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O Curso da Lagarta
Ilustrações de Andréa Vilela
1ª Edição
POD
Greenville
KBR
2018
Edição de Texto Noga Sklar
Ilustrações Andréa Vilela
Capa KBR sobre ilustração de Andréa Vilela
ISBN: 978-1-944608-64-4
eduardopereiradeazevedo@gmail.com
Caixa Postal 98574 - Carmo, RJ - CEP 28640-000
Sumário
O vento • 8
A lua • 22
A grande teia • 34
Amigos e conhecidos • 46
A tempestade e o arco-íris • 56
O mapa • 68
O plano • 82
As diferenças • 92
O louva-a-deus • 106
A traça • 122
O telhado • 138
A despedida • 152
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1. O vento
E le vem chegando, vindo de algum lugar. Então, finalmente,
chega, sustenta as nossas asas, balança e sacode os nossos pe-
los e as nossas roupas. O vento é capaz de mover quase tudo: ele é o
próprio movimento.
Às vezes quente, às vezes frio, às vezes bem cedo, outras vezes
tardio. Quer ver o vento? Não se pode vê-lo, a não ser que por onde
ele esteja passando haja poeira, areia, neve ou coisa parecida. Não
sabemos exatamente onde ele começa nem onde termina, mas pos-
sui tantas definições e nomes quanto direções por onde possa fluir.
Quem nunca ouviu falar no vento minuano? E no vento sudoeste?
Enfim, nossa história é como o vento: não sabemos com preci-
são onde começa nem onde termina. Apenas sabemos que ela existe
por aqui, e é isso que importa. Uma aventura sem precedentes está
prestes a se iniciar e, se você pensa que é uma história qualquer, está
enganado.
Um mundo melhor depende de todos nós, e isso inclui todo
ser vivente que habita o planeta. O mundo caminha a passos lar-
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2. A lua
A vida, com seus detalhes e particularidades, determina as
nossas ações, reações, atitudes e comportamentos. Ninguém
escapa das etapas e fases da vida, e com a Faninha não seria dife-
rente. Em seu atual estágio de lagarta, a coisa mais importante era
comer, comer sem parar.
Não é tão difícil assim entender essa compulsão de consu-
mir. Afinal, nós, os bípedes gigantes, consumimos tudo o tempo
todo, compulsivamente. Você liga o computador e já tem um
e-mail anunciando uma promoção do tipo “Black Friday”. Você
liga a televisão e outra promoção te acerta em cheio num ma-
ravilhoso comercial. Até mesmo na rua, outdoors e promoções
nas vitrines das lojas parecem nos coagir e forçar a consumir.
Vivemos como famintos. Até quando agiremos dessa maneira?
Será que o planeta aguenta tanta fome assim?
Agimos como miseráveis, diferentemente dos outros ha-
bitantes do planeta, que comem apenas o necessário. Fazemos
parte de um sistema que precisa estar em equilíbrio, assim como
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3. A grande teia
Q uando estamos focados em algo, perdemos a sensação do
tempo: é como se não sentíssemos se passarem os segun-
dos, minutos, horas, dias. A repetição das ações, a rotina, re-
força essa ideia, fazendo com que nos importemos apenas com
completar uma etapa, fechar um ciclo ou terminar uma fase —
como em uma fábrica, onde cada um desempenha seu papel, sua
função.
Como humanos, deveríamos saber nossas atribuições por aqui.
Não viemos para cá só para consumir todos os recursos naturais, até
porque não estamos sozinhos, nunca estivemos. Existe um Poder Su-
perior, que está presente em tudo e em todos. E Ele tudo sabe, porque
sempre foi e sempre será.
Nossa amiga, apesar de pequena, vive no mesmo mundo que nós.
Ainda está na fase de comer e, quando estamos nos alimentando, fica-
mos vulneráveis. O sabiá não é o único predador por essas bandas, pois
existe mais perigo ao redor de Faninha do que ela possa imaginar. Suas
escolhas podem desafiar a tênue linha que separa o perigo iminente da
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A grande teia
A lagarta deu uma boa risada, mas a aranha não achou a menor graça.
— Você não sabe de nada. Já está na grande teia, só que ainda não
entendeu o jogo. Aqui só vive para contar a história quem luta para
sobreviver. Luta e vence. Acorda, Alice! O mundo não é perfeito, pelo
menos não da maneira que você entende a perfeição. Paz e equilíbrio
são conquistados com muito esforço, e isso tem um preço — disse Mor-
gana.
— Alice, não! Faninha, ouviu?
— Tanto faz como você se chama. Vai embora e não me gasta.
Aproveita que estou calma! — Morgana respondeu, e voltou à sua roti-
na, retornando para a sua teia e começando a restaurá-la.
Hora de sair fora, pensou Faninha. A aranha já estava fican-
do agressiva, e era melhor não apostar na sorte. Enquanto Faninha
saía de cena, pensou no que a “gigante peludinha” havia lhe dito.
Ela, a aranha, não estava mentindo. Precisamos comer para sobre-
viver, comemos muito e comemos uns aos outros. Será que existe
um lugar onde isso não seja necessário? Insetos e bichos comem
e dormem, mas não param seu dia para ficar pensando em coisas
desse tipo. A natureza deles não questiona nada. Serei um ser fora da
curva? Da grande teia? — pensou nossa lagarta, enquanto se afastava
da aranha.
— Quando poderei viver em paz e ficar tranquila? — balbuciou
Faninha enquanto caminhava.
— Pensando alto, lagarta? Ou está falando sozinha? — disse uma
voz que partia de um galho bem abaixo de onde Faninha estava. E era
uma voz bem estranha, afetada e cheia de entonação.
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4. Amigos e conhecidos
A ndar por aí sozinho é muito chato. Só sabemos se somos fe-
lizes ou não quando estamos em companhia de alguém, ou
seja, a verdadeira felicidade só pode ser vivida se você a comparti-
lha com outra pessoa.
Faninha arrumara uma parceira para sua aventura. A rotina
de comer agora era dividida com a presença, sempre saltitante, da-
quela pulga minúscula. Mas não existe um velho ditado, afirmando
que “tamanho não é documento”?
— Então, você tem quatro dias de vida e já viveu isso tudo?
Sinto que grandes emoções nos aguardam. — disse Clair, com um
ar de empolgação.
— Grandes? Isso não é uma indireta, ok? — comentou Fani-
nha, sem entender muito bem o sentido daquela frase.
— Claro que não! O fato de você ter umas vinte vezes o meu
tamanho não me incomoda. Não tenho complexo de inferioridade.
Por falar em incômodo, você não está se sentindo apertada? Olha
isso aqui! — Clair puxou um pedaço de pele da lagarta enquanto
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O Curso da Lagarta
dessas que se parecem com raquetes de tênis e são vendidas nas ruas.
Um bípede gigante interrompera a trajetória do mosquito falante.
Clair e Faninha assistiram a tudo, e a cena as deixou apreensi-
vas. O que sobrara do mosquito caiu... uma parte caiu à esquerda e a
outra à direita, como tinha que ser, deixando uma trilha de fumaça.
— Clair, me diz uma coisa... — pediu Faninha. — Como uma
pulga como você pode ter tanta sabedoria? Digo isso porque você
me surpreendeu, com sua réplica ao mosquito. Ele ficou desconcer-
tado!
— A verdadeira escola é a vida, Faninha. Podemos ler muitos
livros, saber muitas coisas, mas se não tivermos bom senso e acei-
tarmos a vida como ela é, todo saber pode se tornar inútil. Não li
tanto quanto ele, não tenho a super formação que ele tinha, mas
sei ler a vida nos seus mínimos detalhes, percebo as suas nuances.
Não se pode viver com tanta amargura e raiva no coração. Isso é tão
ruim quanto os agrotóxicos de que ele nos falou com tanta insistên-
cia. Sentimentos ruins poluem o nosso coração — completou Clair,
com extrema sabedoria.
O dia estava dando lugar ao crepúsculo. Nuvens carregadas se
aproximavam, uma tempestade estava a caminho. Clair e Faninha,
instintivamente, foram em direção ao tronco da árvore e ali ficaram
até anoitecer. Os raios que caíam ao longe traziam a lembrança do
que havia acontecido ao mosquito Zaratustra. Tudo pode estar por
um fio, então é melhor não ficar reclamando demais da vida.
Apesar de tudo de chato que Zaratustra tinha dito, sobre uma
coisa ele estava coberto de razão: temos que reduzir o impacto do
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Amigos e conhecidos
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5. A tempestade e o arco-íris
J á bem alojadas em um buraco no tronco, Clair e Faninha ob-
servavam a chegada da tempestade. Violentas rajadas de ven-
to açoitavam o ar, um assobio agudo transpassava os ouvidos das
duas. Tudo que estava de pé pendulava, ora para a esquerda, ora
para a direita.
A escuridão reinava absoluta, a não ser pelos breves e instantâ-
neos clarões que eram seguidos de fortes estrondos. Paradoxalmen-
te, nossas amigas assistiam agarradas uma na outra a um espetáculo
visual e sonoro fora de qualquer proporção, silenciosas e imóveis,
como duas estátuas.
— Clair, nós vamos sobreviver? — perguntou Faninha, muito
assustada com o que via e ouvia.
— Se o tronco não estiver podre, a chuva diminuir e os raios
não nos acertarem, acho que sim — respondeu Clair, falando bem
devagar, quase parando.
— Só isso? Que sorte a nossa! — Faninha completou, sarcástica.
— Não fique debochando, Faninha. Estou falando sério!
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A tempestade e o arco-íris
postos à prova, e é nessa hora que a vida faz sua seleção natural.
Ninguém escapa disso, nem mesmo os bípedes gigantes — teorizou
Clair, respirando profundamente.
— E o que faremos se conseguirmos sobreviver à tempesta-
de, Clair? — Faninha, ainda tensa e perdida, questionou Clair, que,
bem mais tranquila, tentou acalmar a jovem lagarta.
— Não fique ansiosa por respostas agora. Apenas tente se tran-
quilizar. Viveremos para contar muitas histórias, e esta será apenas
uma de tantas por que passaremos juntas. Quem sabe não escreve-
mos um livro contando as nossas aventuras? Seria bem legal, você
não acha? A pulga e a lagarta.... Ou, quem sabe: A lagarta aprendiz e
a sábia pulga... — Clair tentava descontrair Faninha, que ainda não
tinha sossegado.
— Não tenho muito o que contar. Sou muito jovem, mas ja-
mais esquecerei esse dia. Sinistro! Esses troços rasgando os céus e o
barulho que eles fazem é de dar medo a qualquer um. Você já pas-
sou por isso e não sente tanto medo, mas esta é a minha primeira
vez! — explicou Faninha.
— Medo... Esse é o tipo de emoção que não gosto de sentir,
mas acho que não tenho muitas opções no momento, a não ser que
você faça uma declaração de amor para mim, tipo, “você é minha
melhor amiga”.
— Ok, Clair! Você é minha melhor amiga! O engraçado disso
tudo é que você é a única amiga que tenho, então só pode ser a me-
lhor...
— Rsrsrs... — as duas deram boas risadas.
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A tempestade e o arco-íris
trabalho para colocar seu jardim em ordem, porque isso aqui está
uma verdadeira bagunça! — respondeu Clair, depois de analisar
com cuidado o que a tempestade havia provocado naquele lugar.
— Melhor pensar assim. Nada de mortes hoje — Faninha ten-
tava manter a tranquilidade.
— Verdade, colega. Vamos voltar ao dia a dia, nada pode nos
abalar. Bola para frente, que atrás vem gente — Clair embalou o dia
que se apresentava.
Vida que segue. Imediatamente, as duas retomaram sua ro-
tina. Faninha começou a devorar as folhas verdes que apontavam
para o norte, enquanto sua amiga pegava uma carona em suas cos-
tas. No céu ainda havia nuvens, algumas de chuva, e quando o sol
conseguia brilhar sem nenhuma interferência, um enorme arco-íris
aparecia logo à sua frente. Era um espetáculo inédito para a lagarta.
— Nossa! Que lindo, Clair! O que é isso? Como se chama? —
interrogou Faninha, completamente fascinada com o que via.
— Minha querida aprendiz, isso se chama “arco-íris”. É um
efeito especial, produzido nos estúdios da Disney. Temos que usar
óculos 3D para sentir isso bem de perto. São tantas emoções... —
brincou Clair.
— Verdade? — Faninha deu a impressão de que acreditava na
pulga.
— Como você é tola! Não acredite em tudo que as pessoas di-
zem, nem em tudo que está escrito no Google ou no que passa na
telinha da TV. Desenvolva o seu senso crítico. Procure responder às
suas próprias perguntas, em vez de perguntar o tempo todo. Você
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A tempestade e o arco-íris
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6. O mapa
O s dias passam rápido demais quando estamos vivendo as
coisas de maneira intensa. E apesar de estarem dormindo
agora, as nossas amigas estavam vivendo desse jeito, intensamente.
Faninha já caminhava para o seu sexto dia e, desde que tinha nasci-
do, não tinha parado de comer. Com isso, seu tamanho se multipli-
cou várias vezes. A pulga, por outro lado, não estava se alimentan-
do, e já apresentava traços de debilidade física. Se ela não comesse
logo, fatalmente morreria.
— Minha amiga, precisamos decidir algumas coisas por aqui.
Estou com algumas pendências, e acho que terei que me ausentar
por um tempo — Clair sacudiu Faninha enquanto falava.
— Zzzz... Zzzz... Zzzz... — Faninha permanecia imóvel, como
uma pedra.
— Ei, dá para acordar agora? — Clair insistiu, falou mais alto
e balançou sua amiga com força.
— O quê? Hã? Onde estamos? O que foi que aconteceu? — Fa-
ninha abriu os olhos, mas parecia não ter acordado ainda.
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O Curso da Lagarta
— Fique tranquila, vou ficar com você até que esteja segura. Pala-
vra de pulga! — Clair se aproximou de Faninha e deu sua mão a ela.
Dito isso, a pulga falante pegou um pedaço de papel e alguns
fósforos riscados. Clair, quando pequena, tinha morado no cão de
um artista, e aprendido a arte do desenho e da ilustração. Era há-
bil em usar objetos estranhos para desenhar. De posse do fósforo,
começou a fazer uns desenhos estranhos e algumas anotações. Por
fim, disse a Faninha:
— Feito! Aqui está o nosso projeto. Observe bem o mapa. O
que você está vendo?
— A verdade? — Faninha pegou o papel, girou para a direita,
depois para a esquerda.
— Sim, o que você está vendo? — Clair estava ansiosa por sa-
ber o que sua amiga tinha entendido do desenho.
— Rsrsrs... — Faninha pôs o desenho na frente do seu rosto e
começou a rir de nervoso.
— Deixa de ser tola. Fala logo, desembucha. Tem mais: isso é
um desenho, e não um volante para você ficar girando de um lado
para o outro — Clair passou um sabão em Faninha.
— Estou vendo um monte de rabiscos, um quadrado, uma
margarida torta e umas palavras sem sentido. É isso! — Faninha
concluiu, devolvendo o desenho para Clair.
— Sem sentido! Preste bem atenção no que vou te dizer: sua
vida depende desses rabiscos e dessas palavras que você está vendo!
E se você não está entendendo, fica esperta, porque vou explicar
uma vez só.
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O mapa
ciocinar, vou dar uma bifa bem caprichada em você. Aí, sim, você vai
sentir dor. Pretendo vigiar seu processo de transformação. Por isso,
tenho que escolher um lugar de onde eu possa vê-la, a partir desse
ponto — Clair falou sem muita paciência, com o mapa nas mãos.
— Você está nervosa. Quer um batom? — provocou Faninha.
— Boba — Clair precisava pensar, e não deu muita atenção.
— Relaxa, já parei — Faninha se descontraiu, percebendo que
a amiga estava raciocinando.
Enquanto Clair coçava a cabeça e escolhia o melhor lugar para
lagarta ficar, um outro inseto se aproximou. Era uma simpática joa-
ninha vermelha de bolinhas brancas, com um lenço no pescoço e
óculos escuros.
— Boa tarde, meninas. Me chamo Rose, sou consultora astral
e já vou adiantando que o lugar está pesado. Precisamos fazer uma
limpeza por aqui. A primeira eu nunca cobro. Se gostarem, posso
fazer um pacote promocional — a joaninha se apresentou.
— Boa tarde, Rose. Eu e minha amiga lagarta não temos a in-
tenção de ficar muito tempo aqui. Então, não precisa se preocupar
com o peso que está sentindo. Quem sabe não é essa sua bolsa aí?
Tampouco estamos interessadas em nenhum pacote.
— Pega leve, Clair! Dona Rose, eu sou Faninha e a minha amiga
aqui se chama Clair — Faninha se levantou e se aproximou da joaninha.
— E se você não percebeu, Rose, estamos ocupadas com o nos-
so mapa! — disse Clair, sem nenhuma educação, e continuou an-
dando de um lado para o outro com o mapa na mão.
— Ora, ora, ora... Um mapa! Deixe-me ver isso. Hummm...
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O Curso da Lagarta
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O Curso da Lagarta
— Hahã.
— Essa gosma vai se espalhar por todo o seu corpo. Quando ela
secar, servirá de proteção para você. Ficará com uma cor verde, um
tom de jade. Enquanto isso, você vai se modificar lentamente, mu-
dando toda a sua estrutura, toda a sua forma.
— Legal! Vou emagrecer? — Faninha perguntou olhando para
o seu corpo.
— Se você vai emagrecer? Você se tornará uma pintura flutuan-
te, amiga. Poderá voar, ora para a esquerda, ora para a direita. Mas,
enquanto isso não acontece, precisará de uma defesa. Por isso, fica-
rá parecendo uma folha. Isso é o mimetismo, minha cara. Você será
confundida com as folhas da árvore, sacou? — Rose terminou sua
explanação confiante de que sua amiga tinha compreendido tudo.
— Show! Se vou poder voar é porque estarei esbelta! — Faninha
ficou feliz com a possibilidade de perder peso.
— Isso vai ser um grande disfarce, e os seus predadores não vão
te comer. Pelo menos, assim espero — completou Rose.
— Opa! Como assim? Que história é essa de comer? E eu lá sou
comidinha de algum tipo de bicho? — Faninha se estressou.
— Não se preocupe com isso. Se o seu disfarce não ficar convin-
cente, eu dou um jeito. Afinal, tenho formação artística. Posso fazer
uma linda instalação com você, junto a algumas outras folhas, e voilà!
— Rose tranquilizou a nova amiga.
— Um jeito? Você vai me transformar em obra de arte? Vai via-
jar na maionese, isso sim — Faninha se sentou em uma semente de
manga e cruzou os braços, muito chateada.
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O plano
— Para sua sorte, as suas amigas Clair e Rose ainda estarão por
aqui. Vamos te ajudar e explicar o que você deverá fazer para comple-
tar o seu ciclo de vida. Não tema, não se desespere, porque você tem
amigas, e isso não tem preço! — Rose abraçou Faninha.
— O que você vai fazer para me ajudar?
— Minha parte no plano será acompanhá-la em sua mudança. Se o
seu mimetismo não ficar bom, vou camuflar você da melhor forma possí-
vel. Ficarei aqui por duas luas e depois vou buscar a sua amiga pulga. Mas,
se você continuar nessa gastura, vou atrás de Clair antes que tudo aconteça.
— Quer dizer então que vai partir depois que eu me transfor-
mar em crisálida? — perguntou Faninha, mais calma.
— Sim. Também tenho que cumprir com o meu destino de joa-
ninha... Vou arrumar um namorado e, sabe como é que é, quero ter
uma família bem grande — Rose esboçou um meio sorriso.
— Então não verei mais você! — Faninha lamentou de novo,
com meiguice.
— Não seja tão dramática. Você nem vai se lembrar de mim.
Ainda assim, deixarei uma carta para você, e se puder lembrar, óti-
mo... Se não puder, servirá para ajudá-la a seguir sua vida adiante. De
qualquer maneira, estarei por perto e vou te visitar, pode ter certeza!
— Rose abraçou novamente a sua amiga.
— Olha! Estou lisinha, esta é a minha nova pele — Faninha se
animou, mudou de foco e ficou feliz com a nova fase.
Não era fácil lidar com a lagarta, que era muito meiga e sensível...
Somente com afeto e atenção ela sossegava, e Rose parecia já saber disso.
— Nova e última! Depois, você terá um exoesqueleto, um par de asas
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O plano
que serão lindas como pinturas. Ficará mais linda do que já é — Rose deu
uma volta rápida, com um passo teatral, enquanto terminava a sua fala.
— Jura? — os olhinhos de Fan brilharam.
— Sim, mais bonitas e surreais do que as pinturas de Salvador
Dali, perfeitas como as esculturas de Bernini, coloridas como as pin-
turas da Andy Warhol — Rose viajou na explicação e mostrou que
entendia muito de artes.
— Quem é Salvador Daqui? E esse tal de Bernini? — Faninha
não tinha entendido nada do que Rose dissera.
— Quanta superficialidade! Como vocês, insetos jovens do ter-
ceiro milênio, não leem nada? Desse jeito, fica difícil a comunicação.
Aprenda a ter gosto pela leitura, Faninha. Dessa forma saberá ler o
mundo que existe diante dos seus olhos — filosofou Rose.
— Puxa... Vou melhorar, prometo — Faninha percebeu que
Rose ficara um pouco decepcionada e decidiu se desculpar.
— Comece lendo as coisas que se passam diante dos seus olhos.
Não durma no ponto, fique esperta, olhe sempre ao redor de si para
não ser surpreendida por ninguém — Rose prosseguiu o sermão.
E por falar em surpresas, duas jovens lagartas se aproximavam
ao longe. Faninha e Rose não tinham percebido, mas as duas visi-
tantes já haviam avistado as nossas amigas. Ao vê-las, seus movi-
mentos ondulares aumentaram e se apressaram em direção às duas.
Faninha e Rose se entreolharam. O que queriam essas duas lagar-
tas? Só nos resta ler o próximo capítulo para descobrir!
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8. As diferenças
E nquanto nossas amigas observavam a aproximação dos novos
personagens, duas lagartas em carreira, ambas extremamente
curiosas, Faninha, sempre ansiosa, começou a disparar suas per-
guntas.
— Rose, é seguro?
— O quê? Elas? Ora, ao que parece, são apenas duas lagartas.
Perigoso seria se fossem predadores, como um pássaro ou um sapo
— explicou Rose, sem dar muita atenção para a chegada da dupla.
Na tentativa de minimizar a ansiedade de sua colega, acabou trazen-
do novas informações, e isso despertou a curiosidade de Faninha.
— Sapo? Que tipo de predador é esse?
— O sapo é um anfíbio, espécie de animal que vive tanto na
água como na terra. Sapos também passam por uma transforma-
ção; assim como você, eles se modificam. Você deveria perguntar
menos e ouvir mais, assim economiza nas minhas explicações —
Rose demonstrou estar impaciente com sua colega, que entendeu e
procurou se acalmar.
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As diferenças
— Olá, como vão indo? Meu nome é Fred, e esse aqui é meu
camarada Bóris.
— Me chamo Rose, e a minha irmãzinha se chama Faninha.
Por enquanto, está tudo bem.
— Irmãs?
Ao perguntar se eram irmãs, Bóris provocou uma reação não
muito amigável no rosto de Rose. Fred percebeu, pisou com força
no pé do seu parceiro e tentou contornar a situação, fazendo o se-
guinte comentário:
— Deixa de ser chato, Bóris. Irmãs, ao que parece, no sentido
de amigas de verdade. Como nós, não é mesmo?
Bóris controlou o grito de dor, falando bem baixinho e pausa-
damente:
— Verdade... Não sei o que seria de mim sem você, Fred.
Rose relaxou com a reação dos dois. Faninha, sentindo-se mais
segura, entrou na conversa:
— Vocês também não são lá muito parecidos. Olhando melhor
para vocês dois, percebo diferenças bem nítidas.
— É verdade, Fan. Esse aqui é bem baixinho, deve estar enga-
tinhando ainda.
Rose olhou para Faninha com um meio sorriso na boca e con-
tinuou com suas observações:
— E o outro um pouco maior e dono de uma cor bem estra-
nha! Parece que também já fez a sua segunda muda. Deve ter a sua
idade.
— Joaninhas são sempre muito observadoras — disse Fred,
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As diferenças
mos encontrar um lugar tão bom quanto esse. Mas, antes de partir,
acho que poderíamos dar algumas dicas para vocês. Isso pode aju-
dar.
— Cada vez que vocês falam alguma coisa, ela fica mais ner-
vosa. Não acho uma boa ideia ficarmos falando de predadores, ata-
ques e defesa. Eu mesma já estou com a minha pressão alta — Rose
começava a sentir o cansaço do dia.
Enquanto isso, a tarde começava a se despedir. Bóris, apesar
de pequeno, trazia uma super mochila nas costas. Dentro dela, car-
regava vários apetrechos e objetos, inclusive o que ele chamava de
“iguarias”, alguns pedaços de plantas medicinais.
— Então mastiga um pouco dessa folhinha.
— Mastigar isso? Com certeza você quer me envenenar, para
ficar com a minha amiga lagarta. Sai fora!
— Podem provar sem susto. É um pedaço de folha de Passiflo-
ra Edulis. Vai acalmar vocês duas e, então, com vocês mais calmas,
poderemos conversar melhor.
Quando Rose se virou para avisar à Faninha para não provar,
a lagarta já havia comido tudo. Afinal, estava com muita fome.
Imediatamente, Faninha sossegou, ficou calminha, e sua ansieda-
de passou como a brisa que se fazia presente naquele entardecer
magnífico.
Ao vê-la se acalmar, Rose não resistiu, e também provou da fo-
lha do maracujazeiro — árvore que produz maracujás, “mara kuya”,
na língua indígena tupi, e que em tradução literal significa “fruto
que se serve” ou “alimento na cuia”.
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O Curso da Lagarta
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9. O louva-a-deus
D urante toda a noite ouviram-se as cigarras, um pequeno
animal que está se tornando cada vez mais raro por con-
ta dos pesticidas usados para matar os mosquitos, seja por cau-
sa da dengue, da chikungunya ou da microcefalia. Os bípedes
gigantes não querem nem saber se com seus tratamentos outros
insetos também vão morrer, ou se isso vai colocar em perigo o
equilíbrio ecológico. Mas esqueçamos os gigantes, pelo menos
por ora. Afinal, Clair, a nossa minúscula pulga saltitante, está
de volta! Tinha chegado ao telhado antes mesmo de o sol raiar,
depois de pegar carona com um inseto muito esquisito, um lou-
va-a-deus. Apesar da total escuridão, pôde notar que estavam
todos dormindo, inclusive Fred e Bóris, que ela ainda não co-
nhecia.
— Não posso nem sair de perto que essas duas malucas logo
fazem uma festa. E pior, convidam dois caras estranhos e super es-
quisitos. O que você acha disso, Mestre Zen?
— Não farei nenhum julgamento antecipado da situação, não
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O louva-a-deus
casa, todos que estavam dormindo acordaram. Até o sol foi cha-
mado à linha do horizonte, onde nuvens profetizavam um dia de
muitas mudanças.
— O que está acontecendo aqui? — perguntou Faninha,
gritando. — Quem é, ou o que é essa coisa do seu lado, Clair?
Faninha falava com muita agitação. Fred e Bóris tomaram
a frente das duas e ficaram em posição de luta. Mestre Zen con-
tinuou observando tudo, sem fazer nenhum movimento, até que
Rose...
— Pode vir, seu bicho esquisito! Agora você vai aprender a
não mexer com uma joaninha, ou pelo menos com uma joaninha
ninja — Rose começou a gritar em outro idioma, acho que japo-
nês, ao mesmo tempo que começou a fazer movimentos muito
estranhos. A cena era tão tosca que todos ficaram boquiabertos
com o espetáculo dantesco que a joaninha estava proporcionan-
do.
— Posição do tigre! — Rose imitou um felino, caminhando
lentamente e dando pequenos, mas possantes botes com a pata. —
Posição do dragão! — agora a joaninha parecia estar voando e lan-
çando chamas pela boca. E Rose prosseguiu com outras posições,
do leão, da girafa etc.
— Posição de paciência — Mestre Zen pôs a mão na cabeça,
parecendo não acreditar no que estava vendo. Respirou profunda-
mente e disse: — Não tenho a intenção de atacar ninguém. Na ver-
dade, trouxe a sua amiga aqui porque preciso conversar com a la-
garta. Acho que o nome dela é Faninha, não é mesmo?
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O louva-a-deus
sobre os meus pais. Mas acho que essa conversa deveria ser apenas
entre nós dois.
— De jeito nenhum — exclamou Rose. — Estou com ela já há
bastante tempo, e acho que tenho o direito de saber tudo também.
Quando ela for embora, terei o que contar aos meus amigos. Adoro
histórias de família — Rose deu uma risadinha, típica das joaninhas
fofoqueiras.
— Acho que também queremos ouvir. Se é algo realmente
importante, por que não? — Fred olhou para Bóris, que concordou
balançando silenciosamente a cabeça. — Estamos sempre dispostos
a aprender coisas novas, e se elas forem importantes, melhor ainda!
— exclamou Fred.
O silêncio imperou por alguns instantes. Mestre Zen observou
cada um dos presentes e respirou profundamente antes de começar
a falar. Soltou o ar com muita calma, alinhou a coluna e, por fim,
falou.
— Ninguém pode saber o caminho que o leva ao futuro se
não conhecer o seu passado. Precisamos entender de onde vie-
mos, para saber onde estamos e para onde vamos — o Mestre
continuou. — Outra coisa em que precisamos pensar é que exis-
tem ao menos três tipos de consciência. Precisamos alinhá-las
para entender o verdadeiro motivo de estarmos aqui, o nosso
propósito.
— Maior viagem, cara. Foi por isso que gostei dele assim que o
vi — a pulga Clair, que parecia encantada com a fala de Zen, apro-
ximou-se dele e respirou profundamente, da mesma maneira que
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O louva-a-deus
tudo isso, com aquilo que o Mestre chamou de espírito. Esse estado
de consciência supera tudo o que o nosso corpo e a nossa mente
podem entender. Portanto, ele é primordial — Faninha acabou de
falar e desmaiou.
— O que houve com ela? Será que não se alimentou direito?
— Rose correu em direção a Faninha, completamente desesperada.
— Acorda, amiga! Acorda!
— Fred, eu nunca havia presenciado coisa igual. O que acabou
de acontecer aqui? — Bóris também estava inquieto com o aconte-
cido.
— Não tenho explicação para isso, meu caro amigo Bóris.
Clair, pergunte ao seu Mestre o que aconteceu com Faninha — Fred
acrescentou, atônito.
— Mestre, estamos preocupados. O que está acontecendo aqui?
— Clair olhou ao redor enquanto esperava a resposta do louva-a-
-deus.
— Eu estava certo a respeito dela — disse o Mestre. — Ela é
a filha única da Grande Borboleta Monarca. Temos que protegê-
-la a qualquer custo! — Zen fez um movimento para que todos se
afastassem de Faninha. — Ela nem vai se lembrar do que acabou de
acontecer. Então, peço que não façam perguntas, pois ela não sabe-
rá o que responder. Ainda não está 100% pronta.
— Pronta para quê? —falaram todos ao mesmo tempo, e por
um momento ficaram se entreolhando.
— Pronta para nos salvar, salvar a todos nós! — Mestre Zen
molhou os pés de Faninha, enquanto acariciava a sua cabeça.
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O Curso da Lagarta
que está acordando — Clair tentava acalmar a todos. Ela e Rose ob-
servavam Faninha, enquanto Fred e Bóris voltavam a se sentar jun-
to ao Mestre.
Zen, então, respirou fundo, soltou o ar com lentidão e reto-
mou a explicação.
— Não posso explicar tudo para vocês, até porque não sei de
tudo. Só posso dizer o que sei. Faninha não é uma lagarta comum,
normal, digamos assim — Zen olhou para fora do telhado, enquan-
to uma brisa úmida começou a soprar, sendo percebida por todos.
— Ela é a única herdeira da Grande Borboleta Monarca, e está escri-
to que ela nos salvará dos bípedes gigantes.
— Que Faninha não é uma lagarta normal, isso eu já sabia —
Rose deu uma boa risada.
— Verdade, colega. Essa daí não bate muito bem — Clair en-
trou na brincadeira e começou a rir também. A essa altura, todos
estavam rindo, menos Mestre Zen.
— Vocês não estão levando o que eu estou dizendo a sério!
— Mestre Zen parecia muito bravo. — Se tivessem escutado o que
a traça disse a respeito dos bípedes gigantes... Não estariam rindo
agora!
— Traça? Que tipo de inseto tem um nome desse? — Rose e
Clair olharam para os rapazes e acabaram se sentando também.
A brisa foi tomando conta do lugar, o sol insistindo em não
descer o horizonte. Parecia também querer saber quem era esse
novo personagem da nossa história.
— A traça é o único inseto capaz de ler o que os bípedes
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O Curso da Lagarta
escrevem. Já leu vários livros, e sabe muito bem o que eles planejam
— Mestre Zen ficou ainda mais sério.
— Em um futuro muito próximo, não haverá mais comida
para os bípedes gigantes. Todo os animais que conhecemos e que os
gigantes comem desaparecerão. Haverá fome para eles.
— Eba! Então os gigantes morrerão, e nós seremos os donos
da Terra — Rose e Clair fizeram a dancinha da vitória. Bóris se le-
vantou para comemorar também, mas Fred pareceu ter entendido
a mensagem:
— Não sejam idiotas! Vocês ainda não perceberam? Sere-
mos a única fonte de proteína disponível, e os bípedes vão nos
comer!
— Isso mesmo, meu rapaz. Você chegou ao cerne da nossa
questão. Segundo a traça, só a lagarta, filha da Borboleta Monarca,
poderá nos salvar desse triste destino — Mestre Zen se levantou, foi
até o extremo do telhado e observou o sol, que ia descendo lenta-
mente e se escondendo por trás das montanhas. A noite assumiu as
ações, a escuridão entrou em cena e os pequenos pirilampos eram a
única fonte de luz naquele lugar.
— O que foi que aconteceu? Quem é essa traça? — Faninha
acordou justamente quando todos só pensavam em dormir.
— Traça? Não se preocupe, Faninha, volte a dormir. Amanhã
a trarei até aqui e todos poderão conhecê-la.
Mestre Zen pediu a todos que descansassem. Afinal, o dia
tinha sido muito intenso, e o que Mestre Zen dissera tinha me-
xido demais com as cabecinhas daqueles insetos. Amor, família,
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O louva-a-deus
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10. A traça
E nquanto todos dormiam, Mestre Zen e Clair ficaram conver-
sando. Clair disse que estava muito preocupada. Tinha perce-
bido que o grupo ficara muito apreensivo com as coisas que o Mes-
tre havia dito sobre a traça e o que ela sabia a respeito dos bípedes
gigantes. O Mestre, por outro lado, defendia o seu ponto de vista:
não tinha encontrado uma outra maneira de fazê-los entender o
quanto a situação era delicada, e o quanto era preciso que todos
ajudassem.
— Não sei não, Zen. Acho que você se precipitou quando disse
que seremos os próximos a serem devorados pelos gigantes.
— Isso é o que veremos. Assim que eles acordarem, saberei se
fiz o que era certo ou não.
Naquele momento já amanhecia uma nova jornada. O dia se
apresentava com uma forte neblina, uma frente fria estava se ins-
talando na região. Com as baixas temperaturas, o vapor do dia an-
terior tinha se condensado, formando uma bruma na qual não se
podia enxergar quase nada.
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O Curso da Lagarta
— Não consigo ver nada direito. Mal posso ver você, Mestre
Zen. Que frio é esse?
— Esfriou muito rápido, minha querida pulga. E a temperatu-
ra ainda cairá mais durante o dia. Precisamos arrumar um jeito de
nos aquecer.
A conversa entre os dois foi interrompida por um breve soni-
do. O ruído parecia vir do grupo que dormia, mas como a névoa
estava muito forte, não se podia ver ao certo quem se aproximava.
— Bom dia, Mestre. Bom dia, Clair. Acho que posso resolver,
pelo menos por ora, o problema do frio que estamos sentindo —
Bóris retirou algo da mochila enquanto falava com os dois. — Vou
preparar um chá para o nosso grupo, um chá verde. Só preciso de
um pouco de água. Me ajude aqui, mademoiselle — Bóris chamou
Clair para ajudá-lo a colocar um pouco de água na garrafa pet que
estava por ali.
— Um chá? Como você pretende fazer uma fogueira? — per-
guntou Clair, enquanto colhia com Bóris a água que caía ao se con-
densar nas telhas do telhado.
— Não é necessário ferver a água, basta pôr um pouco disso
aqui e em um instante estará pronto. Isso nos ajudará a nos esquen-
tar — Bóris colocou na garrafa pet um pouco de folha triturada,
parecendo um pó verde.
— Bom menino. Isso realmente nos ajudará! Mas agora preci-
samos encontrar a traça — Zen parecia pensativo.
— Onde a acharemos, Mestre Zen?
— Boa pergunta, Clair. Preciso me lembrar onde ela costuma
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A traça
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11. O telhado
O s grupos estavam se organizando para levar Faninha até as
antenas. Rose e Clair animavam a lagarta. Mestre Zen e a
traça estavam acertando os últimos detalhes para fixar a nossa he-
roína no ponto ideal do telhado. Já os rapazes, estavam conversan-
do sobre técnicas de defesa.
— Como faremos a formação? Acho que eu e Fred devemos ir
na frente do grupo. Você, Robert, deveria fazer a retaguarda. O que
acham? — Bóris pergunta aos dois.
— Para mim, tanto faz. Posso ir na frente do grupo, ou, como você
disse, logo atrás. De qualquer maneira, devemos estar prontos para enfren-
tar os ratos voadores da noite, os morcegos — Robert apontou para o céu.
A noite estava clara, por conta da lua e do céu sem nuvens. Era
fácil ver a quantidade de morcegos que estavam por ali.
— Eu tenho um plano — disse Fred. — Acho que podemos
usar isso aqui — Fred mostrou para Bóris e para Robert três peque-
nos objetos, que pareciam apitos. Robert ficou curioso e pegou um
para experimentar.
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O Curso da Lagarta
— Sim, ela poderá voar, mas não agora! Vamos logo com isso.
Pegue pelo lado direito que eu a pego pelo lado esquerdo — Rose
acelerou suas ações e, junto com Clair, levou Faninha até onde esta-
vam a traça e o Mestre Zen.
— Mestre, eles parecem já estar prontos. O que faremos? Par-
tiremos agora? — perguntou a traça.
— Sim, mas antes devemos dar uma passada geral e acertar os
últimos detalhes, antes de partir em direção às antenas. Temo pela
nossa segurança. Não estou bem certo se os rapazes conseguirão
distrair os morcegos — o Mestre parecia estar muito preocupado
com o perigo que vinha do ar. Olhou para o alto, observando a es-
curidão da noite, e prosseguiu: — Está escutando? São eles, os mor-
cegos. Fazem esse som para poderem voar no escuro.
— Sim, parece que são muitos. Nossos amigos vão precisar de
uma ajuda extra. Me dê um minutinho que eu já volto. Existe mais
vida à nossa volta do que podemos perceber — afirmou a traça. Em
seguida, caminhou até a outra ponta do telhado, enquanto as meni-
nas se aproximavam de Zen.
— Mestre, o que Marta foi fazer do outro lado do telhado? —
Clair perguntou ao louva-a-deus.
— Acho que foi pedir ajuda.
— Pedir ajuda? Não há mais ninguém por aqui. A quem ela
vai chamar, a esta hora da noite? — Rose arrumou Faninha em seu
ombro enquanto observava a traça se distanciar.
— Como ela mesma disse, minhas amigas, existe mais vida
à nossa volta do que podemos imaginar. Além disso, a traça tem
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O Curso da Lagarta
O grupo se animou com a fala da traça, que devia ter lido mui-
to sobre palestras e textos motivacionais na Biblioteca Municipal.
Marta e Zen abriam caminho para o desconhecido. Logo atrás vi-
nham Robert e as meninas, Clair e Rose, cada uma de um lado de
Faninha. Um pouco mais atrás ainda estavam Bóris e Fred, ambos
com os apitos ultrassônicos. Finalmente, bem abaixo da calha,
Eclipse e seu grupo aguardavam o sinal dos rapazes para saírem em
direção aos morcegos.
Logo que a traça e o louva-a-deus subiram na calha, pediram
que os outros esperassem até que verificassem se o lugar estava se-
guro. Havia muitas folhas, e os dois tiveram uma ideia.
— Que tal se fizermos um túnel verde até o ponto certo? —
perguntou Zen.
— Excelente ideia, meu amigo. Enquanto avançamos, arruma-
mos as folhas para criar um túnel. Assim não seremos percebidos
— Marta e Zen, à medida que avançavam, preparavam um caminho
seguro para o resto do grupo.
— Vamos, Robert, força! Empurre Faninha até a calha! — o
grupo que vinha logo atrás estava com alguma dificuldade. Faninha
estava um pouco pesada, e Clair, por ser uma pulga e bem menor
que os demais, só ficava dando ordens.
— Força? Por que não vem aqui ajudar em vez de ficar falan-
do? Estamos dando duro aqui! — disse Robert, todo suado.
Rose apenas ajeitava Faninha para que não caísse no chão da
casa.
— Isso, minha linda. Agora é só você se jogar na calha — Rose
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O telhado
ris, enquanto olhavam para o alto. — Eclipse e seu grupo estão fa-
zendo um grande trabalho, os morcegos estão longe daqui. Vamos
conseguir! — mas foi só o Fred dizer isso que um vulto de asas pas-
sou muito perto do grupo. Parecia um pássaro.
— O que foi isso, Fred? Isso não parece um morcego, não faz
barulho e é muito maior! — Bóris saiu em disparada, em pânico,
apitando sem parar. Por sorte, Faninha já havia chegado até a ante-
na.
— Corra, amigo! É uma coruja, não temos como nos defender
dela! — Fred cuspiu fora o apito e saiu em disparada, logo atrás de
Bóris.
Parecia que não havia mais jeito para Fred e Bóris. A coruja
é um predador de alto nível, e enxerga tudo à noite. Suas garras e
bicos são ferramentas mortais quando estão em uma caçada, e seu
vulto podia ser percebido, mesmo no escuro. O terror se instaurou.
A coruja fez uma manobra e em seguida se voltou na direção dos
dois.
— Corram mais rápido, ela está voltando! — Zen tentou avisar
à dupla, que estava em apuros.
Tudo parecia perdido, até que a coruja fez o mergulho em di-
reção ao grupo e deu para ver que seu alvo não era os dois rapazes.
A coruja queria algo mais consistente, queria saborear um rato que
se aproximava de um jeito fortuito.
— Nossa! Vocês viram o que eu vi? Ela abateu um rato enor-
me que vinha em nossa direção! — Marta compartilhou o que vira,
mais aliviada. Naquele momento, Fred e Bóris também chegavam
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O Curso da Lagarta
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12. A despedida
O dia se erguia lentamente com o sol, que já aquecia a plateia
que observava Faninha, imóvel e de cabaça para baixo. A
adoração pelo estado em que se encontrava a colega em transfor-
mação seguia muda, até que Rose, incomodada com a orquestra de
silêncios, perguntou:
— O que faremos agora?
— Temos que esperar a crisálida se formar por completo. De-
pois, usaremos a folha de alumínio para envolver a nossa amiga.
Dessa forma, estará segura, e poderá ficar conectada às antenas de
TV e internet — explicou Marta.
— E isso vai demorar muito? É que não aguento esperar tanto
tempo por algo. Sei lá, sou de uma geração que não tem muita pa-
ciência, mesmo em se tratando de amigos e situações inesperadas.
Lamento, mas estou nervosa! — exclamou Rose.
— Não se culpe tanto. Ninguém que esteja vivo na face da Ter-
ra consegue deter o tempo que nos é imposto pelos bípedes gigan-
tes. Tudo é urgente para eles; não têm tempo para nada, e ficam com
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O Curso da Lagarta
nas. Você pode vir a seguir. Que tal se vier com Eclipse? Assim, eu
e Mestre Zen completaríamos a primeira escala da vigília — Marta
fez as contas de cabeça, tentando montar uma escala que pudesse
cobrir todo o estágio de transformação de Faninha. — Ela provavel-
mente ficará desse jeito por onze ou doze dias. Então, precisaremos
montar a última semana de guarda.
— Vamos deixar isso para outra ocasião. Acho que o momento
é oportuno para que cada um faça a sua despedida. De qualquer
forma, os primeiros quatro dias já estão organizados, e isso significa
que já planejamos um terço de nossa empreitada — Fred se ante-
cipou na conversa, pois Faninha já tinha se transformado em uma
crisálida. — Enquanto conversávamos, a pupa se formou por com-
pleto, ficou com uma linda tonalidade de verde. Está com o aspecto
de uma verdadeira joia, parecendo uma pedra de jade.
— Ela está muito linda! — disse Clair, sempre com as questões
estéticas.
— Por que devemos nos despedir? Assim que se tornar uma
borboleta, ela estará novamente conosco! Acho que está na hora de
envolvê-la com a folha de alumínio — disse Robert, enquanto reti-
rava a folha guardada por entre suas asas e a entregava para Mestre
Zen.
— Grato, meu amigo — respondeu Zen. — Mas tem algo que vo-
cês não sabem sobre o que está acontecendo com Faninha — alertou
Zen, envolvendo Faninha com a folha de alumínio enquanto falava
para o grupo. — Quando ela se tornar uma borboleta, não vai se lem-
brar de nós. A transformação apagará toda lembrança que ela tinha
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O Curso da Lagarta
da vida que levou como uma lagarta, e isso inclui a nossa amizade.
— Estamos sabendo, mas isso não é justo... — disse Clair, com
os olhos vermelhos. A pulga abraçou Rose e começou a chorar.
— Não fique assim, Clair. Podemos contar tudo para ela. O
mais importante é que nós não esqueceremos tudo o que aconteceu
— Rose tentou acalmar a amiga e a abraçou, ao mesmo tempo que
abraçava Marta. O gesto viralizou, se espalhou rapidamente pelo
grupo, e todos se abraçaram.
— Quer dizer que eu e Fred também não vamos nos lembrar
de tudo isso? — Bóris, de cabeça baixa, parecia inconsolável.
— É o que acontece com as lagartas que se transformam — dis-
se Rose, com uma voz desanimada, enquanto consolava Clair.
— Não se preocupem. Estaremos aqui para contar tudo o que
aconteceu. Precisamos de vocês nessa empreitada. Todos aqui são
peças-chave para o sucesso de Faninha. Em vez de se lamentarem,
alegrem-se, pois chegamos até aqui em segurança.
— Isso mesmo, Mestre Zen. Ebenezer! — Marta olhou para o
céu e sorriu. Em seguida, se ajoelhou e agradeceu o sucesso da mis-
são.
A maioria não entendeu o que a traça quis dizer. Ainda assim,
todos seguiram seus movimentos e a fizeram o mesmo.
— Será que ela está nos escutando? Pergunto isso porque
gostaria que ela escutasse que durante o período que passamos
juntas eu fui muito feliz, mesmo com tantas e tantas pergun-
tas... — Rose se aproximou de Faninha, que estava envolta em
alumínio e com um aspecto metálico. — Eu te amo, minha ami-
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A despedida
ga. Esteja certa de que estarei aqui te esperando. Vou ser sua
amiga para sempre.
— Faço minhas as suas palavras, só com uma pequena diferen-
ça... Acho que a amo mais do que você, joaninha! — Clair brincou
com Rose, e todos riram. O momento era de descontração e de rea-
lização pelo dever cumprido.
— Amigos, é hora das palavras finais — Fred olhou para o gru-
po e convocou a todos com um gesto, para que cada um pudesse se
despedir.
— Bóris, você sempre foi melhor com textos do que eu. Então,
formalize a nossa despedida — pediu Fred, passando a responsa-
bilidade para seu colega. Bóris se aproximou de Faninha, tocou na
superfície brilhosa do metal e a acariciou enquanto falava.
— Amiga falante e curiosa, espero que você consiga passar em
segurança por essa fase. Siga os conselhos de Marta e Mestre Zen, e
aprenda tudo o que puder sobre os bípedes gigantes. Somente des-
sa maneira poderemos encontrar um meio de fazê-los parar com a
destruição e o esgotamento do planeta. Você é nossa grande espe-
rança, contamos com você — assim que terminou, Bóris se afastou
de Faninha, cedendo o lugar a Robert.
— Não a conheci como os outros, mas o pouco convívio que
tive com você me fez ter a esperança de dias melhores, dias sem
agrotóxicos e produtos químicos que nos matam, dias em que pos-
samos ser vistos como companheiros, e não como pragas — Robert
se emocionou. — Dias em que o equilíbrio na Terra seja restabele-
cido e uma nova aliança com o Deus Supremo possa ser celebrada.
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O Curso da Lagarta
gos! — Faninha fechou os olhos mais uma vez, e sentiu algo tocar
em seus braços. Abriu os olhos e viu pequenos flocos brancos que
caíam como uma geada, como pequenas pérolas. Pegou uma delas
e pôs na boca.
— Eu poderia ficar aqui, debaixo dessa árvore, e me alimentar
dessa pequena maravilha. Mas como aprenderei sobre os bípedes
gigantes?
Sentada confortavelmente sob uma árvore e saboreando algo
que parecia um maná, Faninha retomou sua missão, procurando
um meio de aprender tudo sobre os seres humanos. Mas como?
— Minha pequena, você só precisa ficar onde está e fechar os
olhos. Eu te ensinarei tudo o que precisa saber! — disse uma voz,
que só podia ser ouvida em sua mente e sentida em seu coração.
— Quem é você? O que aprenderei? — perguntou Faninha à
voz que falava em seu íntimo.
Então, a voz lhe respondeu:
— TUDO!
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