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Deveríamos ter aprendido que a democracia tanto como um regime político e, acima de tudo, como um estilo
de vida, precisa da esquerda e da direita que nela concordam em discordar
Para Juremir
A rádio Guaíba me perguntou sobre esse “marxismo cultural” que, como um canibal, devora consciências.
Ele, diz a vulgata bolsonarista, distorce realidades tão claras como o evangelismo cristão ou um
conservadorismo radical, igualmente sectário.
Um ataque de pusilanimidade me fez driblar a entrevista. Mas não consigo fazer o mesmo com minha
consciência.
O problema das Ciências Sociais é estudar coisas que todos experimentam. Quem não tem opinião sobre
sexualidade, religião, política, pobreza e corrupção? Mas quantos buscam compreender tais assunto com
distanciamento?
As Ciências Sociais contrariam o senso comum e investigam temas e assuntos proibidos. Um exemplo forte
é a sexualidade infantil estudada por Freud, um outro é a transição do lucro como paixão escusa a
investimento produtivo num universo de multiplex interesses que, leiam Albert Hirschman, bloqueia
despotismos.
Por outro lado, quem não pensa em transformar a vida dos pobres e oprimidos, sobretudo num Brasil onde
eles fazem parte da vida de cada um de nós? Seja como ricaço ou miserável; cidadão comum ou celebridade
com o direito a escapar da terrível igualdade republicana? Quem não se preocupa com o mínimo de bens e
serviços obrigatórios para todos os brasileiros?
O coração ideológico da consciência política da minha geração, formada no final dos anos 50, foi o
marxismo. Um marxismo lido em traduções de edições russas censuradas. Lembro que essa geração da guerra
fria – condescendentemente chamada de “geração Coca-Cola” – não falava apenas de “direita” e “esquerda”.
Ela ia além, classificando as pessoas como “conscientizadas” e “alienadas”.
Os pais eram alienados, as mães – católicas e preocupadas com os pobres – pré-conscientizadas. Fui
contaminado por Karl Marx e pelo pouco falado Friedrich Engels quando entrei na faculdade. Quem, aos 20
anos, não tem o direito de deslumbrar-se com o Manifesto Comunista e vibrar com o fim da opressão
encontrando, de quebra, a chave mestra da História da Humanidade?
Foi, pois, o altruísmo contido no “comunismo” que me levou a essa identificação com um Brasil a ser
transformado. Não abandonei esse comunismo até hoje entrelaçado ao meu amor pelo Brasil.
O que abandonei foi a infantilidade dos radicalismos. Do “esquerdismo” nas suas versões radicais e
patologicamente malandras e populistas. Um posicionamento cujo pendor acusatório e condescendente,
ressentido e repleto de má-fé (aos nossos tudo; aos inimigos o berro, a negação, a mentira e a calúnia!),
reproduz o autoritarismo fascistoide do regime militar. A prova do pudim foi (como ocorre em todo lugar) a
chegada ao poder, pois nada é mais revelador do que o poder.
O esquerdismo irresponsável produziu o contexto polarizado em que vivemos. Podem-se controlar excessos,
mas enjaular o “marxismo cultural”, cujo espírito marca toda uma época, seria como tentar colocar de volta
a noite na caixa de Pandora. Do mesmo modo, não há como carimbar o liberalismo como um paraíso de
rentistas ladravazes. Basta pensar na filantropia e no mercado com um equalizador de interesses pulverizados
– esses produtores de meritocracia coletivista. Por outro lado, o comunismo recria o individualismo
capitalista quando se reconhece o talento dos seus líderes. Senão ninguém falava em Stalin, Lenin, Mao e
Fidel.
O que não pode ocorrer é a tentativa de eliminação suicida da esquerda pela direita. Deveríamos ter aprendido
que a democracia tanto como um regime político e, acima de tudo, como um estilo de vida, precisa dos dois
lados que nela concordam em discordar. Diretas e esquerdas perfeitas – que deixam saudade! – só acorrem
nas ditaduras que, lamentavelmente, conhecemos bem demais.