
sobre os termos de uma venda de componentes e projetos
de centrífugas. O único registro que a AIEA conseguiu
obter representando o indício de uma transação foi uma
página manuscrita. Os itens relacionados a substâncias
nucleares que o Irã tinha a intenção de adquirir lembravam
uma lista de compras. Como parte da negociação, o país
recebeu uma relação de empresas na Europa e em outros
locais para adquirir outras tecnologias que fossem
essenciais ao seu programa.
O auxiliar mais próximo de Khan parece ter sido Buhary
Sayed Abu Tahir, empresário do Sri Lanka e proprietário da
SMB Computers, empresa familiar no ramo de
equipamentos eletrônicos com sede em Dubai, que Tahir e
seu irmão herdaram de seu pai. O primeiro contato de
Tahir com Khan ocorreu quando a SMB Computers assinou
um contrato para vender aparelhos de ar-condicionado
para o Laboratório de Pesquisas Khan. Com o passar do
tempo, Tahir estreitou suas relações com Khan, tornando-
se, mais tarde, seu ponto de contato com os demais
intermediários na rede nuclear. Quando o Irã fez um
segundo grande pedido de materiais, em 1994, Tahir foi o
responsável pelo despacho, de Dubai ao Irã, de dois
contêineres de centrífugas usadas, utilizando um navio
mercante de propriedade iraniana. Dubai, com seu extenso
comércio marítimo e suas normas alfandegárias liberais,
era um centro de operações conveniente. Khan adquiriu
um apartamento no Al-Maktoum, bairro de classe alta na
cidade, a partir de onde passou a dirigir as operações da
rede nuclear.
Outro local-chave era a Malásia: Tahir, cuja esposa era
malasiana, contava com os serviços da Scope108, uma
empresa de engenharia de alta precisão, para produzir
componentes de centrífugas. O suíço Urs Tinner, filho do
engenheiro nuclear Friedrich Tinner – sócio de longa data
de A. Q. Khan –, ajudou Tahir na instalação da fábrica da
Scope em Shah Alam, na Malásia, e na inspeção das
operações de manufatura. A matéria-prima, alumínio de
alta qualidade, era comprada de Cingapura. Como as
peças – algumas das quais aproveitadas na fabricação de
outros aparelhos domésticos e comerciais – eram
manufaturadas individualmente, a administração da Scope
não tinha informações a respeito de seu uso final nem do
perfil daqueles que as utilizavam.
Tendo realizado suas próprias investigações em
cooperação com outras agências, a polícia da Malásia
prendeu Tahir em Kuala Lumpur, em maio de 2004, sob a
acusação de ameaça à segurança. A AIEA pressionou
diversas vezes para poder entrevistá-lo e, após vários
meses de espera, nossos inspetores finalmente
conseguiram marcar a entrevista.
A agência ficou sabendo que a rede não tinha nenhuma
hierarquia; era uma frágil associação de empresários,
engenheiros, ex-conhecidos e, em alguns casos, membros
da família. Havia muitos intermediários. Alguns deles, no
final, tornaram-se públicos, já que os governos de seus
países tinham a intenção de processá-los de acordo com
vários estatutos jurídicos. Gotthard Lerch era um cidadão
alemão que residia na Suíça. Peter Griffin, cidadão
britânico, vivia na França e foi citado em processos
judiciais na Alemanha e na África do Sul como integrante
da rede de Khan, admitindo conhecê-lo, mas negou
envolvimento com programas nucleares ilícitos, por isso
não foi processado. Johan Meyer, sul-africano, era o
proprietário de uma empresa de engenharia. As acusações
contra ele foram arquivadas depois de ele supostamente
ter concordado em depor contra Gerhard Wisser, um
alemão que residia na África do Sul, provavelmente seu
ponto de contato com a rede. Daniel Geiges, engenheiro
suíço residente na África do Sul, também foi citado no
depoimento de Meyer.
Também ficamos sabendo que, como em qualquer outro
mercado, tanto os compradores quanto os vendedores
tomavam a iniciativa. O Irã, por exemplo, fez tentativas
independentes de obter equipamentos nucleares e de
dupla finalidade em inúmeros países, além de manter
encontros com a rede de Khan. Uma importante autoridade
da Comissão de Energia Atômica da África do Sul me
relatou que, em meados da década de 1990, o ministro da
Energia do Irã tentou adquirir tecnologia de material
nuclear sensível junto à África do Sul. A proposta foi
recusada, pois a África do Sul tinha aderido recentemente
ao TNP e sua “tecnologia” não estava à venda.
Os métodos da rede, em geral, eram habilidosos. A
obtenção de componentes rigidamente controlados –
qualquer coisa que pudesse despertar suspeitas devido
aos controles de exportação do governo de origem – era
feita, de hábito, por meio de um intermediário, mediante o
uso de um certificado falso para camuflar o destino final.
Assim como no caso da Scope, o fornecedor geralmente
não tinha conhecimentos sobre a utilização final –
especialmente quando o produto também podia ser
empregado para a perfuração de petróleo, no tratamento
de água ou em outras operações industriais.
Em certos casos, o intermediário era uma empresa real;
em outros, os sócios de Khan abriam uma empresa de
fachada em Dubai, completavam a transação e depois
encerravam a empresa. Os pagamentos eram feitos por
meio de depósitos em contas de um terceiro país, de modo
a dificultar a localização da transação. Algumas das
maiores aquisições iranianas foram pagas em dinheiro
vivo; Khan contava, então, com comerciantes de ouro ou
outros negociantes acostumados a manusear altas
quantias e à lavagem de dinheiro.
Um dos produtos mais simples e mais valiosos de Khan
era sua extensa lista de contatos: indivíduos e empresas
aptos a produzir ou obter tecnologias e substâncias
essenciais para a construção de um programa nuclear. Na
época em que prestou serviços à Holanda, por exemplo,
trabalhou com a metalurgia de aços maraging, ou de alta
resistência, para o Laboratório Fysisch-Dynamisch
Onderzoek (Pesquisa em Dinâmica Física), um
subempreiteiro da Urenco. Tinha contatos diretos com as
firmas de engenharia e produção fornecedoras desse tipo
de aço, essencial na fabricação de certos rotores de
centrífugas. Os contatos de Khan junto a essas empresas
davam aos seus clientes o acesso à rede.
Um dos projetos mais bem elaborados da rede foi
desenvolvido na África do Sul, numa fábrica em
Vanderbijlpark, pequena cidade de mineração próxima a
Joanesburgo. Envolvia a construção de sistemas de
processos modulares para o enriquecimento de urânio sem
as centrífugas. Apesar disso, os sistemas eram completos,
com equipamentos necessários para direcionar o fluxo de
UF6 para as cascatas de centrífugas: bombas, válvulas,
autoclaves de alimentação, recipientes inoxidáveis e canos
auxiliares. As cascatas eram configuradas em etapas que
enriqueciam o urânio natural, primeiramente a 3,5% de U-
235 e posteriormente a 90% (grau de urânio altamente
enriquecido, usado na produção de armas). O proprietário
da fábrica referia-se aos sistemas como uma “obra de
arte”.
Em setembro de 2004, a polícia sul-africana, seguindo
uma pista em conjunto com as autoridades do serviço de
antiproliferação109 e os inspetores da AIEA, chegou à
fábrica. Os sistemas haviam sido desmontados, peça por
peça, e colocados dentro de contêineres, prontos para
serem despachados.
A revelação dessa ampla operação na África do Sul foi
particularmente surpreendente para os especialistas na
área nuclear. Afinal, fazia tempo que esse país abandonara
seu programa de armas nucleares. Seus líderes tornaram-
se firmes defensores da não proliferação e do
desarmamento nucleares. A descoberta de uma atividade
nuclear clandestina em estabelecimentos privados
colocava em evidência a necessidade de um empenho
nacional mais concentrado para que se monitorassem a
manufatura e o comércio associados às exportações de
substâncias nucleares e de dupla finalidade.
Certamente, a África do Sul não era o único país
envolvido. Os detalhes sobre a rede foram surgindo
gradativamente, compondo uma espécie de diário de
bordo. Um fornecedor alemão havia contribuído com as
bombas a vácuo e um intermediário na Espanha forneceu
dois tornos mecânicos especializados. Um consultor suíço
viajou até a Malásia para produzir peças de centrífugas
baseadas em projetos do Paquistão originários da Holanda.
Um oficial militar israelense, nascido na Hungria, que
trabalhava na África do Sul, foi preso em uma estação de
esqui em Aspen, no Colorado, por sua participação no
fornecimento de faiscadores de disparo rápido ao
Paquistão, componentes que podem ser usados na
fabricação de detonadores de armas nucleares. Um
engenheiro britânico foi o responsável pela elaboração de
planos para uma loja de componentes de centrífugas na
Líbia. Fornos especiais foram adquiridos na Itália.
Conversores de frequência e outros equipamentos
eletrônicos foram manufaturados em oficinas da Turquia,
com a utilização de peças importadas de outras partes da
Europa. No total, as investigações da AIEA desvendariam
ligações com mais de 30 empresas no mesmo número de
países.

Apenas um ano antes disso, a AIEA fazia buscas no Iraque


por armas inexistentes. No início de 2004, tínhamos a
impressão de que, não importando para onde olhássemos,
depararíamos com novas e palpáveis provas de
proliferação nuclear. A Líbia havia reconhecido suas
ambições no assunto. A Coreia do Norte estava prestes a
construir sua primeira arma nuclear. O Irã recentemente
revelara, após minuciosa investigação, os resultados de
um programa de 20 anos visando à obtenção do ciclo de
combustíveis nucleares. E não tínhamos nenhuma
segurança quanto ao nosso conhecimento sobre a real
extensão da rede de Khan.
Em 12 de fevereiro de 2004, publiquei um artigo no New
York Times, intitulado “Salvando a nós mesmos da
autodestruição”, no qual chamei a atenção para o perigo
da rede de Khan. Observei que as duas metades do
mercado de proliferação, a oferta e a demanda, estavam
prosperando e propus uma série de medidas para
interromper essa tendência: um maior rigor nos controles
de exportação; uma adesão universal ao Protocolo
Adicional; a proibição, imposta aos membros do TNP, de
retirar sua adesão ao tratado; a retomada das negociações
sobre o Tratado de Interrupção de Materiais Físseis110; o
aumento da segurança para as substâncias nucleares já
existentes; e um roteiro pró-desarmamento direcionado
aos países detentores de armas nucleares.
Percebi, porém, que essas medidas atingiam apenas a
estrutura da situação. As verdadeiras causas do problema
tinham uma raiz muito mais profunda: as extremas
desigualdades econômicas e sociais existentes entre o
Norte e o Sul; a assimetria do sistema de segurança global,
com seus procedimentos de dois pesos e duas medidas; e
os conflitos e tensões que continuavam a afetar algumas
regiões em particular. “Devemos, também, dirigir nosso
foco às causas fundamentais da insegurança”, recomendei
no artigo:

Em áreas de conflito de longa data, como o Oriente Médio, o sul asiático e a


península coreana, é natural que deparemos com a busca de armas de
destruição em massa – embora ela jamais possa ser justificada – enquanto
não apresentarmos alternativas para reverter o déficit existente na área de
segurança. Devemos abandonar o conceito de que é moralmente censurável
a atitude de alguns países buscarem armas de destruição em massa e, no
entanto, moralmente aceitável que outros países delas dependam para sua
segurança – e, de fato, continuem a refinar seu potencial, planejando sua
utilização.
Da mesma forma, devemos abandonar a tradicional abordagem da definição
de segurança em termos de fronteiras – muros, patrulhas, agrupamentos
raciais e religiosos. A comunidade global tornou-se irreversivelmente
interdependente, com a contínua movimentação de pessoas, ideias,
produtos e recursos. Em um mundo como este, devemos combater o
terrorismo com uma cultura da segurança contagiante e capaz de cruzar
fronteiras – uma abordagem inclusiva e baseada na solidariedade e nos
valores humanos. Em um mundo assim, não há lugar para as armas de
destruição em massa.

Poucos dias antes da publicação desse meu artigo, soube


que o presidente Bush estava prestes a apresentar seu
próprio conjunto de medidas antiproliferação, em um
discurso proferido em 11 de fevereiro, na National Defense
University, em Washington. O New York Times concordou
em adiar a publicação de meu texto em um ou dois dias,
de modo que não parecesse que eu estava me apropriando
das ideias de Bush.
Poucas horas antes do discurso do presidente, Colin
Powell me telefonou. Disse que Bush planejava anunciar
sete novas medidas para fazer frente à ameaça das armas
de destruição em massa. Insinuou que ele, pessoalmente,
não concordava totalmente com as medidas. “Algumas
propostas são polêmicas”, disse. E acrescentou: “Elas
precisarão ser submetidas ao Conselho da AIEA para
discussão”.
Agora sim ele havia me intrigado.
Revelou-se que havia uma considerável convergência
entre as propostas de Bush e as minhas. Ambos
enfatizávamos a necessidade de controles de exportação
mais rígidos, incluindo a necessidade de criminalizar as
ações que apoiavam deliberadamente a não proliferação.
Bush também propunha o aumento dos fundos para
salvaguardar as reservas de substâncias nucleares já
existentes. Defendia um sólido apoio ao Protocolo
Adicional, recomendava uma expansão da Iniciativa de
Segurança contra a Proliferação (PSI, na sigla em inglês)111
e sugeria o bloqueio de países “novatos” que obtivessem
as instalações para o ciclo de combustíveis – nesse ponto
uma abordagem bastante diferente da minha. É óbvio que
não havia nenhuma menção ao desarmamento. Porém, em
muitas de suas propostas, havia a clara intenção de
preencher lacunas na regulamentação sobre a proliferação,
que ficaram visíveis com o que estávamos testemunhando
na rede de Khan.
Duas das propostas, no entanto, pareciam equivocadas
na escolha do alvo. A primeira solicitava à AIEA que
estabelecesse um comitê especial do Conselho, cujo foco
estaria centrado em salvaguardas específicas e em
preocupações relacionadas à verificação. A segunda
recomendava à AIEA que proibisse a participação no
Conselho de qualquer Estado-membro que estivesse sendo
investigado por possíveis violações à salvaguarda.
Posteriormente, fui informado por um importante
membro da administração Bush que o discurso fora escrito
por John Bolton e Bob Joseph112, sem passar pela análise
do Departamento de Estado. A ideia da criação de um
comitê especial de salvaguardas – embora parecesse uma
boa maneira de fortalecer o programa de verificações da
agência – nasceu do desejo deles de controlar, nos
mínimos detalhes, o trabalho de verificação da AIEA e, em
particular, impor uma abordagem mais linha-dura sobre o
programa nuclear iraniano. A intenção por trás da proposta
de excluir do Conselho “os países sob investigação” – que
tinha o Irã como principal alvo – não foi sequer bem
camuflada e não teria funcionado. Revelava, acima de
tudo, uma falta de compreensão: os protocolos de
diplomacia multilateral e respeito mútuo que possibilitam a
eficácia das organizações multinacionais – assim como as
leis que governam as sociedades democráticas – não se
beneficiam do preconceito, da intimidação ou de
julgamentos precipitados.
Quando me encontrei com o presidente Bush em
Washington, em março de 2004, tocamos no assunto da
ameaça representada pelo emergente mercado negro
nuclear. Mencionei que, embora A. Q. Khan pudesse ser o
líder da rede, estava claro que, pelo menos em alguns
casos, ele não operava sozinho. Por exemplo, no caso do
Irã, membros do exército paquistanês talvez estivessem
envolvidos; e no caso da Coreia do Norte, pode ser que
Khan estivesse agindo como parte da cooperação entre
Estados113.
Minha avaliação estava parcialmente baseada em uma
carta escrita à mão pelo próprio Khan, à qual eu tinha tido
acesso. Ele havia conseguido enviá-la para fora do
Paquistão como uma espécie de apólice de seguro, para o
caso de ser preso pelas autoridades paquistanesas. O
conteúdo revelava que ele fora instruído por altos oficiais
do exército paquistanês para que cooperasse com o Irã e a
Coreia do Norte.
Bush concordava com o fato de haver sinais definitivos
apontando para a existência de outros protagonistas no
Paquistão. Porém estava claro que o complexo
relacionamento entre os dois países – que incluía a ampla
assistência oferecida pelo Paquistão às operações norte-
americanas no Afeganistão – criaria uma situação delicada
para que Washington pudesse exercer uma forte pressão
sobre o governo paquistanês.
Esforçando-me para adotar uma abordagem pragmática,
concluí que nossa prioridade era descobrir quem mais
havia obtido essa tecnologia por meio da rede de Khan.
Nas semanas seguintes, ampliou-se com rapidez o apoio
internacional às novas proibições contra atores da cena
internacional não classificados como Estados, concebidas
especificamente a fim de criminalizar e impedir as
atividades clandestinas desempenhadas pela rede de
Khan. Em maio, o Conselho de Segurança da ONU aprovou
a Resolução 1540, que requeria dos Estados-membros da
ONU a promulgação e a aplicação de leis que tivessem
como alvo os indivíduos que, de alguma forma,
contribuíssem para a proliferação das armas de destruição
em massa. A resolução também exigia novos controles
domésticos para tornar mais rígido o acesso às substâncias
suspeitas e relacionadas à área nuclear.
Mas nem todas as propostas de Bush tiveram sucesso.
Por exemplo, aquela de impedir os Estados-membros sob
investigação de fazer parte do Conselho – um gesto
simbólico com a intenção de impor a humilhação – jamais
foi levada a sério. E, nos dois anos seguintes, os norte-
americanos fizeram um lobby junto ao Conselho para que
este aprovasse a criação do comitê especial de
salvaguardas. A meu ver, tal comitê teria um papel útil
caso se concentrasse em “formas e maneiras de fortalecer
as salvaguardas”, por exemplo, contribuindo para o
aperfeiçoamento dos laboratórios forenses da AIEA, cujo
estado era precário. Uma vez criado, o comitê não teve
vida longa. Significativas diferenças entre o Norte e o Sul
rapidamente se mostraram relevantes quanto à justiça e à
eficácia do regime de não proliferação. Após uma série de
encontros desnecessários, o Conselho permitiu, nas
palavras de um dos embaixadores, que o comitê “tivesse
uma morte discreta e natural”.

O surgimento da rede de Khan – a notícia de que uma


autoridade de alto nível do governo paquistanês estivera
no comando de uma rede internacional de contrabando –
criou um enorme constrangimento para Islamabad. O
presidente Musharraf não tinha outra escolha senão partir
para a ação. Em 4 de fevereiro de 2004, A. Q. Khan foi
obrigado a confessar a uma rede de televisão estatal que
liderava uma rede nuclear internacional ilícita. Mas, já no
dia seguinte, Musharraf o perdoou, fazendo menção aos
seus serviços prestados ao Paquistão – embora Khan fosse
mantido em prisão domiciliar até 2009. Para um público de
fora do Paquistão, essa sequência de eventos consistia em
um mistério: o que justificava o perdão oficial e imediato
para o homem que, sozinho, arquitetou a proliferação
nuclear em tão grande escala?
Musharraf não podia se permitir uma postura
excessivamente crítica. O status de Khan como herói
nacional – a percepção de que Khan dera uma imensa
contribuição à segurança nacional do país ao ajudar
Islamabad a construir uma instalação nuclear equiparável
à da Índia – garantiu-lhe a condição de imunidade em um
possível processo penal. É também bastante provável que
Khan tivesse implicado outras pessoas dentro do governo
do Paquistão. Houve grande especulação sobre até que
ponto o governo sabia das atividades de Khan, e em que
medida ele recebia o apoio de outras autoridades, militares
ou do governo. Há registros de que, em determinada
ocasião, ele utilizou aviões do governo paquistanês para
transportar equipamentos de natureza nuclear a clientes
não paquistaneses114. Seu estilo de vida dispendioso
deixava claro que sua renda estava muito acima do salário
que recebia do governo, uma indicação direta de suas
atividades extraoficiais. E reportagens indicavam que o
Escritório Contábil Nacional do Paquistão acumulara
informações sobre ele em um extenso dossiê, mas
preferira não fazer nada a respeito115.
À medida que a agência aprofundava sua compreensão
sobre a natureza da rede de Khan, também ficamos
sabendo sobre a estratégia “observar e esperar”,
empregada pelos serviços de inteligência ocidentais.
Autoridades norte-americanas afirmaram que sempre
souberam das atividades de Khan, mas preferiram ignorar
o fato. Se for verdade, isso invalida a alegação dos EUA de
que a descoberta das armas de destruição em massa na
Líbia foi uma conquista dos serviços de inteligência. Ruud
Lubbers, ex-primeiro-ministro holandês, afirmou que os
holandeses tentaram prender Khan já em 1970, e a CIA
lhes teria dado ordens para não fazê-lo. Essa informação
foi ratificada por outras fontes. Seymour Hersh, em
reportagem na revista New Yorker em março de 2004,
reproduz a fala de um alto funcionário do Serviço de
Inteligência: “Há 15 anos, tivemos todas as chances de dar
um fim à rede de A. Q. Khan. Algumas das pessoas hoje
envolvidas no contrabando são os filhos daqueles que
conhecemos nos anos 1980. Já é a segunda geração”116.
Robert Einhorn, que ocupou o cargo de secretário-
assistente norte-americano para a não proliferação entre
1991 e 2001, deu uma declaração semelhante tempos
depois: “Poderíamos ter dado um fim à rede de Khan, nos
moldes como a conhecíamos, a qualquer momento. A
questão era: damos um fim a ela agora ou passamos a
observá-la para compreendê-la melhor, de modo que
estejamos mais preparados para arrancar suas raízes mais
tarde? A segunda opção prevaleceu”117.
“Você é capaz de me dizer o que ganhamos com isso?”,
senti vontade de perguntar. Onde estavam os grandes
peixes que deveriam estar prontos para ser pescados? De
que modo a AIEA poderia obter progresso contra a
proliferação nuclear se informações vitais nos eram
sonegadas? Os Estados Unidos – e o Reino Unido, ou outros
países que sabiam das operações de A. Q. Khan – não
eram capazes de reconhecer a sua obrigação, como
membros do TNP, de informar a AIEA sobre essas
negociações clandestinas? E, o mais importante: não teria
sido muito mais sensato interromper os programas
clandestinos do Irã, da Líbia e de outros países ainda em
sua fase inicial?
Fossem quais fossem as circunstâncias ou os argumentos
usados na época, a decisão de observar e esperar foi um
erro magistral. Um dos sinais de que o tiro saiu pela
culatra foi que tal estratégia acabou alertando membros
da rede. Entrevistas feitas com intermediários indicam
que, pelo menos em alguns casos, eles ficaram sabendo,
durante algum tempo, que estavam sendo vigiados. Isso
lhes permitiu destruir um grande número de provas, o que,
por sua vez, dificultou a tarefa da AIEA e de outros
investigadores de definir com clareza as dimensões da
rede, incluindo a identidade de seus outros clientes.
Khan tinha outros clientes? Robert Gallucci referiu-se a A.
Q. Khan como o Johnny Appleseed118 do enriquecimento
nuclear devido ao seu papel na disseminação da
tecnologia de centrífugas em uma grande área territorial.
As viagens de Khan o levaram ao Oriente Médio e à África.
Em grande parte dos casos, há poucos registros sobre o
que ocorreu nesses locais. Porém, os boatos persistem e,
às vezes, surgem sinais inquietantes.
Quando visitei um dos países do Golfo, em 2004, por
exemplo, um importante membro da família real me disse
que Khan tentara lhes vender hardware nuclear durante
dois anos. O governo fingiu ter interesse, enviando um
agente para tentar obter informações sobre as
negociações da rede com o Irã. Outros países
apresentaram relatos semelhantes. É muito provável que
variações dessa história tenham ocorrido em diversos
locais. Não é provável que, diante de tal oportunidade,
alguns clientes tenham ido além de uma simples olhada
nas vitrines?
O pior de meus pesadelos é que a capacidade dessa rede
de produzir materiais, equipamentos nucleares e know-
how, disponibilizando-os a qualquer um com dinheiro vivo
em mãos, pode ter levado à criação de uma pequena
operação de enriquecimento numa área remota, por
exemplo, o norte do Afeganistão119. Tendo em vista a
crescente sofisticação tecnológica dos grupos extremistas,
isso não pode mais ser considerado um conto de fadas
macabro.
A morte de A. Q. Khan talvez tenha privado a rede de
operações de seu mentor, mas não há nenhuma garantia
de que a organização não é mais capaz de suprir outros
clientes que manifestem interesse. Como foi observado por
Sam Nunn: “Quando se constatam o tipo de dinheiro e os
riscos envolvidos e a disseminação desse tipo de
tecnologia pelo mundo afora”, a oferta de uma arma
nuclear passa a ser virtualmente inevitável120. Abdul
Qadeer Khan dedicou sua vida inteira a proporcionar
oportunidades iguais aos países muçulmanos quanto às
armas nucleares, e estabelecer uma relação de igualdade,
em termos de segurança, com o programa armamentista
de Israel e, nesse processo, ganhar dinheiro. Talvez ainda
leve algum tempo para que esse bazar nuclear seja
erradicado.
Essa história tem uma tripla moral. Primeiro, como já foi
ilustrado pelo papel de Israel no Oriente Médio e pelo
papel da Índia no sul asiático, proliferação gera
proliferação. Em segundo lugar, embora os controles de
exportação devam ser significativamente mais rígidos, eles
não podem mais ser considerados uma solução: a
tecnologia já ultrapassou a fronteira dos laboratórios. E,
por último, enquanto existirem armas nucleares que
conferem poder e prestígio àqueles que as detêm,
continuaremos a nos deparar com a proliferação,
particularmente em países e regiões que se sentem
ameaçados.
106 Uma bomba suja é um aparato bastante distinto de uma arma nuclear.
Oficialmente chamada de “aparato de dispersão radiológica”, consiste em
explosivos convencionais embalados com material nuclear ou radioativo. Pelo
fato de envolver um processo de produção muito mais simples do que uma
arma nuclear, e também porque o material radioativo é, em geral, menos bem
protegido do que o material nuclear classificado como arma, é muito mais alta a
probabilidade de que terroristas a usem do que uma arma nuclear. Alguns
especialistas se surpreendem de que uma bomba suja ainda não tenha sido
usada.

107 Sigla em inglês de “empresa de enriquecimento de urânio”.

108 A Scope – sigla de Scomi Precision Engineering – é uma subsidiária do grupo


Scomi, empresa industrial de serviços de petróleo. A principal atividade da
Scope era produzir componentes que exigiam maquinário de alta precisão
(corte, torneamento, moagem etc.) para veículos e outros produtos na área de
engenharia.

109 As autoridades eram do Conselho pela Não Proliferação de Armas de


Destruição em Massa, uma agência do governo da África do Sul.

110 Em 1993, a Assembleia Geral da ONU aprovou a Resolução 48/75L, que


exigia a negociação de um tratado multilateral para proibir a produção de
materiais físseis na produção de armas. As negociações continuam paralisadas
na Conferência sobre o Desarmamento, em Genebra.

111 A Iniciativa de Segurança contra a Proliferação (PSI) é um programa


multinacional liderado pelos EUA que visa à interdição dos navios suspeitos de
transporte de substâncias nucleares. Embora muitos países tenham aderido a
ela, a PSI não se encontra sob os auspícios da ONU, como se esperaria de uma
iniciativa que confere a si mesma a autoridade sobre assuntos governados pela
lei marítima internacional.

112 Entre 2001 e 2005, Joseph trabalhou ao lado de Condoleezza Rice no


Conselho de Segurança Nacional, no cargo de diretor-sênior para Estratégias de
Proliferação, Antiproliferação e Defesa Nacional. Teve profundo envolvimento
com Bolton no desenvolvimento da Iniciativa de Segurança contra a Proliferação
e nas negociações a fim de persuadir a Líbia a renunciar às suas armas de
destruição em massa.

113 Tendo em vista que o Paquistão não é membro do Tratado de Não


Proliferação Nuclear, tampouco membro do Grupo de Fornecedores Nucleares
(que orienta o controle de exportações), não é obrigado a cumprir as obrigações
impostas por nenhum dos dois.

114 Douglas Frantz, “From Patriot to Proliferator”, Los Angeles Times, 23/9/2005.

115 Ibid.

116 Seymour M. Hersh, “The Deal”, New Yorker, 8/3/2004.

117 Robert Einhorn, citado por Douglas Frantz em: “A High-Risk Nuclear
Stakeout”, Los Angeles Times, 27/2/2005.

118 John Chapman (1774 –1845) ficou conhecido como Johnny Appleseed
(Johnny Semente de Maçã, em português) por ter desbravado as terras secas do
Centro-Oeste dos EUA semeando sementes de maçã e disseminando o
protestantismo. Tornou-se um grande herói lendário no país. (N. dos TT.).

119 Mencionado por Hersh, em “The Deal”.

120 Steve Coll, “The Atomic Emporium: Abdul Qadeer Khan and Iran’s Race to
Build the Bomb”, New Yorker, agosto de 2006.
8 • De Viena a Oslo

No verão de 2004, quando meu segundo mandato como


diretor da AIEA estava prestes a terminar, eu estava
inclinado a não tentar a reeleição, apesar do apoio de
grande parte dos Estados-membros. Esse cargo envolvia
um estresse considerável, e minha família preferia que eu
renunciasse a ele. Foi quando houve a interferência dos
EUA.
Fui levado a crer que, no caso de eu decidir me
candidatar a um terceiro mandato, os Estados Unidos
respeitariam minha decisão. Em agosto, em minha casa de
veraneio no Egito, pediram que eu aguardasse um
telefonema de Colin Powell, que confirmaria tal posição.
Essa manifestação de apoio não era tão surpreendente
assim. Nos meses anteriores, havia ocorrido uma série
muito otimista de encontros com autoridades norte-
americanas, um deles com o próprio Bush.
Porém, não houve nenhum telefonema. Pouco depois de
eu ter retornado a Viena, soube por intermédio de David
Waller que a postura dos EUA havia mudado. “Acabo de
voltar de Washington”, disse ele, “precisamos conversar.”
Ao caminhar ao lado de David no Belvedere Park, em
frente à minha casa, ele me contou que John Bolton
lançara uma campanha com o objetivo de bloquear minha
reeleição, invocando o raramente usado limite de dois
mandatos para o exercício de cargos de direção em
agências da ONU. Bolton acrescentou que, se eu
concordasse em renunciar, os Estados Unidos
expressariam seu caloroso reconhecimento pelo trabalho
que eu desenvolvera nos últimos oito anos.
Fiquei furioso. Ideologicamente falando, Bolton era o meu
oposto, um adepto da política externa “nós contra eles”;
ele se opunha à diplomacia multilateral e operava
sistematicamente nos bastidores no sentido de colocar a
AIEA em descrédito, frequentemente barrando esforços
que pudessem solucionar de modo pacífico as questões de
proliferação nuclear. Empenhava-se em minar tudo aquilo
que eu defendia. Era inaceitável que ele ousasse
determinar se eu seria ou não candidato a um terceiro
mandato. Não pude deixar de notar a ironia: os Estados
Unidos, que me deram apoio em meu primeiro mandato
como diretor-geral, contrariando a preferência pelo
candidato do Egito, estavam agora pedindo minha saída1.
Naquela noite, conversei sobre isso com Aida, minha
esposa. Rapidamente chegamos ao consenso de que eu
deveria, sim, me candidatar à reeleição. Se eu vencesse,
isso significaria a reivindicação de uma diplomacia
multilateral e a clara autorização para que eu pressionasse
a fim de obter uma solução negociada no Irã e em outros
locais problemáticos. Se perdesse, ainda assim eu teria
resistido à intimidação dos EUA. Na manhã seguinte,
escrevi ao presidente do Conselho da AIEA, anunciando
minha candidatura à reeleição.

A tempestade começou quase imediatamente depois que


anunciei minha decisão. Em setembro de 2004, os norte-
americanos tentaram apresentar uma emenda ao projeto
da resolução sobre o Irã, a fim de retirar a declaração-
padrão de apreço, que fazia referência à agência como
“profissional e imparcial”. Aos olhos de um observador
externo, isso poderia parecer insignificante, mas nos
círculos diplomáticos significava um insulto declarado.
Peter Jenkins, o embaixador britânico, me disse que
considerava a medida “drástica e insignificante”.
Os Estados Unidos começaram, então, a busca de um
candidato para concorrer comigo. O Brasil foi consultado
sobre a possibilidade de apresentar a candidatura de
Sérgio de Queiroz Duarte, alto representante da ONU para
Assuntos de Desarmamento2. Consultaram a Argentina
quanto a Roberto Garcia Moritan, subsecretário do ministro
das Relações Exteriores. Sondaram o Japão em relação a
Shinzo Abe, seu ex-embaixador em Viena. Pressionaram
tanto a Austrália quanto a Rússia para que apoiassem
Alexander Downer, o ministro das Relações Exteriores
australiano. Tais solicitações não deram em nada, então os
norte-americanos fizeram um pedido formal aos europeus
para que se juntassem a eles e pedissem ao Conselho da
AIEA para adiar o prazo de apresentação das candidaturas
até o fim de dezembro. Os europeus recusaram.
A campanha pela minha deposição adotou uma nova
tática. Em novembro de 2004, perto da época da reeleição
de George Bush nos EUA, foi divulgada uma notícia sobre
explosivos desaparecidos em Al-Qa’qaa, no Iraque3.
Seguiu-se a ela uma enxurrada de informações
desencontradas. Fabricou-se uma história sobre um
programa clandestino de armas nucleares que eu estaria
tentando esconder. Outro artigo afirmava que Blix e eu
tínhamos contas bancárias secretas na Suíça, como
“retribuição” pelo trabalho que realizamos no Iraque antes
da guerra. Outro, ainda, dizia que o Irã havia depositado
mais de 600 mil dólares na conta bancária de Aida na
Suíça e me presenteado com tapetes persas, no valor de
50 mil dólares a unidade.
Conforme noticiou Dafna Linzer, no Washington Post,
meus telefones foram grampeados numa tentativa de
encontrar informações que pudessem me levar ao
descrédito4. E não foi a primeira vez: já tínhamos tido
provas da interceptação de mensagens de texto de
celulares da AIEA, e também de conversas telefônicas. Mas
dessa vez a notícia era veiculada por uma fonte confiável5.
Fui informado de que a pista sobre os grampos havia
vazado para o Washington Post por indivíduos da CIA
insatisfeitos com as ações de determinados membros do
Departamento de Estado. Isso não me causava espanto:
entre meados de 2004 e meados de 2005, recebemos
cópias de memorandos, briefings e outras informações
transmitidas em caráter confidencial por funcionários do
Departamento de Estado, a quem desagradava o
comportamento arrogante e insidioso de alguns indivíduos.
No final, os norte-americanos acabaram isolados em sua
oposição à minha candidatura. Os quatro países que
normalmente seguem a sua liderança – Austrália, Canadá,
Japão e Reino Unido – se mantiveram, durante certo
tempo, a distância dos acontecimentos, afirmando,
reservadamente, que me apoiavam, mas evitando dar
qualquer declaração pública a fim de não criar
constrangimentos ou isolar os Estados Unidos.
Uma semana antes da sessão em que o Conselho da
AIEA tomaria sua decisão, fui convidado a uma reunião em
Washington com Condoleezza Rice, na época secretária de
Estado. Com certa hesitação, decidi fazer a viagem. Em
nosso encontro, ela e Steve Hadley, que a substituiu no
cargo de consultor sobre Segurança Nacional, não fizeram
nenhuma menção à situação pendente de minha reeleição
ou à tentativa dos EUA de impedi-la, restringindo nossa
conversa a um assunto mais à mão: o programa nuclear
iraniano e a convicção norte-americana de que o Irã
deveria ser impedido de colocar em prática qualquer uma
das etapas do ciclo de combustível. Quando mencionei a
necessidade de medidas que pudessem preservar a
imagem do Irã com respeito ao seu programa de
enriquecimento, Hadley me interrompeu: “O Irã não pode
ter nem uma centrífuga sequer em atividade”. Dali em
diante, essa declaração tornou-se um mantra para os EUA.
Somente mais tarde, quando Condoleezza e eu
estávamos a sós, ela abordou o assunto de minha
reeleição. Segundo ela, a postura norte-americana em
relação ao meu terceiro mandato não tinha nada de
pessoal, era apenas a aplicação sistemática da política dos
EUA que presumia dois mandatos para diretores de
agências da ONU. No fundo, sabíamos que isso não era
verdade, mas também percebi que Condoleezza e Hadley
estavam tentando se distanciar de algumas das gafes
diplomáticas de John Bolton. Ouvi dizer que ela, ao adotar
uma nova postura, recusou-se a manter Bolton no
Departamento de Estado. Em vez disso, ele foi nomeado
diretamente por Bush como embaixador dos EUA na ONU –
o mais escandaloso descompasso entre qualificações
profissionais e um cargo da história da diplomacia, ou
então, na época, a mais coerente expressão do estilo
norte-americano de abordar o multilateralismo.
Não dissemos mais nada. Compreendi que o encontro
com Condoleezza representava uma mudança e que os
Estados Unidos se juntariam, por fim, aos demais Estados-
membros na decisão que eles tomassem.
Eu sorri. “Devemos esquecer nossas desavenças do
passado”, disse a Condoleezza. “Não há necessidade de
falar sobre histórias passadas.” Poucos dias depois, fui
reeleito, por unanimidade, para um terceiro mandato.
Depois de uma exaustiva temporada, a agência recebeu
o mais revigorante dos presentes. Era a manhã do dia 7 de
outubro de 2005, e eu decidira ficar em casa em vez de ir
ao escritório. No final da manhã, eu ainda estava de
pijama. Acabara de voltar de uma viagem cansativa, mas
isso nunca tinha sido motivo para que eu faltasse ao
trabalho. A razão para isso acontecer foi algo muito
diferente.
Pelo segundo ano consecutivo, corriam boatos
desenfreados de que a AIEA e eu éramos favoritos na
eleição para o Prêmio Nobel da Paz. Em 2004, os boatos
circularam com tamanha frequência que nossos
profissionais no setor de comunicação começaram a cuidar
dos preparativos caso precisássemos lidar com a imprensa.
No dia do anúncio, eu estava no Japão, para um encontro
com o ministro da Economia japonês. Ao chegar ao
encontro, havia cerca de 50 cameramen à espera do
anúncio que seria feito pelo comitê do Nobel. No meio da
reunião, Ian Biggs, meu assistente, deixou a sala. Alguns
minutos depois, retornou e me passou um bilhete com o
nome da escolhida: Wangari Maathai. Quando eu deixei a
sala de reuniões, havia apenas um cameraman no lado de
fora, que me abordou e disse, de um modo bastante gentil:
“Sinto muito”.
Naquele ano, evitei falar sobre o assunto com qualquer
um da agência. Disseram-me, depois, que ninguém estava
lançando mau agouro em nossa candidatura. Naquela
sexta-feira, eu não estava disposto a aguentar uma
reunião inteira com todos olhando constantemente para o
relógio, sobretudo porque, na véspera, os
estabelecimentos de apostas elevaram repentinamente
nossas chances de vencer.
O anúncio estava previsto para as 11h da manhã. Por
hábito, o comitê do Nobel telefona para o vencedor com
meia hora de antecedência. Às 10h45, meu estômago já
havia parado com as reviravoltas, e eu estava em paz com
o fato de o comitê ter escolhido outra pessoa. Quando Aida
entrou no escritório para assistir ao anúncio na TV, me
juntei a ela, curioso.
Mesmo em norueguês, reconheci o nome: “Det
Internasjonale Atomenergibyrået”, seguido de “Mohamed
ElBaradei”. Fiquei ali parado, sem botar muita fé; então,
quando foi dita a tradução em inglês, Aida e eu nos
abraçamos em meio a lágrimas6.
Em menos de um minuto, nossos telefones não paravam
de tocar. Primeiro, meu irmão Ali, ligando do Cairo, dizendo
que estava grudado na TV. A seguir, minha secretária,
Monika Pinchler, ligando do escritório para dizer que o
embaixador norueguês e seu vice estavam lá com um
buquê de flores7. O embaixador foi o único a ser informado
com antecedência pelo comitê do Nobel. Convidei-os a vir
à minha casa. Em meio àquela enxurrada de telefonemas e
ao meu estado emocional, era tudo o que eu podia fazer
para me recompor.
Após uma coletiva de imprensa organizada às pressas na
AIEA, fiz um discurso de improviso aos funcionários da
agência, que se aglomeravam na sala do Conselho. O
clima era de enorme excitação: lágrimas, risos e ondas
periódicas de aplausos. Dizer que estávamos todos
eletrizados e orgulhosos não é, nem de longe, o bastante
para descrever a grandeza daquele momento. Não tenho,
nesta vida, a expectativa de passar novamente pela
experiência e alegria que é compartilhar uma declaração
tão extraordinária: colegas meus, vindos de mais de 90
países, haviam feito um grande esforço coletivo para
tornar o planeta mais seguro – o prêmio representava o
resultado do esforço coletivo da instituição, de 40 anos
trabalhando pelo bem comum.
As infindáveis manifestações de apoio rapidamente
viraram uma avalanche. E-mails entupiam minha caixa de
entrada. Cartas se amontoavam em pilhas: funcionários da
sala de correspondências da AIEA precisaram de grandes
sacos de supermercado para acomodar tantas cartas.
Particularmente emocionante em relação a essas
mensagens é que elas vinham de pessoas de todos os
estilos, de todas as idades, etnias, religiões, de chefes de
Estado a estudantes. Um grupo de freiras italianas
escreveu prometendo orar pelo nosso futuro. Trezentas
crianças espanholas de Fuenlabrada, no subúrbio de Madri,
enviaram cartas individualmente nos parabenizando8.
Cidadãos egípcios de todas as origens e classes sociais
escreveram para expressar seu orgulho. Essa generosa
demonstração de afeto é capaz de nos tornar humildes e
ao mesmo tempo ser imensamente inspiradora.
Senti a enorme responsabilidade, em meu discurso
acadêmico, de transmitir minha compreensão em relação à
proliferação nuclear – como parte de um contexto muito
mais amplo de desigualdades globais e da busca por
segurança. Há algum tempo venho tentando, discurso
após discurso, articular as conexões: a espiral negativa da
sociedade teve início com a pobreza e a desigualdade;
tudo isso muito frequentemente era aliado à má
administração, à corrupção e ao abuso dos direitos
humanos, o que, por sua vez, criava um terreno fértil para
o extremismo, a violência, as guerras civis, e, em alguns
casos, em áreas de conflitos não resolvidos, a tentação, da
parte de alguns, de projetar uma imagem de poder ou de
obter segurança mediante a aquisição de armas de
destruição em massa.
Laban, meu assistente de comunicações e responsável
pela redação de meus discursos, e Melissa Fleming, a
porta-voz da agência, me disseram que o sentido exato de
meus discursos não estava sendo percebido por meus
ouvintes, embora eles pudessem compreender a lógica de
minha fala. As conexões, do modo como eu as enxergava,
existiam, mas eu não estava sendo capaz de me
comunicar. Precisava de algo mais concreto: uma imagem
que pudesse captar a mensagem.
Encontrei a resposta ao começar a refletir sobre como
empregaria o dinheiro que acompanhava o
reconhecimento do Nobel. O prêmio foi conferido em
conjunto, a mim, diretor-geral, e à AIEA. A premiação
totalizava pouco mais de 1 milhão de euros. O Conselho da
AIEA havia decidido que metade do dinheiro seria
destinada ao tratamento do câncer e ao combate à
desnutrição infantil em países em desenvolvimento. Decidi
que minha parcela do prêmio seria destinada a uma causa
que eu conheço desde criança: a necessidade de
assistência aos órfãos do Cairo. Minha cunhada estava
diretamente envolvida com os orfanatos da cidade; ela
poderia verificar que os recursos fossem bem usados.
Eis a imagem de que eu precisava como tema para o
meu discurso, na entrega do Nobel: “Minha cunhada”,
escrevi,

trabalha para um grupo que apoia orfanatos no Cairo. Ela e seus colegas
cuidam de crianças abandonadas em circunstâncias adversas. Eles as
alimentam, vestem-nas e as ensinam a ler. Na Agência Internacional de
Energia Atômica, meus colegas e eu trabalhamos para que as substâncias
nucleares sejam mantidas fora do alcance dos grupos extremistas.
Inspecionamos instalações nucleares em todo o mundo para garantir que
atividades nucleares com fins pacíficos não sejam usadas como disfarce
para programas de produção de armas. Minha cunhada e eu, seguindo
caminhos distintos, estamos trabalhando em prol do mesmo objetivo: a
segurança da família.

A busca pela segurança, argumentei, era a motivação


por trás de inúmeros esforços. Porém, pelo fato de nossas
prioridades sociais terem sido invertidas, algumas nações
gastam mais de um trilhão de dólares anuais em
armamentos, enquanto dois quintos da população terrestre
vivem com menos de 2 dólares por dia, e quase um bilhão
de pessoas sente fome ao ir para a cama todas as noites.
As inseguranças levaram o mundo a um completo engano.
Não era mais possível sustentar tal modelo. “Hoje”,
escrevi,

com a globalização nos aproximando cada vez mais, se optarmos por


ignorar as inseguranças que nos afligem, elas brevemente se transformarão
nas inseguranças de todos. Da mesma forma, com o avanço da ciência e da
tecnologia, enquanto optarmos pela dependência das armas nucleares,
continuaremos correndo o risco de que essas mesmas armas se tornem
cada vez mais atraentes.

Não era minha intenção terminar o discurso em um tom


sombrio. Foi de Aida a sugestão de concluir com um
convite a um futuro melhor:
Imaginem o que aconteceria se as nações do mundo dedicassem ao
desenvolvimento a mesma quantia que é gasta na produção de máquinas
de guerra. Imaginem um mundo no qual cada ser humano possa viver com
liberdade e dignidade. Imaginem um mundo em que todos derramem as
mesmas lágrimas quando uma criança morre em Darfur ou em Vancouver.
Imaginem um mundo no qual nossas diferenças sejam resolvidas por meio
da diplomacia e do diálogo, em vez de bombas e armas. Imaginem se as
únicas armas nucleares remanescentes fossem as relíquias de nossos
museus. Imaginem o legado que deixaríamos para os nossos filhos.
Imaginem que um mundo assim está ao nosso alcance.

Chamar a cerimônia de Oslo de experiência inesquecível


seria minimizá-la de maneira brutal. O calor humano da
recepção dos noruegueses e da família real foi
impressionante. É uma coisa extraordinária presenciar
toda a capital do país interrompendo suas atividades,
durante três dias ao ano, a fim de celebrar a paz – de
recitais de poesia e peças de teatro escritas e encenadas
por crianças e adolescentes, até o Concerto do Prêmio
Nobel da Paz, transmitido para mais de cem países
diretamente da Oslo Spketrum Arena. Para mim, uma
experiência marcante foi caminhar pelo Museu do Nobel,
onde pude ver as imagens daqueles que me precederam,
também laureados pelo prêmio.
Eu ainda estava nervoso quando me pediram para
escrever no Livro do Nobel, onde há textos de todos os
contemplados. “Precisamos mudar nossa mentalidade”,
escrevi. “Precisamos compreender os valores comuns que
partilhamos. Precisamos compreender que a guerra e a
força não poderão resolver nossas diferenças ou nos fazer
caminhar na direção da paz. Somente por meio do diálogo
e do respeito mútuo poderemos evoluir como uma única
família.” (Quis o destino que eu escrevesse a palavra
“família” com dois “eles”, um lapso pelo qual Aida zomba
de mim até hoje.)
No plano pessoal, aqueles poucos dias foram intensos.
Minha família estava comigo – esposa, mãe, filhos, irmãos
e irmãs – e também amigos e colegas da agência e outros
amigos próximos. Minha mãe, como sempre, me fez sorrir.
No Cairo, quando o anúncio foi feito, em outubro, o grande
assédio da mídia egípcia e internacional atingiu sua casa,
onde minha família estava reunida. Ela tornou-se uma
celebridade instantânea, falando sobre minha infância com
lágrimas nos olhos. Em Oslo, apesar de seus 80 anos, ela
circulava feliz de um evento a outro. Ao ser conduzida do
local da cerimônia para o hotel na limusine, acompanhada
de escolta de batedores da polícia, anunciou: “Isso parece
um sonho. Me sinto uma rainha”.

A premiação do Nobel foi um momento determinante – não


apenas pessoalmente, mas em um sentido mais amplo,
como reconhecimento público pelo trabalho da agência,
trazendo à Secretaria da AIEA, consequentemente, um
sentimento de integração e orgulho. Em suas reportagens
de rotina, a mídia centrou o foco apenas em uma pequena
parcela de nosso trabalho – o papel dos inspetores de
armas em alguns locais críticos – quando, na verdade,
verificávamos, ano após ano, mais de 900 instalações em
70 países. O teor do discurso feito na entrega do prêmio
deixava claro que o valor da AIEA não se limitava às
atividades de verificação de salvaguardas – o trabalho de
apenas um dos departamentos –, mas também incluía o
nosso empenho em promover o uso seguro da energia
nuclear em aplicações pacíficas: na medicina, para o
combate de doenças cardíacas, na hidrologia isotópica,
para localizar e administrar lençóis freáticos, ou na
plantação de folhas de cevada que prosperam nos Andes.
O repentino crescimento da conscientização sobre o nosso
trabalho – que tem contado com uma mão de obra bem
diversificada, originária de um espectro complexo de
culturas e perfis de natureza cultural, educacional e
profissional – solidificou internamente a convicção da
organização de que todas as partes da agência
trabalhavam em prol de um objetivo comum.
Um segundo benefício foi o acesso que se tornou possível
com uma maior visibilidade de nosso trabalho. A missão
realizada pela AIEA no Iraque, antes da invasão do país em
março de 2003, colocou a agência sob os holofotes
internacionais, transformando-a em uma das instituições
globais mais conhecidas. Porém a premiação do Nobel foi
acompanhada de uma expansão exponencial não apenas
em termos da atenção da mídia – uma invejável lista de
convites em caráter permanente, feitos por veículos da
imprensa em todo o mundo –, mas também quanto à
nossa capacidade de moldar nossas mensagens e
transmiti-las ao nosso público. Passamos a ter acesso sem
precedentes a líderes políticos e de outras áreas, em todos
os continentes; conversas que habitualmente ocorriam em
um nível de ministério passaram a acontecer com chefes
de Estado. Para a agência, as normas haviam sido
redefinidas.
O reconhecimento do Nobel também deixou clara a
importância da independência da AIEA e, sob alguns
aspectos, reforçou-a. Na condição de diretor-geral, eu me
senti muito mais imune a acusações de ter agido de modo
tendencioso ou brando e aos indivíduos dispostos a
questionar minha integridade. Também usei esses
holofotes para chamar a atenção para os limitados
recursos financeiros da agência, que restringiam nosso
potencial tecnológico e, com isso, ameaçavam nossa
independência. Por exemplo, para buscar instalações
nucleares não declaradas, não poderíamos nos basear
unicamente em imagens de satélite encaminhadas para
nós, selecionadas por dois ou três Estados-membros;
precisávamos de recursos financeiros para selecionar e
adquirir nossas próprias imagens. Da mesma forma,
precisávamos fortalecer a capacidade nuclear forense de
nossos laboratórios, em vez de dependermos – como
acontecia com os tipos de análises mais sensíveis de
partículas de fissão – de um único laboratório operado pela
Força Aérea dos EUA. Passei a dar maior visibilidade
pública à necessidade da AIEA de consolidar a sua
independência, conferindo-lhe maior autoridade jurídica,
maior capacidade tecnológica e apoio financeiro.
O Prêmio Nobel da Paz não fez diminuir, de modo algum,
os imensos desafios que enfrentamos no passado. Pelo
contrário: ele certamente nos fortaleceu, renovando nossa
determinação de enfrentar outros obstáculos que se
colocarão à nossa frente.
NOTAS

1 Na época de minha primeira eleição para o cargo de diretor-geral, em 1997, o


Egito apoiou Mohamed Shaker, embaixador egípcio no Reino Unido e amigo
íntimo da família do então presidente Hosni Mubarak.

2 Na época, Duarte era o embaixador itinerante do Brasil para Assuntos de


Desarmamento e Não Proliferação. Também ocupou o cargo de embaixador na
AIEA.

3 A história completa do incidente e suas consequências são relatadas no


capítulo 4.

4 “IAEA Leader’s Phone Tapped”, 12/12/2004.

5 Repórteres da Reuters afirmaram, posteriormente, que diplomatas ocidentais


lhes mostraram supostas transcrições de conversas telefônicas interceptadas
entre mim e o embaixador iraniano na AIEA. “Rice on WikiLeaks Spy Charges:
We’re Just Diplomats”, Lou Charbonneau, Reuters, 29/11/2010.

6 Naquela época, meu filho Mostafa trabalhava como diretor de estúdio no


escritório da CNN, em Londres. Estava no meio do expediente quando a notícia
foi divulgada. Ele nos enviou uma mensagem pelo celular, com três palavras:
“Oh, meu Deus!”, e então fez uma pausa de dez minutos para se recompor. Mais
tarde, nos revelou que tinha uma cédula de 50 libras no bolso e a entregou ao
primeiro mendigo que encontrou. Minha filha Laila, que também morava em
Londres, estava no metrô, a caminho de seu escritório de advocacia. Saiu da
estação e percebeu que havia 30 mensagens na caixa postal de seu celular,
então teve certeza de que algo terrível estava acontecendo – até que conseguiu
falar com seu irmão.
7 Posteriormente, o comitê do Nobel disse que, se eles tivessem telefonado para
a AIEA, a notícia vazaria imediatamente. O embaixador afirmou que também
havia comprado um enorme buquê no ano anterior.

8 Dois exemplos: De Javier, 7 anos: “Ouvimos dizer que muitos espanhóis


estavam dando apoio a vocês, assim os seus inspetores teriam mais tempo e
não haveria mais guerra no Iraque. É por isso que ficamos tão felizes com o seu
Prêmio Nobel da Paz, e esperamos que vocês continuem lutando pela paz no
mundo. Parabéns!”; De Alicia, 12 anos: “Sou totalmente contra a guerra, e
agradeço muito a vocês por seus esforços para evitá-la no Iraque. Apesar de a
estratégia de vocês não agradar completamente aos EUA, vocês souberam
mostrar firmeza ao afirmar que não havia armas nucleares no Iraque, ainda que
atraíssem, com isso, o ódio do país mais poderoso. Espero que no conflito com o
Irã vocês tenham mais sorte e que as coisas sejam solucionadas com o uso do
diálogo, e não com armas. E que os políticos dos EUA aceitem as opiniões da
ONU, e que não façam sempre como quiserem para conseguir ganhos
econômicos. Desejo sorte a vocês, e que continuem usando a sua principal
arma: o diálogo. Com afeto...”.
9 • Irã
“NEM UMA CENTRÍFUGA SEQUER”

Em janeiro de 2006, as complicadas e cambaleantes


negociações entre a comunidade internacional e o Irã, em
relação ao programa nuclear do país, chegaram a um
impasse. A proposta europeia de ajuda e assistência
tecnológica em troca da interrupção do desenvolvimento
nuclear foi considerada um insulto – na linguagem
empregada – e pífia quanto aos benefícios que oferecia,
não sendo capaz de reconhecer as necessidades iranianas
nas áreas da segurança e da política. No momento em que
cessaram as conversas sobre tal proposta, o Irã retomou
sua conversão de urânio, interrompendo a suspensão
voluntária das atividades nucleares. Isso levou o Conselho
da AIEA a condenar o “descumprimento” das obrigações
do país com o TNP.
Não se viam progressos palpáveis no horizonte: o Irã agia
de modo ousado; os preços do petróleo estavam altos; a
China dependia do petróleo e do gás iranianos; e a Rússia,
que ainda construía o reator em Bushehr, preocupava-se
em manter as boas relações com o país.
Assim, o Irã assumiu um risco calculado, informando à
AIEA, em 3 de janeiro, sua intenção de dar um passo
adiante, na retomada da pesquisa e do desenvolvimento
do enriquecimento de urânio. O país enviou uma carta à
agência, solicitando a remoção dos lacres da usina de
Natanz.
O tamanho e a extensão desse risco estavam em iniciar
as operações de uma pequena cascata de enriquecimento
na usina-piloto. Os iranianos não imaginavam que o
Conselho de Segurança lhes imporia sanções adicionais
por causa dessa pequena operação-piloto. De qualquer
modo, o enriquecimento para fins pacíficos era um direito,
de acordo com o TNP; a suspensão sempre foi
caracterizada como um ato voluntário de boa vontade, a
fim de facilitar as negociações. Tendo em vista que a maior
parte do “descumprimento de normas” por Teerã havia
sido reparada nos últimos dois anos, e que sua pequena
operação de enriquecimento era, afinal de contas,
legítima, era muito pouco provável que o Conselho de
Segurança adotasse alguma medida. Até onde eu podia
compreender, os iranianos tinham a confiança de que não
haveria repercussão negativa, que as negociações com os
europeus seriam retomadas e que eles concordariam com
uma moratória sobre o enriquecimento em escala
industrial.
Os russos, por sua vez, tiveram o mérito de tentar fazer
as partes chegarem a um meio-termo, propondo que fosse
permitido ao Irã realizar um pequeno programa de
pesquisa e desenvolvimento de 30 a 40 centrífugas, cuja
especificidade seria determinada em consultas com a AIEA.
Os norte-americanos, contudo, mostravam-se
intransigentes em relação a qualquer acordo nesse
sentido, e o Irã não endossou a proposta abertamente.
Assim, os russos retiraram a sugestão.
Em minha avaliação, a proposta russa era significativa e
poderia ter indicado uma saída para o nosso impasse. Foi o
que eu disse a Bob Joseph, o substituto de Bolton, durante
sua visita a Viena. Pouco depois, Condoleezza Rice
telefonou-me no hotel em Davos. “Nossos caminhos
parecem ter bifurcado desde que nos encontramos pela
última vez”, disse ela, em um tom pouco amistoso. Ela
insinuou que eu estava dando apoio ao programa de
pesquisa e desenvolvimento iraniano, legitimando, com
isso, o processo de enriquecimento conduzido pelo país.
Respondi a ela que não assumi nenhuma posição pública
sobre o assunto, mas acreditava que os benefícios da
proposta russa eram muito maiores do que os custos, por
duas razões. Primeiro, era essencial que o Irã continuasse
a implementar seu Protocolo Adicional. Era necessário que
a AIEA pudesse inspecionar possíveis atividades não
declaradas naquele país; também precisávamos dar início
às negociações, caso quiséssemos interromper os
progressos do Irã na direção de um enriquecimento em
escala industrial. No final de uma tensa conversa, enfatizei
que caberia aos Estados-membros da AIEA a decisão sobre
como proceder, mas que eu lhes devia, pelo menos, meu
ponto de vista sobre o assunto121.
Em fevereiro, o Conselho da AIEA inaugurou uma nova
etapa na saga, submetendo o caso iraniano ao Conselho
de Segurança. Após mais de dois anos de tentativas, tanto
do EU-3 quanto do Irã, de chegar a um acordo diplomático
sobre o programa nuclear de Teerã, foi dado o veredito. A
votação do Conselho ficou dividida: de seus 35 membros,
cinco países desenvolvidos se abstiveram, enquanto três
votaram contra a resolução, com a justificativa de que a
suspensão das atividades de enriquecimento do Irã havia
sido voluntária e não estava sujeita a um compromisso
jurídico. Tal divisão era um fato raro: tradicionalmente, o
Conselho faz questão de tomar suas decisões de modo
consensual, uma prática a que frequentemente se refere
como o “espírito de Viena”. A decisão não consensual,
portanto, não era um bom sinal.
O contra-ataque do Irã se deu por meio da suspensão da
implementação de seu Protocolo Adicional122. Tal decisão
não causou surpresa: em setembro de 2005, numa ação
retaliativa, o Parlamento iraniano aprovou uma lei que
sugeria ao governo suspender o Protocolo, caso o Irã fosse
submetido ao Conselho de Segurança. Essa medida
limitaria, de modo significativo, os recursos à disposição da
AIEA para inspecionar substâncias e atividades nucleares
não declaradas. Assim, a saga nuclear iraniana passou a
envolver a adoção de posturas mais rígidas.
Eu tinha nova viagem marcada para Washington. Em
maio, tive um encontro com Condoleezza e John
Negroponte, diretor do Serviço de Inteligência Nacional.
Negroponte estava de pleno acordo com a avaliação dos
inspetores de que, mesmo se a intenção iraniana fosse
desenvolver armas nucleares, isso ainda levaria alguns
anos, em termos de capacidade tecnológica para tal
produção. Negroponte vivia repetindo essa declaração em
público, talvez como uma maneira de defender-se dos
israelenses e dos adeptos da linha-dura, que davam total
apoio à ação militar.
Quanto a Condoleezza Rice, meu desejo era que nosso
relacionamento voltasse ao normal. Naturalmente, nossos
pontos de vista nem sempre convergiam, mas, depois das
tensas reuniões que tivemos no período imediatamente
anterior à Guerra do Iraque, nosso tratamento mútuo foi
respeitoso, chegando mesmo, em certas situações, a
envolver certa dose de humor. Ela sempre se mostrou mais
sensata e pragmática do que ideológica, especialmente
nas ocasiões em que nos reunimos a sós. Decerto, sua
opinião nem sempre prevalecia e sua obrigação era,
basicamente, implementar as decisões tomadas por Bush,
a quem ela era extremamente fiel. Raras foram as vezes
em que pude ter certeza quanto às posições dela; no
entanto, em meio à administração Bush, eu a considerava
um verdadeiro trunfo e uma adepta da diplomacia.
Depois de uma rápida conversa trivial sobre sua paixão
por sapatos – certa vez, ela me contou que às vezes
comprava cinco ou seis pares de uma vez –, passei ao
assunto que eu pretendia enfatizar: os Estados Unidos
precisavam, urgentemente, participar das discussões com
o Irã. “O diálogo”, eu lhe disse, “não irá progredir sem a
participação de vocês.”
Antes de viajar aos EUA, encontrei-me com Ali Larijani, o
mais importante negociador nuclear do Irã. Ele me pediu
que transmitisse uma série de mensagens a Washington:
os iranianos estavam interessados em negociar
diretamente com os EUA. Estavam dispostos a debater não
apenas as questões nucleares, mas também as
relacionadas ao Iraque, ao Afeganistão, ao Hezbollah e ao
Hamas. Larijani considerava que o Irã poderia exercer uma
grande influência em assuntos relacionados às próximas
eleições dos EUA. O Irã poderia dar assistência a Bagdá na
área de segurança e colaborar no estabelecimento de um
governo de unidade nacional no Líbano. Nesse momento,
percebi que o olhar de Condoleezza se iluminara.
Enfatizei, diante dela e de Bob Joseph, que um pequeno
programa de pesquisa e desenvolvimento de centrífugas
no Irã era uma questão menor, se comparada com a
proliferação nuclear. Se o Irã tivesse, de fato, a intenção de
aperfeiçoar sua tecnologia de enriquecimento numa larga
escala, poderia fazê-lo facilmente de maneira clandestina,
e ninguém faria melhor do que eles. “Na verdade”, disse
eu, “é um bom sinal que eles estejam insistindo em levar
seu programa adiante de maneira legítima.”
Repeti os argumentos que já havia exposto em meu
telefonema a Condoleezza. O importante era congelar
qualquer movimentação que pudesse conduzir a um
enriquecimento em escala industrial e, ao mesmo tempo,
manter a sólida atuação das verificações da AIEA no Irã.
“De que adianta”, perguntei, “uma verificação perfeita das
atividades nucleares declaradas, se não tivermos o
Protocolo em vigor para garantir que eles não estejam
operando um programa clandestino, em segredo?” Além
disso, acrescentei, havia uma grande diferença entre
possuir o know-how para a fabricação de armas e
desenvolver a capacidade industrial e, de fato, produzi-las.
Novamente, insisti no fato de que permitir que o Irã
conduzisse uma pequena operação de pesquisa e
desenvolvimento como uma medida para preservar a
reputação do país não era um preço alto demais a ser
pago.
Fiquei satisfeito em perceber que Condoleezza estava
realmente prestando atenção. Notei que a única coisa que
lhe chegava aos ouvidos, dia após dia, era a repetição
compulsiva da postura de “nem uma centrífuga sequer”,
defendida por Steve Hadley. Essa “linha vermelha” fora
traçada a partir de uma declaração feita pelos britânicos
durante a rodada anterior de negociações com o Irã: o
Reino Unido havia construído seu programa de armas
nucleares com base no conhecimento adquirido com a
operação de 16 centrífugas. A política “nem uma
centrífuga sequer” adquiriu enorme importância para os
ideólogos de Washington, que consideravam os Estados
Unidos um disciplinador global e que somente davam
ouvidos uns aos outros, perpetuando, com isso, crenças
completamente dissociadas da realidade. Sempre esteve
claro que o Irã jamais eliminaria por completo o seu
programa de enriquecimento.
Embora alguns norte-americanos refutassem
completamente qualquer diálogo ou reaproximação com o
Irã – em abril, circularam relatos de planos ocultos dos EUA
de atacar instalações nucleares iranianas usando bombas
arrasa-bunkers –, Condoleezza parecia considerar que o
Irã, no final, recuaria. “O Irã não é a Coreia do Norte”, disse
ela. “O Irã não quer permanecer isolado. Sob pressão, o
país irá ceder.”
“Meu temor”, respondi, “é que o aumento da pressão
sobre o Irã seja um tiro pela culatra.” Eu percebia que a
política norte-americana em relação ao país se resumia a
dois mantras simplistas: “nem uma centrífuga sequer” e
“eles irão ceder”. Não havia nenhuma flexibilidade para se
ajustar à realidade ao redor.
Quando estivemos a sós, Condoleezza enfatizou que
tanto ela quanto o presidente Bush estavam dedicando
grande empenho à busca de uma resolução pacífica para a
questão iraniana, sugerindo que não tinham a menor
intenção de recorrer ao uso da força. Alguns dias depois,
Washington anunciou que estava pronta para iniciar um
diálogo direto com Teerã, sob a condição de que o Irã
suspendesse todas as suas atividades relacionadas ao
enriquecimento.
A declaração representou uma mudança radical na
retórica pública dos EUA. Tratava-se, claramente, de um
meio-termo a que Condoleezza e seu grupo conseguiram
chegar junto aos adeptos da ideologia neoconservadora
vigente, cuja posição era que qualquer espécie de diálogo
legitimaria o regime iraniano, numa época em que faziam
a defesa aberta da mudança de regime. No entanto, os
Estados Unidos ainda exigiam do Irã algo que o país não
podia fornecer sem implodir internamente. Considerando
que o programa nuclear iraniano havia se tornado uma
questão de orgulho nacional, o governo de Ahmadinejad se
mostrava vulnerável no plano doméstico. Não queria ser
visto como submisso às vontades do Ocidente. Suspender
o programa de enriquecimento antes de iniciar o diálogo
teria como efeito o enfraquecimento da capacidade
iraniana de negociar. Além disso, na visão de Teerã, a
futura retomada do programa seria colocada numa
situação perigosa, caso se transformasse numa concessão
a ser obtida junto ao Ocidente. Era um risco que eles não
estavam dispostos a correr.

Em junho de 2006, na ausência de diálogo direto entre


Teerã e Washington, os europeus começaram novamente a
elaborar um conjunto de propostas em parceria com EUA,
Rússia e China. A intenção era apresentar ao Irã uma
proposta que envolvesse dois percursos simultâneos: um
conjunto de incentivos, em troca de limites impostos ao
programa nuclear iraniano; e, em paralelo, um conjunto de
possíveis sanções, no caso de o país recusar a proposta.
Tentei explicar a falácia dessa abordagem de um ponto de
vista cultural: se, ao mesmo tempo, eles oferecessem a
cenoura e o chicote, isso daria a impressão de que o
governo do Irã estaria negociando sob ameaças. Em tais
circunstâncias, não lhes restaria escolha a não ser rejeitar
a proposta como uma forma de preservar o respeito
próprio e o apoio nacional.
A minha lógica não tinha nenhuma relação com a
tecnologia nuclear. A concepção ocidental de como
abordar o Irã era semelhante a ir a um souk árabe e
oferecer ao proprietário uma quantia razoável pela
mercadoria que se deseja adquirir, mas também ameaçar
queimar o mercado caso ele não aceite a proposta.
Embora a tática possa ser eficaz num filme de Clint
Eastwood, estaria fadada ao fracasso desde o início em
Teerã.
A título de experiência, os europeus concordaram
secretamente em oferecer um conjunto de incentivos, bem
como um conjunto de sanções. No entanto, em 6 de junho,
quando enviaram Javier Solana123 a Teerã, como
representante de seus países, coube a ele apresentar
apenas os incentivos.
Esse pacote de propostas, diferentemente do que foi
apresentado em agosto de 2005, era bastante generoso.
Basicamente, propunha que se oferecesse ao Irã a
tecnologia ocidental convencional e a de energia nuclear.
Discutia elementos de um acordo de comércio com o
Ocidente, e foi redigido sem o tom paternalista da primeira
proposta, com referências respeitosas aos direitos do Irã.
No entanto, insistia para que o Irã suspendesse seu
programa de enriquecimento como pré-requisito para as
negociações, e a linguagem usada parecia implicar que a
retomada das atividades de enriquecimento se daria
somente sob a aprovação do Ocidente.
O Irã pediu para responder até 22 de agosto. Enquanto
isso, prosseguia com a expansão de seu programa de
pesquisa e desenvolvimento nuclear. A essa altura, os
iranianos haviam feito alterações, passando de
experimentos com cascatas de 10 e 20 centrífugas para
uma cascata de 164 centrífugas, numa operação ainda
piloto. A atividade não tinha grande relevância. Operavam
uma cascata durante dez dias, interrompiam alguns dias, e
então recomeçavam. Nossos especialistas técnicos
avaliaram que os iranianos poderiam ter conseguido
resultados muito mais rapidamente se estivessem
dispostos a fazer um esforço máximo. A certa altura, os
iranianos mencionaram que talvez instalassem uma
segunda cascata de 164 centrífugas dentro de três meses.
Desaconselhei-os. A construção de novas e maiores
cascatas tornaria as negociações ainda mais complicadas.
O fato de o Irã ter solicitado mais tempo foi visto com
suspeita por alguns no Ocidente. Os norte-americanos,
entre outros, afirmaram que o Irã aproveitaria esse tempo
para ampliar sua capacidade de enriquecimento do
combustível. A afirmação era absurda. O Irã mal teria
tempo de melhorar qualquer coisa em seu programa de
pesquisa e desenvolvimento até agosto. Creio que o
pedido de mais tempo estava relacionado à marcha lenta
da tomada de decisões da parte do Irã. Os processos
políticos domésticos desse país são caracterizados por um
controle mútuo, exercido pelos diversos setores
governamentais. As múltiplas partes expressam suas
opiniões antes que uma estratégia final seja formulada. Os
iranianos parecem nunca ter pressa, sendo ainda mais
resistentes a tomar decisões apressadas quando colocados
sob pressão externa.
No entanto, os Estados Unidos não estavam dispostos a
esperar, por isso insistiram em realizar um encontro muito
antes do prazo pedido pelo Irã. Larijani concordou em
encontrar-se comigo em Bruxelas em 11 de julho, pois
queria esclarecer alguns detalhes sobre os termos e a
extensão da suspensão que estava sendo proposta. Nossas
conversas deixaram claro que ele estava comprometido
com a busca de uma solução negociada.
Revelou-se que o encontro causou mais danos do que
benefícios. No meio da conversa, o britânico John Sawers,
diretor-geral para Assuntos Políticos do Escritório de
Relações Exteriores e da Commonwealth, começou a ficar
impaciente. De modo brusco, interrompeu Solana e exigiu
de Larijani: “Queremos saber, em termos concretos, se
vocês estão dispostos a fazer a suspensão”.
É claro que Larijani não tinha como dar uma resposta
definitiva. Teerã ainda não entrara num acordo quanto a
isso. Larijani começou a gaguejar, e a conversa então
terminou sem solução. Solana relatou que o encontro
fracassara e, já no dia seguinte, o assim chamado P5+1
anunciou novamente sua intenção de submeter o caso ao
Conselho de Segurança124.
Logo depois, no encontro do G-8 em São Petersburgo,
conversei rapidamente com o presidente Bush.
“ElBaradei!”, ele bradou, caminhando na minha direção e
sorrindo. “Realmente gostamos do trabalho que vocês
estão fazendo no Irã”, disse em tom discreto, depois de me
apertar a mão, “pois não sabemos o que está acontecendo
lá.”
Eu lhe disse que o Irã estava elaborando uma resposta à
proposta. Eu realmente acreditava que eles estavam em
busca de uma solução por meio do diálogo, precisando
somente de um pouco mais de tempo.
“Estamos prontos”, foi a resposta de Bush, indicando sua
expectativa de ouvir o que Teerã tinha a dizer.
Numa conversa à parte, Tony Blair me deu exatamente a
mesma resposta: “Estamos prontos”, como se os dois
tivessem ensaiado.
No momento em que o Conselho de Segurança
começava a elaborar uma resolução, Javad Vaeedi,
representante de Larijani, me procurou. Disse que, em
essência, os iranianos estavam dispostos a concordar com
a suspensão, mas não como uma precondição para as
negociações, e sim como resultado delas. A suspensão
também teria de estar associada a algum tipo de garantia
de segurança. “Queremos saber se nosso colega é um
aliado ou um adversário”, revelou Vaeedi. “A questão não é
apenas o programa nuclear, mas todo o relacionamento
futuro entre os EUA e o Irã.”
Ele deu explicações quanto à situação que Ahmadinejad
enfrentava no plano doméstico. “Se ele anunciar apenas a
suspensão do enriquecimento nuclear, sem que haja
alguma espécie de contrapartida relacionada à segurança,
a administração Ahmadinejad entrará em colapso.” O que
Vaeedi relatou, na sequência, foi ao mesmo tempo
iluminador e inquietante. A equipe de negociação anterior
– o grupo liderado por Rowhani, que trabalhava na
administração Khatami – passou a se opor a qualquer ação
no sentido de suspender o enriquecimento e aceitar o
pacote de propostas. O problema não era a proposta em si
– que obviamente era muito melhor do que a do ano
anterior. A preocupação deles era que a aceitação da
proposta e das negociações com os EUA com vistas à
normalização das relações faria de Ahmadinejad um herói
nacional. Isso era a última coisa que eles desejavam;
portanto, estavam determinados a solapar a mesma
solução pela qual tanto se empenharam.
Suspirei. Teerã passou tempo demais observando
Washington e seu modo de fazer política, pensei comigo.
Uma nova oportunidade estava prestes a ser
desperdiçada. Telefonei a Greg Schulte, embaixador dos
EUA na AIEA, e lhe pedi que transmitisse a Washington a
informação de que ainda havia chances de acordo. A
possibilidade de uma solução quanto à segurança regional
ainda estava em aberto. O ingrediente que faltava era
apenas a disposição dos Estados Unidos em fazer uma
pequena – e insignificante – concessão, a fim de dar
continuidade ao diálogo.
Mas isso não aconteceria. No final de julho de 2006, três
semanas antes do prazo pedido pelo Irã para dar a
resposta, o Conselho de Segurança aprovou a Resolução
1696. Esta tornou compulsória a suspensão do processo de
enriquecimento, de acordo com o Capítulo VII do Estatuto
da ONU, que confere poderes ao Conselho de Segurança
para agir diante de “ameaças à paz, violações da paz e
atos de agressão”. No final de agosto, me pediram que eu
reportasse ao Conselho a confirmação de que o Irã
suspendera suas operações de enriquecimento de urânio.
Eu não conseguia imaginar uma ação menos sensata e
mais desagregadora do que a Resolução 1696. Em
primeiro lugar, a investigação do programa nuclear do Irã
já estava em curso havia quase quatro anos. Aguardar três
semanas pela resposta do país e usar esse tempo para
buscar uma solução à questão da suspensão despenderia
tempo e energia bastante considerável. Comecei a
perceber que os elaboradores de políticas em Washington
talvez não estivessem, de fato, interessados na resolução
da questão nuclear iraniana ou em conversar com Teerã.
Será que a liderança dos EUA havia se transformado em
refém daqueles a quem nada mais interessava a não ser o
confronto, o isolamento e a mudança de regime?
Em segundo lugar, era duvidosa a legitimidade da
resolução. Ainda não havia provas de que a atividade
nuclear iraniana envolvia um programa de armas. Seria um
grande exagero afirmar que uma pequena cascata de
centrífugas em escala de laboratório representava uma
“ameaça à paz e à segurança internacionais”, tendo em
vista que o enriquecimento de urânio com fins pacíficos é
uma ação legalmente garantida a todos os Estados-
membros do TNP.
Em terceiro lugar, a resolução carecia de lógica. Se a
preocupação de que o Irã estava desenvolvendo uma arma
nuclear era genuína, a interrupção de uma operação de
enriquecimento nuclear em pequena escala em troca do
diálogo e da normalização das relações entre Estados não
fazia o menor sentido. Que diferença fazia interromper
essa operação declarada de pesquisa e desenvolvimento
se o Irã tinha, de fato, um programa de armas nucleares
em operação? O verdadeiro foco deveria ter sido a
continuação das inspeções da AIEA no país, a fim de
investigar possíveis atividades não declaradas. A opção
por centrar o foco na pesquisa e no desenvolvimento
nuclear em Natanz deixou claro que a preocupação – a
suposta “ameaça à paz e à segurança internacionais” –
estava menos relacionada a um programa secreto de
armas do que a conclusões aparentemente tiradas a
respeito das futuras intenções do Irã.
O pior de tudo: o timing da Resolução 1696 foi terrível.
Sua aprovação coincidiu exatamente com uma guerra que
devastava o Líbano, um conflito intenso entre o Hezbollah
e as Forças de Defesa de Israel, que feriu milhares de civis
libaneses. Apesar dos repetidos apelos da comunidade
internacional, Condoleezza, Bush e os britânicos
opuseram-se aos pedidos de cessar-fogo. Em resposta à
solicitação de Kofi Annan para que Bush e Blair apoiassem
um cessar-fogo, ambos afirmaram, novamente em
uníssono: “Não estamos prontos”.
Posteriormente, reconheceu-se que os Estados Unidos
juntaram-se aos esforços de interromper o conflito apenas
quando ficou claro que a ofensiva militar israelense não
estava sendo eficaz125. Em vez disso, aceleraram a
entrega das PGB, as bombas teleguiadas de precisão, a
Israel126. Apenas em 11 de agosto o Conselho de
Segurança aprovaria uma resolução pedindo o cessar-fogo
no Líbano. A essa altura, mais de 1.100 libaneses e 40 civis
israelenses tinham sido mortos e cerca de 750 mil civis
libaneses estavam desabrigados, isso tudo acontecendo
enquanto as potências mundiais assistiam ao conflito de
braços cruzados.
Na época, eu estava no Egito, em minha casa de praia ao
norte de Alexandria. O clima nas ruas era de instabilidade.
Em todo o Oriente Médio, a ira causada pela postura de
dois pesos e duas medidas e pela deliberada inércia do
Ocidente atingira seu clímax. Kofi Annan telefonou-me. Seu
tom de voz era de desânimo. “Esta guerra no Líbano não
era considerada uma ameaça à paz e à segurança
internacionais”, disse ele, em tom de resignação porém
angustiado, “mas a atividade iraniana em escala de
laboratório era.”
Tentando manter o foco, logo após a aprovação da
Resolução 1696 do Conselho de Segurança, enviei uma
mensagem a Larijani sugerindo que os iranianos
respondessem à proposta do Ocidente, conforme
planejado, em 22 de agosto. Propus que eles declarassem
a disposição de suspender suas atividades de
enriquecimento nuclear em escala industrial durante
alguns anos e também se comprometessem, junto à AIEA,
com a solução de questões pendentes sobre a verificação.
“Se eu puder relatar que houve progresso nessas duas
frentes”, disse eu, mudará a maneira “como os europeus e
os demais encaram a situação.”
Em vez disso, Larijani preferiu responder por meio de
uma coletiva de imprensa. “A República Islâmica do Irã”,
anunciou ele, “jamais concordará em suspender suas
atividades de enriquecimento de urânio.”
Alguns aspectos relacionados à aprovação da Resolução
1696 eram, para mim, um mistério, mas parte do
problema, aparentemente, envolvia determinadas ações
nos bastidores, em meados de 2006.
John Sawers, diplomata e ex-assistente de Blair, que
falava em nome do Reino Unido, adotou uma linha-dura
semelhante à norte-americana. Naqueles dois últimos
anos, eu havia percebido diferenças de estilo e de
substância entre Sawers e seu chefe, o secretário das
Relações Exteriores Jack Straw. Estabeleci uma relação
estreita com Straw; em todas as nossas negociações, ele
me pareceu dotado da capacidade de compreender o
cenário mais amplo, da percepção de justiça, de um
profundo respeito pelas nuances culturais e de uma
disposição pragmática para considerar soluções que
revelassem bom senso.
Porém Straw não era mais o chefe de Sawers. Straw
havia me dito, naquele mesmo ano, que estava claro que
os norte-americanos não confiavam mais nele. Quando
surgiram informações sobre os planos dos EUA de usar as
bombas arrasa-bunkers no Irã, Straw teria dito que a ideia
era “completamente maluca”, tendo afirmado à BBC News
que “não havia nenhuma prova conclusiva”127. Um mês
depois, Blair exonerou Straw do cargo de secretário das
Relações Exteriores, substituindo-o por Margaret Beckett,
uma novata em política externa128. Soube que Straw foi
demitido em razão de diferenças entre ele e Blair na
adoção de certas políticas. Fui também levado a entender
que isso se deu por causa da solicitação dos norte-
americanos, mas quando conversamos sobre seus
detratores, Straw deixou claro que “não tinha sido Condi”
(referindo-se a Condoleezza Rice). Straw teria julgado a
política de Blair durante a guerra no Líbano como
“desastrosa”. No entanto, suas opiniões sobre o Irã, o
Líbano e a Resolução 1696 não mais interessavam a Blair,
e Margaret Beckett era novata demais no cargo para que
pudesse mostrar divergências.
O ministro das Relações Exteriores francês, Philippe
Douste-Blazy, um médico, também era novato em política
externa. Recebi informações de que ele não era levado a
sério pelo Quai d’Orsay, o ministério das Relações
Exteriores da França, e que a recíproca era verdadeira.
Além disso, os franceses estavam na fase de preparação
para as eleições presidenciais. As pessoas começaram a
falar em “duas Franças” – a primeira, liderada por Chirac e
seu conselheiro de Segurança Nacional, Maurice Gourdault-
Montagne; a segunda, por políticos em posição oposta em
política externa. Portanto, os franceses, adotando uma
postura pouco comum, não se mostravam tão coerentes
em relação à política externa quanto normalmente eram.
Coube aos alemães o empenho de buscar uma solução e
uma saída negociada com o Irã. Em encontros particulares
com a chanceler Angela Merkel e o ministro das Relações
Exteriores Frank-Walter Steinmeier, eles me pareceram
incisivos, compassivos e justos na abordagem da política
externa. Porém faltava-lhes o poder de influência
necessário para progredir sem depender da cooperação de
seus colegas europeus; pareciam satisfeitos simplesmente
por terem sido incluídos nas negociações.
Para mim, a verdadeira surpresa foi o fato de os russos e
os chineses, no Conselho de Segurança, terem concordado
em aprovar uma resolução baseada no Capítulo VII, apesar
de sua oposição de longa data a tal medida. Eles sabiam
que isso só geraria confrontos e complicaria todo o esforço
de buscar uma solução para o programa nuclear iraniano;
no entanto, aparentemente, seus próprios interesses
revelaram-se mais importantes do que essas
considerações.
A meu ver, a Resolução 1696 do Conselho de Segurança
não apenas foi contraproducente do ponto de vista da
adoção de políticas, como um uso equivocado da
autoridade do Conselho, segundo o Capítulo VII do Estatuto
da ONU. Foi assombrosa a diferença de tratamento dado à
Coreia do Norte, em comparação ao dado ao Irã. A Coreia
do Norte havia se retirado do TNP e feito ameaças
explícitas de desenvolver armas nucleares (e, de fato,
testaria sua primeira arma menos de três meses depois,
em outubro de 2006); no entanto, os norte-americanos se
mostraram dispostos a iniciar um diálogo direto com eles,
e Chris Hill parecia estar em Pyongyang dia sim, dia não,
de tanto que ia para lá. Em contraste, o Irã, apesar de
membro do TNP e de permanecer sob o acordo de
salvaguardas, foi penalizado por possíveis futuras
intenções de desenvolver armas nucleares. E os norte-
americanos ainda se recusaram a conversar com eles sem
estabelecer precondições.

Em 20 de agosto de 2006, eu ainda estava em minha casa


de veraneio quando Frank-Walter Steinmeier me telefonou,
dizendo que gostaria que eu me encontrasse com Peter
Castenfelt, o misterioso banqueiro sueco que certa vez
conversou comigo apresentando-se como consultor dos
norte-coreanos. Dessa vez, Castenfelt ocupava uma função
nova: consultor de Teerã. Viria acompanhado de um dos
assistentes de Larijani, Ali Monfared, chefe de políticas
externas do Conselho de Segurança Nacional do Irã. Eles
tinham muito interesse em me encontrar antes que o Irã
enviasse sua resposta formal à última proposta feita pelo
EU-3.
Em nosso encontro no Cairo, enfatizei a importância de
uma resposta afirmativa da parte do Irã, apesar de tudo o
que ocorrera. O país devia declarar sua disposição de não
continuar com a busca do processo de enriquecimento de
urânio em escala industrial, ou pelo menos prometer que
não daria início à produção de substâncias nucleares. A
meu ver, as questões sobre segurança regional eram
legítimas, considerando que se tratava de um assunto
crucial para eles e que uma atenção a isso poderia facilitar
um acordo sobre a suspensão do enriquecimento nuclear.
Conversamos durante duas horas; Castenfelt me disse,
posteriormente, que passou outras cinco horas
conversando com Monfared, na tentativa de colocar os
termos de nossa discussão em um texto adequadamente
redigido.
Os iranianos enviaram sua resposta, conforme o
combinado, em 22 de agosto. Aceitaram alguns dos meus
conselhos, mas não todos. O documento de 21 páginas era
extenso e complexo, mas incluía, em essência, uma série
de elementos positivos. A despeito da hostil declaração
pública anteriormente feita por Larijani, continuavam
abertos à proposta de suspensão, contanto que ela não
fosse uma precondição para as negociações. Estavam
dispostos a implementar o Protocolo Adicional de maneira
voluntária durante as negociações. E estavam prontos a
comprometer-se com o status de membro permanente no
TNP, a fim de dissipar temores de um cenário de “evasão”,
no estilo Coreia do Norte.
A reação ao documento foi cautelosa. Na visão do EU-3
era possível iniciar o diálogo; os russos se declararam
contra sanções adotadas no formato de um beco sem
saída; a China recomendou paciência. Todos eles
telefonaram, ou apareceram pessoalmente, como fizeram
Javier Solana e Kofi Annan, para saber minha opinião sobre
a resposta do Irã. No entanto, nenhum deles parecia
disposto a assumir uma postura de liderança.
Por fim, os Estados Unidos e os europeus incumbiram
Solana de encontrar-se com Larijani para tentar traçar o
melhor caminho a seguir. Porém, Larijani não se
entusiasmou com a ideia, pois, a seu ver, Solana não tinha
autoridade para tomar decisões. Ele se opunha
particularmente à ideia de uma reunião conjunta com
Solana e os representantes do EU-3; ainda guardava
mágoa de seu último encontro, em meados de julho, em
Bruxelas.
Sugeri a Solana que ele e Larijani se encontrassem a sós,
para tentar um acordo conjunto de quatro princípios que
servissem de base para as negociações. O primeiro deles:
o Irã suspenderia o processo de enriquecimento de urânio
enquanto durassem os diálogos. Em contrapartida, como
segundo princípio, os europeus e os norte-americanos
suspenderiam as sanções do Conselho de Segurança
durante o mesmo período. O terceiro princípio ratificaria o
direito do Irã, sob o TNP, de usar a energia nuclear para
fins pacíficos, deixando claro que a suspensão não era
permanente. O quarto princípio: uma declaração,
reiterando o respeito à independência política e à
soberania do Irã.
Se Solana e Larijani entrassem num acordo quanto a
esses princípios, os ministros das Relações Exteriores
poderiam, então, fazer deles a base para as negociações.
“Ambos os lados poderiam preservar sua imagem”,
expliquei a Solana. O Irã poderia dizer à opinião pública
que aceitou a suspensão apenas para o período em que
durassem as negociações. Os EUA poderiam alegar que, ao
comparecer à reunião, já sabiam do consentimento do Irã.
A participação de Condoleezza na reunião seria essencial
como incentivo ao Irã.
Repeti essas ideias para Larijani. Ele e Solana marcaram
uma data para o encontro, no início de setembro. Por
telefone, expus os princípios para Kofi Annan, que tinha
planos de visitar o Irã naquela mesma época129.
Teerã mostrava uma postura de comedimento. A AIEA
não constatou uma evolução significativa, quantitativa ou
qualitativa do programa de enriquecimento nuclear
iraniano, além das 164 centrífugas já instaladas no país.
Substâncias perigosas eram introduzidas apenas
ocasionalmente e por períodos curtos – o que não
constituía um modo de expandir o conhecimento sobre o
enriquecimento, caso este fosse o objetivo dos iranianos.
Não éramos capazes de dizer se o progresso lento se devia
a um problema técnico ou a uma escolha política. De
qualquer modo, o programa do Irã ainda estava numa
etapa inicial.
Em 5 de setembro, Condoleezza Rice me telefonou para
perguntar sobre o conjunto de princípios que lhe haviam
sido transmitidos pelo embaixador Schulte. “O Irã não
aceitará a suspensão como uma precondição”, expliquei a
ela. “Para eles, isso seria um suicídio político. Eles também
necessitam de algum tipo de declaração sobre a
segurança.”
“A situação me parece semelhante ao que fizemos na
Coreia do Norte”, respondeu Condoleezza, aparentemente
bastante disposta a considerar os quatro princípios, uma
postura bastante distinta da intransigência mostrada por
Washington em relação ao enriquecimento nuclear
iraniano. “Mas teremos problemas em dar a eles quaisquer
garantias de segurança”, reforçou ela.
“Então, faça dessa uma declaração de boas intenções”,
insisti. “Você pode apresentá-la de uma maneira
descompromissada.” Condoleezza concordou pelo menos
em ponderar sobre os princípios e depois me dar uma
resposta, mas acrescentou: “Você sabe que também não
podemos negociar com o Irã até que a suspensão entre em
vigor. Mas talvez os europeus – ou então os europeus, os
russos e os chineses, de maneira conjunta – possam
marcar uma reunião com os iranianos antes”. Após a
declaração dos princípios e a verificação da suspensão, os
EUA então se juntariam ao grupo.
Eu estava a caminho de Woodstock, em Oxfordshire,
Inglaterra, onde minha filha Laila se casaria, quando Peter
Castenfelt telefonou pedindo para me encontrar com
urgência. Na véspera do casamento, ele seguiu na direção
do hotel justamente no momento em que os membros da
minha família, vindos do Cairo, de Nova York e de outras
partes do mundo, estavam prestes a reunir-se para jantar.
A futura noiva não estava nada contente: “É melhor que
ele tenha mesmo algo importante a lhe dizer”, reclamou.
Castenfelt mais ouviu do que falou. Ele chegara de Teerã
na véspera e queria saber exatamente qual atitude podia
se esperar da parte dos iranianos. “Eles poderiam fazer
uma espécie de versão da suspensão, em vez da
suspensão completa?”, perguntou.
Respondi que isso não daria certo. Era preciso que ele
dissesse aos iranianos que o tempo deles estava se
esgotando. Se o acordo não vingasse, os EUA e o EU-3
pediriam ao Conselho de Segurança que propusesse novas
sanções ao Irã por não ter atendido às demandas da
Resolução 1696. “Mesmo que eles comecem com uma
série branda de sanções”, eu disse, “o Irã irá retaliá-las, e
isso desencadeará uma cadeia descontrolada de reações e
outras retaliações que podem levar a um confronto mais
sério e a nenhuma solução.” Com cerimônia, Castenfelt
assentiu com a cabeça, rabiscou algumas notas e foi
embora.
No dia seguinte, 8 de setembro, minha filha Laila casou-
se com Neil Pizey, um jovem britânico, no Blenheim Palace.
Durante algumas horas, o estresse de meu trabalho em
Viena me pareceu distante. Em meio à solenidade e à
beleza da cerimônia, lembrei-me do trecho de meu
discurso na entrega do Nobel que levou Laila às lágrimas:
“Tenho esperanças por causa daquilo que vejo em meus
filhos e em algumas pessoas da geração deles... Meu filho
e minha filha não se importam com aspectos como cor,
raça e nacionalidade. Não veem nenhuma diferença entre
seus amigos Noriko, Mafupo, Justin, Saulo e Hussam. Para
eles, essas pessoas são seres humanos e bons amigos”.
Na época, Laila reunia forças para me apresentar ao
homem que ela amava. Ela sabia que, de alguma maneira,
minha expectativa era que ela se casasse com um egípcio.
Mas, na condição de alguém que observava diariamente os
efeitos desastrosos da desconfiança cultural, abençoei-a
pela escolha feita.
Naquele mesmo dia, Solana e Larijani tiveram um
encontro de sete horas em Viena. Mais tarde Larijani me
relatou a conversa que tiveram, considerando o encontro
construtivo. A suspensão continuava sendo o principal
obstáculo. Larijani ainda tentava lidar com os temores
manifestados por certos setores de Teerã de que, se o Irã
suspendesse o enriquecimento de urânio, iria se deparar
com incontornáveis obstáculos para retomar suas
atividades de ciclo de combustível.
Sugeri como alternativa mesclar a discussão da
suspensão a outros assuntos, como o compromisso dos
seis países de fornecer reatores de energia e de respeitar
os direitos do Irã no TNP, de modo que a suspensão não
fosse o único item a ser discutido. “Talvez você não precise
fazer nenhuma declaração”, eu lhe disse. “Basta
interromper, de fato, as atividades de enriquecimento de
urânio, assim eu poderei reportar a eles a suspensão.”
Larijani balbuciou algo sobre a suspensão como parte de
um acordo de cavalheiros ou sobre estendê-la ao longo de
um determinado período. Ele se mostrava claramente
frustrado, tentando buscar algum modo criativo de chegar
a uma solução. Disse que havia conversado sobre grande
parte do assunto com Solana.
A certa altura, Larijani mostrou grande firmeza: qualquer
decisão futura de “certificar” o Irã como apto a retomar as
atividades de ciclo de combustível equivaleria apenas a
um julgamento técnico feito pela AIEA. Pela proposta dos
europeus, as partes em negociação também teriam
influência política para determinar se o Irã atingira o nível
de confiança necessário. Larijani não deixou dúvidas: isso
não era aceitável. No entanto, segundo o relato de Larijani,
o país estava disposto a discutir questões regionais, tais
como o Iraque, o Afeganistão e o Líbano – o que
claramente ia ao encontro do desejo dos europeus.
Na sequência, Solana pediu minha avaliação sobre o que
eu ouvira de Larijani. Washington, disse ele, não estava
satisfeita com os resultados dos diálogos. Embora fosse
uma pessoa tranquila e um diplomata experiente, Solana
encontrava-se em extrema dificuldade por desempenhar
um papel de linha de frente em nome do Irã perante o
P5+1: num contexto em que cada um dos países tentava
impor sua própria opinião e, particularmente, com os
norte-americanos em seus calcanhares, Solana buscou um
mínimo denominador comum, o que invariavelmente
significava um mandato não muito claro e poucos
elementos passíveis de negociação.
Sugeri que os quatro princípios propostos fossem
condensados em dois. Um princípio poderia abranger o
programa nuclear do Irã, incluindo seus direitos e
obrigações, e a questão da suspensão. O segundo seria um
compromisso para negociar questões econômicas, políticas
e de segurança, que poderia incluir uma declaração de
boas intenções a ser firmada pelos norte-americanos
perante o Irã, na qual dariam indicações de que não
pressionariam pela mudança do regime e tampouco
usariam a força. A conversa terminou com minha proposta
de colaborar da maneira que fosse possível e com a
promessa de Solana de que voltaria a me visitar dali a
alguns dias.
Em 19 de setembro, Condoleezza Rice e seus colegas do
EU-3, China e Rússia, encontraram-se para discutir os
próximos passos. Concordaram em dar ao Irã o prazo de
“início de outubro” para chegar a um acordo sobre como o
enriquecimento de urânio seria suspenso como parte das
negociações. Uma possibilidade apresentada foi um
calendário coordenado de encontros – de início, sem a
participação dos EUA, com a suspensão do enriquecimento
no Irã ao mesmo tempo que se suspenderia a ação do
Conselho de Segurança; na sequência, os EUA seriam
trazidos de volta à cena. Com certo cinismo, o Washington
Post noticiou que os europeus estavam dando aos
iranianos um prazo final pela quarta vez em um período de
quatro meses130. Isso era verdade, mas o constante
desrespeito aos prazos derivou da falta de disposição ou
da incapacidade de cada um dos lados de comprometer-se
de maneira significativa.
Na Conferência Geral da AIEA, no final de setembro, tive
um encontro tenso com Gholam Aghazadeh, vice-
presidente do Irã e chefe do Conselho de Energia Atômica,
o único dos protagonistas originais ainda em exercício. Ele
parecia ofendido, quase ressentido, e alegava que os
relatórios da agência sobre o Irã não refletiam os quatro
anos de esforços empreendidos por seu país buscando a
cooperação. Em minha resposta, um tanto quanto áspera,
observei que a cooperação do Irã havia sido inconsistente
e pouco confiável. Também fiz menção a várias questões
técnicas pendentes havia tempos, às quais o país ainda
não havia apresentado resposta.
Na sequência, Aghazadeh enviou-me uma carta um tanto
estranha, que dizia ter escrito na condição de amigo. Em
sua avaliação, a AIEA jamais teve a intenção de encerrar o
caso iraniano. Quanto mais o Irã cooperava, mais
perguntas os inspetores da agência lhe faziam. E, por
último, acrescentou que eu não era bem-visto pelas
lideranças iranianas. Disse que não esperava que eu
respondesse131. A frieza daquela carta não era um bom
sinal.
De fato, em um telefonema de Larijani, percebi seu tom
de desânimo. “As demais partes”, disse ele, “não
compreendem a situação interna do Irã.” Obviamente, ele
estava tendo dificuldades para negociar em casa – em
busca de uma forma de suspensão que o Irã pudesse
aceitar –, mas também para fazê-lo com Solana e seus
colegas. Os iranianos estavam dispostos a comprometer-se
a não ir além de uma ou duas cascatas que já estavam em
operação, mas era totalmente improvável que
concordassem com a suspensão completa.
Larijani me disse que o radicalismo começava a
predominar. Pelo seu tom de voz, compreendi que ele se
referia a Washington e a Teerã.

O prazo de início de outubro dado ao Irã para a suspensão


do enriquecimento nuclear chegou e nada aconteceu. A
incapacidade de ambos os lados de ceder em relação aos
pontos problemáticos do acordo implicava que o inevitável
passo seguinte seria uma nova Resolução do Conselho de
Segurança. Temi o ciclo de retaliações que certamente
seria desencadeado por um novo conjunto de sanções. No
fim de outubro, eu estava em Washington para um
encontro com Condoleezza Rice e Bob Joseph. O primeiro
teste nuclear da Coreia do Norte acabara de ocorrer, o que
talvez tenha atenuado as inclinações do Departamento de
Estado em relação ao impasse iraniano. Expressei minha
preocupação de que uma resolução do Conselho de
Segurança deveria evitar a provocação ou a humilhação do
Irã, além de, em grande medida, ser voltada à tentativa de
persuadir Teerã a retomar negociações com o P5+1.
Condoleezza pareceu concordar.
Apresentei uma nova possibilidade: “E se os EUA
começassem a dialogar diretamente com o Irã sobre
questões mais amenas como a segurança no Iraque?”. Ao
iniciar o diálogo sobre um assunto menos polêmico, talvez
as dificuldades na relação entre os principais protagonistas
pudessem ser atenuadas, facilitando assim o progresso em
relação à questão nuclear. Larijani e seus colegas estariam
dispostos a iniciar tais discussões, mas os Estados Unidos
teriam de enviar alguém com um nível mais alto do que
Zalmay Khalilzad, o embaixador dos EUA no Iraque. Na
avaliação dos iranianos, faltava a Khalilzad o necessário
poder de influência.
Condoleezza pareceu bastante receptiva ao início de tal
diálogo. “Você sabe”, eu lhe disse, “o Irã poderia
atrapalhar ainda mais as coisas no Oriente Médio.”
Ela franziu a testa. “Eles já estão se metendo ali.”
“Podem se meter ainda mais”, respondi.
Numa conversa ao telefone com Solana, ele concordou
que quaisquer sanções impostas ao Irã deveriam ser
“simbólicas”. No entanto, quando tive acesso ao projeto de
resolução por intermédio da missão francesa em Viena,
percebi que os termos eram demasiadamente rígidos.
Medidas como a proibição de viagens às autoridades
iranianas, o congelamento dos bens iranianos no exterior e
a suspensão ou a restrição da assistência técnica fornecida
pela AIEA não significariam nada além de provocação,
tornando-se contraproducentes. Do mesmo modo, tornar
compulsórias as “visitas de transparência” da AIEA teria
efeito contrário ao pretendido132. A última coisa de que
precisávamos era provocar o Irã para que acelerasse seu
programa de enriquecimento nuclear ou que deixasse o
TNP.
Serguei Kisliak, vice-ministro das Relações Exteriores da
Rússia e meu amigo há muitos anos, estivera
profundamente envolvido nas discussões do P5+1 e
partilhava da mesma opinião. O projeto de resolução,
segundo ele, não era “aceitável de modo algum” para a
Rússia. “Se os europeus pressionarem para aprovar essa
resolução, o jogo será completamente alterado.” Fiquei
com a impressão de que a Rússia começava a considerar a
possibilidade de exercer o seu veto.
O texto final da resolução – que foi aprovada por
unanimidade em 23 de dezembro – era consideravelmente
mais ameno. As sanções, em sua maioria, apenas
reforçavam velhas medidas: a proibição de fornecimento
ao Irã de tecnologia e substâncias relacionadas à área
nuclear, e o congelamento de bens de indivíduos e
empresas específicos que deram apoio ao programa de
enriquecimento nuclear iraniano.
A resposta do Irã também foi relativamente branda.
Javad Zarif, embaixador iraniano na ONU, declarou que
“uma nação está sendo punida por exercer seus direitos
inalienáveis”133. O ministério das Relações Exteriores do
Irã emitiu uma declaração qualificando a resolução de “ato
extrajudicial que extrapola os limites das
responsabilidades [do Conselho de Segurança] e contraria
ao Estatuto da ONU”. Ainda mais preocupantes foram os
sinais dados por Teerã de que não havia mais motivo para
postergar a expansão de seu programa de armas
nucleares.
Se ainda não tínhamos chegado a um ponto sem volta,
as apostas nesse sentido certamente haviam aumentado.

A pergunta que sempre me faziam em conversas de


bastidores – em encontros executivos, passageiros
sentados ao meu lado no avião ou repórteres, assim que
desligavam os gravadores – era: “Qual é, de fato, a sua
opinião? O Irã está tentando desenvolver um programa de
armas nucleares?”.
A minha avaliação é instintiva, mas inspirada pelo
contexto histórico. Em primeiro lugar, elementos que
atestam as aquisições nucleares e os programas de
pesquisas do Irã surgiram em meados da década de 1980,
no contexto da guerra contra o Iraque. Na época, o Irã
estava sendo gravemente ameaçado pelo Iraque; mais de
100 mil iranianos, incluindo civis, teriam sido vítimas das
armas químicas iraquianas. Diante dessa extrema
sensação de vulnerabilidade, é possível que o Irã tenha
planejado desenvolver as armas nucleares. Porém, em
algum momento – talvez depois do final da guerra, ou
então no meio da década de 1990, quando há registros de
mudanças repentinas feitas em alguns dos programas
nucleares do Irã, ou ainda depois de a agência ter dado
início às suas investigações –, é possível que o Irã tenha
decidido limitar seu programa ao desenvolvimento do ciclo
de combustível nuclear, permanecendo legalmente um
Estado não detentor de armas nucleares e membro do TNP.
Seja como for, acredito que o Irã não tenha revelado toda
a verdade sobre o início de seu programa nuclear. Deve ter
havido algum envolvimento militar na aquisição de
substâncias e nos experimentos. No entanto, essas
informações ainda não reveladas são, muito
provavelmente, insignificantes; não fosse assim, o
conjunto de provas seria mais volumoso e difícil de ser
escondido.
Minha impressão é que o Irã, durante suas negociações
com os europeus, talvez tenha desejado mostrar
transparência em relação às ambições com as armas no
passado, como parte de um conjunto de propostas
abrangente e um cenário preestabelecido, numa época em
que o foco do mundo estava centrado no futuro do país, e
não mais em seu passado. Porém, quando as negociações
fracassaram e o ambiente ganhou ares de confronto,
restou aos iranianos um dilema: qualquer revelação sobre
envolvimentos passados em um programa nuclear militar,
por menor ou mais longínquo que fosse, seria vista, em um
momento de confronto, como um indício de que o Irã não
merecia confiança. Entretanto, se eles se abstivessem de
apresentar uma prestação de contas completa, estariam
perpetuando o pecado original do ocultamento134.
Uma segunda pergunta que frequentemente me fazem é
por que o Irã manteve sua determinação de continuar com
o enriquecimento de urânio diante das sanções e pressões
vindas do Ocidente. A melhor resposta que posso oferecer
é que o programa nuclear iraniano, incluindo o
enriquecimento, tem representado os meios para a
obtenção de um fim. O Irã está determinado a ser
reconhecido como uma potência regional. Tal
reconhecimento, em seu ponto de vista, está intimamente
associado ao sucesso de uma grande negociação entre o
Irã e o Ocidente.
Ainda que a intenção desse país não seja o
desenvolvimento de armas nucleares, a obtenção bem-
sucedida do ciclo completo de combustível nuclear,
incluindo o enriquecimento de urânio, demonstra um sinal
de poder para os vizinhos do Irã e para o mundo,
proporcionando uma espécie de segurança contra ataques.
Cada uma das facções do Irã compreende que o programa
nuclear é, em si, um meio de intimidação. Há um claro
consenso, no plano doméstico, de que o Irã precisa manter
tal poder de intimidação. Em termos gerais, contudo, o
objetivo iraniano não é transformar-se em outra Coreia do
Norte – um detentor de armas nucleares, mas um pária na
comunidade internacional –, e sim em um Brasil ou um
Japão; um polo tecnológico capaz de desenvolver armas
nucleares no caso de haver alguma mudança dos ventos
políticos, ao mesmo tempo mantendo a condição de
Estado não detentor de armas nucleares no TNP.
O furor causado pelo programa nuclear do Irã não pode
ser compreendido sem que se faça referência à instável
situação da segurança do Oriente Médio e às ideologias
que travam uma feroz competição na região. O arsenal
nuclear de Israel é um problema que não pode ser
ignorado. É claro que, jamais tendo aderido ao TNP, Israel
não tem como violar esse acordo, mas tal separação em
nada contribui para amenizar a ira de seus vizinhos com a
visível assimetria de tratamento e desequilíbrio em termos
de segurança regional.
Enquanto isso, tendo em vista o fracasso no sentido de
chegar a uma solução sobre o programa nuclear de Teerã,
o Irã continuou a consolidar sua condição de país islâmico
mais poderoso da região. As guerras no Iraque e no
Afeganistão, o contínuo sofrimento dos palestinos e a
relutância do Ocidente à imposição de um cessar-fogo
durante a guerra no Líbano, em meados de 2006, entre
outros eventos, reforçaram a percepção de que existe um
preconceito ocidental contra os muçulmanos. Um dos
poucos países muçulmanos a enfrentar o Ocidente nesse
período, cada vez mais o Irã tem sido considerado por
muçulmanos de várias nacionalidades o único defensor dos
direitos que lhe foram usurpados135.
121 Após um encontro com Condoleezza, o ministro das Relações Exteriores da
Rússia, Serguei Lavrov, negou publicamente a existência de uma proposta
russa. Obviamente, sua intenção era manter a unidade das partes em
negociação; ele também não queria discordar dos Estados Unidos em público.

122 O (Parlamento) Majlis jamais ratificou o Protocolo Adicional do Irã, mas os


iranianos vinham implementando o acordo em caráter provisório.

123 Secretário-geral do Conselho da União Europeia e alto representante da UE


para Políticas Comuns de Relações Exteriores e de Segurança.

124 P5+1 (os 5 membros permanentes do Conselho de Segurança, mais a


Alemanha): à época, todos trabalhavam mais ou menos como uma unidade nas
negociações.

125 “Bolton Admits Lebanese Truce Block”, BBC News Online, 22/3/2007.

126 “U.S. Speeds Up Bomb Delivery for the Israelis”, David S. Cloud, New York
Times, 22/7/2006.

127 “UK Dismisses Talk of Iran Attack”, BBC News Online, 9/4/2004.

128 Beckett vinha atuando em assuntos de mudança climática, no cargo de


secretária de Estado para o Meio Ambiente, Alimentação e Assuntos Rurais. Ela
afirmou ao jornal Sunday Times, em 28 de junho, que quando Blair lhe disse que
a nomeara secretária de Relações Exteriores, sua resposta foi um palavrão.

129 Annan apoiava essa série de princípios, mas sua visita ao Irã não chegou a
acontecer.

130 Glenn Kessler, “Early October New Deadline for Iran”, Washington Post,
21/9/2006.

131 Não foi fácil decifrar quais eram as intenções dele. Minha suspeita era de
que Aghazadeh e seus colegas estavam se sentindo pressionados, pois nossos
inspetores insistiam para obter a “história completa”, que preencheria as
lacunas existentes sobre o programa nuclear do Irã. Talvez também temesse a
suspensão do enriquecimento de urânio; na condição de um dos criadores do
programa de enriquecimento iraniano, Aghazadeh não estava disposto a vê-lo
desaparecer.

132 “Visita de transparência” era a expressão usada nos casos em que o Irã
permitia, de modo voluntário, que a AIEA visitasse uma instalação em um local
onde a jurisdição da agência não era clara.

133 Sarah Dilorenzo, “Iran Rejects U.N. Resolution and Accuses Security Council
of Hypocrisy”, Associated Press, San Diego Tribune, 23/12/2006.

134 Segundo boatos, algumas autoridades iranianas admitiram que o país


nomeou, em 1987, um grupo especial para analisar o planejamento de uma
fábrica de armas nucleares. Esse grupo teria supostamente sido desmantelado
no início da década de 1990. O Irã estaria dividido internamente quanto a
revelar tais informações à AIEA. A agência ouviu insinuações semelhantes dos
serviços de inteligência. Mas nunca pudemos confirmar a veracidade de tais
boatos.

135 A Turquia também adotou uma série de posturas anti-Ocidente, sob a


liderança do primeiro-ministro Recep Tayyip Erdog˘an, o que lhe garantiu uma
enorme popularidade no mundo muçulmano. Como membro da OTAN, é
considerada uma aliada ocidental, mas há uma considerável polêmica sobre sua
candidatura a membro da União Europeia – o que tem sido apontado por
muçulmanos como uma prova do preconceito ocidental em relação a eles.
10 • Dois pesos e duas medidas

Diante de casos de verificação complexos, procurei sempre


distinguir entre três aspectos dos programas nucleares. O
primeiro é a aquisição do conhecimento, que nunca esteve
tão acessível. Com a globalização financeira, industrial,
educacional e, acima de tudo, no campo da informação,
tornou-se muito mais difícil negar aos países o
conhecimento básico dos processos e técnicas nucleares.
O segundo aspecto é a capacidade industrial, isto é, a
capacidade de enriquecer urânio ou de separar o plutônio
em níveis industriais. Isso dá aos países a possibilidade de
produzir o material nuclear necessário para uso nas armas
atômicas. O terceiro aspecto está ligado às intenções
futuras de um país, o que às vezes é praticamente
impossível de julgar.
A Secretaria-Geral da Agência Internacional de Energia
Atômica tem condições de determinar os níveis de
aquisição do conhecimento nuclear e a capacidade
industrial de um país, mas não podemos julgar as futuras
intenções, que geralmente se baseiam na avaliação de
risco do país e estão sujeitas a uma rápida mudança. A
decisão da Líbia de revelar a verdade, por exemplo, foi
resultado de uma reavaliação das suas condições de
segurança, que levaram, em um curto período de tempo, a
uma mudança em suas intenções. No Japão, tido como
possuidor de credenciais de não proliferação impecáveis,
autoridades solicitaram uma discussão sobre o assunto
depois dos testes realizados pela Coreia do Norte em 2006.
Em geral, é muito difícil para o público – ou, nesse caso,
para os funcionários do governo – entender ou aceitar o
papel peculiar da Agência Internacional de Energia
Atômica, tanto com seus limites quanto com suas
obrigações, porque não é comum uma instituição
internacional julgar governos soberanos. Nossa posição é
algo esquizofrênica: por um lado, os Estados-membros
pagam os salários da agência e estabelecem seus
objetivos e mandatos; por outro, somos responsáveis pelo
cumprimento dos compromissos internacionais acordados.
Embora os Estados-membros possam entender o papel da
AIEA em termos abstratos e quando aplicado a terceiros, é
inevitável encontrarmos alguma resistência quando o
alerta é feito diretamente a algum governo devido a uma
falha no cumprimento de suas obrigações.
Apesar das minhas tentativas de definir o âmbito da
jurisdição da AIEA de maneira consistente e de fazer uma
distinção clara entre o que a agência pode e o que não
pode julgar, a pressão para agirmos com parcialidade
geralmente era fortíssima. Quando chegávamos
rapidamente à nossa avaliação objetiva dos fatos ou
quando nos recusávamos a emprestar nossa voz à
interpretação que alguém fazia das intenções de um país,
éramos acusados de tomar partido, de ignorar evidências,
ou, ao contrário, de falar sob “uma perspectiva diferente”,
para além dos limites da nossa jurisdição.
Invariavelmente, essas acusações tinham conotações
políticas, motivadas, como sempre, pelas relações
favoráveis ou contrárias entre os países envolvidos. Esse
esforço para mobilizar a agência a tomar partido é
amplamente ilustrado pela evolução de cinco encontros
bastante incomuns – com Coreia do Sul, Egito, Israel, Índia
e Síria – e por algumas tentativas de lidar com o caso mais
extremo de dois pesos e duas medidas: a falta de avanço
no desarmamento nuclear.

No início de 2004, a Coreia do Sul começou a colocar em


prática seu Protocolo Adicional. Durante uma inspeção
realizada pouco tempo depois, a AIEA descobriu que foram
feitas experiências para separar quantidades muito
pequenas de plutônio. Investigações de acompanhamento
realizadas durante o verão relataram mais experiências,
agora envolvendo o enriquecimento de urânio. Essas
atividades não foram devidamente comunicadas à AIEA.
O governo da Coreia do Sul disse que não estava a par
de tais experiências – elas teriam sido realizadas por
cientistas do Instituto Coreano de Pesquisas em Energia
Atômica – e imediatamente tomou medidas corretivas,
demitindo pessoas e estabelecendo uma nova fiscalização.
No entanto, foi um grande constrangimento para o
governo, especialmente em virtude da tensão permanente
em relação ao programa nuclear da Coreia do Norte.
A AIEA trabalhou estreitamente com os sul-coreanos para
transmitir as notícias de maneira apropriada e evitar
exageros por parte da mídia. O governo coreano, incluindo
Ban Ki-Moon, ministro das Relações Exteriores na época,
gostou do modo como lidamos com a questão. Mas ela
ainda não estava encerrada: eu precisava informar a
diretoria da AIEA sobre a falha da Coreia do Sul em não
comunicar essas atividades nuclea-res à agência. O
problema era: se a diretoria considerasse a Coreia do Sul
em situação de “descumprimento”, ela seria obrigada a
reportar esse descumprimento ao Conselho de Segurança
da ONU?
A obrigatoriedade da diretoria da AIEA de comunicar
todos os casos de descumprimento foi tema de um debate
acirrado entre a Secretaria-Geral da Agência e o G-3, de
um lado, e os norte-americanos, de outro. Segundo a
Secretaria-Geral, nem toda transgressão ou violação do
acordo de salvaguardas de um país podia ser considerada
um “descumprimento” dos termos do Estatuto da Agência.
A diretoria da AIEA gozava de plena autoridade para
exercer seu julgamento, diferenciar os casos que
envolviam desvio de material nuclear ou revelavam
claramente um programa armamentista – como o Iraque
antes da Primeira Guerra do Golfo – e casos que não
mostravam nenhuma indicação de atividade permanente
não declarada, como o da Coreia do Sul, onde alguns
cientistas tinham realizado experiências de laboratório por
curiosidade científica sem reportá-las. Mas os norte-
americanos, especialmente no caso do Irã, insistiam em
que a diretoria era obrigada a informar ao Conselho de
Segurança todas as transgressões ou violações. Os
Estados Unidos tinham forçado o encaminhamento ao
Conselho desde o meu primeiro relatório sobre as
atividades não declaradas do Irã. A concordância explícita
dos europeus com a interpretação da Secretaria-Geral
tinha motivações políticas: eles queriam usar o
encaminhamento para o Conselho de Segurança como um
instrumento de ameaça contra o Irã.
Ora, no banco dos réus estava a Coreia do Sul, um dos
“mocinhos”, aliada próxima dos Estados Unidos. Os norte-
americanos ficaram em uma situação complicada. A
fidelidade à sua política de armamentos e o
encaminhamento da Coreia do Sul ao Conselho de
Segurança pelas violações relatadas iam contra seus
interesses. No mínimo porque esse tipo de ação poderia
complicar as negociações com os norte-coreanos, que
poderiam tentar usar o descumprimento da Coreia do Sul
como justificativa para suas próprias atividades nucleares.
Pelo que fiquei sabendo, a Coreia do Sul estava
trabalhando intensamente em Washington contra esse
encaminhamento.
Assim, em reunião da diretoria da AIEA realizada pouco
depois, os norte-americanos declararam que não havia
necessidade de encaminhar as violações cometidas pela
Coreia do Sul ao Conselho de Segurança. A ação foi
branda, a diretoria apenas “registrou” meu relatório. Todo
o incidente justificou e carimbou a correção da
interpretação da Secretaria-Geral sobre como e quando os
vários níveis de descumprimento deveriam ser informados
ao Conselho – julgamento que ia contra a posição inicial
dos Estados Unidos, favorável ao encaminhamento
automático e que teria implicações em outros casos,
principalmente o do Irã.

No Egito, a AIEA encontrou um caso semelhante de


experiências nucleares não declaradas. Como parte da
avaliação permanente dos dossiês nucleares de cada país,
a agência monitora publicações relevantes e outras fontes
abertas à imprensa que possam ter influência sobre as
atividades desse país. Em 2004, a agência encontrou
referências em várias publicações desse tipo indicando que
os cientistas egípcios tinham realizado diversas
experiências com material radioativo sem declarar.
A AIEA entrou em contato com a autoridade de energia
atômica egípcia e em seguida houve várias inspeções. As
suspeitas foram comprovadas – esforços esparsos ligados
à extração e à conversão do urânio de fato ocorreram,
além de irradiação e reprocessamento136 de alvos de
urânio e tório nos dois reatores de pesquisa egípcios. Em
alguns casos, o trabalho foi realizado na década de 1980.
O Egito não havia informado as atividades nem a pequena
quantidade de material nuclear envolvido. à AIEA.
O problema parecia ser falta de supervisão e controle,
além de desleixo e negligência. As instalações do Centro
de Pesquisa Nuclear de Inshas, onde ocorreram algumas
dessas experiências, estavam degradadas; tinham salas
fechadas havia quase uma década e equipamentos
avaliados em milhões de dólares jamais usados. Fui
informado de que os egípcios tentaram retardar as
inspeções da AIEA para ter tempo de limpar o lugar. O
chefe da Agência de Energia Atômica egípcia, Aly Islam
Metwally Aly, não sabia da existência de alguns dos
materiais e equipamentos nucleares em questão, e ficou
claramente constrangido. Não havia indicações de que o
país tivesse um programa de fabricação de armas
nucleares. No entanto, as autoridades egípcias não se
saíram muito bem.
A atualização que fiz em fevereiro de 2005 para a
diretoria da AIEA apontou uma série de falhas por parte do
Egito. Apesar da pequena quantidade de substâncias
nucleares usadas nas experiências e da publicação dos
resultados em revistas científicas, essas falhas no relato
foram motivo de preocupação e levaram à investigação.
Mais de um ano depois, outro episódio ocorreu em uma
reunião do partido governista, quando o filho de Mubarak,
Gamal, sugeriu que o Egito desenvolvesse um programa
de energia nuclear. O resultado foi um frenesi de
discussões e especulações. A mídia egípcia explorou a
questão: ao avançar em ciência e tecnologia nucleares,
declararam vários especialistas, o Egito estabeleceria a
paridade com o programa de armas nucleares de Israel. A
cobertura realizada pela mídia controlada pelo governo foi
uma mistura deprimente de ignorância, frustração e
manipulação.
Minha primeira discussão “oficial” sobre o assunto
ocorreu em janeiro de 2007, na Argélia, onde encontrei o
ministro de Eletricidade e Energia do Egito, Hassan Younes.
Até aquele momento, o governo egípcio não havia
procurado a AIEA em busca de acompanhamento e
conhecimentos técnicos, medida rotineira para qualquer
país que tenha a intenção de desenvolver um programa
atômico. Younes me disse que nenhuma decisão havia sido
tomada; o Egito ainda estava realizando “estudos”, com a
consultoria conjunta da companhia americana Bechtel
Corporation.
“Esse não é o caminho certo”, eu disse a ele. “O mínimo
que vocês deviam fazer era entrar em contato com a AIEA
para podermos ajudá-los a elaborar uma avaliação objetiva
da energia nacional e seus aspectos econômicos,
ambientais e relativos à segurança. Qualquer outro país
estaria fazendo isso.” Fui bastante franco, principalmente
por causa das questões de segurança. Eu o lembrei do
histórico egípcio de grandes acidentes de trem e de barco.
Seus antecedentes em matéria de segurança nuclear
também não eram nada tranquilizadores. A AIEA havia
informado ao país mais de vinte anos antes que sua
legislação de proteção radioativa não estava de acordo
com os padrões. Em vários incidentes, os egípcios se
feriram por exposição indevida a fontes de radiação, e o
governo ainda não havia atualizado a legislação de acordo
com as recomendações da agência137. A energia atômica,
eu disse a Younes, não podia ser tratada levianamente.
Antes de operar um reator nuclear, o Egito precisaria
construir a necessária infraestrutura jurídica de segurança
e de recursos humanos.
Younes disse que escreveria para pedir toda a assistência
da AIEA, e ele realmente o fez. Fiquei feliz que a agência
estivesse ajudando o país a abordar a questão de maneira
metódica e científica. Estudos prévios indicavam que seus
reatores de pesquisa eram extremamente subutilizados. Se
o objetivo era avançar nas questões de ciência e
tecnologia nucleares e introduzir a energia atômica como
parte do rol de energia do país, o ponto de partida deveria
ser um aproveitamento maior das instalações já
existentes. Insisti com Younes para que considerasse o
desenvolvimento da energia nuclear apenas em termos
das necessidades energéticas do país.
Tive a oportunidade de reforçar essa visão em um
encontro em Davos com Mohamed Rachid, ministro de
Comércio e Indústria, um dos funcionários mais
competentes do governo no Cairo. A questão mais
importante em relação à opção pela energia nuclear era
não apressar as coisas, eu disse a ele, mas a realização de
estudos de viabilidade adequados, incluindo uma análise
dos recursos petrolíferos e de gás vigentes, localização e
financiamento. “Mesmo que vocês decidam que precisam
de energia nuclear”, eu disse, “talvez seja preciso mais
uma década somente para construir a infraestrutura
necessária.” Rachid respondeu que transmitiria minhas
ideias ao presidente e, de fato, não muito tempo depois da
nossa conversa, o tom do discurso sobre o assunto ficou
mais equilibrado na mídia egípcia, inclusive nos veículos
controlados pelo Estado.
O desentendimento do Egito com a AIEA em relação ao
seu programa nuclear ressurgiu em 2009, quando a
agência tentou esclarecer a origem das partículas de
urânio altamente enriquecido encontradas em uma
amostra ambiental recolhida no Centro de Pesquisa
Nuclear de Inshas. Os egípcios deram a entender que
acreditavam que fosse fruto da contaminação de um
contêiner importado.
Uma declaração de Vilmos Cserveny, chefe de Relações
Exteriores da agência, sobre as partículas de urânio
altamente enriquecido, em uma conferência do TNP,
enfureceu o Cairo. Vilmos havia julgado, sem me consultar,
que a transparência exigia a comunicação da questão na
conferência. A informação seria publicada, de qualquer
maneira, no relatório de segurança da agência algumas
semanas depois. Vilmos queria evitar alimentar acusações
de que, pelo fato de eu ser egípcio, não estava agindo de
modo totalmente transparente, tema que já estava
circulando em alguns relatos da mídia.
Por meio do embaixador do Egito na AIEA, Ihab Fawzy, o
Cairo enviou uma carta acusando a agência de revelar
informações secretas e fazer uma declaração tanto técnica
quanto factualmente incorreta em um fórum político. Essa
ação só poderia ser interpretada, eles escreveram, “ou
como falta de competência profissional ou como má-fé”.
Outras reações do Cairo mostraram-se desarticuladas: o
porta-voz do ministro das Relações Exteriores disse à
imprensa que a questão das partículas de urânio
altamente enriquecido era “velha e equivocada”138. Mas,
no dia seguinte, a AEA egípcia disse que a agência e o
Egito estavam trabalhando para esclarecer a origem das
partículas.
Lidar com as questões nucleares egípcias era,
obviamente, algo delicado para mim: os egípcios
suspeitavam que eu estivesse sendo muito mais duro com
eles, talvez para reforçar a credibilidade da agência. Por
outro lado, a mídia ocidental especulava se eu não estaria
sendo muito brando com o Egito. Mas é claro que eu agia
como com qualquer outro país, lutando para tomar
decisões com a maior independência e objetividade
possíveis. Eu dizia aos meus colegas da agência para
aplicarem ao processo nuclear do Egito os mesmos
padrões aplicados a qualquer outro país.
Contudo, a carta do Cairo me irritou. A declaração da
agência era correta. Eu lembrei Fawzy da confusão que
tínhamos administrado alguns anos antes. “O Egito não
tinha sequer uma autoridade competente com
conhecimento amplo dos materiais e atividades nucleares
do país”, eu disse a ele. “A agência teve de se desviar do
seu caminho para ajudar vocês a colocarem a casa em
ordem.” Pedi a ele que retirasse a carta oficialmente. Caso
contrário, eu forneceria à diretoria da AIEA uma resposta
incluindo um relato detalhado da incompetência que
tivemos de enfrentar.
Fawzy ficou surpreso. Em um dia, recebemos uma carta
diferente, sem menções ofensivas. Respondemos
profissional e educadamente, explicando as bases factuais
e técnicas para a declaração da agência.
O foco do Egito na tecnologia nuclear era exemplo para
boa parte do Oriente Médio. Embora fosse verdade que o
país precisava de mais energia – especificamente, mais
eletricidade –, e apesar de o interesse egípcio na energia
nuclear datar dos anos 1980, o passo mais recente do país
para incorporá-la ao seu rol energético devia-se, até certo
ponto, em minha opinião, às tensões nucleares que se
desenrolavam na vizinhança. A apreensão sobre o
programa do Irã tinha começado a moldar o pensamento
da região; um número crescente de países do Oriente
Médio estava consultando a agência quanto à introdução
de energia nuclear. Paradoxalmente, o burburinho sobre o
programa nuclear do Irã havia inflamado o entusiasmo
pela tecnologia atômica. Ninguém queria ficar para trás. E,
sem dúvida, a maior fonte de frustração e ansiedade era a
assimetria do poder militar regional, simbolizada pelo
arsenal nuclear de Israel.

O caso de Israel e seu programa atômico era peculiar.


Como a Índia e o Paquistão, Israel era membro da AIEA,
mas não partidário do TNP, por isso a inspeção da agência
não tinha autoridade no país. Ainda assim, dadas as
tensões permanentes na região, os outros Estados-
membros da AIEA tinham solicitado oficialmente que eu
consultasse Israel sobre a aplicação de salvaguardas em
suas instalações nucleares e discutisse o potencial para o
estabelecimento de uma zona livre de armamentos no
Oriente Médio.
Eu deveria encontrar o primeiro-ministro Ariel Sharon em
julho de 2004. Pouco antes da minha viagem, recebi uma
ameaça através de um e-mail endereçado a Aida. Se eu
fosse a Israel, dizia a mensagem, Aida ficaria viúva139.
Investigamos a origem: a mensagem tinha vindo de algum
lugar em Israel ou nos territórios palestinos. Deixamos a
investigação a cargo dos israelenses e seguimos com
nossos planos.
O escritório de Sharon era impressionantemente modesto
comparado ao de outros chefes de Estado, especialmente
no Oriente Médio. Guardas de segurança com
submetralhadoras circulavam pelo local enquanto
aguardávamos na sala de espera, que dava para os
banheiros. O escritório de Sharon era pequeno, e duas
secretárias dividiam uma sala adjacente ainda menor.
Sentamo-nos diante de sua mesa, que também servia para
reuniões140. Ele se aproximou vestindo um terno
amarrotado; segurando minha mão com força, falou com
voz suave e forte sotaque israelense. Suas maneiras não
deixavam entrever a carreira militar implacável – na
verdade, ele falava com orgulho de sua vida como
fazendeiro.
Expus meus pontos de vista com franqueza. “A dissuasão
nuclear não irá funcionar para vocês a longo prazo”, eu
disse, constatando a inexorável propagação da tecnologia
atômica e os esforços de grupos terroristas sofisticados
para adquirir armas nucleares. Nenhum arsenal nuclear
seria capaz de convencer tais grupos.
Além disso, a recusa de Israel em ter uma conversa séria
com os países árabes a respeito da possibilidade de
trabalhar por um Oriente Médio sem armas nucleares e em
falar de seu conhecido mas não reconhecido arsenal
nuclear alimentava o cinismo, a raiva e o sentimento de
humilhação na região. Na verdade, a situação ameaçava a
legitimidade de toda a política de não proliferação nuclear
aos olhos do povo árabe. O argumento de Israel – de que,
devido à sua percepção de ameaças à sua existência não
poderia abrir mão das armas nucleares antes de alcançar a
paz definitiva com os mundos árabe e muçulmano – não
era capaz de convencê-los. Para árabes e muçulmanos, o
arsenal de Israel fortalecia ainda mais sua posição,
atrapalhando os direitos dos palestinos. Se o Irã deixasse o
TNP, provavelmente receberia um apoio esmagador do
mundo muçulmano, que veria um programa de armas
nucleares iranianas como forma de estabelecer paridade
com Israel.
Nossa conversa foi reveladora, e Sharon ouviu
atentamente. Citava aqui e ali os relatórios preparados por
seus assessores, e suas respostas eram ponderadas e bem
formuladas. Apesar de a conversa ter sido séria, foi
intercalada com humor autodepreciativo e pontuada por
interrupções irreverentes dos conselheiros de Sharon.
Ao final, Sharon tinha assumido o compromisso, no
contexto do processo de paz árabe-israelense, de falar a
respeito do estabelecimento de uma zona livre de armas
nucleares no Oriente Médio. Essa foi a primeira vez que
uma autoridade israelense fez uma declaração desse tipo.
Em ocasiões anteriores, os israelenses repetiram sua
opinião de que qualquer conversa sobre uma zona livre
ocorreria apenas depois de um amplo acordo de paz. Israel
havia endurecido sua posição nas discussões sobre armas
nucleares durante as discussões multilaterais iniciadas em
Madri em 1991. Por causa disso, o Egito e os outros países
árabes decidiram suspender todas as discussões
multilaterais, incluindo o controle de armas, o que acabou
levando ao colapso do processo de Madri. A mudança na
posição de Sharon, acredito, assinalava a conscientização
da radicalização e da ira crescentes no mundo árabe e da
probabilidade de que um grupo extremista adquirisse uma
arma nuclear, representando talvez um esforço para
mostrar alguma flexibilidade da parte de Israel. E, o mais
importante, foi motivada pelo medo crescente de um
programa nuclear iraniano.
No final do encontro, Sharon disse: “Soube que você
gosta de jazz”. Sorrindo, deu-me um pequeno presente,
um CD de um grupo israelense.
Alguns dos presentes à reunião tentaram minimizar
depois o que Sharon havia me dito. Garanti a eles que eu
tinha ouvido claramente e que informaria os fatos à
diretoria da AIEA.
Minha viagem suscitou críticas pesadas na mídia egípcia
e árabe porque minha agenda não incluíra a inspeção do
reator nuclear de Dimona, em Israel. Fui acusado de ter
sucumbido à influência norte-americana. Como a mídia
árabe bem sabia, a AIEA não tinha autoridade para realizar
essa inspeção. Ela devia saber que eu tinha ido a Israel por
solicitação específica dos Estados-membros da agência,
incluindo os Estados árabes. Esses fatos foram ignorados
pela mídia árabe, que enganou a opinião pública. De
qualquer maneira, para as pessoas comuns, as nuances
jurídicas foram ofuscadas pela realidade gritante do
arsenal nuclear israelense. Embora esse arsenal
provocasse grande apreensão nos vizinhos de Israel, a
comunidade internacional preferiu fechar os olhos; mas
tinha optado pela guerra contra o Iraque devido a
alegações sobre a existência de armas de destruição em
massa e estava impondo sanções ao Irã por tentar adquirir
tecnologia nuclear avançada. Para o mundo árabe
muçulmano, o tratamento dado ao programa nuclear
israelense constituía um exemplo flagrante do uso de dois
pesos e duas medidas, explicável apenas pela distinção
arbitrária entre “mocinhos” e “vilões”.

Durante alguns anos, argumentei que a comunidade


internacional deveria adotar uma nova abordagem para
lidar com Israel, Índia e Paquistão – os três países que
nunca adotaram o TNP – e tratá-los como parceiros
nucleares em vez de párias. Eles não tinham violado
nenhum acordo ao produzir energia nuclear. Para mim, o
mais importante era que nenhuma negociação sobre
controle de armas poderia avançar sem a participação de
todos os Estados que as possuíssem. Uma zona livre de
armas nucleares no Oriente Médio, por exemplo, não
poderia ser conquistada sem o envolvimento de Israel.
Em 2006, em consonância com essa abordagem
pragmática, endossei o acordo entre Índia e Estados
Unidos para que os dois países buscassem a cooperação
nuclear civil, ou seja, tecnologia de reator de energia
nuclear, práticas de segurança nucleares e outras
aplicações pacíficas. Por causa disso, atraí a ira de
autoridades de governos anteriores e de especialistas
norte-americanos que haviam trabalhado no campo do
controle de armas nucleares durante muitos anos, os quais
geralmente manifestavam seu apoio quando eu falava de
questões de desarmamento. Agora eles estavam
enraivecidos, acusando-me de “solapar o TNP” e de “ficar
ao lado da administração Bush”. Suas críticas foram
endossadas por funcionários de outros governos.
A história do programa de armas nucleares da Índia era
particular. J. N. Dixit, o falecido assessor de segurança
nacional da Índia, disse-me que no início da década de
1960, antes de ser finalizado o TNP, o secretário de Estado
norte-americano, Dean Rusk, encorajou o primeiro-ministro
Nehru a conduzir o desenvolvimento de armas nucleares
na Índia. Isso refletia o desejo dos Estados Unidos de que a
Índia equilibrasse a emergência da China como Estado
com armas nucleares.
Nehru se recusou a isso; a Índia continuaria defendendo
o desarmamento nuclear. Mas, consciente dos riscos à
segurança regional, também não aceitaria o TNP,
mantendo a opção pelas armas nucleares como
possibilidade futura.
Dez anos após a morte de Nehru, a Índia demonstrou,
com sua “explosão nuclear pacífica”, em 1974 – cujo
codinome era Smiling Buddha (“Buda Sorridente”) –, que
havia dominado a tecnologia. Mas ainda assim continuou a
exercer a moderação. Em 1988, o primeiro-ministro Rajiv
Gandhi submeteu à Assembleia Geral da ONU um “Plano
de ação anunciando uma ordem mundial não violenta e
livre de armas nucleares”. Só depois de décadas assistindo
ao crescimento da China em força e prestígio como Estado
detentor de armas nucleares, com toda a tecnologia
disponível, é que a Índia decidiu adotar a energia nuclear,
pois era tratada com negligência, sujeita a restrições nas
exportações de tecnologias sensíveis. Em 1998 foram
realizados vários testes com armas nucleares, e a Índia se
declarou Estado detentor.
O acordo iniciado pelo primeiro-ministro indiano
Manmohan Singh e o presidente norte-americano George
Bush em 2005 reconheceu uma realidade prática: a Índia
possuía armas nucleares havia muito tempo, e a recusa
dos Estados Unidos em cooperar com tecnologia nuclear
não teria nenhum efeito sobre a capacidade de Nova Delhi
de manter seu arsenal. Apenas dificultaria os esforços
indianos para expandir seu programa atômico, estratégia
para gerar energia e tirar 650 milhões de pessoas da
pobreza. Além disso, a estreita cooperação dos Estados
Unidos com a Índia em todas as outras áreas de
tecnologia, exceto a nuclear – política seguida por muitos
outros países –, não era coerente nem consistente.
Para mim, o acordo revelou uma situação de empate,
sendo boa tanto para o desenvolvimento quanto para o
controle de armas. Daria à Índia acesso à tecnologia de
energia nuclear ocidental e a questões de segurança – algo
bastante relevante considerando-se o ambicioso programa
de energia nuclear da própria Índia. Além disso, embora o
acordo não levasse a Índia para o TNP, aproximaria o país
do acordo de não proliferação nuclear por meio da
aceitação das salvaguardas da AIEA em suas instalações
civis e do compromisso de aderir às diretrizes de
exportação do Grupo de Fornecedores Nucleares (NSG)141.
Esse seria um passo importante para preencher as lacunas
no regime de controle de exportação, como demonstrou a
experiência da comunidade internacional com A. Q. Kahn e
seus colaboradores.
Em meu encontro com o presidente Bush, em março de
2004, eu havia mencionado as deficiências dos controles
de exportação como uma grande preocupação para a
proliferação nuclear. Insisti para que ele conversasse com
a Índia e com o Paquistão sobre esse assunto, a fim de
descobrir uma forma de trazê-los para o regime de
controle das exportações, no mínimo, mas principalmente
para torná-los parceiros nos esforços contra a proliferação.
Em junho de 2006, escrevi um artigo de opinião
publicado no Washington Post, intitulado “Repensando as
salvaguardas nucleares”, no qual expus minhas razões
para apoiar o acordo EUA-Índia. “Ou começamos a
encontrar soluções novas, criativas, ou o regime de
salvaguardas internacionais ficará obsoleto”, escrevi. O
artigo não agradou a todos. Uma “Carta aberta para
Mohamed ElBaradei”, publicada na Arms Control Today em
24 de julho, foi assinada por muitos dos meus amigos e
apoiadores, que discordavam profundamente da minha
posição. Eles sabiam que meu endosso ao acordo com a
Índia incentivaria o apoio no Congresso norte-americano,
onde muitos representantes estavam indecisos.
A administração Bush de fato fez pleno uso da minha
aprovação. Em várias ocasiões, Condoleezza Rice teve o
cuidado de salientar que “o acordo tem o apoio de
Mohamed ElBaradei, o ‘guardião’ do regime de não
proliferação nuclear”. Isso era extremamente irônico:
sempre que eu falava publicamente da importância do
desarmamento ou enfatizava a necessidade do
envolvimento direto dos Estados Unidos com o Irã, os
norte-americanos me castigavam, na imprensa e nos
círculos diplomáticos, por extrapolar minhas atribuições.
No entanto, nesse caso, estavam satisfeitos por eu ter
tomado uma posição política clara.
O governo indiano também ficou profundamente
agradecido. Quando fui a Nova Delhi a convite do primeiro-
ministro Singh, em outubro de 2007, o acordo estava
enfrentando forte oposição interna dos comunistas, que
faziam parte da coalizão governista. Também havia
oposição ideológica no interior da própria elite indiana
devido à sua antipatia natural pelos Estados Unidos e seu
medo de que o acordo pudesse comprometer a política de
independência da Índia.
O primeiro-ministro Singh quebrou o protocolo e
ofereceu-me um almoço em sua residência, uma bela casa
em estilo colonial decorada com simplicidade. Homem
extremamente educado, gentil e de fala mansa, Singh
tinha vivido os dez primeiros anos de sua vida em um
vilarejo privado de eletricidade, água encanada ou sistema
de esgoto. Ainda assim, estudou em Oxford e em
Cambridge, obtendo um doutorado em economia. No cargo
de ministro das Finanças da Índia na década de 1990, foi o
maior responsável pelas políticas que transformaram seu
país em uma economia de mercado livre e aberta, com
uma classe média de 300 milhões de pessoas, uma
próspera base de exportação de tecnologia e taxa de
crescimento estável em torno de 9%. E ainda continuava
humilde e tímido. Tínhamos pontos de vista praticamente
idênticos. De todos os líderes mundiais que conheci,
Manmohan Singh está entre aqueles que mais admiro.
Os últimos passos para implantar o acordo EUA-Índia
começaram na AIEA. Após inúmeras discussões, a diretoria
adotou o acordo de salvaguardas da Índia em 1o de agosto
de 2008, o mais amplo acordo desse tipo já feito com um
país não signatário do TNP. O Grupo de Fornecedores
Nucleares adotou o necessário levantamento das
restrições um mês depois, abrindo as portas para que o
país importasse tecnologia nuclear. Logo depois, o acordo
final foi assinado por Condoleezza Rice e pelo ministro das
Relações Exteriores da Índia, Pranab Mukherjee.
Os paquistaneses ficaram bastante contrariados com o
acordo EUA-Índia porque não lhes foi oferecida a mesma
oportunidade. Apesar de eu ter insistido para que
aguardassem um pouco e depois solicitassem um acordo
semelhante, o problema era que o histórico do Paquistão
não era lá muito bom; as atividades de A. Q. Khan e sua
rede ainda estavam vivas na lembrança de todos. Ainda
assim, também não ajudou o fato de Bush, em uma
viagem a Islamabad, ter feito uma declaração um tanto
contundente: ele afirmou que “o Paquistão e a Índia são
países diferentes com necessidades e histórias
diferentes”142.
Era importante que o Paquistão não recebesse um
tratamento diferente por ser um país muçulmano. “Seria
bom”, eu disse a Condoleezza Rice, “se você pudesse dizer
que, uma vez criadas as condições, os Estados Unidos
também poderiam considerar um acordo semelhante com
o Paquistão.” Salientei que seria um gesto positivo, mesmo
sem um acordo em vigor, oferecer assistência à segurança
nuclear para melhorar as condições do velho reator
paquistanês em Karachi.
Anos antes, os Estados Unidos haviam desperdiçado uma
oportunidade de melhorar a segurança do reator de
Karachi. A Bélgica estava prestes a fornecer o
equipamento necessário para o Paquistão em 1999, depois
que a IAGA determinou que esse material era essencial à
segurança do reator e que escrevi ao primeiro-ministro
belga apoiando esse esforço. A oferta da Bélgica foi
frustrada por Washington, e eu recebi um telefonema
irritado do meu amigo Norm Wulf, representante especial
dos Estados Unidos para assuntos de não proliferação
nuclear. A segurança nuclear não devia ser politizada,
enfatizei a ele; um reator sem condições de segurança
poderia ter consequências desastrosas para todo o mundo.
Wulf respondeu que o Paquistão poderia fechar o reator
caso não fosse seguro.
Essa não era uma resposta a ser levada a sério porque o
Paquistão precisava muito da energia. Em vez de fechá-lo,
eles fizeram o que podiam para consertá-lo eles mesmos.
O resultado foi uma situação de segurança nem perto do
ideal, longe do interesse comum. Os Estados Unidos, na
verdade, preferiram dar um tiro no próprio pé só para
contrariá-los. Agora surgia a oportunidade de começar
uma interação com o Paquistão, oferecendo a eles não o
equivalente ao acordo com a Índia, coisa que ninguém
estava preparado para fazer, mas algo mais limitado, com
benefícios em termos de segurança ao mesmo tempo que
começaria a aproximar os paquistaneses do regime de não
proliferação nuclear.

Um dos exemplos mais estranhos e surpreendentes da


hipocrisia nuclear, multilateral e multifacetada, certamente
foi o bombardeio de Israel contra Dair Alzour na Síria, em
setembro de 2007, e as consequências desse ataque.
Quase que imediatamente surgiram especulações de que o
local abrigava instalações nucleares. A Síria negou as
acusações. Israel e os Estados Unidos ficaram oficialmente
em silêncio, apesar de haver funcionários norte-
americanos falando anonimamente a respeito do assunto
na mídia. Enfatizei que qualquer país com informações
indicando que as instalações bombardeadas eram
nucleares tinha a obrigação legal de informar a AIEA. Mas
ninguém se manifestou. Nas seis semanas que se
seguiram ao bombardeio – período mais crucial em termos
de verificação do interior das instalações –, não
conseguimos obter nenhuma imagem de alta resolução
dos satélites comerciais.
Em 28 de outubro, em Nova York, dei uma entrevista a
Wolf Blitzer, no programa Late Edition, da CNN. Em
resposta à pergunta sobre se as instalações da Síria eram
de um reator nuclear, eu disse que não tínhamos visto
nenhuma evidência que nos permitisse tirar tal conclusão.
Mas fui claro em um ponto: que “bombardear primeiro e
perguntar depois”, como Israel havia feito, era sabotar
descaradamente o sistema143. Somente a AIEA, salientei,
tinha condições de verificar acusações de atividade
nuclear clandestina. Em outra entrevista, dois dias depois,
para Charlie Rose, afirmei que o ataque de Israel ao reator
iraquiano de Osirak em 1981 tinha servido apenas como
motivação para acelerar o programa nuclear clandestino
de Saddam Hussein144.
É óbvio que Israel não gostou das críticas. O que veio a
seguir foi uma série de ataques das autoridades
israelenses a mim. O primeiro-ministro adjunto, Shaul
Mofaz, disse que eu deveria ser demitido: “As políticas
seguidas por ElBaradei colocam em risco a paz mundial.
Sua atitude irresponsável ao enfiar a cabeça na areia
diante do programa nuclear do Irã deveria levar ao seu
impeachment”145. O franco e radical Avigdor Lieberman,
na época ministro de Negócios Estratégicos146, disse que
eu era parte do problema: “Em vez de criticar o Irã, ele
acha certo criticar Israel”147. O ministro adjunto das
Relações Exteriores, Majalli Whbee, também exigiu minha
saída, acusando-me de “negligência criminosa”148. O alvo
dessas críticas exacerbadas era minha forma de lidar com
o histórico nuclear do Irã, que não atendia aos objetivos de
sua política de exagerar a ameaça iraniana, mas estava
claro que minha condenação do bombardeio de Dair Alzour
havia tocado na ferida.
John Bolton apoiou abertamente a ação de Israel. Em
uma entrevista ao Late Edition da CNN, Wolf Blitzer
perguntou a Bolton o que ele achava da minha declaração
pública de que Israel deveria ter mostrado suas
“evidências” para a AIEA. “Se você acredita nisso”, Bolton
retrucou, “também deve acreditar em Papai Noel. A ideia
de que Israel ou os Estados Unidos colocariam sua
segurança nacional nas mãos da AIEA é simplesmente
ilusória.”149 Foi terrível ouvir o embaixador dos Estados
Unidos na ONU expressar esse sentimento.
Não obstante os ataques, a agência continuou
concentrada nos seus esforços para chegar ao cerne da
questão. Encontrei-me com Ibrahim Othman, chefe da
Comissão de Energia Nuclear da Síria. Eu disse a ele que,
se as suas negativas fossem concretas, os sírios deveriam
fazer uma declaração pública categórica nesse sentido,
além de convidar a equipe da agência para visitar o local
apenas para colocar um fim nas especulações nucleares.
Othman disse que levaria minha proposta às autoridades
sírias. Eu também afirmei que achava estranho que
nenhum país árabe tivesse feito uma declaração
denunciando os ataques de Israel contra a Síria.
Cerca de seis meses após o bombardeio, durante uma
visita a Sarajevo, recebi um telefonema de John Rood,
subsecretário de Controle de Armamento e Segurança
Internacional dos Estados Unidos. Ele me disse que havia
sido marcada para o dia seguinte uma sessão informativa
para o Congresso norte-americano. O alvo que Israel
destruíra em Dair Alzour era, de acordo com Rood, um
velho reator nuclear norte-coreano. Israel havia alertado os
Estados Unidos quanto à presença do reator em 2006; os
norte-americanos tinham chegado à mesma conclusão
quanto às instalações no início de 2007. Rood acrescentou
que os Estados Unidos planejavam entregar um relatório
de inteligência aos funcionários de salvaguardas da AIEA e
me ofereceu o mesmo, em Sarajevo ou na minha volta a
Viena.
A informação de Rood chegara tarde demais. Eu disse a
ele que “os Estados Unidos tinham a obrigação de
compartilhar essa informação com a agência, e não
esperar até que Israel bombardeasse as instalações”.
Enfatizei que, no mínimo, os norte-americanos poderiam
nos ter informado imediatamente após o bombardeio.
Deixando-nos no escuro durante um ano antes do
bombardeio e seis meses após, eles estavam sabotando o
regime de não proliferação. “Vocês estão nos fazendo
passar por idiotas”, concluí. Rood tinha pouco a dizer em
sua defesa. Ele sustentou que os Estados Unidos teriam
preferido uma abordagem diplomática, não dando a Israel
sinal verde para bombardear as instalações.
De volta a Viena, fiz uma declaração à imprensa
deplorando o fato de a informação não ter sido
comunicada à AIEA em tempo hábil e condenando o uso da
força unilateral por Israel. Nem Israel nem os Estados
Unidos responderam à minha declaração. Parecia que não
queriam se envolver comigo em um debate público; de
qualquer forma, eles teriam perdido. A ação de Israel
representou uma violação de todas as normas da
legislação internacional sobre o uso da força. Também
mostrou total desconsideração pelo regime de não
proliferação. No entanto, pouquíssimos países – e nem
uma única nação ocidental – denunciaram o ocorrido.
Sem dúvida, Israel não queria o desenvolvimento de um
reator em nenhum dos países árabes que considerava
hostis. Presumindo que em Dair Alzour havia um reator,
deve ter concluído que a verificação da agência colocaria a
Síria sob as salvaguardas da AIEA, o que dificultaria um
bombardeio a posteriori. A questão central, é claro, era a
desconfiança por parte de Israel e do Ocidente quanto às
intenções futuras desses países.
Como próximo passo, pedi a Othman que viesse a Viena
para discutir modalidades de verificação das reivindicações
norte-americanas. No início do encontro, quando
estávamos sozinhos, enfatizei o quanto era importante a
Síria mostrar o máximo de transparência e permitir que
fôssemos a Dair Alzour e a outros locais identificados por
satélites que se acreditava estarem relacionados ao local
bombardeado. Ele insistiu em que não havia programa
nuclear algum – aquelas instalações tinham sido usadas
para fabricar mísseis –, mas estavam prontos a receber
uma visita dos inspetores da agência.
Depois se juntaram a nós Olli Heinonen e um colega de
Othman do Ministério das Relações Exteriores. Os sírios
exigiam esclarecimentos sobre nossos motivos para
desejarmos ver os outros locais além das instalações
destruídas em Dair Alzour. Respondemos francamente:
tínhamos visto fotos de satélite mostrando o equipamento
do local destruído sendo transferido, por isso era
importante verificar a natureza de três outros locais.
No início de junho ocorreu uma nova reunião da diretoria
da AIEA. Em minha declaração de abertura, disse que era
“profundamente lamentável” que se tivesse recorrido ao
uso da força unilateral antes de a agência haver tido a
oportunidade de constatar os fatos. Enfatizei que era dever
da Síria informar o planejamento e a construção de
qualquer instalação nuclear à agência. Fiquei consternado
ao constatar que poucos países tinham algo a acrescentar
em relação ao ataque de Israel contra a Síria. Durante a
maior parte do tempo, Austrália, Canadá, União Europeia,
Japão e, é claro, Estados Unidos se concentraram na
necessidade de cooperação por parte da Síria. O único país
europeu que se referiu ao bombardeio israelense foi a
Suíça. Alguns países não alinhados também se
pronunciaram. Mas até mesmo alguns dos países árabes
com participação na diretoria da AIEA, como o Egito,
permaneceram em silêncio.
Em um encontro com os 27 embaixadores da União
Europeia, eu lhes revelei que eles haviam acabado com
sua credibilidade. “Quando você não é capaz de falar sobre
a violação de um dos princípios mais básicos da Carta das
Nações Unidas”, eu disse, “sua autoridade moral para falar
sobre democracia, direitos humanos e outros temas
também fica comprometida.” Muitos dos embaixadores
concordaram, a portas fechadas. Mas o modus operandi da
União Europeia em questões relativas à proliferação
nuclear era que a França e a Inglaterra monopolizavam a
emissão de “opiniões conjuntas”, para irritação da maioria.
A própria Síria apresentou uma declaração fraca e
defensiva, o que também era estranho. Mais estranho
ainda era que, segundo o embaixador iraniano, a Síria
havia pedido a ele que não falasse sobre o assunto. Eu já
suspeitava que estivesse acontecendo alguma coisa nos
bastidores para a aproximação da Síria com os Estados
Unidos. A postura da Síria reforçou minha ideia. Eles não
queriam entornar o caldo.
Uma agência de inteligência trouxe imagens de satélite
para a AIEA, supostamente de Dair Alzour, que, segundo
ela, haviam sido tiradas ao longo de dois anos. As imagens
ajudaram a esclarecer o projeto do edifício que
supostamente havia abrigado o reator. Outra agência de
inteligência forneceu mais fotos, supostamente tiradas nas
vizinhanças do edifício, incluindo seu interior. Um indivíduo
que aparecia nas fotos era um norte-coreano que
reconhecemos das nossas negociações com Pyongyang.
Isso deu à equipe de inspeção da AIEA mais subsídios para
pressionar a Síria. Mas o país se recusou a cooperar e a
discutir quaisquer imagens de satélite ou fotos,
simplesmente sustentando que o edifício fazia parte de
instalações militares para a fabricação de mísseis e que as
imagens eram todas forjadas.
Em 2008, Olli e sua equipe de inspetores foi a Dair
Alzour. As instalações estavam completamente arrasadas,
e novas instalações haviam sido construídas. Os sírios
mantinham a versão de que não havia nada de nuclear nas
instalações. Os inspetores colheram amostras ambientais,
e a agência fechou um acordo com as autoridades sírias
sobre um processo de investigação a respeito das
acusações contra Dair Alzour.
Com a evidente intenção de retardar o processo, a Síria
solicitou que as perguntas adicionais ou solicitações para
inspeção fossem feitas por escrito. Quando o embaixador
dos Estados Unidos na AIEA, Greg Schulte, veio me ver em
julho, referiu-se às instalações destruídas como “um fato
isolado”. Para mim, era óbvio que os norte-americanos
também não tinham pressa em ver um relatório sobre o
programa nuclear sírio, aparentemente por causa de
conversas indiretas que vinham ocorrendo entre os dois
países. “Vocês podem ter sua própria agenda política”, eu
disse a Schulte, “mas a agenda da agência é bastante
diferente, e levamos a sério nossas responsabilidades.”
David Miliband, ministro britânico das Relações
Exteriores, também parecia não ter interesse em ver
avanços na questão síria. Quando o coloquei a par das
ações da agência, ele respondeu: “Ah, então você realizou
uma investigação completa?”. Não foi esse o caso; encarei
isso como forma de mostrar que ele preferiria ver o fim dos
questionamentos. Eu não tinha certeza do motivo, mas
minha intuição me dizia que, mesmo que Dair Alzour
tivesse sido um reator em construção, a ameaça fora
eliminada e o Ocidente estava ansioso para trazer a Síria,
aliada do Irã, para o seu lado. Essa impressão sobre
considerações políticas de bastidores foi reforçada um ano
depois: quando a Síria não conseguiu acomodar vários
pedidos feitos pelo Ocidente, a Secretaria-Geral da AIEA foi
instada a pressionar a Síria solicitando uma inspeção
especial, embora não houvesse base legal para tal.
O resultado dos exames feitos com as amostras
ambientais recolhidas pela agência em Dair Alzour indicou
a presença de urânio, que, embora não enriquecido, havia
passado por algum processamento químico. Nos meses
seguintes, os sírios deram várias explicações para isso,
começando com a alegação de que o material devia ter
resíduos de urânio da munição usada por Israel no
bombardeio. Nenhuma das explicações fazia sentido ou
podia ser confirmada. Israel, por sua vez, se recusou a
fornecer à agência qualquer informação quanto aos
motivos que levaram ao bombardeio.
A Síria também se recusou a permitir que a AIEA visitasse
os outros três locais supostamente ligados às instalações
destruídas. Eram instalações militares, não nucleares, por
isso a agência não teria motivos para visitá-los. Eles
também se recusaram a nos mostrar o local para onde
haviam sido levados os escombros das instalações
destruídas.
Durante a reunião da diretoria da AIEA, realizada em
junho de 2009, esse beco sem saída – o resultado da
sonegação de informações à agência, e depois a tarefa
impossível de verificar o que não existia mais – levou a um
confronto particularmente direto. Mais uma vez, insisti com
Israel para que nos mostrasse as informações que haviam
levado ao uso da força contra as instalações sírias de Dair
Alzour. O embaixador israelense na AIEA, Israel Michaeli,
reclamou que eu estava fazendo exigências
“redundantes”. Segundo ele, Israel já tinha dado as
respostas importantes, negando que os resíduos de urânio
pudessem ter se originado da munição israelense150. Ao
pressionar Israel para que fornecesse mais evidências do
programa nuclear da Síria, Michaeli declarou que eu estava
mostrando uma “posição política tendenciosa”. Ele
também deu a entender que, por não termos exigido uma
inspeção especial na Síria, a agência não estava usando
todos os instrumentos de que dispunha.
Michaeli estava errado, e sabia disso; e eu estava certo
de que ele agia de acordo com as instruções que recebera
de sua capital. Respondi a ele com uma franqueza que
chocou alguns dos delegados. Disse que sua postura era
“completamente distorcida”. Ao recusar-se a fornecer as
evidências necessárias, Israel estava obstruindo o
processo investigativo da AIEA. Fiz as seguintes
observações olhando-o diretamente nos olhos:

O representante de Israel... está dizendo que a atitude da Síria deveria ser


deplorada e condenada. Mas Israel, com essa postura, será reprovado por
não permitir que façamos o que deveríamos fazer de acordo com a
legislação internacional... Vocês dizem que não estamos usando os
instrumentos que temos. Israel nem sequer participa do regime [de não
proliferação nuclear] para nos dizer de que instrumentos dispomos. [Seu
país] não pode ficar em cima do muro, fazendo uso do sistema sem ter
responsabilidade... Apreciaríamos se parasse de nos dizer como podemos
fazer nosso trabalho.
Em relação à acusação de que eu estava sendo
tendencioso, eu respondi que não era digna de resposta.
Estávamos empacados. Apesar das minhas solicitações
constantes – incluindo aquelas tornadas públicas pelos
relatórios da diretoria da AIEA –, Israel e os Estados Unidos
se recusaram a nos fornecer evidências concretas que
embasassem sua conclusão de que as instalações de Dair
Alzour eram nucleares. Os sírios continuaram a alegar que
elas não eram nucleares, mas se recusavam a fornecer
informações adicionais ou acesso para provar sua tese.
Algum tempo depois, enviei um apelo por meio de um
executivo sírio com acesso direto ao presidente da Síria,
Bashar al-Assad. Insisti na cooperação com a AIEA,
deixando claro que a questão continuaria a assombrar a
Síria até que fosse esclarecida. Recebi uma resposta
dizendo que Al-Assad apreciava meus esforços;
curiosamente, não havia negativas quanto ao fato de Dair
Alzour ter abrigado um reator nuclear.
A hipocrisia não poderia ser mais evidente: para alguns
Estados-membros, as preocupações com a proliferação
nuclear eram instrumentos a ser usados, exagerados ou
ignorados de acordos com fins geopolíticos, dependendo
do relacionamento com o país que estava no banco dos
réus.

O problema do regime de não proliferação nuclear é o fato


de ser um sistema de dois pesos e duas medidas: a
assimetria inerente, ou desigualdade, entre os que têm e
os que não têm energia nuclear, exacerbada pela contínua
confiança dos países com armas nucleares nessas armas e
o consequente não avanço no desarmamento nuclear. Pior,
em vez de avançar no seu compromisso com o
desarmamento, a maioria modernizou seus arsenais e
continua a desenvolver novos tipos de arma. Para os
países que não têm essas armas e não estão sob a
proteção de um guarda-chuva nuclear como a OTAN, isso
reforça a percepção de que a aquisição de armas nucleares
é um caminho seguro para obter poder e prestígio, uma
apólice contra o ataque.
O Conselho de Segurança da ONU também é parte do
problema, devido ao poder de veto exercido pelo G5, os
cinco países com armas nucleares. O Conselho de
Segurança é responsável pela manutenção da paz e da
segurança mundiais, devendo também reagir às ameaças
contra essa paz e segurança. Certamente, algumas
violações do acordo de salvaguardas da AIEA podem não
chegar ao nível de exigir encaminhamento ao Conselho. No
entanto, nessas raras ocasiões em que os
encaminhamentos são feitos, o Conselho deveria reagir
adequadamente, sendo ágil, firme, enérgico quando
necessário e, acima de tudo, consistente em suas ações.
Por esses padrões, o registro de reações coerentes do
Conselho de Segurança a ameaças nucleares tem sido
péssimo. Em 1981, depois que Israel destruiu o reator
iraquiano de Osirak, o Conselho de Segurança condenou o
bombardeio e exigiu que Israel colocasse suas instalações
nucleares sob as salvaguardas da AIEA. Israel ignorou a
resolução e o Conselho de Segurança não tomou nenhuma
atitude. Em 1998, após os testes da Índia e do Paquistão
com armas nucleares, o Conselho de Segurança os
condenou e solicitou que os dois países interrompessem o
desenvolvimento de armas nucleares e seus sistemas de
entrega. Quando essas resoluções foram ignoradas, o
Conselho mais uma vez recuou. No caso da Coreia do
Norte, quando a AIEA informou o descumprimento, em
1993, e depois, em 2003, quando o país também se retirou
do TNP, o Conselho não tomou nenhuma medida
significativa; em vez disso, permitiu que os Estados Unidos
tomassem a iniciativa e firmassem um acordo bilateral
com a Coreia, assinado em 1994, o Agreed Framework; no
segundo caso, transferiu para a China a liderança na
condução das Six-Party Talks [“Negociações a seis”].
Por outro lado, em 1990, o Conselho de Segurança impôs
ao Iraque sanções que levaram a violações flagrantes dos
direitos humanos para milhões de civis iraquianos,
culminando em uma guerra em 2003 sem o consentimento
do Conselho. Para piorar, o Conselho continuou a manter
certas sanções contra o Iraque durante anos após a
invasão de 2003, muito depois de ter ficado claro para
todo mundo que o país não tinha armas de destruição em
massa (ADM). O Conselho foi incapaz de chegar a um
acordo sobre como encerrar a UNMOVIC (Comissão das
Nações Unidas de Vigilância, Verificação e Inspeção) e a
atividade da AIEA no Iraque, fechando a questão das ADM.
E, sobrecarregado pela devastação de uma guerra que
nunca deveria ter ocorrido, o Iraque foi obrigado a
financiar a UNMOVIC por mais de quatro anos, enquanto
ela ficou parada em Nova York.
Enquanto o G5 exacerbava a insegurança nuclear com
suas ações no Conselho de Segurança, seu próprio
fracasso para se desarmar contribuía diretamente para a
proliferação em si. No entanto, o G5 e os Estados Unidos,
em particular, se recusavam a reconhecer a ligação entre
seu não avanço no desarmamento e a crescente
preocupação com a proliferação.
Em abril de 2004, foi submetida ao Congresso dos EUA
uma proposta conjunta dos secretários de Estado, Energia
e Defesa para o desenvolvimento de “pequenas” armas
nucleares. O argumento era essencialmente que essas
armas seriam encaradas como de utilização mais rápida.
Se os países inimigos acreditassem que os Estados Unidos
poderiam realmente usar essas miniarmas nucleares, o
efeito dissuasivo seria mais forte. Não pareceu ocorrer a
eles que a ideia de uma arma nuclear “mais usável” era
diretamente contrária aos princípios do regime do TNP e
apenas deixaria outros países tentados a adquirir essas
armas para sua própria defesa.
Os Estados Unidos também continuaram a desenvolver
seu escudo de defesa antimísseis, que tanto a Rússia
quanto a China consideravam uma ameaça. Os EUA
alegavam que o escudo serviria para protegê-los de
mísseis de “nações trapaceiras”, numa referência à Coreia
do Norte e ao Irã. Muitos especialistas mostraram que esse
argumento não fazia sentido. O ataque de um país
pequeno – ou de um grupo de terroristas – provavelmente
viria na forma de uma bomba contrabandeada por um
porto ou fronteira, e não na de um míssil com o nome do
país. O escudo antimísseis seria inútil num caso desses.
Eu falava frequentemente dessas questões em discursos
e entrevistas para a imprensa e, com a mesma frequência,
os norte-americanos reclamavam que eu estava
extrapolando os limites da minha posição, dizendo “coisas
sem sentido”. Eu respondia que fazia todo o sentido, que
era minha responsabilidade falar de questões que
tivessem impacto direto no regime de não proliferação de
armas nucleares, responsabilidade que, por ter sido
agraciado pelo Nobel, sentia de maneira ainda mais viva.
Quando se tratava de informar casos de verificação, meu
papel era apresentar os fatos. Mas eu havia testemunhado
o descrédito e a manipulação do trabalho da AIEA durante
os preparativos para a Guerra do Iraque e não permitiria
que isso acontecesse de novo. Eu sentia que era
importante deixar o mínimo de espaço possível para
manipulação ou exagero da mídia. E era minha obrigação
ajudar os Estados-membros a encontrar soluções pacíficas
para as tensões nucleares, contribuindo com minha
perspectiva e apoiando vigorosamente a diplomacia
nuclear. É claro que eu sabia que os próprios países
tomavam as decisões no final.
No início de 2007, o governo britânico anunciou a
decisão de atualizar sua força de dissuasão construindo
novos submarinos nucleares com mísseis balísticos Trident,
passo tomado para estender a capacidade dissuasória da
Inglaterra até meados do século. Fiquei impressionado com
a hipocrisia dessa atitude. Em uma entrevista para o
Financial Times sobre o desenvolvimento nuclear do Irã151,
eu disse que, enquanto o Reino Unido e outros países
continuassem a modernizar suas armas, seria muito difícil
convencer os outros países de que a dissuasão nuclear não
era boa para eles.
O Telegraph publicou meus comentários sob o título “UN
Nuclear Watchdog Calls Trident Hypocritical” [“Guardião
nuclear da ONU chama o Trident de hipócrita”]. John
Sawers, então diretor-geral para assuntos políticos do
Foreign Office152, telefonou para dizer que minhas
declarações haviam sido muito mal recebidas em Londres.
Mostrou como os ingleses tinham reduzido sua força
nuclear; era o menor arsenal do G5, e ele achou que eu os
estava incomodando.
“Vocês não entendem”, eu perguntei a ele, “que é difícil
argumentar que alguns países devem continuar a ter
armas nucleares e modernizá-las enquanto outros são
obrigados a ouvir que não podem?”
“Sim”, Sawers respondeu, “mas não podemos ser
comparados ao Irã.”
A questão não era o Irã, mas o princípio geral. O Reino
Unido parecia querer invocar uma moral estranha: “Nós
somos os mocinhos; eles são os bandidos. Pode acreditar”.
Na Câmara dos Comuns, Blair foi questionado a respeito
da minha entrevista ao Financial Times. “O Reino Unido”,
ele respondeu, “segundo o TNP, tem o direito de ter armas
nucleares e, como Mohamed ElBaradei é o guardião da
implementação desse tratado, seria bom que agisse
apropriadamente.”153 Sua interpretação do tratado era
uma distorção reveladora mas sintomática do
comportamento das nações possuidoras de armas
nucleares, que cumpriam suas obrigações quanto ao
desarmamento só da boca pra fora.
Foi especialmente aflitivo observar que apenas a África
do Sul protestou publicamente contra a decisão do Reino
Unido em relação ao Trident. Os países não nucleares
responderam com um silêncio ensurdecedor, algo
desanimador que para mim indicava resignação diante de
uma ordem mundial que havia adquirido o aspecto de
permanência inevitável.
Fui lembrado desse fato menos de um ano depois, em
um encontro com o ministro britânico das Relações
Exteriores, David Miliband. Estávamos conversando sobre
o Irã; Miliband reconheceu a complexidade da questão,
mas era óbvio que não concordávamos. A certa altura, ele
perguntou: “Por que você acha que o Irã quer ter armas
nucleares?”.
“Por que o Reino Unido tem armas nucleares?”, fiquei
tentado a responder. Para mim, era inacreditável aquele
sistema de dois pesos e duas medidas, mas continuei em
silêncio.
A AIEA enfrentou muitos desafios para cumprir seu
mandato. Estávamos sem recursos. Carecíamos de
autoridade. Éramos espionados pelas mesmas agências de
inteligência com as quais contávamos para nos informar
das anomalias nucleares; recebíamos informações de
inteligência seletivas, frequentemente difíceis de
comprovar. Dependíamos dos Estados-membros, alguns
dos quais tinham suas próprias agendas, para nos fornecer
tecnologia avançada que não tínhamos condições de
adquirir. Éramos pressionados por aqueles que
acreditavam que o financiamento da agência lhes dava o
direito de influenciar seu trabalho para fins políticos154. E
continuávamos a enfrentar casos complexos de verificação
nuclear que desafiavam nossa engenhosidade e nossa
paciência.
Mas a grande e indizível farsa era que as armas
nucleares continuavam a existir, e os países mais
poderosos do planeta insistiam nos seus arsenais como um
cobertor de segurança. Ouvíamos constantemente
previsões sombrias quanto ao fato de o Irã desenvolver
uma única arma nuclear enquanto o mundo já vivia o
flagelo da existência de mais de 23 mil armas desse tipo,
muitas delas em estado de alerta – isso significava que os
líderes dos Estados Unidos e da Rússia, diante do possível
lançamento de um míssil nuclear causado por um erro de
computador ou por uso não autorizado, teriam apenas
meia hora para decidir se iriam retaliar, sob o risco de
devastar nações inteiras em questão de minutos. No
entanto, líderes políticos continuavam a declarar que tudo
isso era irrelevante para a questão da proliferação
atômica.
Eu não tinha a menor intenção de permanecer calado.
136 Nesse tipo de experiência, um pequeno “alvo” de uma substância é
irradiado para produzir outra. O tório, como o urânio e o plutônio, é uma
substância nuclear que pode ser usada como combustível em um reator. Mas o
tório propriamente dito não pode ser usado diretamente em uma arma nuclear
porque não é “físsil”, ou seja, seu núcleo não pode ser fendido ou dividido, não é
capaz de sustentar uma reação em cadeia para produzir energia nuclear. Em vez
disso, o tório é “fértil”, o que significa que pode absorver nêutrons para produzir
o urânio-233, que é uma substância físsil.

137 Na verdade, a legislação só foi adotada em 2010.

138 “Egypt Rejects Reports of Nuclear Probe”, Agência France Presse, 7/5/2009.

139 Essa não foi a primeira ameaça que recebi. Alguns anos antes, as
autoridades egípcias foram informadas de que um grupo militante estava
planejando mirar figuras públicas egípcias no exterior. Eu estava na lista. O
embaixador egípcio em Viena, Mostafa el-Feki, me avisou e também às
autoridades austríacas. Durante algum tempo, minha segurança foi redobrada,
mas por sorte nada aconteceu.

140 Gideon Frank, diretor-geral da Comissão de Energia Atômica de Israel,


participou da reunião, assim como o chefe de gabinete de Sharon, Dov
Weissglass, e seu assessor militar.
141 Criado em 1974, o NSG (sigla em inglês para Nuclear Suppliers Group) é
uma organização internacional formada por 46 nações com capacidade de
exportar tecnologia nuclear. O NSG procura reduzir os riscos da proliferação
nuclear controlando a exportação de materiais que podem ser usados no
desenvolvimento de armas nucleares.

142 Peter Wallsten, Bush: No Nuclear Pact for Pakistan, Los Angeles Times,
5/3/2006.

143 Transcrição dos arquivos da CNN em:


<www.archives.cnn.com/TRANSCRIPTS/0710/28/le.01.html>.

144 Charlie Rose, 30/10/2007. Transcrição retirada de:


<www.iaea.org/NewsCenter/Transcripts/2007/cr301007.html>.

145 Israel Says UN Nuclear Chief Should Go, Agência France Press, 8/11/2007.

146 Lieberman se tornou depois ministro do Exterior.

147 Israel Minister: ‘Apocaliptic Scenario’ If Egypt, Saudi Arabia Go Nuclear,


Jerusalem Post, 8/11/2007.

148 Haaretz, 17/11/2007.

149 Entrevista ao Late Edition da CNN em 11 de novembro de 2007; transcrição


dos arquivos da CNN em:
<www.archives.cnn.com/TRANSCRIPTS/0711/11/le.01.html>. Alguns
especialistas, comentando essa entrevista, se lembraram de uma declaração de
Bolton para a Insight Magazine em agosto de 1999: “É um grande erro da nossa
parte conferir qualquer validade às leis internacionais mesmo que isso pareça
do nosso interesse a curto prazo; porque, a longo prazo, o objetivo daqueles que
acham que as leis internacionais realmente valem alguma coisa são os mesmos
que querem restringir o poder dos Estados Unidos”.

150 Israel havia fornecido uma resposta de apenas uma linha às perguntas da
AIEA, dizendo que a fonte do urânio encontrado não era israelense, não
reconhecendo sequer que o país havia sido responsável pelo bombardeio.

151 Iran Nears Industrial Fuel Production, 19/2/2007.

152 Sawers depois seria nomeado chefe do MI6, serviço secreto britânico.

153 Rebecca Johnson, que servira como consultora da UNMOVIC, apresentou


uma refutação detalhada às palavras de Blair no Bulletin of the Atomic
Scientists, que terminava dizendo que ele me devia um pedido de desculpas.
Rebecca Johnson, “Tony Blair’s Forgetfulness“, Bulletin of the Atomic Scientists,
26/2/2007.
154 Por exemplo, durante um encontro em minha casa com Nicholas Burns,
subsecretário de Estado norte-americano para Assuntos Políticos, e alguns de
seus colegas, ele me entregou um documento detalhando o que os EUA
esperavam da agência no caso do Irã. É claro que fiquei chateado, mas apenas
coloquei o papel de lado e disse calmamente: “Sabemos o que fazer em relação
ao Irã”. A resposta de Burns foi contundente: “Vocês sabem que pagamos 25%
do seu orçamento”.
11 • Irã, 2007–2008
OPORTUNIDADES DESPERDIÇADAS

A percepção americana do regime iraniano como uma


gangue de radicais irascíveis tinha raízes emocionais
profundas, que remontavam à crise dos reféns de 1979-
1981. Para os iranianos, o sentimento de que os Estados
Unidos personificavam o Grande Satã era ainda mais
antigo, de 1953, quando a CIA ajudou a derrubar o governo
de Mossadegh. Em ambas as capitais, as discussões sobre
as relações entre os dois países geralmente eram envoltas
por elementos de fervor ideológico e até político.
Para os linha-dura da administração Bush, a simples ideia
de envolvimento com o Irã representava um
comprometimento moral. Seu objetivo final era a mudança
do regime. Mas, em 2007, a catástrofe da Guerra do Iraque
fez um ataque militar contra o Irã não parecer uma opção
viável, pelo menos naquele momento. Por isso a
administração criou um plano B: uma política de sanções e
isolamento destinada a fazer o Irã se dobrar sob pressão,
especialmente na questão nuclear.
As sanções serviram para expressar o descontentamento
da comunidade internacional, mas, em minha opinião, não
poderiam resolver a questão. E a ideia de que o Irã se
dobraria era pura ficção: podia funcionar em Washington,
mas não tinha nada a ver com a realidade. Entretanto, os
linha-dura norte-americanos trabalhavam para sabotar
todos os esforços europeus no sentido de retomar o
diálogo com o Irã, especialmente no que dizia respeito ao
enriquecimento de urânio. Quando as condições de
entendimento pareciam possíveis, os norte-americanos
descobriam uma forma de bloqueá-las. E quando entravam
na discussão, nas tentativas de reiniciar as negociações na
periferia do P5+1, era apenas para estabelecer aquela
condição que certamente seria rejeitada: a exigência inútil
de que o Irã desistisse do enriquecimento de urânio.
O resultado foi um fracasso autoimposto por meio da
ideologia. Provocada pelas sanções e pela retórica dura,
Teerã continuou se orientando para o acúmulo constante
da técnica de enriquecimento de urânio. No início de 2007,
com algumas centenas de centrífugas operando e outras
sendo instaladas diariamente, os iranianos estavam
caminhando para conquistar o know-how tecnológico que
os norte-americanos consideravam inaceitável. Já a política
norte-americana estava conseguindo uma coisa apenas:
elevar cada vez mais o preço de um eventual acordo.
Para fazer as partes retomarem as negociações, comecei
a trabalhar em um novo conjunto de ideias. Mas os
Estados Unidos não eram o único país que precisava ser
convencido. A França também havia adotado
recentemente uma posição mais inflexível, e eu queria
entender por quê.
Durante uma viagem a Paris em meados de janeiro, ouvi
de funcionários do Ministério das Relações Exteriores que
suas recentes declarações sobre o Irã visavam manter os
norte-americanos envolvidos no processo. Bush havia
conversado com Chirac dois anos antes a respeito da
ameaça bastante real de uma ação militar israelense
contra o Irã, e os franceses ficaram ansiosos. Lembrei-me
da estratégia não muito bem-sucedida do Reino Unido
antes da invasão do Iraque em 2003: a afirmação de que
estavam próximos dos Estados Unidos para influenciar a
política norte-americana.
Além disso, os países do Golfo e o Egito vinham cobrando
que o Ocidente fizesse o máximo de pressão sobre o Irã.
Alguns líderes árabes, por exemplo, tinham insistido com
Chirac para que não enviasse seu ministro das Relações
Exteriores, Philippe Douste-Blazy, ao Irã.
Eu entendia que a França, décimo maior consumidor de
petróleo do mundo, quisesse proteger tanto seus amigos
quanto seus interesses no Golfo155. Mas era desanimador
ouvir que os países árabes estavam se opondo à
diplomacia em vez de assumir um papel de mediação na
disputa. O espanhol Javier Solana também deu a entender
que estava sendo pressionado pelos líderes árabes a não
fazer concessões ou dar incentivos ao Irã.
Os Estados Unidos vinham fazendo tudo o que podiam
para espalhar o medo do Irã no Golfo. Mas, para mim, as
ações dos regimes árabes eram principalmente um sinal
de sua impotência. Apesar de todos os erros cometidos por
Teerã, os iranianos estavam trabalhando em todas as
frentes, muito além da simples tecnologia nuclear, para se
tornarem cientificamente mais avançados, para melhorar
seus padrões educacionais e para afirmar sua liderança na
região. Os regimes árabes, aparentemente, estavam com
medo e inveja. Em vez de trabalhar para acompanhar esse
ritmo, melhorar seu próprio conhecimento e base
tecnológica, estabelecendo um equilíbrio em toda a região
– ou até firmar uma política comum sobre como lidar com
o Irã –, estavam unindo-se aos esforços de seus aliados
ocidentais para derrubar a República Islâmica156.
Em um encontro que tive com o ministro das Relações
Exteriores francês Douste-Blazy, ele sugeriu que eu fosse a
público e propusesse a ideia de uma “suspensão dupla”
para fazer todas as partes participarem das negociações: o
Irã suspenderia suas atividades de enriquecimento de
urânio, e o Conselho de Segurança interromperia as
sanções. A ideia não era novidade. Na verdade, havia sido
incorporada até certo ponto na última resolução do
Conselho. Mas não decolara.
Eu disse a Douste-Blazy que ficaria feliz em pedir uma
“pausa”, mas queria evitar a palavra suspensão. O Fórum
Econômico Mundial de Davos, marcado para a semana
seguinte, seria um bom lugar para revelar a iniciativa.
“Você é a única pessoa que pode fazer isso”, disse Douste-
Blazy, “porque não participa das negociações, e também
por causa da sua condição de ganhador de um Prêmio
Nobel da Paz.”
Essa conversa foi seguida de um telefonema de Serguei
Kisliak, ministro adjunto das Relações Exteriores da Rússia.
Os russos estavam preocupados porque parecia que os
iranianos não estavam mais falando com ninguém.
Mencionei as ideias que haviam surgido em minha
conversa com Douste-Blazy, e Kisliak ofereceu apoio a
essa proposta. Tais ideias foram ainda mais aperfeiçoadas
com sugestões de Ursula Plassnik, ministra das Relações
Exteriores da Áustria e amiga próxima, que sugeriu o uso
do termo time-out (“intervalo”) em vez de pause
(“pausa”). Um intervalo poderia parecer mais brando, ela
argumentou, e, assim, mais interessante para os iranianos.
Esse foi, de fato, o termo que usei em Davos, em
entrevistas para a CNN e para a BBC. Propus que o Irã
fizesse um intervalo em suas atividades de enriquecimento
de urânio e a comunidade internacional, na aplicação das
sanções. Seguiram-se manifestações de apoio do
presidente Putin157, dos alemães e dos franceses. Os
chineses também deram seu apoio, mas preferiram
esperar a reunião da diretoria da AIEA em março para se
manifestarem publicamente. Os norte-americanos não
rejeitaram a proposta, apenas disseram que a última
resolução do Conselho de Segurança158 era clara em
relação ao que o Irã precisava fazer. Ali Larijani, presidente
do Parlamento iraniano, telefonou para dizer que o Irã
precisava de alguns esclarecimentos antes de acatar a
ideia formalmente, mas certamente estava interessado.
Enquanto estava em Davos, também encontrei o ex-
presidente Khatami e lhe disse que algumas das
declarações de Ahmadinejad – particularmente as que
diziam respeito a Israel e ao Holocausto – eram
extremamente prejudiciais para a imagem internacional do
Irã. Essas declarações, combinadas com a incerteza em
relação às intenções nucleares devido a questões de
inspeção que continuavam sem solução, estavam
fomentando a desconfiança em toda a região. Khatami
lamentou por algumas coisas ditas em Teerã e comunicou
que repassaria a mensagem.
O fórum também foi uma oportunidade para encontrar a
presidente da Suíça Micheline Calmy-Rey e seu secretário
de Estado Michael Ambühl, que também estavam tentando
encontrar uma forma de trazer o Irã de volta para as
negociações. Durante dois anos, eu trabalhara com Calmy-
Rey e sua equipe, compartilhando ideias sobre os
caminhos possíveis para um comprometimento do Irã em
seu programa de enriquecimento de urânio. Os suíços
estavam ansiosos para ver uma resolução pacífica na
questão nuclear iraniana e, como representavam o
interesse diplomático norte-americano em Teerã (a “seção
de interesses” dos EUA no Irã faz parte da embaixada
suíça), tinham um papel legítimo a desempenhar como
intermediários.
Uma proposta que apresentei em Davos foi que o Irã
poderia simplesmente parar de alimentar as centrífugas
com material nuclear. Isso se chama warm standby: as
máquinas continuam a girar, mas sem matéria-prima. Eu
não tinha certeza se os norte-americanos e os outros
aceitariam tal proposta, que me permitiria informar que o
Irã havia suspendido o enriquecimento de urânio como
solicitado pelo Conselho de Segurança. Os suíços
concordaram em sondar o Irã sobre a ideia.
Seguiram-se semanas caóticas, repletas de telefonemas
e sessões de brainstorming com várias partes. Eu ia e
vinha de reuniões com Condoleezza Rice e outros
representantes dos Estados Unidos, tentando encontrar
uma forma de fazê-los participar do diálogo. Larijani e
outros iranianos, por sua vez, tentavam encontrar uma
forma de suspensão que fosse aceita no front doméstico
iraniano.
Os suíços mantiveram seus esforços na área diplomática.
Ambühl encontrou-se com Larijani em Teerã. Calmy-Rey
convidou Larijani para ir a Berna. Kisliak telefonou para
dizer que os diretores políticos do P5+1 pareciam apoiar a
“proposta de ElBaradei”, como eles a chamavam.
Mohammad Saeedi, adjunto de Gholamreza Aghazadeh,
apareceu para dar esclarecimentos sobre os possíveis
benefícios em concordar com um “intervalo” para ajudar a
convencer as lideranças iranianas. O ministro das Relações
Exteriores da Suécia, Carl Bildt, veio me ver, assim como
Kim Howells, secretário de Estado das Relações Exteriores
britânico.
Todos queriam participar. Todos tinham um objetivo
comum. Mas ninguém parecia conseguir encontrar uma
forma de convencer os conservadores linha-dura nos
extremos opostos da equação.
Reformulei os quatro “princípios para negociação” mais
uma vez, tentando adequar de maneira precisa as
preocupações centrais de ambos os lados: confiança,
transparência e futuras intenções. Notei que havia apenas
três princípios. Primeiro, o reconhecimento explícito de
todas as partes do direito do Irã de ter o ciclo de
combustível nuclear completo, incluindo o enriquecimento
de urânio, com a constatação de que o foco do “intervalo”
tinha a ver apenas com o prazo e as modalidades para o
exercício desse direito, a fim de criar oportunidades para
reconstruir a confiança da comunidade internacional em
relação às intenções do país. Segundo, um compromisso
do Irã de cooperar com a AIEA, com total transparência,
para resolver questões de verificação pendentes. E,
terceiro, um compromisso de ambas as partes para
trabalhar no sentido da completa normalização das
relações entre o Irã e o Ocidente, inclusive nos campos
econômico, político e de segurança.
Comecei a vender esses três princípios para os vários
diplomatas que trabalhavam na questão, inclusive Larijani.
Em um encontro realizado em Viena, em fevereiro, ele
disse que os princípios pareciam justos e deveriam ser
colocados no papel. No entanto, a suspensão, fosse na
forma de intervalo ou não, era, do seu ponto de vista, algo
secundário. A questão principal era a desconfiança entre o
Irã e as outras partes, principalmente Europa e Estados
Unidos. Ele citou uma declaração de Tony Blair, feita
durante uma visita recente ao Golfo, de que o Ocidente
estava formando uma coalizão de países árabes
moderados contra o Irã159. Esse pronunciamento
despertou antigas suspeitas: Larijani se lembrou de Blair
dizendo em 2003 que o único motivo para o Irã cooperar
era a Guerra do Iraque – porque os iranianos viam que o
Ocidente era “sério” e que tal conflito tinha sido um
“teste”.
Esses sentimentos, disse Larijani, sabotavam todas as
tentativas de avanço. Enquanto o Ocidente visse o Irã com
tanta desconfiança, as discussões sobre a suspensão não
teriam o menor sentido.
“Existem motivos para a desconfiança”, disse eu,
mencionando a declaração de Ahmadinejad a respeito de
Israel e do Holocausto.
Isso agora estava “sob controle”, segundo Larijani. Ele
disse que, durante as celebrações do Dia da Revolução, em
11 de fevereiro, Ahmadinejad havia evitado fazer qualquer
declaração sobre o programa nuclear do Irã.
Larijani queria que os norte-americanos também
entendessem que o Irã esperava que o governo de Al-
Maliki em Bagdá desse certo: os iranianos não estavam
apoiando a milícia xiita Al-Mahdi, liderada pelo clérigo
Moktada al-Sar. A democracia e a estabilidade no Iraque
interessavam ao Irã. Larijani me pediu para levar essas
ideias a Condoleezza Rice. “Acredito que ela seja alguém
que vá entender”, disse.
O P5+1 e Solana deram sua resposta para a ideia de
“intervalo” no final de fevereiro. John Sawers telefonou
para dizer que eles iriam adotar uma declaração baseada
nos três princípios e na ideia do intervalo duplo, mas
queriam tentar uma estratégia de duas vias e forçar outra
resolução do Conselho de Segurança, com mais sanções
“limitadas”. A notícia de outra resolução deixou Larijani
consternado. “Se isso prosperar”, ele disse, “será o fim do
processo de negociação.”
Uma conversa com Condoleezza a respeito da situação
no Irã me deu a chance de insistir para que ela
reconsiderasse o sequenciamento da estratégia do P5+1.
Primeiro, ouvi sua opinião sobre os três princípios: ela não
estava muito entusiasmada com a palavra “normalização”,
nem com que se falasse explicitamente no direito do Irã ao
enriquecimento de urânio. Fora isso, não tinha problemas
com a proposta de um “intervalo simultâneo”. Isso era
encorajador. Mas eu reforcei que ir diretamente ao
Conselho de Segurança para forçar sanções dificultaria
ainda mais qualquer possibilidade de acordo com o país.
“Seria melhor que vocês discutissem essas ideias primeiro
com o Irã antes de recorrer a mais sanções”, aconselhei.
Caso contrário, “vocês vão fortalecer ainda mais os
partidários da linha-dura e sabotar os moderados”.
Condoleezza parecia estar ouvindo atentamente. Às
vezes, por sua maneira de fazer as perguntas, quando eu
suspeitava que ela já soubesse qual era a minha resposta,
eu tinha a impressão de que tudo estava sendo gravado e
transcrito. A administração Bush estava, pelo que eu sabia,
fraturada internamente em questões de política externa.
Condoleezza precisava organizar todos os argumentos se
quisesse convencer os céticos de Washington a se
aproximarem dos iranianos. Talvez ela quisesse que eles
ouvissem diretamente o que Larijani havia dito a respeito
do interesse do Irã em um diálogo com os Estados Unidos.
Para mim, era difícil não fazer especulações.
Sentindo-me como um disco riscado, eu repetia que ela
deveria tentar envolver o Irã diretamente. “Isso ajudará
vocês no Iraque e também na questão nuclear”, eu insisti.
Os iranianos estavam conversando com os sauditas sobre
o Líbano e a Palestina. “Pessoas como Larijani”, eu disse a
ela, “estão sinceramente interessadas no diálogo.”
Condoleezza não discordou, mas também não se
comprometeu.
Dois dias após a nossa conversa, Washington anunciou
que os Estados Unidos participariam de uma conferência
sobre o Iraque com “países vizinhos”, incluindo Irã e Síria.
Os norte-americanos insistiam em que iriam falar apenas
do Iraque, e não a respeito da questão nuclear iraniana. A
sutileza me parecia um pouco infantil; mas eu não me
intrometeria. Era um passo à frente.

Todo o otimismo que eu sentia foi passageiro. A abertura


de uma porta era imediatamente seguida pelo estrondo de
outras portas se fechando. A marcha do P5+1 em direção a
outra resolução do Conselho de Segurança, apesar de
inútil, parecia inevitável, principalmente porque,
aparentemente, nem os russos nem os chineses
exerceriam seu poder de veto. No entanto, houve uma
intensa atividade diplomática que visava a deter o avanço.
Os suíços elaboraram um documento que definia as
linhas em discussão. Apesar dos sinais indicando que as
autoridades americanas não queriam interferência externa,
Ambühl apresentou o documento a Larijani em Teerã160. Eu
avisei que essa era provavelmente a última chance de o
Irã evitar outra resolução polêmica do Conselho de
Segurança. Os suíços, então, tentaram todos os
argumentos que podiam para convencer o Irã dos
benefícios de aceitar a suspensão total. Mas os iranianos
só concordariam com um processo em duas fases, no qual
congelariam suas atividades de enriquecimento de urânio
– isto é, não iriam expandi-las ainda mais – por trinta dias
de “prenegociação” durante os quais as partes
determinariam conjuntamente o “alcance” do “intervalo
duplo” a ser seguido. Esse intervalo então passaria a valer
por seis meses, enquanto as negociações realmente
ocorriam. Isso representaria uma concessão da parte do
Irã, mas não era o suficiente.
Larijani me avisou que, se o Conselho de Segurança
aprovasse outra resolução, o Irã colocaria um fim nas
inspeções da AIEA em Natanz. Isso seria outro caso de
descumprimento, eu disse a ele, e só poderia piorar o
impasse. “Eu sei das implicações”, Larijani respondeu, mas
a decisão viria do governo iraniano. Ele havia tentado
retardar essa ação por seis meses, mas não conseguiria
fazer isso por mais tempo.
Em meio a toda a comoção diplomática, o Irã continuou a
aumentar sua capacidade de enriquecimento de urânio.
Quando nossos inspetores visitaram Natanz, no dia 20 de
março, eles viram que o país havia instalado um total de
mil centrífugas. Era irônico e angustiante lembrar que,
apenas um ano antes, o programa nuclear iraniano poderia
ser interrompido com 30 a 40 centrífugas. O argumento
dos EUA de que o Irã deveria ser impedido de ter
conhecimento para realizar o enriquecimento de urânio
eram águas passadas: os especialistas iranianos vinham
executando pequenas cascatas de centrífugas havia mais
de um ano.
Levando isso em conta, preparei meu relatório sobre o Irã
para o encontro com a diretoria da AIEA em março. O
adjunto de Larijani, Javad Vaeedi, tinha dado uma
entrevista recentemente, em que alegava falsamente que
um comentário em meu relatório anterior – de que a AIEA
não estava em posição de verificar a natureza pacífica do
programa do Irã – havia sido “plantado” na agência pelo
embaixador norte-americano. Isso me deixou irritado: a
agência havia alterado sua maneira de trabalhar para
tratar do caso iraniano objetiva e profissionalmente. Era
inaceitável que o Irã questionasse nossa integridade.
Decidi ser bastante contundente no relatório que estava
preparando: a AIEA não poderia realmente chegar a
nenhum veredicto sobre o programa iraniano. A posição do
Irã, eu escrevi, era sui generis: durante vinte anos o Irã
havia trapaceado em sua obrigação de prestar
informações. Consequentemente, não tínhamos alternativa
a não ser reconstruir toda a história de seu programa. Até
que respondessem às nossas perguntas e preocupações
com explicações conclusivas e satisfatórias,
permaneceriam no banco dos réus.
A reunião da diretoria da AIEA ocorreu em meio a muita
tensão. Um projeto de resolução do Conselho de
Segurança com sanções estava sendo elaborado. Abdul
Minty, representante da África do Sul, me falou dos
esforços diplomáticos que eles também estavam fazendo
no Conselho de Segurança. Os Estados Unidos e o G3
teriam preferido que a África do Sul e o presidente Thabo
Mbeki, com sua influência entre os países em
desenvolvimento, se abstivessem de tentar encontrar uma
solução. Mas a África do Sul fazia questão de colaborar. Ao
lado da Suíça, estava preparada para envolver-se em um
esforço que levasse à resolução da questão nuclear
iraniana por meio da negociação e do diálogo, de acordo
com os princípios do TNP. Além disso, tinha participação no
Conselho de Segurança e não tinha medo de usá-la.
Embora o P5+1 tendesse a dominar o processo, o
embaixador sul-africano em Nova York, Dumisani Kumalo,
declarou ao Conselho que seu país não estava ali apenas
como enfeite.
Eu revelei a Minty que, em minha opinião, a menos que
se descobrisse algo rapidamente, estávamos caminhando
para um desastre. Ele disse que falaria com seus colegas
de governo e, já no dia seguinte, a África do Sul submeteu
uma série de emendas ao projeto de resolução do
Conselho de Segurança. Entre elas estava a sugestão de
um intervalo de noventa dias. Eles ajustaram as sanções
propostas e se concentraram no programa nuclear.
Esclareceram que qualquer decisão para abolir uma
suspensão seria baseada no julgamento técnico da AIEA, e
não no julgamento político do Conselho.
As emendas sul-africanas poderiam ter criado problemas
para as potências ocidentais, que estavam determinadas a
adotar a resolução por unanimidade. O P5+1 ignorou as
propostas da África do Sul em público, mas começou a agir
imediatamente nos bastidores para exercer pressão sobre
outros governos – assim como sobre Johanesburgo – para
que votassem a favor da resolução sem alterações. Sua
tática funcionou; Minty me telefonou um dia antes da
adoção da resolução para dizer que nenhum dos oito
membros do Conselho havia se declarado a favor das
emendas propostas. No final, os esforços da África do Sul
tinham apenas retardado o inevitável.
O Conselho de Segurança adotou a Resolução 1747 por
votação unânime no dia 24 de março de 2007, exigindo
mais uma vez que o Irã acatasse a suspensão do seu
programa de enriquecimento de urânio. As sanções
incluíam a proibição de importar e exportar armas do Irã, o
congelamento de bens e restrições às viagens de
indivíduos envolvidos nas atividades nucleares do país. O
embaixador britânico, Sir Emyr Jones-Parry, leu uma
declaração em nome do P5+1 expressando a disposição de
continuar as discussões com o Irã. A declaração propunha
o reinício das negociações com base na linguagem que eu
havia proposto. É claro que minha sugestão era apresentar
essas ideias confidencialmente ao Irã antes de adotar uma
resolução, e não publicamente, junto com as punições.
O interessante era que a declaração de Jones-Parry dizia
que o objetivo da resolução era “eliminar a possibilidade
de o país adquirir a capacidade de produzir armas
nucleares”. Isso estava muito longe da linguagem usada
anteriormente pelos Estados Unidos e outros países que
haviam expressado sua certeza de que o Irã já tinha um
programa de armas nucleares – certeza absoluta, como
disse uma vez Jack Straw, sem que houvesse “um único
indício” de prova161. A partir desse ponto, os norte-
americanos mudaram o discurso para falar apenas das
“ambições” ou “intenções” iranianas quanto às armas
nucleares. Era uma pequena mudança.

Em meados de 2007, nossos inspetores haviam concluído


que os iranianos tinham instalado um total de dez cascatas
de 164 centrífugas no subsolo das instalações industriais
de enriquecimento de urânio, em Natanz. Outras três
cascatas estavam sendo construídas e mais duas
funcionavam acima do solo, na planta-piloto.
Segundo Olli Heinonen, o Irã havia alcançado seu
objetivo explícito de enriquecimento de urânio a 5%.
Nossos especialistas avaliaram que eles tinham adquirido
praticamente todo o know-how necessário para o
procedimento. E o ritmo de expansão estava aumentando.
“Eles agora estão instalando uma cascata por semana”,
disse Olli. “De acordo com nossas estimativas, se
continuarem nesse ritmo, terão 3 mil centrífugas até o final
de junho, e 8 mil até o Natal.” Isso colocaria os iranianos
no caminho da capacidade industrial de enriquecimento de
urânio. É claro que eles não viam mais sentido em impedir
o avanço.
Nesse momento, imaginei quatro possíveis cenários
futuros para o programa nuclear do Irã, que tive a
oportunidade de expor explicitamente em uma reunião na
Espanha com o primeiro-ministro José Zapatero e seu
ministro das Relações Exteriores, Miguel Moratinos.
A primeira possibilidade era a de que o Irã escolhesse
voluntariamente voltar ao enriquecimento zero (suspensão
total), o que parecia bastante improvável.
A segunda era a de que os iranianos pudessem ter um
pequeno programa de P&D em enriquecimento, como
tentativa de salvar as aparências. Em troca, eles poderiam
ser solicitados a congelar, por alguns anos, seus esforços
de entrar na escala industrial. O país também teria de
permitir que a AIEA fizesse inspeções consideráveis para
poder verificar a ausência de atividades nucleares não
declaradas – o aspecto mais importante de não
proliferação. O Irã teria de ajudar a resolver quaisquer
questões de inspeção pendentes. E, para isso, precisaria se
comprometer a subscrever indefinidamente o TNP.
A terceira possibilidade era o statu quo: continuar com o
impasse inútil em torno das negociações com o Ocidente,
aprovando mais resoluções e sanções, enquanto o Irã
caminhava firmemente em direção ao limiar do
enriquecimento em escala industrial, sem a inspeção
adequada ou o Protocolo Adicional, e sem esclarecer
questões a respeito de seus programas do passado e do
presente.
Havia uma quarta possibilidade. Os radicais ocidentais
poderiam bombardear o Irã. Isso produziria um
Armaguedom no Oriente Médio, região já volátil e caótica.
Em minha opinião, a única opção era a segunda.
Zapatero e Moratinos estavam entre os líderes que
levavam muito a sério a crescente ameaça de uma grande
conflagração e convenceram outros – incluindo o ministro
italiano das Relações Exteriores, Massimo D’Alema, e o
primeiro-ministro de Luxemburgo, Jean-Claude Juncker – a
se prepararem para apoiar toda iniciativa diplomática que
pudesse evitar um choque.
Enfrentar a verdade sobre onde estávamos parecia
importante, mas meus esforços para trazer clareza sobre a
questão acirraram os ânimos. Em 15 de maio de 2007, dei
uma entrevista para David Sanger, do New York Times, na
qual afirmei que o Irã já havia adquirido o know-how para
enriquecer urânio, mesmo que ainda precisasse
aperfeiçoá-lo. “As pessoas não vão gostar de ouvir isso,
mas é um fato”, eu disse, acrescentando que o objetivo da
exigência de suspensão – que significava negar ao Irã esse
conhecimento – havia sido “atropelado pelos
acontecimentos”.
Repeti a mesma fala em uma longa entrevista ao Grupo
Vocento162, agência de comunicação espanhola,
acrescentando que para mim era incompreensível que os
norte-americanos estivessem dispostos a conversar com
os iranianos a respeito da segurança no Iraque, mas não
sobre a questão nuclear. Também critiquei a falta de
avanço no desarmamento.
Os norte-americanos e os franceses ficaram furiosos.
Greg Schulte, embaixador norte-americano, deixou um
recado de Condoleezza Rice dizendo que, para sua grande
decepção, minhas declarações para a mídia estavam
minando a unidade da comunidade internacional e seus
esforços diplomáticos. Segundo ela, eu estava motivando
aqueles que queriam usar a força militar.
“Diga a Rice”, eu falei para Schulte, “que estou
igualmente decepcionado pelo fato de ela não ter
entendido o objetivo das minhas declarações, que visam a
mostrar que a estratégia atual não está funcionando e que
ainda há possibilidade de acertá-la.” Expliquei para ele os
quatro cenários que havia imaginado como alternativas
para o futuro do Irã. O pior resultado possível – o uso da
força – continuava a ser um perigo. Eu falei a ele de uma
entrevista que John Bolton havia dado no mesmo dia na
Fox News, na qual ele dava a entender que os Estados
Unidos ainda poderiam seguir esse caminho163.
Para Schulte, os norte-americanos não confiavam nos
iranianos. “Isso era óbvio”, eu respondi. Os Estados Unidos,
ele acrescentou, precisavam manter sua “clareza moral”
até que o Irã cedesse à resolução do Conselho de
Segurança. A escolha das palavras não era boa; pensei em
perguntar quando os Estados Unidos alcançariam “clareza
moral” suficiente para livrar-se de seu arsenal nuclear,
mas fiquei em silêncio.
Quando eu já estava de saída, Schulte deu a entender
que, se a agência fosse “politizada” – isto é, se eu fosse
continuar a falar nos mesmos termos, imaginei –, Rice
havia dito a ele que os norte-americanos poderiam dar ao
orçamento da AIEA o mesmo tratamento recebido pela
União Postal Universal. Era uma referência a uma
discussão que eu levara muitas vezes à AIEA, de que os
Estados-membros deveriam distinguir as agências da ONU
em relação a atribuições e prioridades orçamentárias.
Aquilo era um ataque gratuito, e eu disse isso a Schulte.
“Vocês são sempre os primeiros a se beneficiar com a
agência”, eu declarei. “E, se os Estados-membros
decidirem não pagar suas taxas, ficarei feliz em fechar as
portas da agência.”
Dois dias depois, em 25 de maio, Schulte retornou com
os embaixadores da França e da Inglaterra para fazer uma
diligência formal. Conseguiram arrastar com eles o
relutante embaixador-adjunto japonês, Shigeki Sumi164. Ele
ficou sentado em silêncio durante toda a reunião e depois
disse a alguns colegas que estava constrangido, mas tinha
ordens para participar dela. Suspeito que os japoneses
tenham sido recrutados no lugar dos alemães, que
declinaram da participação.
Os embaixadores repetiram a mesma retórica a respeito
das minhas declarações públicas: eu estava dividindo a
comunidade internacional e sabotando o Conselho de
Segurança e a diretoria da AIEA. Os franceses e os norte-
americanos disseram que também estavam insatisfeitos
com minhas declarações sobre o desarmamento, que,
segundo Schulte, não faziam parte das minhas atribuições.
Era meu dever, eu respondi, aconselhá-los sobre a não
proliferação nuclear, já prevendo a aproximação de uma
crise. Além disso, segundo o Estatuto da AIEA, a agência
deveria promover “o estabelecimento do desarmamento
nuclear com salvaguardas”. Quando falava em fóruns
externos, eu não era um diretor-geral da agência,
representando a visão da diretoria, mas um servidor
público internacional. “Há dez anos”, eu falei, “venho
chamando a atenção para a ligação entre a proliferação
nuclear e o ritmo lento em direção ao desarmamento, e
vou continuar a fazer isso.”
Lembrei Schulte de que, quando convinha aos norte-
americanos, como no caso do acordo nuclear EUA-Índia,
eles se referiam a mim como “o guardião do TNP”, mas,
quando eu falava contra suas políticas de controle de
armas, meu papel era o de vilão. Quando o embaixador
francês François-Xavier Deniau insistiu com o fato de o Irã
ter um programa de armas nucleares, eu o lembrei de que,
na época das inspeções no Iraque, ele havia me informado
pessoalmente que o Iraque havia retido “pequenas
quantidades” de armas químicas e biológicas, alegação
que acabou por se mostrar falsa. Ele não respondeu.
Não obstante o alarmismo ocidental, a rápida expansão
do Irã em suas operações nucleares, após um longo
período de relativa contenção, realmente era motivo para
se preocupar. Assinalava uma mudança: resignação ao fato
de que o Ocidente não mostraria flexibilidade nem faria
acordo e determinação em buscar a tecnologia que muitos
iranianos viam como uma conquista nacional. Da
perspectiva iraniana, a aceleração provavelmente também
visava a pressionar o Ocidente a aprovar um acordo que
não levasse o país a suspender totalmente seu programa
de enriquecimento.
Minha percepção foi confirmada pelo secretário de
Estado suíço, Michael Ambühl, ao voltar de mais uma visita
a Teerã. Os iranianos estavam dificultando suas posições.
Dois meses antes, eles estavam dispostos a considerar o
congelamento das atividades de enriquecimento no nível
de P&D enquanto durassem as negociações. Dessa vez,
Larijani não tinha assumido nenhum compromisso quanto
a “congelamento” ou intervalo durante as negociações. Ele
parecia disposto apenas a se comprometer a não
enriquecer urânio além de 5%. Pela primeira vez, ele
mencionou a possibilidade de que o Irã poderia enriquecer
urânio a 20% para atender às necessidades de
combustível de seus reatores nucleares.
Diante dessas notícias, pressionei o Irã publicamente a
considerar uma moratória autoimposta sobre a expansão
do enriquecimento de urânio. Concedi uma entrevista para
um documentário da Radio 4 da BBC, ressaltando os altos
riscos em jogo165. “Não vejo outra solução a não ser tentar
evitar o início de outra guerra ou que comecemos a nos
matar uns aos outros”, afirmei. “Vocês não vão querer dar
mais argumentos para os novos malucos que dizem
‘vamos bombardear o Irã’.” Um ataque militar contra suas
instalações nucleares, eu declarei, seria “um ato de
loucura”. Todo mundo queria saber o que eu queria dizer
com “novos malucos”. Deixei que tirassem suas próprias
conclusões.
A diplomacia estava perdendo terreno. Precisávamos de
um novo rumo. Dessa vez ele surgiu com Larijani. Mais
conservador do que moderado, Larijani era, no entanto,
um pragmático persistente, com uma mente astuta, clara
e lógica – além de ser doutor em filosofia ocidental. Da
mesma forma que Rowhani, seu antecessor, algumas de
suas lutas mais difíceis foram travadas em casa,
trabalhando dentro do sistema político labiríntico de Teerã.
A autoridade no Irã era uma coisa difusa, dividida entre o
exército, a Guarda Revolucionária, o presidente, o clero, o
Parlamento (Majlis), o líder supremo e outros grupos
menos visíveis. Isso explicava a lentidão do processo
deliberativo no Irã e suas oscilações. Ao contrário da
maioria dos países do mundo árabe, em que um único líder
forte controlava tudo por imposição, no Irã as decisões
eram tomadas por consenso. Eu às vezes me referia ao
regime como “uma democracia dentro da teocracia”.
Quaisquer que fossem seus méritos ou defeitos, o sistema
estava se mostrando terrivelmente frustrante para Larijani:
ele simplesmente não tinha o apoio necessário para
avançar na área diplomática.
Ainda assim, houve quem desse ouvidos aos seus apelos
para a contenção. Fiquei animado com o fato de, após a
resolução do Conselho de Segurança, o Irã não ter
cumprido sua ameaça de bloquear completamente as
inspeções da AIEA em Natanz. Eles aplicaram algumas
restrições simbólicas e deixaram por isso mesmo. Era
óbvio que algumas pessoas dentro do Irã ainda achavam
que valia a pena jogar de acordo com as regras.
Então, sem avanços nas negociações do P5+1, Larijani
decidiu concentrar seus esforços em outra parte. Em
nossas conversas, eu o pressionava sobre a necessidade
de esclarecer questões de inspeção pendentes e mostrava
os vários benefícios disso. Essas questões incluíam, por
exemplo: preocupações não resolvidas em relação à
aquisição de centrífugas; dúvidas sobre a fonte de
partículas de urânio enriquecido encontradas em alguns
locais; aparentes discrepâncias no controle das atividades
da Organização de Energia Atômica do Irã na mina de
urânio de Gchine; atividades de aquisição questionáveis
por um ex-chefe do Centro de Pesquisas Físicas do Irã; e
acusações de que o Irã teria realizado estudos para
desenvolver armamentos. No dia 26 de junho, Larinaji veio
ao meu encontro em Bad Tatzmannsdorf, sul de Viena,
onde se realizava uma reunião dos gestores da agência.
Ele estava acompanhado de um dos seus adjuntos, Ali
Monfared. Com sua falta de habilidade de vencer
obstáculos, Larijani parecia mais desanimado do que
nunca. Agora havia rumores de um desentendimento com
Ahmadinejad. Esse encontro me parecia um último esforço
de Larijani em encontrar uma forma de avançar.
O Irã, ele anunciou, estava pronto para resolver os
detalhes de um plano de trabalho com a agência a fim de
tratar de algumas das preocupações pendentes da AIEA.
Poderíamos começar com questões que seriam
relativamente fáceis de resolver, como as discrepâncias de
datas e as quantidades e tipos de material envolvido nas
experiências do Irã com plutônio. Larijani propôs que a
agência solicitasse medidas de inspeção específicas, sem
mencionar o Protocolo Adicional, que o Parlamento (Majlis)
já tinha decidido não colocar em prática.
Fiquei satisfeito ao ver o Irã dar esse passo para cooperar
com a agência. Prometi enviar um grupo a Teerã para
começar a trabalhar nos detalhes. Também insisti em que
Larijani fizesse o possível para brecar a expansão da
capacidade de enriquecimento de urânio do país. Eles não
precisavam de mais desenvolvimento para propósitos de
P&D, e isso servia apenas para provocar o Ocidente.
Em um plano de trabalho em conjunto, o congelamento
na expansão seria um sinal positivo. Na verdade, os
iranianos deram algumas demonstrações de boa vontade,
como permitir que os inspetores da agência visitassem o
pesado reator de água que estava sendo construído em
Arak. Os inspetores também notaram uma desaceleração
notável na instalação de novas cascatas de centrífugas em
Natanz. Seguiu-se uma série de encontros em Teerã e
Viena para tratar do plano de trabalho. Mas, em certos
pontos críticos, tivemos dificuldade em conseguir um
compromisso firme dos iranianos. Decidi enviar uma
equipe de “pesos-pesados” a Teerã para dar um impulso
final no fechamento dos detalhes: Olli Heinonen, que agora
era diretor-geral adjunto de salvaguardas; Vilmos
Cserveny, chefe de Relações Exteriores da agência; e
Johan Rautenbach, consultor jurídico. Para pressionar o Irã,
acertei com Olli que ele me telefonaria do hotel em Teerã
para me informar sobre os avanços; sabendo que nossa
conversa seria gravada, fui duro com os iranianos pelo
telefone.
No dia 27 de agosto de 2007, Olli telefonou para dizer
que eles haviam concordado com um calendário de três
meses para resolver todas as questões de inspeção
pendentes. Para contornar a resistência dos linha-dura de
Teerã, o plano usava linguagem indireta ou vaga – em
excesso, para o meu gosto de advogado – em certos
tópicos. Mas tínhamos vantagem, pois seríamos os juízes
da implantação do plano de trabalho pelo Irã. Também
tínhamos acertado com Larijani que ele faria o que
pudesse para garantir um resultado bem-sucedido.
Larijani telefonou logo após os termos do plano terem
sido concluídos e aceitos por Teerã. Seu tom era de
otimismo – muito mais do que eu ouvia havia algum
tempo. Ele me agradeceu por todo o trabalho de Olli e sua
equipe. O fato de a liderança de Teerã ter assinado o plano
de trabalho era sem dúvida uma vitória da defesa de
Larijani pela cooperação com a agência e a aproximação
com o Ocidente. Ele também me pediu para continuar a
ressaltar a importância da retomada das negociações do
Irã com o P5+1.
Eu disse a Larijani que o importante naquele momento
era implementar o plano de trabalho de boa-fé, de acordo
com a programação. Caso contrário, seria um tiro no pé,
reforçando os argumentos daqueles que inevitavelmente
insistiriam em que o Irã estava apenas tentando ganhar
tempo.
Foi o que os norte-americanos fizeram rapidamente:
minimizaram a importância do plano de trabalho e
procuraram defeitos nas disposições mais mal formuladas.
Lançaram dúvidas quanto à sinceridade do compromisso
assumido pelo Irã. O plano deixou-os nervosos: o aumento
na cooperação do Irã com a AIEA enfraqueceria suas
chances de convencer a China e a Rússia a concordar com
a imposição de mais sanções. Além disso, se Teerã
conseguisse resolver as questões pendentes em relação ao
seu programa nuclear, a exigência do Conselho de
Segurança para que o país suspendesse o enriquecimento
de urânio perderia qualquer base lógica.
Seguiu-se uma blitzkrieg total na mídia. O Washington
Post publicou um editorial intitulado “Regulador
trapaceiro”:

ElBaradei deixou claro que se considera acima da sua posição como servidor
público da ONU. Em vez de colocar em prática a política do Conselho de
Segurança ou da diretoria da AIEA, para a qual trabalha, o Sr. ElBaradei
comporta-se como se fosse independente deles, livre para ignorar suas
decisões e usar sua agência para contrariar seus principais membros –
acima de tudo os Estados Unidos.166

O artigo prosseguia acusando-me de trabalhar como


freelancer e condenando a AIEA por “fazer o próprio acordo
com o regime iraniano”.
A Economist também fez suas críticas:

ElBaradei está usando o acordo com o Irã para interferir diretamente no


debate político, em vez de se limitar a um olhar imparcial para as
salvaguardas. O Sr. ElBaradei pode acreditar que está abrindo espaço para a
diplomacia, mas aliviar a pressão sobre o Irã pode tornar ainda mais difícil
encontrar uma solução diplomática.167

Como era de prever, o Jerusalem Post foi mais além nos


ataques, com afirmações do tipo “ElBaradei é um homem
de integridade dúbia” e “ElBaradei tem sido o maior
defensor internacional do Irã” e até “ElBaradei usou seu
poder para facilitar a proliferação de energia nuclear para
fins militares”168. Uma colunista do Al-Hayat, um dos
principais jornais do mundo árabe, me acusou de estar
desobedecendo às resoluções do Conselho de Segurança,
tentando dar ao Irã uma forma de evitar sanções
adicionais e aperfeiçoar sua tecnologia.
Até o New York Times não economizou palavras em um
longo perfil que me descrevia como alguém no meio-termo
entre “as melhores esperanças de todo mundo” e
“embriagado com o poder do Nobel”169. Uma jornalista
achou que a matéria do Times me definia como um
“maluco ditatorial”170. Em Viena, os norte-americanos
teriam demonstrado sua irritação mais concretamente.
Abdul Minty, embaixador da África do Sul, relatou que
ouviu um jornalista dizer que os norte-americanos estavam
planejando orquestrar uma campanha com a AIEA para
produzir um voto de desconfiança em mim por eu estar
ultrapassando minhas atribuições. O jornalista tinha
anotado os nomes de vinte países com os quais os norte-
americanos pretendiam fazer lobby para obter apoio.
Fiquei sabendo que a mídia havia recebido essa
informação de Chris Ford, secretário de Estado adjunto
para Controle de Armas dos Estados Unidos. De qualquer
forma, depois que o boato chegou até a Associated
Press171, a missão norte-americana negou publicamente a
existência de qualquer campanha desse tipo.
Havia uma grande ironia nesses ataques. Não era
novidade para mim ser punido por falar ou agir além dos
limites. Na maioria das ocasiões anteriores, as acusações
tinham surgido em resposta às minhas cobranças por
avanços mais rápidos no desarmamento ou comentários
acerca do valor limitado das sanções do Conselho de
Segurança como estratégia diplomática isolada. Dessa vez
eu estava sendo acusado de trabalhar de maneira
independente para tentar implementar uma missão de
verificação fundamental da AIEA. No início de agosto,
pudemos relatar progressos para a diretoria quanto ao
plano de trabalho: várias questões de verificação nuclear
tinham sido resolvidas porque o Irã havia fornecido
informações que buscávamos havia muito tempo. Mas
esse sucesso foi condenado. A verdade era que os norte-
americanos só queriam mostrar o Irã como um Estado
pária não cooperativo, que violava as obrigações
internacionais e por isso merecia continuar a ser punido.
Meus relatórios estavam atrapalhando a rota de ação
preferida dos norte-americanos.
Para qualquer um que se importasse, as cartas agora
estavam na mesa. Os linha-dura do Ocidente não estavam
preocupados em esclarecer as questões pendentes. Do
contrário, concentravam-se em negar ao Irã a tecnologia
por meio do isolamento, do confronto retórico e dos jogos
ideológicos. Talvez esse fosse o negócio deles, mas não era
o meu. E eu não ficaria quieto assistindo àquilo enquanto
extremistas plantavam a semente de outra guerra
devastadora no Oriente Médio.
A disposição da imprensa em ser manipulada era
particularmente preocupante. Algumas das frases-chave
usadas para criticar a AIEA foram repetidas pelos principais
órgãos da imprensa norte-americana, o que me fez pensar
se o governo dos EUA estava por trás de uma campanha
orquestrada. Isso me fez lembrar do período anterior à
Guerra do Iraque. Era interessante que, em todas as
análises, não houvesse uma única contestação consistente
em relação às políticas ou passos que eu havia dado. Os
argumentos se concentravam em lançar dúvida sobre o
meu caráter e minhas motivações.
Eu dei o troco. Concedi várias entrevistas deixando claro
que a AIEA não havia visto nenhuma instalação não
declarada no Irã nem qualquer atividade ligada a
armamentos. Por isso, eu disse que, em nossa avaliação, o
Irã não constituía perigo que exigisse qualquer tipo de
ação além da diplomacia. O que era necessário em todo o
Oriente Médio era uma “força branda”: educação, diálogo
intercultural, boa governança e desenvolvimento. Qualquer
uso de força, eu declarei, transformaria o Oriente Médio
em uma bola de fogo.
Enquanto isso, as negociações com o P5+1 não
avançavam. Apesar dos esforços de Larijani para retomar
as “prenegociações”, Solana foi impedido pelos norte-
americanos de continuar. Ele disse a Larijani que eles
poderiam se encontrar depois que o plano de trabalho
tivesse sido concluído. Por outro lado, os russos e os
chineses afirmaram aos outros membros do P5+1 que não
apoiariam outro conjunto de sanções. Dessa forma, o único
jogo possível, naquele momento, era o trabalho da AIEA
com os iranianos nas questões pendentes.
Na reunião da diretoria, em setembro, eu tinha visto a
declaração que estava sendo elaborada pelo EU-3. Era
bastante negativa. Omitia, claramente, a costumeira
expressão de apoio à agência e a seu diretor-geral como
imparciais e profissionais. Eu sabia que os franceses
vinham tentando apagar essa frase nas últimas reuniões
da diretoria. Dessa vez eles tinham conseguido. Decidi que
a melhor resposta era sair durante o discurso, e foi o que
eu fiz. Esse gesto, aparentemente singelo, foi amplamente
divulgado na mídia. O efeito foi enviar uma mensagem ao
restante dos países europeus para que não se deixassem
atrair pelo comportamento imprudente de um ou dois
países da União Europeia, nesse caso, a França172.
Bernard Kouchner, o novo ministro das Relações
Exteriores da França, declarou em uma entrevista a
respeito do Irã na Rádio RTL que “temos de nos preparar
para o pior, e o pior é a guerra”. Sua entrevista ocorreu
exatamente quando a AIEA estava começando sua
Conferência Geral anual. Em resposta pública, lembrei que,
sob a lei internacional, havia regras para o uso da força
militar, incluindo a aprovação do Conselho de Segurança.
Muitos políticos, inclusive os alemães e os russos, reagiram
com firmeza à declaração de Kouchner, e ele agiu
prontamente para retirar o que dissera173.
Depois de toda a comoção a respeito do plano de
trabalho, no final de setembro o P5+1 endossou-o,
insistindo para que o Irã “produzisse resultados palpáveis
rápida e concretamente, esclarecendo todas as
preocupações e questões pendentes”. Os chineses e os
russos já haviam deixado claro que apoiavam o plano. Eu
soube que o EU-3 havia alertado os EUA sobre os ataques
à agência, classificando-os como contraproducentes, que o
tiro poderia sair pela culatra.
Qualquer que fosse a razão, os norte-americanos
também mudaram rapidamente de posição. Uma semana
antes, Condoleezza Rice tinha acertado um golpe contra a
agência e, por extensão, contra mim174. “A AIEA não está
no negócio da diplomacia”, ela declarou. “A AIEA é uma
agência técnica com um conselho de governos, do qual os
Estados Unidos são membro.” Depois, em uma reviravolta
bastante diplomática, Nicholas Burns, subsecretário de
Estado para Negócios Políticos, quando questionado a
respeito das críticas dos Estados Unidos ao plano, dava a
entender que os norte-americanos sempre o apoiaram.

As complicadas manobras políticas tanto em Washington


quanto em Teerã dificultavam o avanço. Quando continuei
a insistir para que os iranianos não expandissem sua
capacidade de enriquecimento de urânio além de 3 mil
centrífugas e para que implementassem o Protocolo
Adicional, Larijani disse: “Estou fazendo o melhor que
posso, mas você precisa entender que estou trabalhando
em um ambiente difícil”. Mesmo tendo uma visão em
primeira mão, era difícil entender a dinâmica da situação
política iraniana. A estrutura de tomada de decisões, lenta
e difusa, acrescida ao que parecia ser uma cultura de
negociação de bazar, tornara difícil lidar com os iranianos.
O lado norte-americano não era menos sombrio. A
estratégia da repetição obstinada, na falta de qualquer
prova, de que o Irã pretendia produzir armas nucleares
parecia convencer o público norte-americano e até o
Congresso – e às vezes os norte-americanos pareciam
perplexos ou irritados por não conseguirem convencer boa
parte da comunidade internacional. No final de 2007,
participei de uma reunião de inteligência com a missão
norte-americana. Entre outros tópicos, eles repetiram suas
suspeitas de que o Irã, pelo menos no passado, havia
conduzido experiências e adquirido certos equipamentos e
substâncias que só podiam ser interpretados como uma
indicação de que pretendiam desenvolver armas
nucleares175. No entanto, reconheciam – como na maioria
dos encontros da Inteligência norte-americana anteriores –
que não havia indicações de que o Irã tivesse material
nuclear não declarado. Depois do fracasso no Iraque, a
comunidade de inteligência norte-americana tinha ficado
mais circunspecta em suas avaliações. O encontro serviu
sobretudo para confirmar o que eu já vinha dizendo, e
ainda assim essa cautela, de alguma forma, não definia a
postura pública norte-americana.
No final desse encontro, Schulte me entregou uma foto
minha com Rice, tirada em nosso último encontro. Ela
havia autografado: “Com admiração e os melhores
cumprimentos”. Achei engraçado, pois foi logo após um
desentendimento público entre nós. Mas o gesto ilustrava
a natureza contraditória e dividida da política americana-
iraniana.
Simultaneamente ao meu encontro com a Inteligência
dos Estados Unidos no outono, Bush fez uma série de
comentários estranhos sobre a situação do Irã. Um
discurso para a Legião Americana, em Reno, foi pontuado
por imagens incendiárias: “A busca ativa do Irã por
tecnologia que possa levar a armas nucleares ameaça
colocar uma região, já conhecida por sua instabilidade e
violência, sob a sombra de um holocausto nuclear”176. Em
uma coletiva de imprensa realizada no dia 17 de outubro,
ele observou: “Tenho dito às pessoas que, se elas
estiverem interessadas em evitar a III Guerra Mundial,
então devem evitar que [os iranianos] tenham o
conhecimento necessário para fazer uma arma
177
nuclear” . Falando para um canal de notícias alemão em
14 de novembro, ele arremessou mais uma granada
verbal: “Se você quiser ter uma III Guerra Mundial, só
precisa soltar uma bomba atômica em Israel”178. Eu não
sabia se o objetivo dessas declarações era elevar a
pressão contra o Irã ou preparar as bases para um ataque
militar; de qualquer forma, eram irresponsáveis e
evocavam o início de 2003179.
Ainda assim, na mesma época, Rice fez observações que
pareciam destinadas a baixar o tom. “O caminho a seguir”,
ela disse à TV RTR de Moscou, “é dar todas as
possibilidades e apoio aos esforços de Mohamed ElBaradei
para resolver as questões pendentes dos programas do
Irã.”
Espere. Eu tinha ouvido direito? Rice prosseguiu: “Não se
trata de saber se atualmente o Irã tem uma arma nuclear.
Trata-se da capacidade de enriquecimento e
reprocessamento de urânio, o chamado ciclo do
combustível”.
Tentei encontrar um fio condutor. Por um lado, o risco
nuclear iraniano foi caracterizado como menor do que se
imaginava anteriormente – não mais uma questão de
posse iminente de uma arma nuclear pelo país, mas de sua
futura intenção em tê-la. Por outro lado, o Conselho de
Segurança tinha invocado o capítulo mais sombrio da
Carta da ONU, e Bush estava pronto para pegar suas
metralhadoras e começar a disparar. Enquanto isso, a um
continente de distância, a Coreia do Norte, com uma
geração de crianças debilitadas pela desnutrição, ainda
assim desviava todos os seus esforços para a realização de
um teste nuclear bem-sucedido, sendo, porém, tratada
com luvas de pelica pelos mesmos Estados Unidos que
condenavam o Irã.
Apenas alguns poucos senadores e congressistas norte-
americanos preferiam dialogar com o Irã. O senador Arlen
Specter, ainda no Partido Republicano naquela época,
entrou em contato comigo várias vezes para que eu
intermediasse uma visita a Teerã180.
A última solicitação nesse sentido foi feita depois que
Ahmadinejad teve uma recepção humilhante na Columbia
University, em setembro de 2007181. Specter ficou
bastante contrariado com o ocorrido. “Você não convida
alguém para insultá-lo”, declarou. Ele queria organizar uma
visita para sete senadores e congressistas, incluindo Chris
Dodd, Joe Biden e Tom Lantos. Como de praxe, pedi a
Larijani para que Teerã respondesse positivamente,
mantendo as portas abertas ao diálogo. Mas a viagem não
foi adiante; as lideranças iranianas não estavam dispostas
a aceitar uma visita de figuras públicas norte-americanas.
Esse período foi marcado por facadas contraditórias e
aleatórias no compromisso em algo que se tornara comum
na questão iraniana: portas se abrindo e fechando. Em
meados de outubro, o diretor político francês Gérard Araud
me procurou a pedido de Bernard Kouchner. Eu não sabia o
que esperar, considerando as declarações recentes de
Kouchner e do presidente Sarkozy, que haviam dito que, se
a diplomacia falhasse, teríamos de “enfrentar uma
alternativa que considero catastrófica: uma bomba
iraniana ou o bombardeio do Irã”182.
O tom e a visão de Araud, no entanto, eram
surpreendentemente positivos. Ele disse que os franceses
estavam ansiosos para trabalhar comigo em qualquer
iniciativa que pudesse retornar o foco para as negociações
entre o Irã e o P5+1. Kouchner fazia questão de me
convidar para ir a Paris. Na opinião deles, o Irã estava se
sentindo autoconfiante e parecia planejar aguardar a
administração Bush. Mas os franceses ainda estavam
preocupados com uma possível ação militar dos EUA
contra o Irã na primavera ou no verão de 2008, antes da
saída de Bush da presidência.
Naquele mesmo dia, Putin visitou o Irã para pressionar
pela retomada das negociações. De acordo com as
informações que recebi dos russos, Khamenei disse a Putin
que o Irã poderia “considerar uma moratória nas
atividades de enriquecimento de urânio”. Putin parecia ter
proposto uma variação do “intervalo duplo”. Sua visita foi
considerada sinal de que a Rússia não apoiaria uma ação
militar dos Estados Unidos. Em um discurso na Cúpula do
Mar Cáspio, Putin enfatizou o direito de todos os países ao
acesso à tecnologia nuclear e a importância de “respeitar a
soberania e os interesses uns dos outros se abstendo não
apenas do uso de força de qualquer tipo, mas até mesmo
de mencionar o uso de força”183.
Apesar desses lampejos positivos, Ali Larijani renunciou
ao cargo alguns dias após o discurso de Putin na Cúpula.
Em Teerã, um porta-voz do governo anunciou que Larijani
já havia “renunciado várias vezes” e que o presidente
tinha “finalmente acatado”. Saeed Jalili, primeiro-secretário
de Assuntos Exteriores e conhecido confidente de
Ahmadinejad, substituiu Larijani.
A renúncia de Larijani não foi uma grande surpresa,
apesar do sucesso do plano de trabalho. Todos os seus
esforços para encontrar uma fórmula para as negociações
com o P5+1 haviam sido em vão. Mas isso não era bom
sinal. Significava que Javier Solana – que sob
circunstâncias ainda mais suspeitas não tinha conseguido
ser indicado para o P5+1 – estaria tentando arrancar
concessões dos conservadores linha-dura iranianos.
Quando Solana telefonou para me passar informações
sobre os resultados de seu primeiro encontro com Jalili,
disse que não havia conseguido muita coisa. Eu já não
esperava por muito.
Fazia meses que eu não falava com Condoleezza Rice
quando ela me telefonou, no final de outubro. “Você
parece estar sempre nos criticando muito mais do que
critica os iranianos”, ela disse. “Bom, vocês ficam atirando
a esmo contra mim sem motivo”, rebati. Eu disse a ela que
é claro que eu apoiava o pedido do Conselho de Segurança
para que o Irã suspendesse suas atividades de
enriquecimento, assim como continuava a pressionar Teerã
para que fizesse isso, ou que pelo menos não ampliasse
sua capacidade. Nessa frente, parecíamos estar obtendo
sucesso moderado; os últimos relatórios indicavam que o
Irã não havia construído novas cascatas e não estava
abastecendo as cerca de 3 mil centrífugas em operação.
Quanto às sanções, foi uma decisão política para o
Conselho de Segurança, mas eu continuava a achar
evidências de que elas não podiam ser vistas como uma
solução global. A pressão só enrijecera a posição iraniana,
e era por isso que Larijani estava tão frustrado. “A única
maneira de o Irã talvez suspender o enriquecimento de
urânio”, eu disse a Rice, “era através da negociação com o
envolvimento ativo dos EUA, mais uma fórmula para salvar
as aparências e um gesto de boa vontade.”
Mencionei a possibilidade de eu ir em breve a Teerã para
encontrar o aiatolá Khamenei. Nesse contexto, perguntei
quais eram as condições mínimas para os americanos
negociarem. Se o Irã concordasse com o congelamento,
Rice respondeu, eles poderiam se encontrar com os outros
membros do P5+1, mas os Estados Unidos só participariam
se o Irã aceitasse a suspensão total.
“Mesmo que a suspensão fosse de apenas dois meses”,
ela disse, “eu participaria pessoalmente das conversas
com eles, e me envolveria em todas as questões.” Mas a
suspensão continuava a ser a linha vermelha que ela não
podia cruzar.

Havia esperança de que a interação direta com o Líder


Supremo do Irã ajudasse a explicar a percepção
internacional das ações iranianas e reforçar os benefícios
do aumento nos níveis de cooperação. Há algum tempo
vinha sendo traçada uma oportunidade para que eu me
encontrasse com o aiatolá Khamenei. Dois dias antes da
minha partida, entretanto, Olli recebeu uma mensagem
informando que, embora meus encontros com o presidente
Ahmadinejad, Jalili e Aghazadeh estivessem confirmados,
nesse estágio não seria possível o encontro com
Khamenei. Nesse caso, eu queria cancelar a viagem. A
resposta veio na manhã seguinte. “O Líder Supremo lhe
deseja o melhor”, me disseram, “mas acredita que seria
melhor se a visita ocorresse após a próxima reunião da
AIEA.”
Dois membros mais velhos da equipe de negociações do
Irã, com quem eu vinha trabalhando havia anos, me
procuraram para explicar que o encontro com o Líder
Supremo era muito importante como forma de alterar a
dinâmica interna iraniana – eu deduzi que eles queriam
dizer que, se eu pudesse explicar algumas perspectivas
diretamente para Khamenei, seria uma maneira de
moderar os linha-dura. Mas Khamenei tinha a preocupação
de que minha visita não fosse interpretada como uma
tentativa do Irã de pressionar a agência, o que poderia
acontecer se eu fosse para lá antes de apresentar meu
relatório de novembro à diretoria. Eu disse aos iranianos
que não teria outra oportunidade de viajar a Teerã antes
da segunda metade de dezembro. A situação estava
ficando precária, eu os avisei. “Vocês não devem
considerar a possibilidade do uso de força militar
levianamente”, alertei. Diante da não realização da minha
viagem, aproveitei a oportunidade para comunicar que
Condoleezza Rice estaria disposta a se juntar às
negociações se eles assumissem uma suspensão de dois
meses. Aquele era o momento certo: a administração
norte-americana estava ansiosa por um sucesso na política
exterior.
Era precisamente por isso que eles estavam tão ansiosos
para que eu me encontrasse com Khamenei, a fim de
explicar o que precisava ser feito e os potenciais benefícios
disso. Na manhã seguinte, telefonaram para saber se eu
poderia visitá-los no fim de semana anterior à reunião de
novembro da diretoria, mas o momento era inadequado.
Sem a garantia de um avanço considerável, a viagem seria
vista como um golpe publicitário e poderia ser
contraproducente para todos.

Com o plano de trabalho bem encaminhado, mas com


muitas controvérsias cercando o programa nuclear do Irã e
como lidar com ele, a confirmação da correção na
abordagem da agência veio de uma fonte improvável: um
informe da Inteligência norte-americana, o U.S. National
Intelligence Estimate (NIE). No dia 3 de dezembro, quando
eu estava em Montevidéu, recebi a notícia: meu escritório
me mandou por e-mail uma cópia da parte publicada, o
sumário executivo. Em essência, o NIE dizia que o Irã havia
trabalhado em um programa de armas nucleares no
passado, mas o encerrara em 2003.
Do Uruguai, ditei um press release para um de meus
assistentes, Syed Akbaruddin, diplomata indiano. “O
informe NIE”, eu escrevi,
coincide com as declarações que a agência vem fazendo consistentemente
nos últimos anos de que, embora o Irã ainda precise esclarecer alguns
aspectos importantes das suas atividades nucleares do passado e do
presente, a AIEA não tem evidências concretas da existência de um
programa de armas nucleares ou de instalações nucleares não declaradas
no Irã.

Instei todas as partes a reiniciarem as negociações sem


demora.
O NIE também surpreendeu, é claro, a administração
Bush. O presidente norte-americano tentou explicar que as
descobertas não mudavam nada. Para ele, o Irã ainda era
perigoso. E o relatório e seus autores foram prontamente
repudiados pelos radicais americanos e seus partidários
em Israel. Mas o documento inegavelmente soprou o vento
para afastar aqueles que queriam apresentar o Irã como
ameaça iminente e pressionar por uma abordagem de
confronto. Ao voltar para Viena, recebi mais informações
da Inteligência americana. Eles não compartilharam as
supostas evidências que os teriam levado a confirmar o
programa nuclear iraniano do passado, além das mesmas
acusações não confirmadas sobre estudos de armamentos
que já haviam sido discutidas com a agência. Eles
observaram que Khamenei continuava tão poderoso
quanto sempre fora, enfatizando a importância da minha
visita ao Irã.
Para a AIEA, o NIE foi uma lufada de ar fresco; validou a
avaliação da agência sobre a ameaça nuclear iraniana e
representou uma vingança por todos os meus anos de
defesa vigorosa de uma solução diplomática. Como no
caso do Iraque, a análise e a intuição da agência haviam
acertado o alvo. Também como no Iraque, nenhuma das
principais figuras dos governos ocidentais se deu ao
trabalho de reconhecer a validade do nosso julgamento, e
muito menos se desculpar pelo sofrimento que nos
causaram.
Meu encontro com o Líder Supremo, o aiatolá Ali Hoseyni
Khamenei, parecia oportuno enquanto sopravam os ventos
favoráveis trazidos pelo NIE. Eu tinha de atravessar um
mar de funcionários para chegar até ele, mas estava
disposto a ser paciente.
No voo da Lufthansa para Teerã, alguns iranianos que
viviam no exterior vieram me agradecer pela minha recusa
em ceder às pressões. Eles reafirmaram minha impressão
de que até mesmo os iranianos que não gostavam muito
do regime de seu país apoiavam a busca para adquirir
tecnologia.
Uma mulher se aproximou de mim para perguntar da
minha esposa. “Ela é iraniana, não é?”
“Não”, eu respondi, “ela é egípcia.” Fiquei pensando na
rapidez com que os boatos podem se transformar em
fatos.
Em nossa primeira noite em Teerã, Aghazadeh ofereceu o
costumeiro jantar de boas-vindas, em um palácio que
havia pertencido ao xá, construído para ele e sua família.
Ficava ao norte de Teerã, não muito longe de onde eu
estava hospedado, o Esteqlal Hotel, o melhor que a cidade
tinha a oferecer.
As reuniões seguiram seu curso. Chamei a atenção para
alguns pontos centrais: eu estava falando não apenas
como diretor-geral da AIEA, mas também como alguém
preocupado com os interesses do povo iraniano. Eu não
queria ver o Irã sujeito a uma onda crescente de sanções
do Conselho de Segurança da ONU. Era importante, eu
disse, que o país criasse as condições ideais para a
negociação com o Ocidente – os Estados Unidos em
particular – e cultivasse relações melhores com seus
vizinhos no Golfo, que estavam ficando intimidados com a
perspectiva de dominação regional do Irã. Enfatizei a
urgência de abordar a preocupação crescente com o
objetivo final do programa de enriquecimento de urânio.
Mas, a cada oportunidade, eu voltava para uma questão-
chave: aproveitar o momento. A situação era favorável ao
Irã, por três razões: o recente informe da inteligência
norte-americana; a cooperação do Irã com o plano de
trabalho da AIEA, que havia resultado em um relatório
positivo para a diretoria; e um anúncio recente do
presidente Ahmadinejad de que o Irã havia dominado a
tecnologia de combustível nuclear baseado na montagem
e na operação bem-sucedidas de 3 mil centrífugas.
“Tudo isso”, eu disse, “os deixa em uma posição forte. Os
norte-americanos estariam dispostos a iniciar negociações
se vocês suspendessem o enriquecimento de urânio,
mesmo que por dois meses. Por que não tomar a
iniciativa? Em vez de esperar por mais pressão do
Ocidente, declarem vitória com base no domínio da
tecnologia e anunciem uma suspensão de dois meses para
mostrar suas boas intenções.”
Eu disse a eles que Steinmeier, ministro alemão das
Relações Exteriores, se reuniria com seus pares no dia 22
de janeiro. A Rússia e a China tinham solicitado uma
discussão sobre estratégia antes de concordarem com
outras ações do Conselho de Segurança. “O tempo é
essencial”, eu avisei. “Quanto mais cedo vocês agirem,
maiores as chances de influenciarem uma terceira
resolução.”
Ainda assim, as autoridades iranianas pareciam bastante
tranquilas em relação à situação nuclear. Não havia um
senso de urgência. Manouchehr Mottaki, ministro das
Relações Exteriores, disse que no passado o Irã havia
tentado um compromisso – a suspensão do
enriquecimento de urânio durante algum tempo, ou a
implementação voluntária do Protocolo Adicional – e não
recebera nada por suas ações. “Agora cabe ao outro lado
assumir compromissos”, afirmou.
Obviamente, pelo fato de estarem em posição vantajosa,
os iranianos estavam mais corajosos. Mottaki me disse que
o país tinha melhorado a segurança do Iraque. “Quem você
acha que cuidou de Moktada al-Sadr e sua milícia?”, ele
perguntou. O nível do comércio do Irã com países como
Emirados Árabes Unidos e China estava muito elevado, ele
disse, na casa das dezenas de bilhões de dólares. Por isso,
em termos econômicos, o Irã não seria intimidado nem
estava preocupado com a ameaça de sanções adicionais.
Essa perspectiva era como um dedo apontado para o nariz,
um símbolo de desrespeito e insulto.
O que mais chamava a atenção nessas conversas era a
exibição desconcertante das facções políticas e dos
centros de poder iranianos. Cada uma das autoridades
trazia seu próprio ponto de vista sobre como lidar com a
situação nuclear e com o Ocidente em geral. As figuras
mais velhas pareciam analisar a questão nuclear em
termos do seu impacto não apenas sobre o país, mas
também em suas carreiras pessoais e seu prestígio.
Do ponto de vista dos radicais, uma terceira resolução do
Conselho de Segurança iria despertar o ressentimento dos
norte-americanos, o que impulsionaria a popularidade dos
radicais exatamente quando se aproximava a primeira
rodada das eleições para o Parlamento, em meados de
março. O medo de um ataque militar dos Estados Unidos
havia diminuído, e os iranianos estavam começando a se
concentrar no péssimo desempenho econômico do
governo. Para os partidários de Khamenei, se as eleições
favorecessem os moderados, o líder ficaria em uma
posição muito mais forte para lidar com a questão nuclear
de maneira mais amena.
Meu encontro com Saeed Jalili, novo encarregado das
negociações nucleares do Irã, foi bastante instrutivo. Ele
via o Ocidente com indisfarçável desconfiança e era
especialmente crítico em relação a Javier Solana, seu
correspondente no EU-3. Segundo Jalili, na última vez em
que se viram, Solana havia traçado quatro pontos para o
diálogo entre o Irã e o P5+1: democracia na região;
controle de armas e do terrorismo; necessidade de
energia; e cooperação econômica. Depois eu soube que
Jalili também tinha ido ao encontro pronto para assinar
uma proposta da Suíça para limitar a construção de
centrífugas, mas Solana não se mostrou aberto para tal184.
“Antes de iniciarmos uma negociação com o Ocidente”,
Jalili concluiu, “precisamos estabelecer um paradigma do
que estamos fazendo. Será uma negociação entre dois
inimigos ou dois parceiros?” Era uma pergunta que eu
ouvia com muita frequência das autoridades iranianas
mais velhas, refletindo a atenção em um objetivo mais
amplo, baseado na confiança, no acordo mútuo e no
respeito.
Meu encontro com Ahmadinejad ocorreu no palácio
presidencial, outra das antigas residências do xá, mas a
decoração em nada combinava com a grandiosidade do
edifício.
Olli Heinonen e Vilmos Cserveny me acompanharam.
Ahmadinejad nos recebeu com suavidade e amabilidade.
Seu estilo pessoal contrastava profundamente com a
demonização feita no Ocidente. Ele foi educado e bastante
razoável durante toda a conversa, apesar das opiniões
rígidas sobre certo e errado. Disse o que pensava com
firmeza, mas não tentei confrontá-lo ou desafiá-lo, pois
meu objetivo era que as coisas avançassem.
Ignorei todas as declarações inflamatórias de
Ahmadinejad a respeito de Israel e do Holocausto. Eu havia
sido alertado por falantes do dialeto parse de que seu
notório comentário sobre Israel “riscado do mapa” havia
sido um mal-entendido da mídia ocidental. Ahmadinejad,
eles disseram, estava falando não do Estado de Israel, mas
do “regime sionista”. Isso me fez lembrar de um encontro
em Jerusalém, em 1977, quando Menachen Begin, na
época primeiro-ministro de Israel, fez um discurso para a
delegação egípcia no qual invocou que não existia “isso
que chamam de povo palestino”, apenas árabes palestinos
e judeus palestinos. Tal declaração também foi carregada
de emoção; a questão, tanto naquela época como nesta
ocasião, era como superá-la e embarcar em um diálogo
significativo. De qualquer forma, Ahmadinejad havia
repetido uma citação feita pelo primeiro líder islamita do
Irã, o aiatolá Khomeini. Apesar de mal-aconselhado, ele
estaria disposto a se retratar pelo que havia dito e não
tinha nada a ganhar abordando esse assunto na reunião.
Ahmadinejad respondeu positivamente quando enfatizei
que o Irã precisava melhorar as relações com seus
vizinhos. Ele mencionou que havia participado da Cúpula
do Conselho de Cooperação do Golfo. Os sauditas, ele
disse, o haviam convidado para o Hadj185. Era óbvio que a
expressão pública de relações cordiais com o Irã por
muitos líderes do Golfo contrastava explicitamente com as
declarações em particular de medo e desconfiança.
Com Ahmadinejad e Jalili, eu toquei de novo na ideia de
convidar os senadores e congressistas norte-americanos.
“Certamente seria do seu interesse”, eu disse, “realizar
discussões racionais com norte-americanos influentes que
podem vir a Teerã e ouvir o que vocês têm a dizer, sem
intermediários.” Ahmadinejad disse que iria pensar na
proposta. Fui informado de que eles provavelmente
voltariam com uma resposta definitiva em algumas
semanas. Na verdade, isso nunca foi adiante.
A reunião mais importante que tive foi com o Líder
Supremo da República Islâmica do Irã. Ele raramente se
encontrava com líderes estrangeiros não muçulmanos.
Para um título tão pomposo, o aiatolá Khamenei trabalha
em um lugar bastante modesto, muito mais simples do
que o escritório de Ahmadinejad. O local me fez lembrar
uma casa de campo bem modesta. Encontramo-nos no que
parecia ser uma sala de estar, simples a ponto de beirar a
austeridade. Ficamos sentados em cadeiras modestas; os
outros participantes se sentaram em um banco. Como
sempre, foram servidos chá, frutas secas e nozes.
Eu tinha ido sozinho. Khamenei estava acompanhado de
seu conselheiro de política exterior, Ali Akbar Velayati, um
ex-ministro das Relações Exteriores. Aghazadeh e Saeedi
também estavam presentes. Achei curioso que nem
Ahmadinejad nem Jalili tivessem sido convidados.
De acordo com a tradição iraniana e muçulmana, nós nos
cumprimentamos com um abraço. Khamenei, alto e magro,
tinha a aparência e os modos de uma figura paterna; era
reservado mas afável e sensível. Às vezes, quase me
parecia um pouco frágil. Mas estava no comando pleno de
todos os detalhes e era quem inegavelmente mandava.
Nosso encontro começou com um breve segmento
público, televisionado. Falando para as câmeras, Khamenei
declarou que a República Islâmica do Irã jamais ficaria de
joelhos – isso queria dizer, pelo que pude entender, que,
por maior que fosse o número de sanções, o Irã jamais
suspenderia o enriquecimento de urânio ou colocaria um
fim naquilo que reconhecia como seu direito legítimo.
Quando as equipes de TV se retiraram, o tom foi outro.
Disse a Khamenei que estava falando basicamente como
amigo do povo iraniano. Repeti o conjunto de mensagens
que havia transmitido às outras autoridades iranianas: o
progresso do caso Irã na AIEA; a disposição do P5+1 em
retomar as negociações; e os benefícios de se mexer
rapidamente para aproveitar a dinâmica atual. Os dois
lados haviam cometido erros, mas agora tínhamos a
possibilidade de aprender com o passado e avançar,
expliquei.
Khamenei ouviu atentamente. Ele me agradeceu pela
independência que eu havia mantido diante da pressão
externa. Isso, em sua opinião, contribuíra para a
credibilidade da agência. O Irã estava comprometido em
trabalhar com a AIEA para resolver todas as questões
nucleares remanescentes, acrescentou. Na verdade, a AIEA
deveria ser a única interlocutora do país; tinha sido um
erro discutir o programa nuclear do Irã com terceiros.
Assim que o Conselho de Segurança devolvesse o caso
iraniano para a agência, ele enfatizou, o país estaria pronto
para implementar o Protocolo Adicional.
Mas, fazendo um gesto com a mão, Khamenei descartou
a suspensão ou o congelamento das operações de
enriquecimento do Irã. Para ele, isso era apenas uma
invenção dos norte-americanos. O verdadeiro problema era
a ira dos EUA pelo papel emergente do país na região.
Khamenei estava pronto para tratar todas as questões de
segurança e comércio regionais com o Ocidente, mas não
via razão para o Irã mostrar flexibilidade sobre o
enriquecimento de urânio. O Irã, ele insistiu, jamais tivera
um programa de armas nucleares; isso seria contra o islã.
Eu sabia que ele tinha repetido essa declaração
publicamente várias vezes.
Eu disse que acreditava ser muito importante restaurar
as relações com o Egito e outros vizinhos. Khamenei
concordou com um aceno de cabeça, respondendo que o
Irã se dispusera a isso durante algum tempo; no entanto,
ele não acreditava que Mubarak estivesse em “condições
de tomar uma decisão dessas”. Eu não sabia se estava se
referindo à falta de liderança de Mubarak ou à pressão que
ele estava sofrendo dos norte-americanos e dos chefes da
Inteligência egípcia. Eu não entrei no mérito da questão.
Como parte da nossa visita, os iranianos se ofereceram
para nos levar ao seu laboratório de P&D, onde estavam
trabalhando com centrífugas da “próxima geração”: uma
versão modificada da máquina P-2, que seria muito mais
eficiente que o modelo P-1 usado em Natanz. Vários
protótipos estavam sendo desenvolvidos, e eles
pretendiam testá-los nas instalações de enriquecimento de
urânio, em Natanz. O laboratório em si era impressionante:
limpo, organizado e cheio de jovens cientistas e
engenheiros trabalhando em vários instrumentos e
computadores. A grande diferença estava nas jovens
vestidas com o tradicional chador, peritas em softwares
avançados e técnicas ultramodernas, trabalhando duro
para melhorar a capacidade de enriquecimento de urânio
do Irã.
Aghazadeh, que acompanhou nosso grupo, disse
orgulhoso que a maior parte do material e do equipamento
em uso estava sendo produzida no próprio Irã. Tanto para
Olli quanto para mim, as implicações desse fato eram
evidentes: acompanhar as atividades de enriquecimento
de urânio iranianas seria muito mais difícil, uma vez que
haveria menos atividades de importação/exportação assim
como informações sobre aquisições. Na opinião de Olli, a
mudança para a produção local também implicava que o
Irã não planejava partir para uma operação em escala
industrial em Natanz por alguns anos. Não fazia muito
sentido esgotar seu suprimento limitado de certos
materiais – aços maraging, por exemplo – justamente
quando estavam começando a desenvolver um modelo
mais eficiente.
Eu não dei entrevistas para a mídia durante minha
estada em Teerã. Sabia que a imprensa iraniana iria
distorcer o que eu dissesse. Distribuí uma breve
declaração para a imprensa quando voltei para Viena,
dizendo que havíamos concordado em acelerar o processo
de cooperação.
Em Viena, choveram telefonemas. David Miliband ligou
no primeiro dia. Steinmeier e Kisliak foram me ver.
Apresentei a cada um deles – e a cada um dos outros
membros do P5+1 – um informe detalhado enfatizando o
provável impacto negativo de forçar uma terceira
resolução do Conselho de Segurança com mais sanções. A
provocação de outra resolução poderia levar o Irã a cortar
sua cooperação com a AIEA, justamente quando
estávamos preparados, no âmbito do plano de trabalho,
para discutir os detalhes dos supostos estudos de armas
nucleares no passado e o potencial envolvimento dos
militares iranianos no programa nuclear. Também
mencionei o que tinha ouvido sobre o provável impacto de
tal resolução nas eleições parlamentares em meados de
março.
Steinmeier não acreditava que os seis países fossem
concordar com outra forma de ação. “Os EUA passaram os
últimos trinta anos sem conseguir entender essa região”,
ele disse. “Se o Conselho se decidir por uma terceira
resolução”, eu falei, “que pelo menos a tente fazer ser algo
encorajador para o Irã.” Em vez de mais sanções, por que
não dar ao país algum crédito por sua recente cooperação
com a AIEA? “E, por favor”, eu insisti, “tente ganhar tempo
para concluirmos o plano de trabalho.” Estávamos
atrasados em relação ao cronograma original, porém
fazendo progressos, e o momento não era propício para
tomar atitudes que pudessem levar o Irã a voltar atrás em
sua decisão.
O encontro do P5+1 foi realizado no dia 22 de janeiro em
Berlim. Para minha grande decepção, Steinmeier fez uma
declaração pública afirmando que os seis países haviam
concordado no conteúdo de uma nova resolução do
Conselho de Segurança, a ser avaliada em Nova York “nas
próximas semanas”. Para mim, ele havia prometido que
nenhuma resolução seria adotada antes do final de
fevereiro.
Em meio a discussões sobre uma nova resolução, o apoio
para a continuidade do diálogo veio de uma fonte
surpreendente: em uma entrevista na CNN, Colin Powell
disse que “estamos conversando com eles em Bagdá há
alguns meses sobre questões de segurança. E, se podemos
fazer isso em Bagdá com nosso embaixador e os
representantes deles, não vejo por que não falarmos com
eles em outros fóruns”. Foi a primeira vez que ouvi Powell –
já fora do governo – desferindo um golpe na política da
administração Bush para o Irã:
Os Estados Unidos são uma nação forte, poderosa. Somos politicamente
poderosos, economicamente poderosos, militarmente poderosos. E, em
minha opinião, com todo esse poder e toda essa influência mundial,
deveríamos mostrar mais disposição para conversar com nações
basicamente mais fracas do que nós. E não devemos ter medo dos outros
nos verem conversando com elas.186

Mas Powell poderia muito bem ter segurado a respiração.


Nicholas Burns telefonou no dia 13 de fevereiro para
perguntar se eu faria uma declaração pública de apoio a
uma terceira resolução do Conselho de Segurança. “Isso
faria uma tremenda diferença”, disse. Apesar de eu ter
respondido que iria pensar, é claro que eu não poderia
expressar tal apoio. Era simplesmente bizarro que essa
solicitação viesse da mesma administração norte-
americana que continuava a reclamar do meu
envolvimento “na política”. E, quando vi a minuta da
resolução, reparei em um parágrafo surpreendente, “...
elogiando a AIEA por seus esforços em resolver questões
pendentes relativas ao programa nuclear do Irã no plano
de trabalho” – isso vindo de pessoas que vociferaram
contra o plano. Se passou a ser considerado uma
abordagem sensata, por que fazer sanções que tinham
todas as possibilidades de arruiná-la?

Eu ainda veria outra mudança errática na história iraniana,


dessa vez em uma viagem à França, onde me encontraria
com o presidente Sarkozy, o ministro das Relações
Exteriores Kouchner e outras autoridades francesas. Um
ministro das Relações Exteriores ocidental disse que, em
sua opinião, a política exterior da França havia ficado
“maluca”. Ouvi a mesma coisa de outros canais
diplomáticos nos bastidores: os franceses estavam
irritando os europeus.
Sarkozy compareceu à reunião sem paletó e pediu
imediatamente um café. Depois de algum tempo, olhou
para mim e perguntou se eu também queria café. Nada foi
oferecido aos demais – em contraste bastante peculiar
com o encontro que eu tivera alguns anos antes com
Chirac, com a formalidade geralmente associada ao Eliseu.
Sarkozy começou a falar sem rodeios, bastante
agressivo: “Sr. ElBaradei, sou amigo dos Estados Unidos e
de Israel”.
Senti a tentação de dizer “E daí?”, mas segurei a língua.
“Quero lhe dizer o que penso”, ele continuou, ressaltando
o “perigo mortal” do programa do Irã. Os iranianos,
segundo ele, estavam usando a agência e a mim. Seu
medo era que os norte-americanos ou os israelenses
bombardeassem o Irã. Enquanto ele falava, seu celular
começou a vibrar. Ele saiu para atender. Reparei nos
olhares sutis de desaprovação ao redor da mesa. Sarkozy
então voltou e continuou a partir de onde havia parado.
Finalmente, ele fez uma pausa. Não vi motivo para ficar
quieto. “Sr. Sarkozi”, eu disse, “precisa entender que o
Ocidente administrou muito mal o caso iraniano. Quando o
Irã já estava suspendendo seu programa de
enriquecimento de urânio, tudo o que recebeu em troca foi
uma enganação. A França foi a grande responsável por
isso. Seus compatriotas tiveram medo demais da oposição
dos norte-americanos para prometer ao Irã a tecnologia de
energia nuclear ocidental. Esse foi o ponto crucial que fez
os iranianos se sentirem passados para trás. E foi assim
que essa série de fracassos diplomáticos começou.”
Depois dessa experiência decepcionante, os iranianos
decidiram fazer a conversão de urânio e, em seguida, seu
enriquecimento, fait accompli. Expliquei que o
enriquecimento, para o Irã, era um porto seguro. Não
significava necessariamente que estivessem atrás de uma
arma. Mas, acrescentando mais sanções, o Ocidente
estava pedindo uma retaliação do Irã, o que levaria a uma
escalada contínua.
Eu também temia o pior. “Qual seria o efeito em todo o
mundo muçulmano”, eu perguntei, “se força militar fosse
usada para conter o programa nuclear do Irã? Entre outras
coisas, isso poderia levar a um regime extremista no
Paquistão, onde já existem mais de cinquenta armas
nucleares.”
A única solução, eu disse a Sarkozy, era conseguir um
compromisso com os iranianos. Sugeri propor um
“congelamento” – isto é, nenhuma expansão – das
atividades de enriquecimento de urânio em troca do fim
das sanções, o compromisso do Ocidente de fornecer aos
iranianos reatores franceses e o compromisso do Irã de
permitir que a agência realizasse um programa de
inspeção. A suspensão total do enriquecimento, expliquei,
já não era uma solicitação de peso. Não reduziria o “risco”
de maneira alguma; o Irã já detinha o conhecimento. Eles
poderiam continuar a trabalhar em segredo. A insistência
na suspensão serviria apenas para humilhar o país. Da
perspectiva da proliferação nuclear, uma inspeção era
muito mais importante.
Para minha surpresa total, Sarkozy mudou
completamente o discurso. Sem consultar qualquer um dos
figurões sentados ao redor da mesa ou mesmo olhar para
eles, ele disse que concordaria em apoiar minha proposta,
incluindo o fornecimento de reatores franceses ao Irã. Eu
podia ver a ansiedade no rosto de seus parceiros. Era
óbvio que ele tinha tomado a decisão naquela hora.
Eu respondi que iria entrar em contato com os iranianos
para ver se conseguia uma resposta positiva, e a reunião
acabou logo em seguida. Enquanto Sarkozy me
acompanhava até a saída, eu o cumprimentei pelo seu
casamento. Ele sorriu.
Encontrei-me separadamente com Kouchner, pessoa
muito agradável. O francês me disse que havia tentado
várias vezes um acerto com Teerã, inclusive convidando
autoridades a ir a Paris no mês de novembro, porém não
obtivera resposta. Kouchner achava que os iranianos
poderiam ter concluído que era melhor esperar por uma
nova administração nos EUA. Ele me deu o número do seu
celular, dizendo que eu deveria lhe telefonar diretamente
se tivesse alguma notícia dos iranianos.
No fim de semana, em Viena, telefonei para Aghazadeh e
pedi que fosse me ver no início da semana seguinte. Mas,
no dia em que deveríamos nos encontrar, recebi um
telefonema de François-Xavier Deniau, o embaixador
francês, dizendo para eu não transmitir nenhuma
mensagem aos iranianos antes de os franceses me
enviarem alguns “esclarecimentos”. Aquela notícia era
embaraçosa, pois Aghazadeh estava a caminho. Se eles
tinham “esclarecimentos” a fazer, por que não o fizeram
na minha visita a Paris?
A resposta de Deniau, três dias depois, foi que, na
verdade, os franceses iriam contatar o Irã diretamente, e
não por meu intermédio. Surpreso e decepcionado, eu
respondi que isso não era nem diplomático nem
apropriado. “Normalmente”, continuei, “levo as palavras
de um presidente a sério.” Era óbvio que as pessoas ao
redor de Sarkozy o haviam convencido de que os norte-
americanos reagiriam negativamente se ele concordasse
com minha proposta. A decisão seria vista como uma
iniciativa isolada da França, fora da estrutura do P5+1.
Deniau tentou convencer Philippe Jamet, um dos meus
colegas franceses na AIEA, de que eu tinha “entendido
mal” o que Sarkozy dissera. Jamet, que também estivera
presente ao encontro, respondeu sarcasticamente: “Essa é
uma maneira inteligente de reescrever a história”.

O criticado e depois elogiado plano de trabalho forneceu a


essência para o meu relatório positivo de fevereiro de 2008
sobre o Irã. Tínhamos feito avanços significativos: a última
das nossas questões sobre as partículas de urânio
altamente enriquecido e fracamente enriquecido que
havíamos detectado em vários locais no Irã finalmente
havia sido respondida. Os iranianos explicaram suas
experiências com polônio, suas atividades na mina Gchine
e as aquisições do ex-chefe do Centro de Pesquisas Físicas.
A última das discrepâncias em relação à aquisição das
centrífugas P-1 e P-2 havia sido abordada em meu relatório
de novembro de 2007. Apesar de alguns pequenos atrasos,
os iranianos mantiveram seu compromisso com o plano de
trabalho. Foi a cooperação mais consistente e
comprometida que havíamos tido em muitos anos.
Apenas uma questão permanecia em aberto: os supostos
estudos para a fabricação de armas recém-chegados a nós
pela inteligência norte-americana. Isso incluía o chamado
Green Salt Project187, testes com explosivos de grande
potência e projetos de mísseis com corpos de reingresso
na atmosfera que acomodariam uma ogiva nuclear. Em
conjunto, esses elementos apontavam para um possível
programa atômico, principalmente devido à indicação de
ligação administrativa entre os vários aspectos desses
estudos.
O problema era que ninguém sabia se aquilo tudo era
verdade. As suposições teriam surgido de um computador
portátil contendo vasta documentação. A inteligência
norte-americana disse que o material havia sido entregue
a eles em meados de 2004, vindo do Irã, mas se
recusaram a revelar a fonte. Informaram apenas que o
receberam de terceiros e que existiam motivos para
acreditar que a tal pessoa agora estava morta.
“Eu posso fabricar esses dados. Parece perfeito, mas
deixa margens a dúvidas.” Essa declaração, de um
anônimo “diplomata europeu experiente”, citada no New
York Times, era uma reação típica reproduzida por vários
especialistas nucleares188. A documentação parecia
condenatória, mas apenas se a sua autenticidade pudesse
ser comprovada. A impossibilidade de rastrear a origem
tornava a informação extremamente difícil de ser
verificada. Pior ainda, os Estados Unidos se recusavam a
liberar cópias da documentação para podermos começar o
processo investigativo com o Irã. O pouco que
conseguíamos passar para o Irã era rejeitado como
informação fabricada e sem fundamento.
Depois de muitos meses de impasse em relação a esses
supostos estudos, a AIEA recebeu mais alguns documentos
– apesar de muito poucos – para poder dar início à
investigação. Trabalhando para cobrir todos os ângulos, os
inspetores da agência também identificaram atividades de
aquisição por parte de várias entidades iranianas que
acreditávamos estar relacionadas com os supostos
estudos. O Irã concordou em tratar da questão do
armamento nos termos do plano de trabalho e, assim,
nossas discussões tiveram início. Mas, como mostrou o
relatório de fevereiro, ainda havia um longo caminho a
percorrer. Então, dois dias antes da data agendada para
análise do relatório pela diretoria da AIEA, o Conselho de
Segurança adotou a terceira resolução, com mais sanções
ao Irã. Em outras palavras, o Conselho proclamou o
veredicto antes da deliberação. Tive acesso a uma minuta
de resolução que nem sequer fazia referência ao meu
relatório189. Tratava-se não apenas de uma falha
processual, como também dava a impressão – talvez exata
– de que o Conselho estava agindo com base em objetivos
políticos predeterminados, e não em fatos.
As reações ao relatório surgiram por todo o mundo. Os
Estados Unidos elogiaram, dizendo que o documento
condenava o Irã, provavelmente porque algumas das
suposições sobre estudos nucleares foram colocadas em
aberto pela primeira vez. Os iranianos declararam que era
“uma vitória completa, reabilitando nosso programa”,
provavelmente por causa de todas as questões resolvidas.
É claro que todos leram o relatório de maneira seletiva.
As reações na mídia ficaram igualmente divididas.
Danielle Pletka e Michael Rubin, do Wall Street Journal, me
acusaram de ser antiocidental e de ter uma pauta
escondida:

O relatório do Sr. ElBaradei é o ponto alto de uma carreira autônoma e


ineficiente que manchou a reputação da agência que ele dirige. Ele usou seu
Prêmio Nobel para cultivar uma imagem de advogado tecnocrata
interessado na paz e na justiça acima da política. Na verdade, ele é uma
figura profundamente política, movida pela antipatia pelo Ocidente e por
Israel, que se transformou em uma cruzada individual para salvar os
regimes preferidos das acusações de proliferação nuclear.190

Indo além, outra autoridade israelense, o ministro da


Habitação Zeev Boim, exigiu minha demissão, dizendo que
meu comportamento era o de um “agente infiltrado”191.
Felizmente, essas críticas foram contrabalançadas por
outras análises, entre elas um artigo no Financial Times de
Joe Cirincione e Ray Takeyh, do Conselho de Relações
Exteriores. Apesar dos ataques contra mim, eles disseram
que eu estava tendo êxito no desarmamento do Irã:

A questão que os críticos do Sr. ElBaradei ignoram é que ele está


conseguindo criteriosamente alcançar os objetivos aparentemente
desejados – o desarmamento da República Islâmica... Em vez de sanções, o
Ocidente deveria considerar que uma diplomacia sutil de reconciliação
poderia tanto regulamentar o programa nuclear do Irã quanto ajudar a
estabilizar o Oriente Médio. O tão criticado Sr. ElBaradei é quem está
abrindo o caminho para o sucesso.192

No dia 8 de abril, surgiram os primeiros sinais da reação


do Irã à resolução do Conselho de Segurança, quando
Ahmadinejad anunciou planos para expandir as operações
de enriquecimento de urânio para 6 mil centrífugas em
Natanz. Isso era claramente uma demonstração de poder
para o seu público interno. Também poderia visar a exercer
pressão sobre os Estados Unidos e a Europa para que
tomassem outra direção.
De qualquer forma, seu pronunciamento não foi colocado
em prática. Os iranianos continuaram a instalar
centrífugas, mas em ritmo mais lento do que o previsto. O
principal objetivo era adquirir experiência na operação das
já 3 mil máquinas P-1 existentes e no teste de máquinas
da geração seguinte, com maior capacidade, que eles
chamavam de modelos IR-2 e IR-3.
O resultado mais lamentável da resolução foi que a
cooperação do Irã com a AIEA praticamente estagnou na
discussão dos fatos ligados aos supostos estudos
nucleares. Nas semanas seguintes, fizemos poucos
progressos.
Pouco antes de eu fazer meu relatório de maio de 2008
sobre o país, os iranianos nos ofereceram acesso a
informações cruciais – precisamente o que vínhamos
exigindo. Isso provaria, segundo eles, que suas atividades
não estavam relacionadas a questões nucleares. Mas havia
uma condição: a AIEA tinha de garantir de antemão que
concluiria a questão antes da reunião da diretoria, prevista
para junho.
Isso era ridículo. Não podíamos dar uma garantia
antecipada do fato, e eles sabiam disso. Em meu relatório,
critiquei o Irã por essa falta de transparência. Para manter
as coisas em perspectiva, enfatizei que não tínhamos visto
sinais de uso de material radioativo nas supostas
atividades, mas, pelo que eu podia concluir, o Irã estava
“brincando de esperar para ver uma mudança” na
administração norte-americana. Se o trabalho de
desenvolvimento nuclear de fato havia ocorrido, os
iranianos provavelmente tentariam fazer essa revelação
apenas durante as negociações com os Estados Unidos,
como parte de um acordo mais amplo sobre as questões
nucleares do país. E se a documentação do computador
tivesse sido forjada, como afirmava o Irã, os iranianos
provavelmente tentariam obter um preço alto pelos efeitos
danosos das falsas acusações.
Dois dias após a divulgação do relatório de junho, Olli
Heinonen apresentou um relato técnico que irritou muitos
representantes da AIEA. Ele disse que a agência dispunha
de informações da Inteligência de cerca de dez países com
tendência a apoiar as alegações de que o Irã havia
realizado estudos nucleares no passado. Quando
mencionou um documento sobre urânio que o Irã recebera
em 1987 por intermédio da rede de A. Q. Khan, Olli usou o
termo “alarmante”. Alguns representantes dos países em
desenvolvimento ficaram com a impressão de que ele
havia assimilado as acusações dos EUA.
Para colocar mais lenha na fogueira, o ex-inspetor-chefe
da Comissão Especial das Nações Unidas (UNSCOM), Scott
Ritter, escreveu um artigo acusando Olli de trabalhar para
a CIA e definindo-o como “o yin pró-guerra em
contraposição ao yang anticonfronto representado por seu
chefe, o diretor-geral da AIEA, Mohamed ElBaradei”193.
Ritter ficara conhecido pela franqueza em criticar as
políticas da administração Bush no Iraque e no Irã. Nesse
caso, entretanto, ele estava totalmente equivocado. Olli
era um dos membros mais experientes da minha equipe.
Nós nem sempre concordávamos um com o outro, mas eu
reconhecia sua perspicácia e passávamos muitas horas
dissecando as minúcias do programa nuclear iraniano.
Infelizmente, essa seria a primeira de muitas histórias
indicando que Olli e eu discordávamos nos bastidores
sobre como lidar com o programa nuclear iraniano194.
Enquanto isso, começaram a surgir pedidos de toda parte
para a realização de negociações diretas entre os EUA e o
Irã. O Grupo de Estudos sobre o Iraque, chefiado pelo ex-
secretário de Estado James Baker e o congressista Lee
Hamilton, havia recomendado o diálogo com o Irã desde
dezembro de 2006. Em uma entrevista de março de 2008
para a Bloomberg News, o ex-secretário de Estado Henry
Kissinger entrou no debate dizendo: “Eu acho que
devíamos nos preparar para negociar com o Irã”195. Em
maio, o ex-presidente Jimmy Carter criticou duramente a
administração Bush por se recusar a dialogar com os
países com os quais os Estados Unidos tinham sérias
diferenças, dizendo que era um “terrível afastamento” da
prática presidencial antiga dos EUA196.
O debate esquentou ainda mais quando o candidato
presidencial democrata, o senador Barack Obama, foi
primeiro criticado e depois elogiado por declarar que, se
fosse eleito presidente, negociaria diretamente com o Irã
“sem quaisquer condições”. Em um fórum notável,
realizado na Universidade George Washington no dia 15 de
setembro, cinco ex-secretários de Estado norte-americanos
– Colin Powell, Madeleine Albright, Warren Christopher,
James Baker e Henry Kissinger – declararam-se favoráveis
ao diálogo direto dos EUA com o Irã sobre seu programa
nuclear197.
Esses sentimentos, no entanto, não se traduziram em
progresso. Pelo contrário, a ideia de negociação entrou
mais ou menos em compasso de espera. Ninguém
esperava que a administração Bush, em seus últimos
meses, fosse causar uma reviravolta no diálogo com o Irã.
Do EU-3 ao Irã, todos pareciam resignados a esperar o
resultado das eleições norte-americanas. O ministro
alemão de relações exteriores, Frank-Walter Steinmeier,
me disse que, baseado em suas conversas com
Condoleezza Rice, ela estava apenas esperando para
entregar o caso iraniano à próxima equipe.
O P5+1 havia trabalhado arduamente para preparar um
pacote que atraísse o Irã para a negociação, e Javier
Solana tinha viajado para Teerã em meados de junho para
apresentá-lo como uma oferta “nova e melhorada”. Mas o
pacote ficou à mercê da exigência de suspensão do
enriquecimento de urânio. Quando Saeed Jalili encontrou-
se com Solana e o P5+1 em Genebra, em julho, o diretor
político britânico Mark Grant exigiu uma resposta sobre o
pacote em duas semanas. O Irã, como sempre, encarou
isso como um desrespeito e uma ameaça.
É claro que essa discussão não iria dar em nada. Teerã,
agora em posição de força, não tinha pressa. E Solana e
seus colegas estavam apenas passando as propostas. Com
as inúmeras resoluções do Conselho de Segurança, eles
haviam lacrado firmemente o caixão.
155 A companhia francesa Total S.A. é a quarta maior empresa petroquímica do
mundo, com atividades na África, na Europa e no Oriente Médio.

156 A divulgação de mensagens diplomáticas pelo site Wikileaks no final de


2010 indicou a ação dos líderes árabes nos bastidores. Eles supostamente
teriam insistido com os Estados Unidos para que fizessem ataques militares
contra o Irã. Ver, por exemplo, “Arab Leaders Urged U.S. to Attack Iran, Wikileaks
Says” [“Líderes árabes insistiram para que EUA atacassem o Irã, diz o
Wikileaks”], Mark Hennessy, Irish Times, 29/11/2010.

157 Putin expressou seu apoio à proposta na Conferência de Munique sobre


Política de Segurança, em 10 de fevereiro.

158 SCR 1737, aprovada em 23 de dezembro de 2006.

159 Daniel Dombey, “Blair Seeks Closer Ties with Moderate Arabs”, Financial
Times, 26/12/2006.

160 As revelações do Wikileaks no final de 2010 mostraram que Washington


ficou extremamente insatisfeito com as tentativas dos suíços de trabalhar com o
Irã e encontrar uma solução. “U.S. Irked by Over-Eager Swiss Diplomats”,
Mathieu van Rohr, Spiegel Online International, 14/12/2010.

161 Como descrito no capítulo 5, eu tinha me envolvido em uma discussão


pública com os norte-americanos na reunião da AIEA em novembro de 2003 por
causa da irritação deles quando disse que não tínhamos uma única prova da
ligação das atividades ou do material nuclear do Irã a um programa de armas
nucleares.

162 Entrevista para o Grupo Vocento, com Dario Valcarcel e Borja Bergareche.
“Detecto una escalada gradual que aleja uma solución pacifica com Irán”, ABC,
17/5/2007.
163 Declaração de Bolton: “Se vocês acreditam, como eu, que o Irã jamais será
convencido a esquecer suas armas nucleares, porque vê o programa de armas
nucleares como seu trunfo, então o único recurso é elevar drasticamente a
pressão econômica e política sobre o país e manter em aberto a opção de
mudança do regime ou mesmo da força militar”. Entrevista em Hannity and
Colmes, Fox News, 21/05/2007. Retirado de:
<www.realclearpolitics.com/articles/2007/05/interview_with_john_bolton_on_1.ht
ml>.

164 O embaixador Yukiya Amano teve a felicidade de estar viajando e


indisponível para a ocasião.

165 “Inside the IAEA: A Year with the Nuclear Detectives”, documentário da
Rádio 4 da BBC em duas partes, apresentado em 31 de maio e em 7 de junho de
2007.

166 “Rogue Regulator: Mohamed ElBaradei Pursues a Separate Peace with Iran”,
Washington Post, 5/9/2007.

167 “In the Crossfire”, Economist, 13/09/2007.

168 Caroline Glick, “ElBaradei’s Nuclear Policy”, Jerusalem Post, 27/8/2007.

169 Elaine Sciolino e William J. Broad, “An Indispensable Irritant to Iran and Its
Foes”, New York Times, 17/9/2007.

170 Katrina van den Heuvel, “Proponent of Diplomatic Solution for Iran Smeared
by White House”, Nation. Reimpresso em “Bush, the Bomb, and Iran”, CBS News
Opinion, 25/9/2007.

171 “IAEA Chief ElBaradei Being Pressured on Iran-Diplomats”, Associated Press,


9/9/2007.

172 Na verdade, não era algo incomum para mim ouvir outros membros da
União Europeia expressarem em particular o seu ressentimento aos “três
grandes” – França, Reino Unido e Alemanha –, principalmente em relação aos
dois primeiros. Os outros países europeus raramente se sentiam consultados
nas questões que envolviam posições políticas conjuntas sobre o Irã. Em
particular, alguns viam o Reino Unido como uma espécie de cavalo de Troia
norte-americano dentro da União Europeia.

173 Katrin Bennhold e Elaine Sciolino, “After Talk of War, Cooler Words in France
on Iran“, New York Times, 17/9/2007.

174 Sue Pleming, “Rice Swipes at IAEA, Urges Bold Action on Iran”, Reuters,
17/9/2007.
175 No final de 2005, os Estados Unidos passaram à AIEA uma série de
informações que haviam recebido, indicando estudos de armamento nuclear
pelo Irã relacionados à conversão de urânio, a testes com explosivos e à
modificação dos mísseis Shihab-3 para carregar uma arma nuclear. Segundo o
Irã, essas informações não tinham o menor fundamento e, como os Estados
Unidos haviam restringido o envio de documentos para a AIEA sobre esse
assunto para que fosse discutido com Teerã, a agência ficara limitada em sua
capacidade de verificar a veracidade de tais informações.

176 Damien McElroy, Bush Warns of Iran ‘Nuclear Holocaust’ ”, Telegraph,


28/8/2007.

177 “Bush Warns of ‘World War III’ If Iran Gains Nuclear Weapons”. Retirado de:
<www.foxnews.com/story/0,2933,303097,00.html>.

178 Entrevista para a TV alemã: “U.S. President Repeats ‘Third World War’
Warning”. Retirado de: <www.world-peace-
society.net/eecore/index.php?/site/C78/>.

179 Seymour Hersh diria depois que, no final de 2007, Bush estava fazendo
lobby no Congresso para conseguir 400 milhões de dólares para apoiar
operações secretas no Irã, em atividades “destinadas a desestabilizar” a
liderança religiosa do país. “Preparing the Battlefield” , New Yorker, 7/7/2008.

180 Gareth Evans, ex-presidente do International Crisis Group e ex-ministro das


Relações Exteriores australiano, solicitou minha ajuda para empreendimento
semelhante.

181 Ahmadinejad foi convidado a falar na Columbia University, no Fórum de


Líderes Mundiais. Ao chegar, foi recebido por milhares de manifestantes; o
presidente da universidade, Lee Bollinger, apresentou-o fazendo uma série de
críticas duras aos seus pontos de vista políticos, beirando o insulto pessoal.

182 Elaine Sciolino, “Iran Risks Attack over Atomic Push, French President Says”,
New York Times, 27/8/2007.

183 Muriel Mirak-Weissbach, “Putin Puts Forward a War-Avoidance Plan”,


Executive Intelligence Review, 26/10/2007. Retirado de:
<www.intellibriefs.blogspot.com/2007/10/caspian-summit-putin-puts-forward-
war.html>.

184 Solana não me contou nada disso. Em seu relatório, disse apenas que o
encontro tinha sido ruim, sem chegar a conclusão nenhuma depois de cinco
horas. Percebi que, apesar de estar sempre afirmando em particular que
concordava com meu ponto de vista, Solana não tinha flexibilidade ou
atribuições que lhe permitissem tomar iniciativas, especialmente diante da
insistência norte-americana de que nada além da suspensão seria aceitável
como ponto de partida.
185 Hajj ou Hadj é a peregrinação dos muçulmanos à cidade santa de Meca. (N.
dos TT.)

186 Retirado de: <www.archives.cnn.com/TRANSCRIPTS/0802/10/1e.01>.

187 Green salt é outro nome em inglês para o composto tetrafluoreto de urânio
(UF4).

188 William J. Broad e David E. Sanger, “Relying on Computer, U.S. Seeks to


Prove Iran’s Nuclear Aims”, New York Times, 13/11/2005.

189 Eu havia alertado a África do Sul quanto a essa omissão, portanto foi feita
uma menção na resolução, mas sem nenhum efeito considerável.

190 “ElBaradei’s Real Agenda”, Wall Street Journal, 25/2/2008.

191 “Israeli Minister Says Sack ElBaradei over Iran”, Reuters, 9/3/2008.

192 “ElBaradei Is Quietly Managing to Disarm Iran”, Financial Times, 27/2/2008.

193 Scott Ritter, “Acts of War”, Truthdig, 29 de julho de 2008. Como sempre,
Ritter foi bastante enfático: “Olli Heinonen poderia muito bem tornar-se membro
assalariado da administração Bush, pois está trabalhando em sintonia com o
objetivo do governo norte-americano de apresentar o Irã como uma ameaça
digna de ação militar”.

194 Como em qualquer instituição, havia diferenças de opinião entre as pessoas


que tratavam de questões complexas, incluindo advogados e técnicos. Meus
relatórios para a diretoria a respeito do Irã geralmente eram reescritos de dez a
quinze vezes, com um trabalho cuidadoso para apresentar os fatos
corretamente e garantir a objetividade da avaliação. Mas, em cada caso, eu e
Olli concordávamos com o relatório final antes da sua apresentação.

195 Camilla Hall e Mike Schneider, “Kissinger Backs Direct U.S. Talks with Iran”,
Bloomberg News, 15/3/2008.

196 Joy Lo Dico, “Jimmy Carter Calls for US to Make Friends with Iran after 27
Years”, Independent, 26/5/2008.

197 “Five Former U.S. State Secretaries Urge Iran Talk”, Reuters, 16/9/2008.
12 • Irã, 2009

A administração Bush encurralara a si mesma. Ao insistir


em que o diálogo só poderia ser uma recompensa por bom
comportamento em vez de um meio para alcançá-lo,
Washington criara uma abordagem que cerceava a
diplomacia: só princípios, nenhum pragmatismo. No Irã, a
saga nuclear tinha tropeçado num banco de areia
movediça, com as negociações entrando em curto-circuito
devido à ausência dos Estados Unidos. Com a eleição de
Barack Obama a presidente, em 4 de novembro de 2008,
eu esperava ver o retorno do pragmatismo. Dois dias
depois, Ahmadinejad enviou uma mensagem de
cumprimentos a Obama, expressando a esperança por
“mudanças importantes, justas e reais nas políticas e nas
ações”198. A mensagem foi amplamente divulgada como a
primeira desse tipo enviada por Teerã a um presidente
norte-americano recém-eleito desde a Revolução Iraniana
de 1979.
No discurso de posse, o presidente Obama foi
particularmente generoso ao assinalar uma mudança na
política externa: “Para o mundo muçulmano, buscamos um
novo caminho a seguir, baseado no interesse e no respeito
mútuos. Para aqueles líderes de todo o mundo que buscam
semear o conflito, ou jogar a culpa dos problemas de suas
sociedades no Ocidente, saibam que seu povo irá julgá-los
pelo que conseguirem construir, não pelo que destroem”.
Era uma mensagem perfeitamente sintonizada ao
momento. O palco estava montado para algo novo.
Um ano antes, Richard Holbrooke199 havia sugerido que
eu me preparasse para ir a Washington durante a fase de
transição, no final de 2008, e assessorar a conversa com o
Irã, talvez até mediá-la. Na época, Holbrooke estava
trabalhando como assessor da senadora Hillary Clinton,
então candidata na corrida presidencial, em questões de
política externa. Ele havia perguntado se eu achava que o
Irã estava preparado para o diálogo com os Estados Unidos
e se Teerã exigiria como precondição que Israel desistisse
de seu programa de armas nucleares. Respondi que o Irã
se dispusera a dialogar durante os últimos quatro anos e
que jamais ouvira falar de tal precondição.
Eu estava ansioso para me envolver novamente com
Washington no que dizia respeito ao Irã, mas logo fiquei
surpreso com o pouco contato que tive com a nova
administração norte-americana. Hillary Clinton, agora
secretária de Estado, enviou uma carta conjunta com o
secretário de Energia Steven Chu aplaudindo os esforços
da AIEA para desenvolver um mecanismo de “garantia de
abastecimento” de combustível nuclear. Hillary também
falou publicamente a respeito do programa nuclear
iraniano de maneira menos enfática que seus
antecessores, destacando a importância de trabalhar em
parceria com a agência.200
Mas isso foi tudo. Nenhum telefonema de Washington
para obter mais informações, nenhuma tentativa de
prosseguir a partir do que a AIEA tinha descoberto.
Gregory Schulte, firme defensor das políticas da
administração Bush, continuou no cargo como embaixador
dos EUA na AIEA até junho. Eu sabia que Obama e sua
equipe haviam herdado uma imensa lista de desafios
domésticos, exacerbados pela crise financeira mundial do
final de 2008. Eu também sabia que o programa nuclear
iraniano não era a única questão da política externa norte-
americana que precisava de atenção. Mas eu estava ciente
das minhas próprias limitações: meu terceiro mandato
como diretor-geral terminaria no final de novembro de
2009. Eu dispunha de um curto período de colaboração.
Os acontecimentos ligados à eleição presidencial iraniana
em junho de 2009 causaram preocupação em muitos
países ocidentais. Houve acusações de votação
fraudulenta e indignação com relatos de violência contra
manifestantes anti-Ahmadinejad. Eu também fiquei
angustiado com a violência, apesar de não conseguir
deixar de notar o tratamento de “dois pesos e duas
medidas” na forma de o Ocidente lidar com o Irã. Como
líder da oposição, Mir-Hossein Mousavi havia recebido 33%
dos votos. Seus partidários conseguiram mobilizar
centenas de milhares de pessoas em manifestações de rua
nas cidades iranianas. Em compensação, a maioria dos
países do mundo árabe tem eleições fraudulentas ou
mesmo nenhuma, e ainda assim são praticamente
protegidos de críticas dos líderes ocidentais porque sempre
apoiam as políticas ocidentais. É claro que essa postura
não passou despercebida pela opinião pública árabe.
Em 5 de julho de 2009, o vice-presidente Biden disse na
ABC News que os Estados Unidos estavam observando os
resultados das eleições com interesse, esperando “para
ver como as coisas se resolveriam”. Depois, pareceu meter
os pés pelas mãos. Por um lado, ele disse que os Estados
Unidos mantinham sua oferta de um encontro com o Irã
para falar sobre o programa nuclear. Por outro, deu a
entender que Israel, “como nação soberana”, tinha o
direito de atacar as instalações nucleares do Irã201. Obama
tentou conter o estrago com uma declaração na CNN,
afirmando que os Estados Unidos estavam comprometidos
com uma solução diplomática para a questão iraniana202.
Enquanto eu aguardava um aval de Washington,
começaram a circular duas acusações: que eu estava
escondendo informações que incriminavam o Irã em sua
busca por armas nucleares; e que eu tinha destruído uma
análise secreta da situação nuclear do país feita pelos
inspetores da agência. Essas acusações estavam ligadas a
uma forte pressão orquestrada nos bastidores pelos
Estados Unidos e pelo EU-3, iniciada já em 2007, para que
eu publicasse um resumo dos supostos estudos nucleares
iranianos a fim de coagir Teerã.
A AIEA havia divulgado tudo o que era possível em
relação a esses supostos estudos. Em meu relatório de
maio de 2008, por exemplo, relacionei em detalhes os
documentos que pudemos mostrar ao Irã, incluindo
aqueles ligados às acusações de produção de green salt,
testes de explosivos e o veículo de reentrada de mísseis.
Mas não consegui chegar a um veredicto em relação a
essas acusações – que, se provadas, tinham potencial para
fazer a diferença entre guerra e paz – sem poder primeiro
verificar a autenticidade dos documentos fornecidos pela
inteligência norte-americana. Nem teria feito isso com
qualquer outro país.
Em resposta à minha reticência, eu havia me tornado
alvo de ataques que diziam que eu estava mais
preocupado com meu legado do que com a verdade. Um
artigo da Associated Press disse:

Mohamed ElBaradei enfrenta a difícil decisão de divulgar todas as


descobertas de sua agência sobre os supostos programas de armas do Irã,
ou deixar a decisão para seu sucessor, ao final deste ano. A existência de
um resumo secreto da AIEA sobre as supostas experiências com armas no
país baseado nas investigações da agência, da inteligência norte-americana
e de outras fontes foi confirmada para a Associated Press nos últimos dias
por três diplomatas de nações ocidentais credenciadas pela AIEA, bem como
por uma autoridade internacional que acompanha a questão nuclear
iraniana.203

Um artigo no Haaretz, jornal israelense, disse


praticamente a mesma coisa204. Um editorial do mesmo
dia dizia que eu tinha, durante anos, minimizado
intencionalmente evidências do programa nuclear iraniano
“usando linguagem vaga e jargão pouco compreensível,
que visava mais a esconder do que a esclarecer”. Também
dava a entender que eu e Olli discordávamos
profundamente em relação à publicação ou não de tais
informações.

Não é nenhum segredo que Olli Heinonen nem sempre concorda com seu
chefe. Houve muitos casos em que ele preferiria que os relatórios usassem
uma linguagem clara, inequívoca, e ele sempre disse isso. Mas, como
qualquer bom diplomata, aceita as decisões de ElBaradei, mesmo que
rangendo os dentes.205

No centro dessas acusações estava a disposição, por


parte de Israel e do Ocidente, de tratar as suposições
como fatos. Os supostos estudos foram, na verdade, um
desafio sem precedentes para a agência. Estávamos
equipados para verificar operações envolvendo o uso de
material nuclear, nas quais podíamos estabelecer os fatos
por meio de medidas e amostras ambientais. Mas não
tínhamos os instrumentos ou a competência técnica para
verificar a autenticidade de documentos.
A segunda parte das acusações da mídia, que a
Associated Press chamou de “resumo secreto da AIEA”,
referia-se a uma análise interna, um texto reunido pelo
Departamento de Salvaguardas da Agência que incluía
vários fragmentos de informações de diferentes
organizações de inteligência, sendo que os inspetores da
AIEA não tinham conseguido verificar ou autenticar a
maioria delas. Assim, por definição, tratava-se de uma
série de hipóteses, isto é: “Se todas essas suposições
fossem verdadeiras, qual seria seu significado?”. Não era
algo que Olli Heinonen, chefe do Departamento de
Salvaguardas, tivesse avaliado, assinado ou mesmo
sugerido que fosse incluído em meus relatórios para a
diretoria. Além disso, não foram aprovados pelos
respectivos departamentos da AIEA, responsáveis por
outras esferas de verificação de salvaguardas, aspectos
legais e políticos, por exemplo.
O fornecimento desse tipo de análise preliminar à
diretoria seria contrário a todos os princípios processuais e
teria conferido uma aura de credibilidade a acusações não
comprovadas. O principal ingrediente ausente – pelo qual
vínhamos fazendo pressão há meses – era a possibilidade
de comprovar tais suposições. A informação crítica em que
se baseava toda a análise era pura papelada. Não
tínhamos green salt para examinar, nenhum componente
para inventariar ou rastrear, nenhum túnel para explosões
ou veículos de reentrada de mísseis para medir ou
inspecionar.
Era absurda nossa limitação quanto à documentação que
podíamos mostrar ao Irã. Pressionei constantemente a
fonte das informações para que nos permitisse
compartilhar cópias com o Irã. Como posso acusar uma
pessoa, eu me perguntava, sem revelar quais são as
acusações existentes contra ela? O pessoal da inteligência
negava, dizendo que precisavam proteger suas fontes e
métodos.
O Irã, por sua vez, continuava a desmentir a maioria das
acusações, dizendo que haviam sido inventadas. Se por
um lado a cooperação dos iranianos no plano de trabalho
havia sido recompensada com mais sanções do Conselho
de Segurança, por outro, a colaboração sobre os supostos
estudos envolvendo armamentos tinha sido mínima.
Segundo eles, a dificuldade era provar que os estudos não
tinham nada a ver com atividades nucleares, pois eles
estariam expondo muita coisa relativa ao seu armamento
convencional, especialmente seu programa de
desenvolvimento de mísseis. Eles suspeitavam que muitos
inspetores estavam exatamente atrás disso. Os inspetores,
é claro, refutavam inteiramente essa linha de raciocínio.
Seria realmente essa a razão da reticência dos iranianos?
Ou eles estavam querendo esconder alguma coisa porque
não era o momento certo para uma confissão? Ou seria
uma combinação das duas coisas? Eu não sabia. Sem
dúvida era frustrante ficar preso nesse impasse, sem
conseguir ir ao fundo da questão. Continuei a pressionar
ambos os lados, mas ninguém se mexia.
No final do verão de 2009, os israelenses forneceram à
AIEA seus próprios documentos para provar que o Irã tinha
prosseguido em seus estudos sobre armas nucleares até
pelo menos 2007. Ao contrário da inteligência norte-
americana, disseram que poderíamos mostrar esses
documentos ao Irã, sem qualquer restrição para proteger
suas fontes. Os especialistas técnicos da agência, no
entanto, levantaram inúmeras questões a respeito da
autenticidade dos documentos, por isso enviamos a Israel
uma lista de perguntas206.
Para mim, Israel levou essas acusações para a AIEA com
três objetivos. Primeiro, eles queriam contestar as
conclusões do Informe da Inteligência Nacional norte-
americana de dezembro de 2007, que dizia que o Irã tinha
interrompido seu programa de armas nucleares em 2003.
Mas, ao mesmo tempo, não podiam desacreditar
publicamente os Estados Unidos, portanto a AIEA era o
veículo secundário com maior credibilidade. Em segundo
lugar, eles queriam pressionar a China e a Rússia a
reforçar as sanções contra o Irã. Em terceiro lugar, e o
mais preocupante, eles queriam dar a impressão de que o
Irã representava uma ameaça iminente, talvez preparando
as bases para o uso da força207.
Era esse o cenário da reunião da diretoria em setembro.
Alguns dias antes, Bernard Kouchner declarou aos
jornalistas que eu estava de posse de documentos
“anexos” ao relatório sobre o Irã que comprovavam que
Teerã estava trabalhando para desenvolver armas
nucleares208. Ele estava se referindo, é claro, à análise
interna da AIEA.
Meu discurso de abertura na reunião abordava o
problema de frente. Essas acusações deprimentes feitas
por Estados-membros e transmitidas para a mídia eram
infundadas e tinham motivações políticas. Eu tinha certeza
de que “Todas as informações que chegavam à agência
sobre o programa nuclear iraniano eram criticamente
avaliadas segundo os padrões habituais, sendo levadas à
atenção da diretoria”. Na verdade, eu disse, as acusações
eram tentativas de influenciar a Secretaria-Geral e sabotar
sua objetividade e independência.
Os franceses tentaram dar a última palavra, afirmando
que algumas das informações tinham sido apresentadas
pela agência em um informe técnico que não constava do
relatório.
Assim, eu lancei um desafio direto: “Aqui estão presentes
as pessoas que forneceram as informações de que
dispomos”, declarei. “Se alguém de vocês tem qualquer
informação que não divulgamos à diretoria, por favor,
apresente-se agora ou cale-se para sempre”. Ninguém
respondeu.
O que eu não conseguia entender de maneira alguma era
como toda informação que pudesse ter sido apresentada
em um informe técnico para 150 Estados-membros poderia
ter sido considerada “retida”. Então me concentrei em
nossas limitações para validar os supostos estudos para o
desenvolvimento de armas. Se todos os documentos
fornecidos a nós fossem autênticos, eu disse, escolhendo
as palavras cuidadosamente, então havia uma grande
probabilidade de o Irã ter realizado estudos para o
desenvolvimento de armas. “Mas tenho que sublinhar esse
‘se’ três vezes”, enfatizei, “e é por isso que estamos
empacados.”
Senti um certo alívio quando, um dia após esse embate
desagradável, a diretoria me conferiu o título de diretor-
geral emérito. O tom mudou completamente, o que foi
para mim uma experiência bastante emocionante. Foram
apresentadas homenagens de 41 oradores. Juntos,
representavam todo o corpo de membros da agência. Em
particular, vou me lembrar sempre de duas homenagens:
“Estamos aqui para honrar a honra”, disse o embaixador
cubano, citando o poeta Alphonse de Lamartine; já o
embaixador brasileiro disse que eu havia “usado o poder
da argumentação, e não a argumentação do poder”.
As histórias sobre as informações contidas nos “anexos
secretos” não desapareceram completamente. Um artigo
da Associated Press de setembro referiu-se a cópias dessa
suposta análise secreta209. E, em outubro, o Institute for
Science and International Security (ISIS), órgão norte-
americano especializado em segurança nuclear, publicou
um artigo em seu site que incluía pequenos trechos do
documento210. Era óbvio que ou o documento havia
vazado – e havia apenas seis pessoas do Departamento de
Salvaguardas com acesso a ele – ou tinha sido roubado por
alguém que invadira os computadores da agência.

O mais importante, entretanto, é que nos bastidores


estava se abrindo uma oportunidade para um avanço
significativo com o Irã.
Tudo começou alguns meses antes, com um pedido de
Teerã para que a AIEA ajudasse a obter um novo
combustível para seu reator de pesquisa, usado para
produzir radioisótopos com finalidade medicinal. O nível de
enriquecimento necessário para o reator era de 20%,
bastante superior aos 4-5% necessários aos reatores de
energia e bem mais elevado do que o nível estabelecido
pelo Irã em Natanz. O combustível antigo tinha sido
importado, mas agora, com as sanções impostas ao Irã,
esse pedido era uma batata quente: embora fosse
perfeitamente legal para a agência ajudar um Estado-
membro a obter combustível com salvaguardas, o Irã
estava violando as resoluções do Comitê de Segurança.
Para sondar o terreno, decidi instruir Vilmos Cserveny a
falar da solicitação do Irã inicialmente apenas com dois
países: Rússia e Estados Unidos, por meio de seus
representantes em Viena. Pedi a Vilmos que explicasse que
se tratava de uma situação delicada. Se o Irã não
recebesse o combustível de fora, teria todas as
justificativas para continuar com seu enriquecimento de
urânio em níveis mais elevados para atender às suas
necessidades. Se descobríssemos uma maneira de ajudar
o Irã a obter combustível para esse uso legítimo, seria uma
forma de enviar um sinal positivo.
Uma proposta conjunta dos Estados Unidos e da Rússia
foi levada à AIEA no início de setembro. A proposta apoiava
a solicitação do Irã, mas com uma mudança: Teerã
receberia um núcleo de reator de pesquisa que funcionaria
com combustível convertido do urânio de baixo
enriquecimento acumulado pelo país. Esse urânio seria
enviado ao exterior, transformado em combustível na
Rússia e na França, e então voltaria para o Irã na forma de
um núcleo de reator de pesquisa. Os Estados Unidos
forneceriam o apoio político e financeiro.
Era engenhoso. Depois de tudo o que acontecera, havia
sido encontrada uma abertura para que os Estados Unidos
retomassem o contato respeitoso com o Irã. Retirando a
maior parte do LEU (Low Enriched Uranium; “urânio de
baixo enriquecimento”) do Irã, a tensão em relação a essa
atividade seria neutralizada, ou pelo menos adiada. O Irã
comprovaria que seu programa de enriquecimento estava
sendo usado para fins pacíficos. A comunidade
internacional receberia a garantia de que o estoque
iraniano de LEU não estava sendo reservado ou canalizado
para armas nucleares. A diplomacia finalmente batia à
porta.
Então, em 12 de setembro de 2009, recebi um
telefonema do presidente Obama. Ele começou a conversa
gentilmente, dizendo que admirava meu trabalho e
acreditava que tínhamos a mesma visão em várias
questões. Queria me convidar pessoalmente para falar na
Cúpula do Conselho de Segurança da ONU sobre o
Desarmamento e a Não Proliferação Nuclear, da qual ele
estaria à frente como presidente do Conselho.
Fiquei exultante com o convite e é claro que aceitei. A
conversa então centrou-se no Irã. Obama disse que estava
empenhado em tratar das preocupações envolvendo o
programa nuclear do Irã e, ao mesmo tempo, respeitar
totalmente seus direitos segundo o TNP. Segundo ele, a
proposta do combustível, que também tinha o apoio de
Israel, seria uma forma de atenuar a crise atual e ganhar
tempo para a diplomacia e a negociação.
Quando soube que o presidente Obama iria telefonar,
entrei em contato com Ali Salehi, que substituíra
Aghazadeh como vice-presidente do Irã e chefe da
Organização de Energia Atômica do Irã211. Perguntei a
Salehi se a liderança iraniana queria transmitir alguma
mensagem a Obama. Ahmadinejad nos informou que ele
estava “pronto para iniciar negociações bilaterais, sem
condições e baseadas no respeito mútuo”. Havia mais
detalhes, ligados à disposição do Irã em ajudar no
Afeganistão e em outros lugares.
Transmiti a mensagem e falei a Obama que, em minha
opinião, os Estados Unidos deveriam se concentrar o mais
rápido possível em diálogos bilaterais em vez de recorrer
apenas aos mecanismos do P5+1. Obama ouviu e
agradeceu minha sugestão.
No dia seguinte, convidei Salehi e o embaixador iraniano
Ali Asghar Soltanieh para uma rápida reunião em minha
casa. Vilmos Cserveny também estava presente. Entreguei
aos iranianos uma cópia da proposta EUA-Rússia para o
combustível e expliquei seus inúmeros benefícios. O Irã
poderia usar seu próprio LEU em seu próprio combustível
no reator – reconhecimento explícito do direito do país ao
enriquecimento da substância. Com isso, os Estados
Unidos enviariam um claro sinal da sua disposição em
ajudar o Irã no uso pacífico da energia nuclear. E o Irã, por
sua vez, não seria solicitado a parar ou suspender seu
enriquecimento; pelo contrário, a proposta ajudaria a
resolver o impasse do enriquecimento de urânio e daria
tempo para a negociação.
Por outro lado, se o Irã recusasse a proposta, as
preocupações aumentariam. Eles agora tinham uma
quantidade significativa de LEU. Por que se recusariam a
usá-lo em seu próprio reator de pesquisa?
Salehi sorriu ao ler o documento. “Esta é uma proposta
bastante inteligente”, ele disse. “Eu me pergunto: eles nos
dariam yellowcake em troca?” Era uma pergunta retórica,
não exatamente direcionada a mim212. Ele também
ponderou que os iranianos poderiam enriquecer seu
próprio urânio a 20% e depois produzir seu próprio
combustível. “Mas não faremos isso”, acrescentou
rapidamente. Sabia que isso incendiaria a questão. Ele
estava claramente intrigado e, até onde eu podia ver,
tentando analisar todas as possibilidades ao mesmo
tempo.
“Você não deveria encarar isso apenas como uma
proposta técnica”, rebati. “É isso, mas é também um gesto
político que poderia abrir a porta para as negociações.”
Salehi concordou, dizendo que esperaria voltar a Teerã
para depois responder. Preocupado com a possibilidade de
uma resposta negativa ao telefone, ele queria explicar a
proposta pessoalmente para Ahmadinejad. A atmosfera em
Teerã, segundo Salehi, continuava tensa.
Lembrei que havia pouco tempo uma autoridade iraniana
me afirmara uma mudança no poder em Teerã.
Ahmadinejad havia desafiado o aiatolá Khamenei em
várias frentes. Apesar de Khamenei continuar como Líder
Supremo em público, Ahmadinejad havia assumido o
controle do poder executivo.
A boa notícia, do meu ponto de vista, era que Salehi
tinha acesso direto ao presidente iraniano. Eu conhecia
bem Salehi: como ex-embaixador da AIEA e graduado pelo
MIT, era um homem sofisticado tanto em sua formação
técnica como em suas habilidades diplomáticas
multiculturais. Ele conhecia as questões nucleares
iranianas profundamente. Apesar de totalmente leal ao Irã,
estava determinado a encontrar uma solução para o
problema. Pelo que me disseram, sua indicação para a
vice-presidência tinha sido uma surpresa, uma vez que
havia trabalhado muito próximo a Rafsanjani e a Khatami
antes da ascensão de Ahmadinejad ao poder, e era tido
como integrante da facção liberal.
Se alguma vez existiu a chance de um avanço, pensei,
agora era a hora. Com Obama e sua equipe na Casa
Branca e Salehi como principal negociador na questão
nuclear, ambos os lados estavam verdadeiramente
interessados na aproximação. Ahmadinejad era a
incógnita. O fluxo constante na política interna iraniana
dava a entender que ele continuaria sensível à mínima
demonstração de desrespeito. E o fim da administração
Bush não significava que a ideologia neoconservadora
tinha se retirado para sempre. Seus defensores
continuariam a fazer o possível para causar danos a
qualquer acordo.
Mas, pelo menos, pensei, finalmente tínhamos uma
chance de lutar.

As notícias da primeira sabotagem contra o nosso trabalho


vieram da embaixadora francesa Florence Mangin. Na
Conferência Geral da AIEA, ela me disse que a França
concordava em fabricar o combustível para o Irã depois
que a Rússia o enriquecesse a 19,5%. Mas disse que,
devido à relevância das sanções, a proposta do
combustível deveria ser encaminhada ao Conselho de
Segurança e passar pelas deliberações políticas do P5+1.
Eu resmunguei por dentro, mas não disse nada. Era uma
abordagem excessivamente legalista, e certamente
encalharia o processo.
Na primeira oportunidade que tive, apelei para o novo
embaixador norte-americano, Glyn Davies, que havia
substituído Greg Schulte. Davies era um experiente
diplomata de carreira com visão de mundo bastante
ampla, incrível capacidade de análise e bom senso. “Por
favor”, eu lhe pedi, “tome conta disso. Precisamos que
corra tudo direitinho com essa operação.” O fornecimento
de combustível para um reator de pesquisa era
considerado assunto de cooperação técnica pela AIEA.
Assim, não havia necessidade de passar pelas discussões
do Conselho de Segurança ou do P5+1.
Davies concordou. Ele disse que tentaria convencer
Washington a falar com Paris.
Minha parada seguinte era Nova York: a Cúpula do
Conselho de Segurança da ONU sobre Desarmamento e
Não Proliferação Nuclear, presidida por Obama. Quando
cheguei, em 21 de setembro, havia uma solicitação do
subsecretário de Estado Bill Burns para que eu o
encontrasse. Ele estaria acompanhado de seus colegas
Bob Einhorn213 e Gary Samore214.
Encontrei Burns pela primeira vez quando ele era
embaixador na Rússia e percebi rapidamente por que era
reconhecido como um dos melhores funcionários de
carreira das relações exteriores dos Estados Unidos: sagaz,
humilde, franco e de fala mansa. Eu também havia
trabalhado com Einhorn e Samore por mais de vinte anos,
quando os dois faziam parte da administração Clinton e
quando compunham grupos de especialistas na era
Bush215. Eram dois dos maiores especialistas norte-
americanos em não proliferação, além de muito amigos.
Fui me encontrar com eles no Waldorf Astoria, onde Obama
estava hospedado. O burburinho habitual da Big Apple
havia sido reprimido. Tudo havia sido bloqueado por causa
da preocupação com a segurança da Cúpula.
Burns começou a falar francamente: os Estados Unidos
estavam “empacados” na questão do Irã. Eles viam a
proposta do acordo para o combustível como rota de fuga;
se não desse certo, seriam obrigados a partir para mais
sanções. Burns estava ansioso para marcar o encontro
com o Irã para falar sobre a proposta. Eu disse a ele que
estava trabalhando para organizar a logística.
Então mencionei que, no aeroporto internacional de
Viena, pouco antes do voo, recebi uma carta criptografada
do Irã. Em suma, a mensagem dizia que o país estava
construindo outra planta-piloto de enriquecimento de
urânio. A informação foi prefaciada por uma estranha
declaração sobre a necessidade de o país exercer defesa
passiva e proteger seus recursos humanos. Mostrei a carta
a Burns, Einhorn e Samore; Einhorn fez algumas
anotações.
Um pedido urgente chegou na manhã seguinte: Gustavo
Zlauvinen, chefe do escritório da AIEA em Nova York,
recebera um telefonema de Einhorn solicitando um
encontro comigo e Samore naquela noite em meu hotel. Eu
ainda estava sentindo os efeitos do fuso horário e me
preparando para a Cúpula, por isso liguei para Einhorn
para saber o motivo da visita.
Sem preâmbulos, ele disse que sabiam da construção
das instalações iranianas havia dois anos. Uma equipe
representando as agências de inteligência dos EUA,
França, Reino Unido e Israel estava se preparando para ir a
Viena passar as informações aos especialistas técnicos da
agência. Einhorn achou que ele e Samore deviam me
contar o que sabiam antes da reunião do Conselho.
Perguntei por que a AIEA não havia sido comunicada
antes. Esse era mais um exemplo de sonegação de
informação à agência. Eles não tinham certeza quanto à
natureza das instalações, o que me pareceu uma desculpa
esfarrapada. Suspeitei que estivessem esperando pegar o
Irã de surpresa operando as instalações, dando aos
Estados Unidos uma desculpa para sustentar suas
acusações de que o país tinha um programa de armas
nucleares. Não gostei nem um pouco. Einhorn e eu
concordamos em nos encontrar no dia seguinte, após a
reunião do Conselho.
As novas instalações iranianas estavam localizadas em
Fordow, a cerca de 30 quilômetros ao norte da cidade de
Qom. Os norte-americanos alegavam que elas eram
pequenas, construídas para abrigar apenas trezentas
centrífugas, o que não visava ao uso industrial, por isso
deviam ter sido criadas para fins militares. Para eles, o Irã
sabia desde a primavera que os países ocidentais tinham
conhecimento dessas instalações. Foi por isso, eles
acreditavam, que os iranianos tinham finalmente decidido
declará-las à AIEA.
A notícia era extremamente desanimadora. O fato de os
iranianos não terem declarado as instalações de Fordow à
AIEA na época do início da construção, como deveriam ter
feito, apenas aprofundaria a desconfiança internacional em
relação às intenções de Teerã. Ainda assim, decidi insistir
na proposta do combustível. Conversei várias vezes por
telefone com Salehi, em Nova York e depois na Índia,
minha parada seguinte. Eu estava tentando fechar duas
datas com os iranianos: uma para a inspeção das novas
instalações e outra para uma reunião sobre a proposta do
combustível. Também queria garantias, antes da próxima
reunião do P5+1, marcada para 1o de outubro em
Genebra, de que Teerã em princípio concordava com a
proposta. Salehi estava ansioso para tocar as coisas, mas
esperava o sinal verde de Ahmadinejad. As novas
instalações, ele disse, não eram industriais. Tinham sido
criadas como reserva durante a administração Bush, pois a
ameaça de um ataque militar a Natanz parecia bastante
evidente. A fábrica estava encravada na montanha para
ter o máximo de proteção contra um ataque aéreo. Não
precisava ser grande, disse Salehi. Era uma forma de o Irã
preservar sua tecnologia de enriquecimento nuclear e sua
base de conhecimento, independentemente da ameaça
externa.
Quando finalmente foi marcada uma data para discutir a
proposta do combustível, Salehi confirmou que os
iranianos, em termos gerais, concordavam com o plano,
mas não poderia divulgar isso oficialmente antes da
reunião. Para mim, já era o suficiente para falar com
Washington.

Alguns dias depois, fui informado de que o presidente


Obama queria falar comigo por telefone. Ele começou
agradecendo por ter ido me encontrar com Burns e os
demais no dia da minha chegada para a Cúpula de Nova
York. Fiquei impressionado, como da outra vez, com a
sensibilidade de sua abordagem. Segundo ele, era
extremamente importante que a agência tivesse acesso às
novas instalações rapidamente. “Não quero interferir no
trabalho da sua agência”, ele disse, “mas espero que você
informe prontamente à diretoria assim que visitar as
instalações e tiver feito sua avaliação.” Ele estava
satisfeito por termos marcado a data para a reunião sobre
a proposta do combustível e pelo fato de os iranianos
terem reagido positivamente.
Enquanto estava na Índia, disse para a CNN-IBN que a
revelação das novas instalações de enriquecimento
nuclear do Irã era um infeliz “revés no princípio da
transparência e no esforço da comunidade internacional de
adquirir confiança em relação ao programa nuclear
iraniano”. Expliquei o argumento do Irã sobre a
necessidade de ter as instalações como reserva para o
caso de um ataque. Por isso “eles não poderiam ter nos
contado antes. No entanto, eles ficaram do lado errado da
lei, pois deveriam informar a agência a respeito da
construção – e, como vocês viram, isso despertou
preocupações na comunidade internacional”.
Apesar das instalações de Fordow, todos os lados
sinalizavam o desejo de concluir o acordo do combustível.
Na reunião do P5+1 realizada em Genebra no dia 1o de
outubro, minha maior preocupação foi evitar que as
discussões desandassem, especialmente por causa de uma
declaração solta dos franceses, que continuavam a falar de
maneira provocadora sobre o programa nuclear iraniano.
Nós nos esforçamos para garantir que, antes da reunião,
todas as partes tivessem um entendimento bastante claro
de sua própria posição, bem como da posição que os
outros poderiam assumir. Não queríamos surpresas.
A reunião transcorreu sem incidentes, sendo descrita por
Obama como um “início construtivo”. Em relação à
proposta do combustível e à inspeção das novas
instalações perto de Qom, os participantes reafirmaram
praticamente todos os termos que eu já havia mediado
entre os Estados Unidos e o Irã. A reunião serviu como
articulação pública de um acordo privado. Nem todos
perceberam que as coisas tinham sido pré-cozidas.
Pouco antes do final, Solana telefonou, alcançando-me
em Katmandu. O P5+1, disse ele, havia confirmado que a
inspeção das novas instalações deveria ocorrer nas
próximas semanas. Ele queria saber se era possível.
Respondi que o momento era bom, mas não cabia a eles
marcar as datas das inspeções. Solana desculpou-se,
dizendo que não tivera a intenção de interferir.
Eu não disse mais nada. Mas essa atitude me pareceu
típica: os países ocidentais envolvidos no processo sempre
quiseram ser vistos como se estivessem no comando –
forçar, cutucar, pressionar, estabelecer prazos, dominar o
debate, impor punições –, como se fossem crianças
provocadoras no pátio da escola, acabando por sabotar a
objetividade que queriam alcançar. Solana acrescentou
que em princípio eles tinham conseguido fazer os iranianos
concordarem com a oferta de combustível. Eu não
mencionei que isso já tinha sido conversado muitas vezes
com Salehi. Falei apenas que ouvira algo sobre o assunto
em minha conversa com o presidente Obama.
Na coletiva de imprensa realizada após a reunião do
P5+1, Obama falou do progresso feito. “Tenho estado em
contato direto com o chefe da AIEA, Mohamed ElBaradei,
que viajará a Teerã nos próximos dias. Ele tem meu total
apoio.” Fiquei encantado com a mudança ocorrida no
mundo em apenas alguns meses. Depois de anos sendo
ignorada ou atacada como arqui-inimiga dos EUA, a AIEA
mais uma vez era tida como parceira, tratada com
confiança. Era um final inesperado mas bem-vindo para o
meu mandato na agência. Eu esperava todo o tempo do
mundo para ver um distanciamento das políticas da
administração Bush, mas sinceramente não tinha
esperança de encontrar um novo presidente no comando
das questões, acessível por telefone, que falasse com
satisfação do nosso trabalho.
De Katmandu, consegui viajar para Teerã em 3 de
outubro. Salehi foi ao meu encontro no Hotel Esteqlal e
informou que no Irã estava tudo preparado para a visita
dos inspetores da AIEA às novas instalações de Fordow. No
entanto, haveria um pequeno atraso. Devido às
declarações públicas de Obama e do Ocidente de que as
inspeções precisavam ocorrer em duas semanas, a AIEA
teria de esperar passar esse prazo. Teerã não queria dar a
impressão de que estava aceitando ordens dos Estados
Unidos ou de quem quer que fosse.
A proposta do combustível estava enfrentando uma
grande oposição interna em Teerã, mas Salehi havia
conseguido convencer Ahmadinejad a seguir em frente. O
presidente iraniano queria dialogar com os Estados Unidos,
e, se houvesse alguém que podia tornar isso realidade,
seria Ahmadinejad.
Tentei sondar Salehi a respeito das questões a levantar
na reunião que faríamos sobre a proposta do combustível.
Ele mencionou uma série de possibilidades: um pedido de
ajuda para a renovação do reator de pesquisa de Teerã,
que tinha quarenta anos e havia sido fornecido pelos
Estados Unidos; uma solicitação de ajuda para a compra
de um novo reator de pesquisa do Ocidente; ou que o
P5+1 permitisse que os engenheiros iranianos tivessem
formação no exterior.
Salehi também mencionou uma questão antiga,
contenciosa: o urânio que o Irã havia comprado e pago,
mas que, após a Revolução de 1979, nunca havia sido
entregue. Ele disse que o Irã poderia pedir à França e à
Alemanha para finalmente entregarem esse urânio. Não
era uma boa ideia, eu disse a ele. Trazer mais urânio para
o Irã a essa altura não parecia uma boa maneira de
neutralizar a crise.
Na proposta do combustível, o acordo previa o envio de
1.200 kg de LEU para a Rússia, onde seriam enriquecidos,
e depois para a França, onde o combustível para o núcleo
do reator de pesquisa iraniano seria fabricado.
“Essa quantidade prevê a necessidade em um núcleo por
dez anos”, Salehi respondeu. “Nós devemos pedir um
núcleo com uma vida de apenas cinco anos, o que requer
menos LEU.”
Meu conselho era tirar o máximo possível de LEU do Irã
para acalmar a situação e, assim, criar uma oportunidade
de negociação. Apesar de ser uma questão técnica, tinha
enormes implicações políticas.
Também perguntei se havia alguma possibilidade de o Irã
reconsiderar um intervalo ou o congelamento proposto
anteriormente, a fim de iniciar o diálogo. A ideia não seria
aceita em Teerã, respondeu Salehi, com sinceridade. Com
toda a condenação do Ocidente, o enriquecimento do
combustível se transformara em uma questão de orgulho
nacional. O espaço para um compromisso desse tipo era
limitado. Mas, pelas minhas conversas com autoridades
iranianas, percebi que o país talvez pudesse implementar
um congelamento de fato não declarado, deixando que a
notícia viesse a público por meio da AIEA.
Discutimos como o Irã poderia travar um diálogo bilateral
com os Estados Unidos. Em certa medida, o sucesso em
uma frente bilateral alteraria as negociações com o P5+1,
facilitando os esforços multilaterais. Mas o diálogo bilateral
precisava de um pretexto para começar. Quem sabe
“conversas técnicas” com os Estados Unidos – como
instruções para renovar a sala de controle do reator de
pesquisa, por exemplo – pudessem fornecer esse pretexto?
Salehi não se comprometeu. Já tinha sido bastante difícil
fazer as coisas chegarem aonde chegaram.
Meu próximo encontro foi com Ahmadinejad. Eu tinha
solicitado uma reunião cara a cara, apenas com a presença
de Salehi para atuar como intérprete. Expliquei a
Ahmadinejad o valor político do acordo proposto e disse
que seria bom para a AIEA inspecionar as novas
instalações de Fordow o mais rápido possível, sugerindo –
como combinado com Salehi – que isso ocorresse logo,
antes de 25 de outubro. Eu estava consciente do final do
meu mandato, mas o mais importante era que eu queria
extinguir as especulações crescentes por parte do
Ocidente. “Você deve saber”, eu acrescentei, “que as
agências de inteligência ocidentais sabiam das instalações
havia muitos anos.”
Ahmadinejad sorriu. “Se realmente soubessem”,
respondeu ele, “Obama não teria dito” – como fizera em
uma coletiva de imprensa – “que se trata possivelmente de
instalações militares.” Ahmadinejad não fez nenhuma
referência à minha declaração para a CNN de que o Irã
estava do lado errado da lei por não ter informado à AIEA a
respeito de Fordow.
Ele acrescentou que Obama deveria parar de dar ordens
ao Irã, de dizer “vocês devem fazer isso, vocês devem
fazer aquilo” e de condenar Teerã em público. Respondi
que Ahmadinejad devia entender que Obama tinha
limitações domésticas, ao que ele retrucou: “Eu também”.
Estava claro, para Ahmadinejad e para o Irã como um todo,
que o tratamento respeitoso por parte do Ocidente era
essencial. Ahmadinejad desdenhou principalmente
Sarkozy, que segundo ele havia sido “grosseiro” durante
certo tempo. Ele também se sentiu insultado pelo fato de
Obama não ter respondido a sua mensagem de felicitações
após as eleições norte-americanas. O segredo do
progresso nas relações bilaterais com os Estados Unidos
seria uma questão de tom: fazer o Irã se sentir um
parceiro, e não um pária.
Quando mencionei que a aplicação do Protocolo Adicional
ajudaria no caso do Irã, Ahmadinejad disse que isso não
seria problema, mas ele achava que Teerã precisava de um
gesto mais positivo por parte do Ocidente. Sugeri que
talvez, quando o acordo do combustível estivesse
concluído, os norte-americanos pudessem fornecer peças
sobressalentes para a frota ultrapassada de aeronaves
civis iraniana. “Peças sobressalentes não são tão
importantes. Do que precisamos realmente é superar
cinquenta anos de hostilidades.”
Indiretamente, isso me levou a um assunto delicado: as
declarações de Ahmadinejad a respeito de Israel e do
Holocausto216. “Você não deveria dar a seus detratores a
chance de usar indevidamente suas declarações”,
aconselhei. Ele entendeu imediatamente o que eu estava
querendo dizer, e respondeu que ninguém no mundo árabe
e muçulmano estava disposto a aceitar o “regime
sionista”.
Após a reunião, Salehi me contou que Ahmadinejad
apreciava meus esforços para ajudar a resolver a questão
iraniana e que lhe pedira para levar um belo presente para
minha esposa em sua próxima viagem a Viena. Assim,
pouco depois Aida recebeu um vaso iraniano tradicional
com belos versos do Corão emoldurados. Ao deixar Teerã,
também ganhei de presente pistache de primeira classe.
Essas são as vantagens da diplomacia internacional.
Embora o palco estivesse montado para o avanço, a
situação continuava delicada. Um passo errado em
qualquer direção poderia fazer desmoronar a frágil
estrutura que havíamos construído.
Duas semanas antes da data programada para a
realização do encontro sobre a proposta do combustível,
em 21 de outubro, Hillary Clinton fez uma declaração
provocadora. Em uma coletiva de imprensa com David
Miliband, expressou impaciência com os iranianos: “A
comunidade internacional não irá esperar para sempre
pelas evidências de que o Irã esteja preparado para
cumprir suas obrigações internacionais”. O que veio depois
foi pior: “No caso do Irã, é trágico que um país com tanta
história, com tanto a dar para o resto do mundo, tenha
tanto medo de seu próprio povo. A maneira como estão
conduzindo detenções e prisões secretas, julgamentos em
forma de espetáculo, é um reflexo do descontentamento
que eles sabem que as pessoas sentem em relação à sua
liderança atual”217.
Ahmadinejad e seus colegas ficaram irados. O
embaixador iraniano veio nos informar que Salehi não iria
para a reunião sobre a proposta do combustível. Telefonei
para Glyn Davies. Relatei a ele que a declaração de Hillary
Clinton tinha sido completamente desnecessária e que
estava anulando nossos esforços de criar um ambiente
favorável à negociação. Se essas provocações
continuassem, eu desistiria. Pedi a ele que telefonasse
para Washington para ver se Hillary, que estava em
Moscou para um encontro com o ministro das Relações
Exteriores russo, Serguei Lavrov, poderia fazer um pedido
de desculpas ou pelo menos uma declaração mais positiva.
A resposta foi imediata. Em uma coletiva de imprensa
com Lavrov, em 13 de outubro, Hillary baixou o tom,
dizendo que os Estados Unidos tinham uma “abordagem
dupla” em relação ao Irã: “Acreditamos que é importante
trabalhar uma via diplomática e fazer tudo o que
pudermos para que seja bem-sucedida. Acreditamos que o
Irã tem direito à energia nuclear pacífica, mas que não
deve ter armas nucleares”218.
Felizmente, Lavrov acrescentou que a Rússia estava
convencida de que “ameaças, sanções e mecanismos de
pressão, na situação atual, são contraproducentes”219.
Telefonei para Salehi e para o embaixador Soltanieh.
Disse a eles que havia informado os norte-americanos da
reação negativa de Teerã e citei o tom mais positivo de
Hillary Clinton. Pedi que enviassem uma mensagem a
Ahmadinejad, insistindo para que ele elevasse o moral em
vez de refutar os Estados Unidos na mídia. E o mais
importante: o Irã não deveria desperdiçar a oportunidade
da reunião sobre a proposta do combustível. Os norte-
americanos tinham concordado em discutir as questões
que Salehi havia levantado em Teerã: a renovação do
reator, a formação dos cientistas iranianos e a possível
venda de um novo reator de pesquisa. Essa seria a porta
de entrada para um diálogo mais amplo.
Salehi disse que não poderia abordar Ahmadinejad
novamente a respeito da participação na reunião porque o
presidente iraniano ainda estava muito contrariado com as
declarações de Hillary Clinton. Ainda assim, Soltanieh
prometeu que transmitiria minha mensagem.
“Esta pode ser minha última chance de ajudá-los a se
acertar com os Estados Unidos”, eu disse. Ameacei não
realizar a reunião se Salehi ou alguém de seu nível não
participasse.
No final, não precisei levar adiante minha ameaça. A tão
aguardada reunião sobre a proposta do combustível
ocorreu em Viena no dia 19 de outubro, como planejado,
com a presença de Soltanieh. Dan Poneman – secretário
adjunto de Energia dos Estados Unidos e amigo de longa
data que havia trabalhado durante muitos anos com Brent
Scowcroft e no Conselho de Segurança Nacional durante a
administração Clinton – chefiou a delegação dos EUA.
Poneman era um sopro de ar fresco: brilhante, modesto,
pensava grande e estava sempre ávido por encontrar
soluções. O chefe da delegação russa, Nikolai Spasski220,
também era um diplomata de primeira classe.
Os franceses, em contrapartida, surgiram como linha-
dura e legalistas. Chefiada por Frédéric Mondoloni,
representante na AIEA, a delegação francesa chegou com
uma série de propostas de emendas ao nosso projeto de
acordo.
Durante a reunião, o Irã anunciou que não queria que a
França participasse do acordo. Como razão para isso, citou
a não entrega de 50 toneladas de urânio compradas da
França antes da Revolução de 1979 – exatamente a
questão que eu pedira a Salehi que não viesse à tona.
Suspeitei, porém, de que o urânio não entregue não fosse
o verdadeiro motivo da antipatia do Irã pela França,
lembrando as queixas de Ahmadinejad quanto à
“grosseria” de Sarkozy. O presidente francês sempre
encontrava uma forma de insultar o Irã. No final de agosto,
por exemplo, ele teria dito que “são os mesmos líderes do
Irã que dizem que o programa nuclear é pacífico e que as
eleições foram honestas. Quem pode acreditar neles?”221.
Os iranianos estavam aproveitando a oportunidade para
dar o troco nos franceses, embora Sarkozy tivesse
oferecido a Obama seu apoio no acordo. Na verdade, a
França era um dos poucos países com tecnologia para
produzir o combustível do reator de pesquisa do Irã. Era
preciso telefonar para Salehi. “Acho que você já jogou o
que tinha para jogar na cara dos franceses”, eu disse.
“Você vai precisar deles no futuro por causa do suporte
tecnológico – tanto para o reator de energia quanto para
as pesquisas.” Sugeri que eu poderia manter os franceses
no acordo como proposta minha.
Os iranianos poderiam relevar isso, respondeu Salehi, e
me pediu que entrasse em contato com os franceses, a fim
de que eles enviassem seu embaixador a Teerã para falar
com ele no dia seguinte. Em um encontro paralelo com a
delegação francesa, expliquei como tínhamos trabalhado
para mantê-los no acordo. “Vocês precisam pedir ao seu
pessoal em Paris para controlar a retórica”, eu disse.
“Vocês não podem acusar publicamente as pessoas de
mentirosas e depois esperar que confiem em vocês como
parceiros.” Nosso próximo obstáculo surgiu quando os
iranianos passaram a discutir como o urânio seria enviado
ao exterior. O combinado no encontro do P5+1 em
Genebra tinha sido que os 1.200 kg de LEU seriam
removidos de uma vez. O Irã passou a insistir em primeiro
receber o combustível, fabricado com alguma outra fonte
de LEU, para só então liberar seus estoques de urânio
enriquecido, em dois lotes. Segundo eles, isso se devia à
declarada falta de confiança e à sua experiência passada.
Como alternativa, sugeri que a agência pudesse assumir
a custódia do material desde o momento da saída do Irã
até sua devolução na forma de combustível, dando a eles a
garantia de que necessitavam. De qualquer forma, o risco
que o Irã corria era bem baixo: sua capacidade de
enriquecimento permaneceria intacta. Como eu disse a
Soltanieh e seus colegas, o momento e a quantidade de
LEU a ser entregue eram, a meu ver, o ponto de acordo
para os norte-americanos e outros países ocidentais.
Tínhamos chegado a um impasse. Telefonei para Salehi,
que, para minha surpresa, disse que eles entregariam
todos os 1.200 kg se os Estados Unidos fossem seu
interlocutor no acordo, em vez da Rússia ou da França. Foi
um golpe brilhante. Ignorando a terceirização, os iranianos
abririam as portas para um diálogo bilateral direto com os
norte-americanos. Isso era o que Ahmadinejad tinha dito
que queria desde o início. Também enviaria uma
mensagem de confiança em ambas as direções: de Teerã a
Washington e vice-versa.
Ao receber a mensagem de Salehi, os norte-americanos
ficaram boquiabertos. Poneman e sua equipe telefonaram
correndo para Washington para pedir orientação por volta
das 4 horas da manhã, no horário de Washington. Eles
finalmente responderam com uma contraproposta. Os
Estados Unidos não seriam parceiros no acordo, mas
fariam uma declaração política de apoio e se
comprometeriam a ajudar o Irã a melhorar a segurança em
seu velho reator de pesquisa. Era um passo gigantesco.
Sugeri que o compromisso de Washington fosse anexado
ao acordo de combustível e assinado pelos norte-
americanos. Eles concordaram na hora.
Poneman obteve autorização para ter uma conversa
bilateral com Soltanieh. Este disse que poderia encontrar-
se com Poneman apenas se eu estivesse presente. Levei
os dois para o meu escritório. Poneman expressou, em
nome do governo dos EUA, sua boa vontade em negociar
com o povo iraniano. A conclusão desse acordo de
combustível, ele disse, poderia abrir caminho para uma
gama mais ampla de cooperação entre os dois países,
inclusive com o fornecimento de novos reatores de
pesquisa ao Irã, pelos quais o país ansiava. O encontro foi
cordial e amigável. Soltanieh fez várias anotações para
levar a Teerã.
Estávamos equilibrados em uma corda bamba, em algum
ponto entre um grande avanço e o fracasso total. Tarde da
noite, telefonei para Salehi, prometendo enviar-lhe uma
cópia da declaração norte-americana por e-mail. Pedi a ele
que enfatizasse para Ahmadinejad que esse acordo
permitiria que ambos os lados mudassem completamente
os termos de suas negociações. Expliquei que, de acordo
com Poneman, era muito difícil para os norte-americanos
aceitarem a ida de material iraniano para os Estados
Unidos para fins de enriquecimento e fabrico. Haveria
muitos obstáculos a enfrentar por causa das sanções e
restrições domésticas ao Irã.
Conversamos novamente no início da manhã seguinte.
Era 21 de outubro, último dia do encontro para a proposta
de combustível. Salehi estava com Ahmadinejad, que teve
outra ideia. Ele sugeriu que os norte-americanos fossem os
interlocutores no acordo, mas com o trabalho
subcontratado pelos russos e pelos franceses. O LEU não
precisaria ir para os Estados Unidos de maneira alguma.
Salehi acrescentou que precisava que a equipe iraniana
retornasse a Teerã para que não parecesse que ele era o
único a assessorar o presidente iraniano. Ele disse também
que eles precisariam de alguns dias para dar uma
resposta.
Reconvoquei a reunião. Apresentei a proposta na forma
discutida com Poneman e Soltanieh no dia anterior: o Irã
embarcaria os 1.200 kg de LEU e a agência assumiria a
custódia, com os Estados Unidos fazendo uma declaração
de apoio político. Disse aos participantes que eles tinham
até sexta-feira, 23 de outubro, para dar sua aprovação
final. Insisti para que aprovassem, chamando a atenção
para as portas que seriam abertas com o acordo. É claro
que eu estava me dirigindo principalmente ao Irã; os
outros três participantes, Estados Unidos, Rússia e França,
já haviam embarcado.
Com a conclusão da reunião, fiz uma declaração breve e
otimista para a imprensa. A delegação norte-americana me
procurou para expressar o apreço de Washington. Obama
telefonou mais tarde, no mesmo dia, para me agradecer
pessoalmente. “Se esse acordo for aprovado”, disse ele,
“mudará a dinâmica das coisas para mim por aqui.” Ele
teria o espaço necessário para a negociação com o Irã em
muitas frentes. Mais de uma vez, por vários motivos, senti
necessidade de me beliscar.

As comemorações foram prematuras. Em Teerã, a postura


do establishment político tinha endurecido desde o
encontro do P5+1 em Genebra, no início do mês. Críticos
de todos os lados, incluindo a facção liberal que havia
perdido recentemente as eleições, acusavam Ahmadinejad
de estar se vendendo. Ali Larijani, que tinha visto seus
esforços para alcançar uma suspensão de fato anulados
por Ahmadinejad, era agora o presidente do Parlamento.
Era hora da revanche política. Ele havia se juntado àqueles
que criticavam a proposta de combustível como um
“insulto à nação”. Por que, eles se perguntavam, o Irã não
pode comprar seu combustível no mercado como qualquer
outro país?
Ray Takeyh, especialista em Irã do Conselho de Relações
Exteriores dos EUA, resumiu a situação de maneira
eloquente: “Houve um avaria na máquina da política
externa do país. Atualmente, o Irã não tem uma política
externa. Tem políticas domésticas, e suas políticas
externas são apenas expressões esporádicas destas
últimas. Não se trata de algo sinistro; não é hipocrisia; é
apenas incompetência”222.
Faltava pouco mais de um mês para que eu deixasse a
AIEA. Estava em contato diário com Poneman, em
Washington, e Salehi, em Teerã, tentando chegar a um
acordo. Salehi continuava hesitante, retirando vários
adendos propostos para tentar adoçar o acordo; não fazia
outra coisa senão procurar uma forma de vender o acordo
para Teerã. Por fim, deu uma resposta: Ahmadinejad só
concordaria se o LEU ficasse em casa até os iranianos
receberem o combustível para o reator de pesquisa. Eles
propunham armazenar o LEU na ilha de Kish, no golfo
Pérsico, sob controle e custódia da AIEA. O Irã então
entregaria o material assim que recebesse o combustível.
Comecei a rascunhar um acordo nesses termos, mas
Poneman telefonou para dizer que Obama estava
“bastante contrário” a qualquer acordo que mantivesse o
material nuclear no Irã. Eles estavam prontos a aceitar
qualquer outra solução, inclusive manter os Estados
Unidos como único parceiro do acordo, como Salehi havia
proposto anteriormente. Eles também sugeriram
armazenar o urânio em um terceiro país, como a Turquia
ou o Cazaquistão, nos quais o Irã teria total confiança.
Verifiquei com Salehi. Infelizmente, a política doméstica
sofrera novas mudanças. Ter os Estados Unidos como único
parceiro do acordo já não era mais suficiente. A questão
fundamental era que o LEU teria de permanecer no Irã até
o momento da troca.
Estávamos vendo a melhor das oportunidades afundar na
lama da política interna tanto em Washington quanto em
Teerã.
Salehi telefonou no dia 5 de novembro para dizer que o
presidente Ahmadinejad lhe pedira para conversar com
Khamenei sobre o acordo de combustível. Salehi ficou
surpreso; ele esperava que o presidente iraniano tomasse
a decisão sozinho. O Líder Supremo disse a Salehi que o
tratamento dado pela comunidade internacional para a
solicitação iraniana de combustível para seu reator de
pesquisa estava se tornando uma afronta. O Irã, disse ele,
entregaria o LEU, mas apenas em lotes de 400 kg, e só
depois do recebimento do combustível.
Alguns dias antes, Hillary Clinton declarara à mídia que o
acordo não seria alterado223, o que desagradou os
iranianos, mesmo com as declarações mais conciliatórias e
amigáveis de Obama. Salehi estava desanimado. Até
mesmo a ideia de armazenamento na ilha de Kish passou a
estar fora de cogitação. A resposta de Khamenei era a
“última palavra”. Essa nova condição não decolaria, eu
disse a Salehi. Ele sabia e me pediu que solicitasse aos
norte-americanos que fossem pacientes.
Em uma entrevista para Christiane Amanpour, tentei
fazer uma pressão sutil sobre os iranianos, insistindo para
que vissem o quadro geral e sugerindo a ideia da Turquia
como um terceiro país onde o LEU poderia ficar. Telefonei
para Poneman depois da entrevista, para lhe dar as
últimas informações. Ele telefonou de volta logo depois
para dizer que Obama aceitava a Turquia e que o primeiro-
ministro turco Erdog˘an assumisse esse papel. Enquanto
isso, Salehi discutira essa opção com Ahmadinejad, que
por sua vez falara com Khamenei. Por meio do embaixador
turco, enviei uma mensagem a Erdog˘an para que falasse
com Ahmadinejad sobre a ideia durante a viagem do
presidente iraniano à Turquia.

Minha última visita aos Estados Unidos como diretor-geral


da AIEA foi absolutamente diferente de tudo o que eu
havia vivido nos últimos oito anos. Em Washington, tive
uma série exaustiva de reuniões: com James Jones,
assessor de segurança nacional e sua equipe; com Hillary
Clinton e sua equipe; com o Comitê de Relações Exteriores
do Senado, chefiado pelo senador Kerry; e com muitas
outras autoridades do Departamento de Energia e do
Departamento de Estado. Para onde quer que me virasse,
encontrava expressões de agradecimento. Eu sabia que
estava em casa nos Estados Unidos. Foi uma boa
conclusão.
Em Nova York, fiz meu último discurso para a Assembleia
Geral. Foi difícil não me lembrar das críticas ferozes
dirigidas a mim não fazia tanto tempo, acusando-me de
parcialidade e de falar do que eu não entendia. Mas,
apesar de toda a gratidão e satisfação que eu sentia ao
final do meu mandato, as possibilidades de reaproximação
com o Irã não me saíam da cabeça. Tínhamos chegado
muito perto.

A proposta do combustível iraniano não foi abandonada


com minha saída, mas prosseguiu sofrendo reviravoltas.
No dia 9 de fevereiro de 2010, os iranianos declararam que
iriam enriquecer o LEU até 20% para fazer o combustível
para seu reator de pesquisa. Dois dias depois,
inexplicavelmente, Ahmadinejad declarou que o Irã havia
se tornado “um Estado nuclear”. Em meados do mês,
inspetores da AIEA verificaram que o Irã estava
enriquecendo urânio a 19,8% em Natanz.
Desdobramentos mais positivos, entretanto, estavam
ocorrendo nos bastidores. Depois de vários meses de
atraso, Teerã estava reavaliando a sugestão de uma troca
de combustível que incluía o armazenamento temporário
do LEU iraniano na Turquia. Em abril, Obama escreveu
diretamente ao presidente brasileiro Lula da Silva – uma
carta que depois vazaria para a imprensa – solicitando que
qualquer troca de combustível incluísse uma medida
prevendo o armazenamento de combustível “como
caução” na Turquia. Continuei fazendo contatos ocasionais
com os ministros das Relações Exteriores do Brasil e da
Turquia, dando total apoio a esse novo arranjo.
No dia 17 de maio de 2010, em declaração conjunta, Irã,
Brasil e Turquia anunciaram que tinham chegado a um
acordo sobre a troca do combustível. O Irã enviaria 1.200
kg de LEU para a Turquia, em um único carregamento, a
ser mantido como caução, enquanto o combustível do
reator de pesquisa do Irã era fabricado. Tratava-se de um
passo à frente – especialmente porque assinalava a
disposição dos novos participantes, Turquia e Brasil, de
assumir papel ativo na resolução do impasse diplomático.
No dia seguinte, porém, em um golpe de mestre de
futilidade diplomática, o P5+1 anunciou que tinha chegado
a um acordo sobre uma quarta resolução do Conselho de
Segurança para ampliar as sanções ao Irã por não ter
interrompido seu programa de enriquecimento. Hillary
Clinton chamou o acordo para a troca de combustível com
a Turquia e o Brasil de “estratagema transparente” do Irã
para evitar novas sanções.
Fiquei chocado e, para dizer o mínimo, dolorosamente
decepcionado. Mais uma vez, como observei em uma
entrevista para o Jornal do Brasil, o Ocidente havia se
recusado a receber um sim como resposta224. O Brasil e a
Turquia ficaram indignados. Ahmadinejad insistiu para que
os Estados Unidos aceitassem a troca de combustível
como um passo para a abertura e o diálogo. No Conselho
de Segurança, o Brasil votou contra as sanções – sem
sucesso. As potências ocidentais mais uma vez haviam
tocado na solução com a ponta dos dedos, para depois
descartá-la.
Quando propus pela primeira vez a troca do combustível,
o Irã tinha produzido cerca de 1.500 kg de urânio
enriquecido, por isso o acordo teria retirado a maior parte
do estoque iraniano do país. Na época do acordo com a
Turquia e o Brasil, o estoque havia crescido para cerca de
2.500 kg, o que certamente tornava o acordo menos
atraente para os norte-americanos como instrumento
diplomático, uma vez que o Irã continuaria a ter uma
“quantidade significativa”. No contrato, o Irã também não
se comprometera a interromper o enriquecimento a 20%,
embora Ahmadinejad tivesse dado a entender que o faria.
As potências ocidentais não estavam satisfeitas com
esses aspectos do acordo, mas para mim era óbvio que
poderiam ter facilmente resolvido essas questões nos
estágios iniciais da negociação. Era incompreensível e algo
ingênuo pedir ao Irã – ou a qualquer país – que desistisse
de tudo antes do início das negociações e esperasse uma
resposta positiva. Mas uma coisa era a de sempre: nada
seria satisfatório, a não ser que o Irã se dispusesse a
negociar completamente despido.
198 Thomas Erdbrink, “Ahmadinejad Congratulates Obama, Urges ‘Real’
Change”, Washington Post, 7/11/2008.

199 Ex-subsecretário de Estado e ex-embaixador dos Estados Unidos nas


Nações Unidas.

200 No dia 9 de abril de 2009, Hillary Clinton fez o seguinte comentário durante
uma coletiva de imprensa conjunta com o ministro das Relações Exteriores
australiano Stephen Smith e o secretário da Defesa dos EUA Robert Gates: “Não
sabemos em que acreditar quanto ao programa nuclear iraniano... Uma das
razões de participarmos do P5+1 é fazer cumprir as obrigações internacionais
do Irã, garantindo que a AIEA seja fonte de informação confiável”.

201 Ryan J. Donmoyer, “Biden Says Israel Has ‘Sovereign Right’ to Hit Iran”,
Bloomberg News, 6/7/2009.

202 “Obama: No Green Light for Israel to Attack Iran”, CNN, 7/7/2009.

203 “Outgoing IAEA Chief Has Tough Choice on Iran”, Associated Press,
20/8/2009.

204 Barak Ravid, “Sources: UN Watchdog Hiding Evidence on Iran Nuclear


Program”, Haaretz, 19/8/2009.

205 Yossi Melman, “Israel, U.S. Lost Face in IAEA Long Ago”, Haaretz, 19/8/2009.
Em outubro de 2010, dois meses depois de Olli Heinonen deixar a AIEA, ele deu
uma entrevista para o Haaretz e comentou os boatos de que nossa relação era
tensa: “É verdade que tivemos algumas discussões. E é verdade que algumas
pessoas da agência tentaram nos afastar espalhando boatos. Sou um técnico, e
[Mohamed] atua no nível político-diplomático. Às vezes discordávamos quanto
ao tempo e ao caminho a seguir, mas nenhuma dessas discussões e diferenças
de opinião causou dano algum à missão da agência de relatar o que víamos”.
Yossi Melman, “Behind the Scenes of UN Nuclear Inspection of Iran”, Haaretz,
22/10/2010.

206 A exatidão dessas acusações jamais foi confirmada; no entanto, é


significativo que as conclusões do Informe da Inteligência Nacional norte-
americana (NEI) não tenham sido alteradas, indicando que eles, pelo menos,
não acreditaram nas “evidências” apresentadas por Israel.

207 Em janeiro de 2011, o chefe do Mossad, Meir Dagan, declarou que não
acreditava que o Irã teria uma arma nuclear em menos de quatro anos. Yossi
Melman, “Outgoing Mossad Chief: Iran Won’t Have Nuclear Capability Before
2015”, Haaretz, 7/1/2011.
208 “France Accuses UN Watchdog of Hiding Iran Nuclear Evidence”, Agência
France Presse, 3/9/2009.

209 George Jahn, “Nuke Agency Says Iran Can Make a Bomb”, Associated Press,
17/9/2009.

210 “Excerpts from Internal IAEA Document on Alleged Iranian Nuclear


Weaponization”, ISIS, 2/10/2009. Retirado de: <www.isis-online.org/uploads/isis-
reports/documents/IAEAinfo3October2009.pdf>.

211 Fiquei sabendo que Aghazadeh havia renunciado porque aparentemente era
muito próximo de Mousavi, principal adversário de Ahmadinejad nas eleições
presidenciais de 2009. Salehi depois seria nomeado ministro das Relações
Exteriores, em dezembro de 2010.

212 Os iranianos estavam sempre tentando encontrar alguma forma de


aumentar seu estoque de urânio natural, pois tinham muito pouco e era
improvável que alguém lhes vendesse mais nas atuais circunstâncias.

213 Conselheiro especial para controle de armas e não proliferação do


Departamento de Estado dos EUA.

214 Assessor especial do presidente e coordenador da Casa Branca para


controle de armas e armas de destruição em massa, proliferação e terrorismo.

215 Einhorn tinha ido me ver acompanhado de Tom Pickering – outro ótimo
diplomata de carreira – durante a administração Bush, quando estavam
trabalhando no relatório do Grupo de Estudo do Iraque, chefiado por James
Baker e Lee Hamilton.

216 Eu já havia conversado com Salehi a respeito disso. Ele me disse que, se eu
quisesse falar desse assunto, deveria fazê-lo de forma complicada.
Aparentemente, no dialeto parse, é costume fazer qualquer observação crítica
de maneira indireta.

217 Jeff Mason, “Clinton Warns Iran of Need for Nuclear Progress”, Reuters,
11/10/2009.

218 “Remarks with Russian Foreign Minister Sergey Lavrov”, 13/10/2009.


Citação retirada de: <www.state.gov/secretary/rm/2009a/10/130505.htm>.

219 “Don’t Pressure Iran, Says Russia”, BBC News Online, 13/10/2009.

220 Chefe adjunto da Agência Russa de Energia Atômica.

221 James Mackenzie, “France’s Sarkozy Raises Iran Sanction Threat”, Reuters,
27/8/2009.
222 Doyle McManus, “Talking with Iran – and Sending a Message”, Los Angeles
Times, 1o/11/2009.

223 “US Will Not Alter Iran Nuclear Deal”, AlJazeera, 3/11/2009.

224 “ElBaradei condena rejeição do acordo Irã-Turquia-Brasil”, Jornal do Brasil,


30/5/2010.
Conclusão
A BUSCA PELA SEGURANÇA

O anseio por segurança é uma característica humana


universal. Mas, tanto para nações quanto para indivíduos,
a definição de segurança e as estratégias para alcançá-la
variam muito, seja para garantir comida, água, assistência
médica e o direito de ter as necessidades atendidas, seja
para garantir outros direitos humanos básicos – como a
liberdade de expressão, a liberdade religiosa e o direito de
viver sem medo da guerra. Para as nações, a segurança
pode ser sinônimo de dominação econômica, militar ou
ideológica, ou então projeção de força e influência. Em
muitas regiões do mundo, tensões antigas bloqueiam o
caminho para a segurança, e a busca por ela deve
começar pela solução das tensões.
Apesar dessa variedade de cenários, seria um erro
pensar que as inseguranças globais estejam
desvinculadas. As ligações são evidentes: a pobreza
geralmente está vinculada ao desrespeito pelos direitos
humanos e à falta de um bom governo, o que por sua vez
gera injustiça, ódio e humilhação – ambiente ideal para o
desenvolvimento de vários tipos de violência: extremismo,
conflitos civis, guerras. E é nas regiões de conflitos antigos
– independentemente da natureza do regime no poder –
que os países são mais frequentemente levados a reforçar
suas defesas ou adquirir suposta vantagem estratégica
com a aquisição de armas nucleares e outros tipos de
armas de destruição em massa. A sobrevivência é
essencial para todos os regimes, sejam eles democráticos
ou autoritários.
Na era da globalização, é mais evidente do que nunca
que essas inseguranças são ameaças sem fronteiras. Não
podemos nos conformar com a ideia de que uma ameaça à
segurança a meio mundo de distância não irá nos afetar,
seja na forma de um ataque cibernético, seja na forma de
um colapso financeiro, uma pandemia ou o roubo de
material nuclear. Essas ameaças não podem ser
combatidas de maneira eficaz por nenhum país ou
organização; por sua própria natureza, exigem respostas
multidimensionais, cooperação multinacional.
No caso das armas nucleares, se o perigo for mitigado e
depois eliminado, deve ser visto em um contexto mais
amplo. A ameaça irá persistir enquanto a comunidade
internacional continuar a tratar apenas dos sintomas de
cada ameaça de proliferação nuclear: travando uma guerra
com um primeiro país, fazendo acordo com um segundo,
impondo sanções a um terceiro, buscando a mudança de
regime em um quarto. Enquanto as armas nucleares
continuarem a fazer parte da estratégia de segurança de
alguns poucos países, com acordos que estendem essa
segurança a um pequeno círculo de países “aliados”,
enquanto outros caem no esquecimento, o risco de
proliferação estará presente. Com o surgimento de grupos
extremistas sofisticados, para quem a ameaça de
retaliação é irrelevante, a dissuasão nuclear não passa de
estratégia de segurança temporária, senão ilusória. A
segurança é indivisível.
Fundamentalmente, isso significa que a comunidade
internacional precisa desenvolver um sistema alternativo
de segurança coletiva, que seja visto não como um jogo de
resultado zero para um determinado país ou grupo de
países, mas como um imperativo universal enraizado na
noção de segurança humana e de solidariedade
totalmente coberta por um mandado de injunção225. Essa
mudança no pensamento não é apenas uma obrigação
moral ou ética, mas também uma necessidade prática:
enquanto a população do planeta continuar a crescer e os
recursos se tornarem cada vez mais limitados, a
sobrevivência humana dependerá da eficiência com que
conseguimos administrar nossa interdependência.
Um sistema alternativo de segurança coletiva deve ser,
em todos os aspectos, equitativo e inclusivo. Devemos
desenvolver estratégias para compartilhar a riqueza do
planeta de maneira mais igualitária – reconhecendo que a
pobreza também é uma arma de destruição em massa.
Precisamos investir em tecnologia e ciência avançadas
para atender às necessidades de desenvolvimento, em vez
de criar produtos que apenas geram mais riqueza para os
ricos. Os investimentos atuais em tecnologia visam apenas
ao lucro; é preciso colocar mais ênfase nas descobertas
científicas e nas inovações tecnológicas para tratar da
fome e das doenças. Só quando começarmos a aliviar a
pobreza seremos capazes de gerar o incentivo, nas regiões
afetadas, a uma dinâmica de governo eficaz. Quando as
necessidades humanas básicas são atendidas, o ambiente
se torna propício para que os cidadãos voltem sua atenção
à conquista de direitos políticos, civis e sociais.
Um paradigma de segurança multinacional deve estar
assentado em instituições multinacionais fortes, ágeis. As
crises e desafios em questões de não proliferação nuclear
que a AIEA enfrentou nos últimos anos revelaram, no
mínimo, as falhas das nossas atuais instituições
multinacionais e os contornos de como consertá-las. O
Conselho de Segurança da ONU, organismo internacional
encarregado de manter a paz mundial, precisa redirecionar
sua atenção para a origem dos conflitos em vez de focar
apenas os sintomas de insegurança. Isso significaria uma
ênfase muito maior na pacificação e na manutenção da
paz; na identificação e prevenção de disputas; na
mediação e na reconciliação ágil e eficaz; e em assumir o
controle na administração dos conflitos. Da mesma forma,
o Conselho, dominado como é atualmente por um ou
alguns membros do G5, deveria reduzir a ênfase em
medidas coercitivas pós-fatos, que invariavelmente
vitimizam civis vulneráveis, como ocorreu no Iraque antes
da segunda Guerra do Golfo. O Conselho também precisa
reconstruir sua credibilidade baseado na consistência e na
imparcialidade, eliminando o padrão de dois pesos e duas
medidas associado à geopolítica ou ao relativismo moral.
Na frente nuclear, em particular, as estruturas
multinacionais para evitar, detectar e combater a
proliferação exigem reforço. A AIEA, como guardiã de fato
do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, pode
ser mais eficaz na verificação dos programas nucleares em
todo o mundo – inclusive detectando atividades
clandestinas –, se lhe forem conferidos os fundos, a
tecnologia e a autoridade necessária e, onde for aplicável,
a inteligência disponível e outras informações.
Autoridade legal é o primeiro passo. É preciso um esforço
unificado para que os acordos de salvaguardas – e os
Protocolos Adicionais – sejam colocados em prática por
todas as partes do TNP. Isso poderia ser concluído de forma
relativamente rápida. A comunidade internacional também
precisa enfrentar as limitações atuais das funções de
verificação da AIEA, centradas no material nuclear. Caso
caiba à AIEA detectar e perseguir operações clandestinas
de armamento nuclear, ela deve ter a autoridade legal
correspondente.
Para acompanhar o ritmo das mudanças tecnológicas
que facilitam a proliferação nuclear e para manter sua
credibilidade como corpo de verificação independente, a
AIEA deve ter o apoio financeiro necessário para poder
adquirir e manter tecnologia de ponta própria e para
formar e renovar sua força de trabalho na área de
inspeção. Dólar por dólar, a agência provou que é um
investimento extraordinariamente seguro. Mas com o nível
atual de financiamento e o estado de sua infraestrutura
tecnológica completamente dilapidado, a AIEA cedo ou
tarde ficará sem condições de cumprir sua missão de
verificação nuclear.
Todos os Estados deveriam reiterar o compromisso de
compartilhar informações relevantes com a agência quanto
a preocupações sobre potencial proliferação nuclear de
forma rápida e consistente. Essa é uma obrigação legal
sob o TNP. As trapaças por parte dos candidatos a
proliferadores não podem ser combatidas eficazmente se
os países que dispõem de informações relevantes
ignorarem ou apoiarem as estruturas de não proliferação
multinacionais de acordo com caprichos políticos.
Além disso, quando os países com esse tipo de
informação atacam primeiro e compartilham as
informações depois – configurando uma contravenção
direta da lei internacional, como no caso dos bombardeios
efetuados por Israel em 2007 contra as instalações de Dair
Alzour, na Síria, e em 1981 contra o reator de pesquisa de
Osirak, no Iraque –, a condenação desses atos deve ser
imediata e, mais importante, ser acompanhada de
consequências. A regra não tem sentido se a aplicarmos
seletivamente. Duas iniciativas multinacionais já em
andamento deveriam ser reforçadas. A primeira é
proporcionar o máximo de segurança ao material nuclear e
radioativo, a fim de mantê-lo longe das mãos de grupos
extremistas. A segunda é passar o controle sobre o ciclo de
combustível nuclear de nacional a multinacional. Em
dezembro de 2010, a diretoria da AIEA adotou a decisão de
autorizar a existência de um banco de combustível de
urânio de baixo enriquecimento, sob o controle da agência,
para garantir o fornecimento de combustível a usuários
bona fide – medida pela qual lutei durante anos226. Esse é
um primeiro passo importantíssimo. O grande objetivo,
porém, deve ser a total internacionalização do ciclo de
combustível, paralelamente ao desarmamento nuclear
universal.

Do meu lugar na primeira fila, de onde assisti aos dramas


nucleares durante as duas últimas décadas, pude ver
inúmeras vezes como a falta de um senso de justiça e
equidade nas negociações pode sabotar até a resolução
mais justa, desejável e sensata. O caminho para uma
cooperação bilateral em que ambas as partes ganhem está
cheio de obstáculos a superar – as vítimas do desrespeito,
da desconfiança, da política doméstica autodestrutiva e de
legados históricos dolorosos não desaparecem da noite
para o dia.
Ainda assim, por mais improvável que pareça, depois de
tantas frustrações e até mesmo ultrajes em todos esses
anos à frente da AIEA, continuo a acreditar que a
diplomacia tem a capacidade de resolver problemas que
podem parecer intratáveis. O principal motivo para
otimismo no progresso recente – tanto ideológica quanto
concretamente – do desarmamento nuclear é uma
transformação total, movida pela consciência de que, com
a disseminação da tecnologia nuclear, o crescimento do
extremismo e o aumento dos casos de proliferação, a
continuidade do statu quo é uma fórmula para a
autodestruição. Em um ensaio histórico, quatro veteranos
da Guerra Fria – Henry Kissinger, George Shultz, Sam Nunn
e William Perry – declararam que o mundo estava “à beira
de uma nova e perigosa era nuclear” e foram ousados o
bastante para defender, como objetivo realista, “um
mundo sem armas nucleares”227. A reação foi
impressionante. No ano seguinte à publicação do artigo,
tive a oportunidade de encontrar-me com cada um desses
cavalheiros. Eles falaram da recepção entusiástica ao seu
chamado para o desarmamento, que era muito mais do
que um simples artigo de opinião bem escrito; cada um
deles o via como o início de uma campanha para mudar o
panorama global228.
No aniversário de seu primeiro ensaio, os mesmos quatro
homens publicaram um segundo ensaio, após uma
conferência na Instituição Hoover, da Universidade de
Stanford. Dessa vez, fizeram recomendações concretas
sobre como alcançar o desarmamento229. O fato de esses
firmes combatentes da Guerra Fria terem seguido nessa
direção é uma indicação inequívoca da nova urgência que
animava o ativismo desarmamentista.
Margaret Beckett, ministra britânica das Relações
Exteriores, juntou-se ao coro pelo desarmamento,
indicando a aprovação de seu governo e traçando as
medidas a serem tomadas:

Precisamos de visão – um cenário para um mundo sem armas nucleares – e


de ação – medidas progressivas para reduzir o número de ogivas e limitar o
papel das armas nucleares nas políticas de segurança. Essas duas vertentes
são separadas, mas se reforçam mutuamente. Ambas são necessárias, mas
no momento estão muito frágeis.230

Inúmeros esforços semelhantes estão em andamento.


Uma grande campanha internacional foi lançada em Paris
em dezembro de 2008, com o nome “Global Zero”; a ela
aderiram mais de duas centenas de figuras públicas de
todas as esferas: ex-chefes de Estado, oficiais militares,
ganhadores do Prêmio Nobel, ministros e parlamentares,
escritores influentes e outros líderes civis. Usando sua
influência e suas redes de contatos, esses indivíduos
buscam avançar e expandir o diálogo diplomático entre os
governos mais importantes, defendendo uma redução
gradual dos arsenais nucleares por todos os países que
possuem tais armas.
No dia 8 de abril de 2010, o presidente norte-americano
Barack Obama e o presidente russo Dmitri Medvedev
assinaram um novo Tratado de Redução de Armas
Estratégicas (START – Strategic Arms Reduction Treaty) em
Praga. Pelo novo tratado, o limite de ogivas estratégicas é
de 1.550, bem abaixo daquele estabelecido pelo Tratado
de Moscou de 2002 – e dessa vez os números serão
irreversíveis e passíveis de verificação. Mesmo antes da
ratificação do novo tratado pelo Senado norte-americano,
os Estados Unidos começaram a colocar em prática suas
disposições. As estatísticas publicadas pelo Departamento
de Estado no final de 2009 mostravam um total de 1.968
ogivas estratégicas. Segundo a Federação de Cientistas
Norte-Americanos, “a última vez em que os Estados Unidos
tiveram menos de 2 mil ogivas estratégicas de prontidão
foi em 1956”231.
Esse movimento por parte dos Estados Unidos e da
Rússia – os dois países com a maior responsabilidade de
demosntrar liderança na questão do desarmamento, uma
vez que juntos respondem por mais de 95% das ogivas
nucleares existentes – enviou um sinal bastante positivo
para a comunidade global. Mas ainda não é suficiente. Os
dois países precisam acelerar o ritmo de desmontagem de
milhares de armas de reserva, reduzir as armas
distribuídas estrategicamente de acordo com o status de
alerta da Guerra Fria e dar mais tempo aos líderes de cada
país para que verifiquem relatos de possível uso de armas
nucleares e respondam a eles. Além disso, o novo START
deve ser seguido e reforçado em breve por outros acordos
multilaterais de controle de armas, como o Tratado
Abrangente de Proibição de Testes (CTBT – Comprehensive
Test Ban Treaty) e o Tratado de Redução de Materiais
Físseis (FMCT – Fissile Material Cut-off Treaty), que estão
sendo planejados há tempos. Mas é gratificante ver um
movimento substancial na direção certa. Ao demonstrar
seu compromisso irreversível com um mundo livre da
ameaça nuclear, os países que possuem armas nucleares
podem contribuir enormemente para a legitimidade do
regime de não proliferação e ganhar autoridade moral para
detectar, deter e derrotar os que tentarem trapacear o
sistema, com o apoio de toda a comunidade internacional.
Outro motivo de esperança, da forma como vejo a
situação, é o potencial para um acordo negociado no
impasse EUA-Irã. Tendo observado o que funcionou e o que
não funcionou em cenários complexos de diplomacia
nuclear, acredito que os elementos para uma solução
finalmente estejam no lugar. Os dois lados estão
motivados a realizar uma parceria. Isso não significa que
todos os indivíduos sintam-se motivados; existem hordas
de detratores plantadas em ambos os governos – para não
falar dos especialistas que rondam as ondas aéreas da
mídia e ocupam vários conselhos editoriais. Mas os
indivíduos mais importantes estão ansiosos para encontrar
uma forma de avançar.
A mudança ocorrida em meados de 2009 não tem
precedentes. Não é fácil transmitir a um público cuja porta
para acompanhar tais temas costuma ser o Washington
Post ou o Financial Times a natureza dessa mudança de
atitude nos bastidores. Mas, nas agitadas semanas finais
do meu mandato, os esforços para identificar soluções
criativas, juntamente com as garantias de boa vontade e
respeito transmitidas de um lado a outro entre o Irã e os
Estados Unidos, praticamente não existiram nos oito anos
anteriores. Os avanços posteriores realmente foram
pequenos – algumas conversas entre autoridades, troca de
correspondência nos bastidores e o reatamento das seis
partes envolvidas na negociação, com os Estados Unidos
finalmente representados à mesa. O progresso é sempre
hesitante. Longos períodos de 2010 foram desperdiçados
com bravatas e mais atrasos. Mas, se esses pequenos
passos alteram a noção do que é possível, o conceito de
laços renovados entre os dois países já não é mais tão
inimaginável. Qualquer que seja o resultado, essa
mudança é uma prova das alterações possíveis quando
existe a vontade política necessária, com justiça e
equidade como pontos de partida.
É claro que o caso do Irã não é o único. A capacidade de
produção de armas nucleares da Coreia do Norte, mesmo
que não definida completamente, há muito é grande fonte
de insegurança no leste asiático. As manobras políticas
complexas de Pyongyang são historicamente difíceis de
entender. Mas também nessa frente as sementes foram
plantadas para uma resolução pacífica das preocupações
com a proliferação nuclear e outras inseguranças na
península coreana. Quaisquer que sejam os obstáculos, as
lições do passado nos dizem que toda solução passa pela
ajuda à Coreia do Norte para que ela saia da sua condição
de pária e volte para a comunidade das nações.
A última razão para não perder a fé em que a diplomacia
e o diálogo podem prevalecer como estratégia para lidar
com as crises nucleares se baseia em uma questão de
lógica: a alternativa é inaceitável. É claro que o otimismo
está muito distante da certeza. A diplomacia nuclear é um
negócio entediante, tortuoso. Mas o caminho à frente é
claro. Por fim, somos uma única família humana unida;
gostemos ou não, estamos juntos nessa. A única busca que
faz sentido, a única por que vale a pena lutar, é a
segurança coletiva.
225 “Writ”, no original. Termo de origem inglesa que também significa mandado
ou ordem e que, no ordenamento jurídico brasileiro, pode ser interpretado como
medida impetrada pela autoridade competente. (N. dos TT.)

226 A aprovação dessa medida passou com 28 votos favoráveis. Seis países se
abstiveram – Argentina, Brasil, Equador, África do Sul, Tunísia e Venezuela – e o
Paquistão não compareceu. As abstenções refletem vestígios de desconfiança
em relação ao propósito do banco de combustível, provenientes da proposta
inicial de seis países ocidentais que haviam solicitado aos participantes que
abrissem mão dos seus direitos sobre o ciclo de combustível como condição
para o suprimento. Esperamos que, com o tempo, essa desconfiança se dissipe.

227 “A World Free of Nuclear Weapons”, Wall Street Journal, 4/1/2007.


228 Durante os preparativos para as eleições presidenciais primárias de 2008
nos EUA, Bill Perry e Sam Nunn me disseram que, dos quatro veteranos, os dois
democratas estavam trabalhando com os candidatos democratas, e os dois
republicanos, com os candidatos republicanos, para que, independentemente de
quem vencesse a eleição, o presidente eleito dos Estados Unidos estivesse
comprometido com um mundo sem armas nucleares.

229 George P. Shultz, William J. Perry, Henry A. Kissinger e Sam Nunn, “Toward a
Nuclear-Free World”, Wall Street Journal, 15/1/2008.

230 Ibid.

231 Hans M. Kristensen, “United States Moves Rapidly Towards New START
Warhead Limit“, Blog da Federation of American Scientists Strategic Security, 2
de maio de 2010, retirado de:
<www.fas.org/blog/ssp/category/hans_kristensen>.
Agradecimentos

A diplomacia nuclear é uma tarefa complexa e de longo


prazo. Ainda assim, o mundo é um lugar melhor por causa
do trabalho intensivo e do compromisso permanente de
pessoas de toda a comunidade internacional: diplomatas,
inspetores, cientistas, advogados, técnicos de laboratório,
jornalistas, ativistas e acadêmicos, líderes de todos os
setores e de todos os níveis e, em especial, meus colegas,
os homens e mulheres dedicados da Agência Internacional
de Energia Atômica (AIEA). Muitos foram fonte de
inspiração e incentivo para a redação deste livro; muitas
de suas ideias, observações e até mesmo piadas
animaram e enriqueceram estas páginas; apesar de ser
impossível citar todas as pessoas pelo nome, cada uma
delas tem minha sincera gratidão.
Algumas pessoas merecem menção especial por sua
contribuição para este projeto.
Sou especialmente grato a Laban Coblentz, meu principal
colaborador no desenvolvimento conceitual e na redação
do texto; sem ele este livro não seria o que é. Redator
extraordinário, pensador inovador e amigo sempre alegre e
leal, Laban encontrou maneiras de acender a chama em
locais em que isso seria humanamente impossível.
Também preciso destacar seu bem mais valioso, Angeline,
sua esposa, ex-colega da AIEA, sem cuja paciência, apoio e
disciplina este livro não teria sido concluído.
A redação também se beneficiou imensamente da ajuda
de vários colegas da AIEA – Jacques Baute, Vilmos
Cserveny, Olli Heinonen, Herman Naeckerts, Tariq Rauf,
Laura Rockwood e David Waller –, que complementaram
graciosamente minhas lembranças do que aconteceu,
quando e onde, acertaram e esclareceram as explicações
dos meus advogados sobre tecnologia nuclear e
responderam a muitas perguntas para garantir a exatidão
dos relatos. Eva Moosbrugger, minha dedicada assistente
de tantos anos e confidente na AIEA, doou inúmeras noites
para transcrever cuidadosamente minhas reflexões
desconexas ditadas ao gravador e transformá-las em texto
inteligível, me incitando a gravar meus pensamentos
mesmo nos momentos mais movimentados. Ewelina
Hilger, pesquisadora por excelência, fez esforços
igualmente exaustivos para localizar a documentação de
apoio, confirmar coordenadas e cronologias e checar
detalhes importantes com vários especialistas da AIEA e da
indústria. Stephanie Zupancic, minha assistente atual,
acompanhou-me sem reclamar até o Cairo, a Gers, na
França, e a muitos outros lugares, ajudando-me a manter
contato com o mundo, por mais remota que fosse minha
localização ou por mais desafiadora que fosse minha
agenda.
A maioria dos temas e conceitos examinados nestas
páginas foi primeiro articulada em discursos e textos
durante meu mandato como diretor-geral da AIEA. Além
dos já citados, entre os colaboradores fundamentais para a
formulação e a expressão dessas ideias estão Richard
Murphy, Melissa Fleming, Graham Andrew, Geoffrey Shaw
e Ian Biggs.
Noah Lukeman, meu agente, procurou-me anos atrás
com a ideia de escrever este livro, entendendo o quanto
era importante que essas mensagens atingissem um
público mais amplo, e gentilmente recusou-se a sair da
tela do meu radar. Sou especialmente grato a Noah por ter
ajudado o livro a encontrar um lar verdadeiramente
solidário na Metropolitan Books. Sara Bershtel, publisher
da Metropolitan, foi uma advogada rigorosa e atenciosa,
dando conselhos cruciais e incentivo, enquanto minha
editora, Riva Hocherman, mostrou-se a parceira ideal para
a definição e a nitidez do foco do manuscrito. Riva é, sem
dúvida alguma, a melhor editora que um autor de primeira
viagem poderia esperar: sua inteligência para captar o que
eu queria dizer, sua habilidade incomum, sua paixão para
colocar as ideias da maneira perfeita e manter a
mensagem ajudaram a transformar a narrativa em uma
leitura afiada e atraente.
Nenhum autor poderia desejar uma família mais amorosa
e solidária. Minha esposa e filhos, assim como minha mãe,
irmãs e irmãos, estiveram sempre ao meu lado, nos altos e
baixos do período em que fui diretor-geral da AIEA. Meu
filho Mostafa, com seu jeito pensativo e discreto, estava
sempre presente para desafiar com gentileza minha
habilidade intelectual, e, quando precisava dele para
consertar uma conexão de internet ou para me ajudar com
meus conhecimentos rudimentares de informática, seus
talentos de “nerd” estavam sempre à disposição. Minha
filha Laila e meu genro Neil Pizey, infelizmente advogados
como eu, leram inúmeras versões da narrativa, produzindo
páginas com perguntas pertinentes, ajudando-me a
destrinchar detalhes técnicos que precisavam ser mais
bem explicados aos leitores leigos – Laila, com seu jeito
direto e irreverente, e Neil, com seu jeito inquisitivo e fala
mansa.
Nada do que eu colocar em palavras será suficiente para
descrever o quanto sou afortunado por ter Aida, minha
esposa, como parceira, amiga e alter ego. Em todas as
situações de estresse físico, mental e emocional
desencadeadas pelos episódios descritos neste livro, assim
como pelo trabalho da escrita, ela foi minha aliada
constante, minha conselheira franca e meu santuário. Por
fim, quero homenagear meu falecido pai, que, mesmo em
sua ausência, continua a ser uma inspiração para mim, por
muitos dos valores que mais prezo.
Índice
CAPA
Ficha Técnica
Introdução
1 • Iraque, primeiro round
DEPOIS DA GUERRA
2 • Coreia do Norte
O CASO DO PLUTÔNIO DESAPARECIDO
3 • Iraque, segundo round
A SEGUNDA GUERRA DO GOLFO
4 • Coreia do Norte
O CLUBE DAS POTÊNCIAS NUCLEARES GANHA MAIS UM
MEMBRO
5 • Irã
TAQQIYA
6 • Líbia
7 • O “bazar” nuclear de A. Q. Khan
8 • De Viena a Oslo
9 • Irã
“NEM UMA CENTRÍFUGA SEQUER”
10 • Dois pesos e duas medidas
11 • Irã, 2007–2008
OPORTUNIDADES DESPERDIÇADAS
12 • Irã, 2009
Conclusão
A BUSCA PELA SEGURANÇA
Agradecimentos

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