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Natasha Centenaro
Eurípides, Hipólito.
1 Introdução
Graduanda de Comunicação Social – Hab. Jornalismo, da Faculdade de Comunicação Social (Famecos), e do Curso
Sequencial de Certificação Adicional de Escrita Criativa, da Faculdade de Letras (Fale), da PUCRS. Bolsista de
Iniciação Científica do Centro de Referência para o Desenvolvimento da Linguagem (CELIN), no projeto
“Expressões Regionais da Literatura Brasileira Contemporânea e do Cinema: Imagens em Diálogo”, coordenado pela
Prof.ª Dr. Maria Tereza Amodeo. Desenvolveu Trabalho de Conclusão de Curso intitulado “Trajetória das emoções
desde a retórica ao sensacionalismo: Estudo comparativo entre a tragédia grega Medéia e a tragédia brasileira Gota
d'água”, orientado pelo Prof. Dr. Antonio Hohlfeldt.
com o mito que a imitação atingiu sua forma. De acordo com Brandão (1992), a liturgia no teatro
não impediu de se focalizar os problemas do homem:
Um teatro que, sem deixar de ser litúrgico, embriagou-se no belo para celebrar o
homem. Não apenas o homem grego, mas o homem universal, porque, na medida em
que o mito, que é do domínio da história, quer dizer, do domínio do particular, se
transmuta em fábula, que é do domínio da poíesis, isto é, do domínio do universal, o
teatro grego deixa de pertencer à Grécia para ser do mundo. (BRANDÃO, 1992, p. 7-8)
Conforme Souto (1998), os teatros tinham capacidade para aproximadamente vinte mil
pessoas e quando aconteciam os concursos dramáticos, esses espaços ficavam lotados. A origem
da tragédia estabeleceu relação com a própria origem do drama, desde que evoluiu do formato
pioneiro de danças ritualísticas até o canto ditirâmbico e a constituição do coro, os quais,
juntamente com o culto a Dioniso e o mito, transformaram-se na sua essência. Uma das
referências mais remotas, desde as primitivas culturas, que caracterizou e se perpetuou pela
Antiguidade Clássica foi a utilização da máscara.
A transformação pela qual os adoradores de Dioniso passavam, foi apontada por Brandão
(1992) como um processo de entusiasmo ou êxtase em que um simples mortal (anthropos),
comungado com a imortalidade, ascendeu ao posto de herói; assim, o varão que ultrapassou o
métron – a medida de cada um – tornou-se um hypocrites, em síntese, o ator. A ultrapassagem do
métron acarretou uma démesure (hybris), uma violência contra si mesmo e, principalmente, aos
deuses imortais, provocando a némesis, o ciúme divino. Por isso, aconteceu a punição imediata,
e, ao aner (hypocrites), foi lançada a até – cegueira da razão. Dessa forma, tudo o que ele fizer
terá como resposta uma ação contra si mesmo, culminando na moira – o destino cego. O autor
citou o exemplo das ações da personagem Édipo, de Sófocles – pois apenas quando o métron é
ultrapassado que se realiza a tragédia.
As apresentações ao ar livre, no teatro de Dioniso, o qual se situava na encosta sul da
Acrópole, nas imediações do templo de Eleutério, reuniam cidadãos atenienses e estrangeiros,
além das mulheres, que apenas podiam assistir, sendo impedidas de representar. Na primeira
fileira, nos lugares de honra, estava o trono de pedra, reservado ao sacerdote de Dioniso. Este
tinha um altar, tímele, erguido em sua homenagem, no centro da orquestra. O edifício teatral era
composto por três partes: orquestra, teatro – onde ficava o público – e skéne – uma tenda coberta
por panos, onde os atores e coreutas trocavam de indumentária e máscara entre os episódios.
Também funcionava como local em que se passavam todas as cenas violentas: suicídios,
assassinatos, sacrifícios de vítimas humanas, etc. (BRANDÃO, 1992)
O áureo período da tragédia grega clássica aconteceu no decorrer Século V a.C., também
conhecido como Século de Ouro ou Século de Péricles. Esse período corresponde às produções
dos três tragediógrafos mais conhecidos: Ésquilo, Sófocles e Eurípides. Porém, este último só
teve reconhecimento posteriormente, pois se zombava das suas obras, motivo de deboche de
comediógrafos como Aristófanes, além de receber muitas críticas, como as do próprio
Aristóteles. De acordo com Romilly (1997), a vida e a duração da tragédia tiveram o seu fim
quando a grandeza de Atenas chegou ao fim. E as trinta e duas tragédias que são conhecidas
atualmente, de autoria dos três poetas, foram recuperadas durante o reinado de Adriano. As peças
são o testemunho da evolução da tragédia enquanto gênero dramático, mas também fazem parte
do registro da história e evolução da sociedade grega daquele tempo.
A estrutura da poesia trágica não sofreu variações significativas nesse período. Embora
tenha se restringido a função do coro para se destacar os diálogos interindividuais, ainda assim
ele permaneceu importante. Os coreutas entoavam o canto ditirâmbico em dialeto dórico –
arcaico, de origem peloponesa, e eram acompanhados por instrumentos musicais como a flauta,
além das danças; os atores, por sua vez, recitavam em dialeto jônico, mais moderno. A estrutura
era dividida em: prólogo – que precede a entrada do coro; párodos – entrada solene e desfile do
coro, no início; êxodos – saída solene, ao final; stásimon – episódios dialogados (mais tarde
recebem a denominação de atos) em metros iâmbicos, intercalados pelo coro, que canta as
estrofes e antiestrofes metrificadas; commós – lamentação de movimento fervoroso, esse canto
era alternado entre o ator e o coro.
Acerca da mímese aristotélica, Machado (2006) expôs que não poderia ser entendida
como uma “mera” reprodução da realidade, da mesma forma que a atividade criadora do poeta
não seria uma imitação servil ou uma simples cópia, pois, na verdade, pensando-se que a arte
fosse uma reprodução autônoma da capacidade produtiva da natureza, sua faculdade artística
poderia atingir além dessa realização natural.
A mímesis é um processo de conhecimento ou, mais precisamente, de aprendizado. A
produção mimética, que consiste em abstrair uma forma, possibilita um aprendizado, que
é uma maneira de o homem se elevar do particular ao geral. Além disso, o aprendizado
mimético agrada, dá prazer. A atividade mimética é motivada e dirigida pelo prazer que
o produto imitado suscita, ou melhor, pelo prazer proveniente da compreensão dada pelo
aprendizado. Eis por que a tendência, o impulso mimético está na origem do processo
artístico. Poder imitar e ter prazer na imitação são duas faculdades naturais que,
juntamente com a disposição natural do homem para a melodia e o ritmo, explicam as
primeiras improvisações e, a partir daí, o nascimento da poesia (MACHADO, 2006, p.
25).
Aristóteles tratou sobre o enredo, que pode ser simples ou complexo. O complexo é
dotado de três elementos: a peripécia, o reconhecimento e o sofrimento, ou catástrofe. Tanto a
peripécia como o reconhecimento devem ser resultados de acontecimentos anteriores e conforme
o princípio da necessidade e da verossimilhança. A peripécia indica a mudança da fortuna para a
desdita, ou seu contrário, e o reconhecimento é a passagem da ignorância para o conhecimento,
para a amizade ou para o ódio entre os personagens e que finaliza com um estado de felicidade ou
de infelicidade. O autor cita o exemplo de Édipo, de Sófocles, quando a peripécia e o
reconhecimento ocorrem ao mesmo tempo. O sofrimento, ou catástrofe, por sua vez, refere-se a
um ato doloroso ou destruidor, que possibilita sofrimento e dor, como as mortes, as ações
violentas e os ferimentos.
As características do herói trágico foram descritas pelo Estagirita no capítulo 13 da Arte
Poética:
(...) é evidente, em primeiro lugar, que não se devem representar os homens bons a
passar da felicidade para a infelicidade, pois tal mudança suscita repulsa, mas não temor
nem piedade; nem os maus a passar da infelicidade para a felicidade, porque uma tal
situação é de todas a mais contrária ao trágico, visto não conter nenhum dos requisitos
devidos, e não provocar benevolência, compaixão ou temor; nem tão pouco os muito
perversos a resvalar da fortuna para a desgraça. (...) Restam-nos então aqueles que se
situam entre uns e outros (ARISTÓTELES, 2004, p. 60 - 61)
Essas personagens estariam numa posição intermediária entre bons e maus. Equilibrariam
a virtude e o vício, mas, por serem falíveis, estariam passíveis de cometer e sofrer um erro
(hamartía) e cair no infortúnio. Pereira (2004) identificou a hamartía como o erro provocado
pelo próprio personagem, o erro por si, que pode ocorrer de forma acidental. Lesky (2001),
inclusive, referiu a hamartía que acomete e é causada pelo herói como uma falha e não culpa,
entendida no sentido cristão ou estóico, de culpa moral.
De acordo com Kury (1991), a peça de Eurípides não tem precedente em toda a tragédia
grega, devido à intensidade dramática, além do delineamento das personagens, seus caracteres,
suas atitudes e falas que reimprimem a força das palavras. Para o autor, a caracterização das
personagens é um dos acertos da peça, a começar pela própria heroína, que é o primeiro e um dos
mais profundos estudos da alma feminina realizado pelo poeta:
O amor de Medéia em sua evolução para o ódio assassino, seu orgulho ferido, sua
ferocidade, sua astúcia, são pintadas por Eurípides com mão de mestre e simpatia. A
reconciliação simulada com Jáson é uma cena de extraordinária naturalidade. Outro
aspecto digno de menção é que os erros de Medéia e de Jáson, ao contrário do que
acontece na maioria das tragédias gregas, são devidos a seus próprios atos, e ambos não
os atribuem ao destino ou a algum deus vingador. Eurípides, por via de Medéia, exprime
a vida humana em termos de humanidade e de livre escolha do bem e do mal. Os
personagens secundários, principalmente a Ama e Creonte, também merecem menção.
As palavras do velho rei, nos versos 393 a 396, são dessas que, embora poucas, definem
um personagem. (KURY, 1991, p. 14)
A peça Gota d’água foi escrita e publicada em 1975, resultado da parceria entre o
compositor e cantor Chico Buarque e o dramaturgo Paulo Pontes. O enredo, inicialmente, foi
baseado na concepção original de Oduvaldo Vianna Filho, elaborado como Caso Especial
Medéia1, programa para TV, em 1972, mas que tinha planos de pisar os palcos. Esses planos,
porém, foram frustrados com a morte prematura de Vianinha, em 1974. Pontes deu continuidade
ao projeto, imprimindo-lhe mudanças significativas, desde a ambientação às características das
personagens e ao curso da narrativa até seu desfecho.
De acordo com Rabelo (2008), o fato de a peça ter sido escrita em versos, além de
intensificar os sentimentos das personagens, tinha como objetivo, sobremaneira, dar
proeminência às virtualidades da palavra no processo teatral. A peça é ambientada no conjunto
habitacional Vila do Meio-Dia, no subúrbio carioca, dividida em dois atos, com cinco sets
indicados nas rubricas, o primeiro, “set das vizinhas”, a lavanderia onde está o coro de mulheres;
o segundo, “set do botequim”, onde fica o coro dos homens; o terceiro, “set da oficina” de Egeu;
o quarto, “set de Creonte”, casa e escritório de Creonte; quinto, “set de Joana”, casa de Joana. As
15 personagens que transitam entre os sets, são: Joana, Jasão, Creonte, Egeu, Alma, Corina,
Cacetão, Boca Pequena, Amorim, Xulé e Galego – coro dos homens – Estela, Nenê, Zaíra e
Maria – coro das mulheres.
Com relação à estrutura da peça, mantêm-se os pressupostos identificados e descritos por
Aristóteles, como a quebra palco-plateia, a presença de uma protagonista com caracterização em
âmbito social e também pessoal, além de a história estar fundamentada a partir de um mito grego.
Assim, preserva-se um teatro instituído pela classe dominante na Grécia antiga e que acaba por
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O Caso Especial Medéia foi escrito por Oduvaldo Vianna Filho e veiculado pela Rede Globo em 1972, cuja
protagonista, Medéia, foi interpretada pela atriz Fernanda Montenegro. Nesse programa, consta a atualização do mito
grego para a realidade brasileira, em que Medéia deixa de ser a feiticeira bárbara da Cólquida para se transformar na
moradora de um conjunto habitacional em condições precárias, devota do candomblé, bem como Jasão se torna um
cantor de samba em busca do sucesso com sua composição; Creonte Santana é o proprietário da Vila Guadalupe e
deseja que sua filha Creúsa se case com o sambista; o coro se dissolve e está enfatizado nas personagens Dolores
(vizinha e amiga, assim como a Ama da Medéia de Eurípides) e Egeu, que virou taxista. Essas soluções de Vianinha
são aproveitadas e desenvolvidas por Paulo Pontes e Chico Buarque em Gota d’água.
distanciar o espectador a fim de provocar o efeito catártico, purificando-o através do terror e da
piedade. Souto (1998), porém, observa que a mensagem política contida na caracterização das
personagens, aliada aos discursos de Jasão, Egeu e Creonte, em especial, adicionando-se o uso da
música como recurso narrativo, são elementos que conferem à peça o status de Teatro de Arena,
visto que os aspectos ativistas deste se fazem ali presentes. Esse paradoxo é justificado pela
escolha da tragédia como inspiração para se reatualizar o mito de Medéia que, automaticamente,
contrapõe-se à forma de fazer teatro engajado dos dois autores.
Em Gota d’água, os autores desenvolveram um intertexto, uma paráfrase, da tragédia
Medéia, de Eurípides. Ainda que a peça esteja ambientada no subúrbio do Rio de Janeiro, na Vila
do Meio-dia, no período dos anos 1970, consegue ser, ao mesmo tempo, universal e atemporal. O
cerne do drama constitui-se de duas histórias paralelas, uma de caráter passional, e outra, social.
Ou seja, a trajetória de um indivíduo com seus problemas e suas angústias – Joana, a protagonista
– revela a trajetória do grupo todo, do coletivo, da comunidade – os moradores do conjunto
habitacional.
A primeira história relata a situação de Joana, mulher de meia-idade que viveu por dez
anos com o compositor e intérprete de sambas Jasão de Oliveira, com quem teve dois filhos. O
sambista alcança o sucesso com a música “Gota d’água”. Então, é cooptado por Creonte,
proprietário das casas da Vila e mandatário do local, e seduzido pela juventude de Alma, sua
filha. Ele decide abandonar a mulher Joana e os dois filhos para casar-se com a moça e passar a
ser o herdeiro do poderoso e rico empresário. Com a desfeita, Joana se vê humilhada e rejeitada,
passando a nutrir um ódio brutal contra o ex-marido, sedenta para se vingar dele, de Creonte e
também de Alma.
A história paralela é a dos moradores do conjunto habitacional que enfrentam enormes
dificuldades para conseguir liquidar as dívidas da compra da casa própria do credor Creonte,
verdadeiro “rei” e dono, da Vila do Meio-dia. A comunidade também busca melhorias nas
condições de vida do local, que só acontecem sob as ordens do empresário tirano e autoritário.
Como apontou Rabelo (2008), é a partir desse drama coletivo que se faz evidente a crítica severa
à falta de políticas públicas de moradia para as classes de baixa-renda, com o fracasso do Sistema
Financeiro de Habitação (SFH), em meados da década de 1970, que era um falso modelo de
realização bem sucedida da ditadura militar. Esse grave problema serve também para ampliar a
discussão e passar a se questionar a postura autoritária e de censura, bem como o embate
ideológico entre quem está no governo e o povo.
Gota d’água, de Chico Buarque e Paulo Pontes, foi influenciada pela Medéia, de
Eurípides, sendo assim, é possível verificar os pontos de confluência e também as diferenças
encontradas nas duas peças, bem como é preciso compreender que Eurípides baseou-se na lenda
grega para construir sua Medéia, utilizando-se de referências da sua época, tanto quanto os
brasileiros se apropriaram do mito grego para transportar a história para o solo brasileiro e
adaptá-la à realidade do Rio de Janeiro da década de 1970. Por isso, cada peça necessita ser
entendida conforme o contexto histórico, social e cultural em que foi concebida.
As personagens de Eurípides e Buarque - Pontes apresentam semelhanças e diferenças
pontuais. Ainda que Medéia e Joana compartilhem a mesma dor pela traição de Jasão e, depois da
queda e humilhação, levantem-se altivas para arquitetar a vingança, a brasileira é uma mulher que
trabalha para sustentar os dois filhos, apresentando-se, assim, como um exemplo da mulher
moderna que concilia os afazeres domésticos com o trabalho fora de casa. Quanto à Medéia
grega, o sofrimento, a angústia e o sentimento de amor que se transforma em ódio pelo marido
parecem ser o único caminho que move as ações da mulher, voltada, exclusivamente para este
infortúnio.
A princesa da Cólquida é a representação da mulher que leva a paixão, o sentimento
amoroso, acima de tudo, apenas, ficando abaixo do próprio orgulho. Ela cultiva o amor-próprio
que, quando ferido pela traição do marido, ganha forças para arquitetar uma vingança de
dimensões trágicas, tanto para si mesma, como é, principalmente, para Jasão. O que mais poderia
atingir um homem do que a não possibilidade da continuação de sua geração? Aniquilar a mulher
com que ele se casaria, isto é, a moça nova pela qual a mulher madura seria trocada, garantiria,
em parte, sua vingança, porém, não seria da mesma proporção ao sofrimento e a humilhação que
havia sofrido. Então, atinge-se o cerne para todo o bem e para todo o mal do homem: os filhos.
Não é somente o ódio pelo marido que as move. Entretanto, é semelhante em ambas o
sentimento, também contrastante, no que diz respeito à maternidade e os filhos. Queixam-se do
parto, da criação dos filhos e, principalmente, da “função” feminina de trazer ao mundo os
descendentes de sua espécie, questionando-se sobre a importância dos filhos. Medéia, de
Eurípides, diz preferir estar em combate do que parir: “Melhor seria estar três vezes em
combates, com escudo e tudo, que parir uma só vez!” (EURÍPIDES, 1991, p. 28). Joana se
pergunta se os filhos, no futuro, não farão a mesma desfeita e, assim, repetirão as atitudes do pai,
abandonando-a por outra mulher, mais jovem. Ao mesmo tempo, as duas se sentem apiedadas de
cumprir o plano de matar os filhos, deixando aflorar o sentimento supremo materno de
compaixão e amor para com as crianças inocentes.
Em Medéia:
MEDÉIA
Ai de mim!
Ai de mim! Por que voltais os olhos
tão expressivamente para mim, meus filhos?
Por que estais sorrindo para mim agora
com este derradeiro olhar? Ai! Que farei?
Sinto faltar-me o ânimo, mulheres, vendo
a face radiante deles... Não! Não posso!”
(EURÍPIDES, 1991, p. 61)
Em Gota d’água:
JOANA
Não, eles não. Por que, meu Deus? Que atrocidade
Eles não têm nada co’isso. Vou esconder
Os dois com mestre Egeu e depois vou correr
Conheço todos os covis desta cidade
(BUARQUE e PONTES, 1996, p. 162)
Jasão também aparece com mais nuances de caráter e personalidade na versão brasileira,
pois ele é a chave para resolver os problemas de toda a comunidade da Vila do Meio-Dia, assim
como mostra a face individualista e egoísta da fama e do sucesso conquistados com o samba
“Gota d’água”. Em Medéia, Jasão tem o mesmo ímpeto de ascender socialmente e garantir a
riqueza e o poder, pois tornar-se-á o marido da filha do rei de Corinto, apresentando um caráter
individualista. Neste caso, porém, não existe uma comunidade dependente dos seus atos. Embora,
seja preciso lembrar que a figura de Medéia representa o lado bárbaro, a estrangeira que foi
trazida por Jasão, então, de certa forma, ao livrar-se da mulher ele também se apazigua com a
cidade de Corinto, descontente pela presença dela.
Em Gota d’água, Jasão é o estereótipo do “malandro carioca”, o sujeito que consegue
emergir da classe baixa para a classe alta e se torna uma celebridade instantânea, graças à
composição que não para de tocar nas emissoras de rádios. Dessa forma, ele é cooptado pelo
poder, personificado na figura de Creonte, o proprietário das casas da vila e mandatário do local,
e a aliança se consolida de vez no casamento entre o sambista e Alma, a filha do “rei”. É,
justamente, com o casamento, que o interesse e a ambição de Jasão ficam evidentes, mesmo que
para se concretizar ele precise romper os laços com os antigos amigos e compactuar para a
expulsão da a ex-mulher e os próprios filhos da Vila.
Com relação ao enredo, respeitando-se o contexto e as particularidades de cada peça,
como foi demonstrado anteriormente, é preciso discorrer a respeito do desfecho alcançado em
cada uma delas. Em Medéia, há o infanticídio de fato e a mulher-esposa-mãe-assassina não é
punida pelo crime que cometeu, pois é resgatada pelo carro do deus Sol, seu avô. Para Eurípides,
essa era a solução verossímil para a história, não existindo um julgamento da personagem, nem
real, nem moral. Com Gota d’água, esse final não teria o mesmo respaldo verossímil, pois a
personagem já não tem o poder mágico e sobre-humano de sua antecessora. Deve-se levar em
conta o período em que a peça se passa, nos anos 1970. O Brasil está dominado pela Ditadura
Militar e o suicídio de Joana se faz efetivo, como uma forma de protesto e denúncia, chamando a
atenção para a situação de classes e dos sujeitos, como ela, oprimidos.
O final da tragédia brasileira, conforme Souto (1998) intensifica-se no conflito entre os
papéis maternal e feminino, presentes em Joana. Em Medéia, a hybris reside no coração, pois é
lá que estão o amor e a cólera, assim como as paixões avassaladoras que arrastam a protagonista
a extremos inimagináveis, porém completamente verossímeis. Em Gota d’água, Joana não é mais
a heroína clássica da tragédia, e, por isso, é destituída de hybris.
Eis aí a inversão do que se entende por relação trágica: em Gota d’água é o homem livre
de hybris que busca consertar o mundo; ao passo que, nas tragédias clássicas de que nos
ocupamos, era o mundo ordenado que buscava consertar o homem híbrido. Não há,
portanto, uma medida conciliadora entre homem e mundo na tragédia de Paulo Pontes e
Chico Buarque (SOUTO, 1998, p. 126-127)
As diferenças entre as duas personagens, para Maciel (2004), estão marcadas pela
condição ainda divina da Medéia grega clássica, e da ausência deste elemento na Joana brasileira.
A Medéia grega só tem a consciência absoluta de mãe-assassina e não mais de mulher-traída,
quando descobre que “ao extirpar um pedaço de Jasão acabou matando uma parte de si mesma”.
O recurso cênico usado por Eurípides para que se alcançasse a fuga de Medéia para o exílio,
garantido por Egeu em Atenas, foi o deus ex machina – o carro do Sol –o que ressalta o caráter da
Medéia antiga, “banhada pelas águas da vingança contra a quebra do juramento”. (MACIEL,
2004, p. 20 -21)
No caso da Medéia brasileira, por sua vez, não existe mais a possibilidade do divino
interferir na ação, e, por isso, os autores enfatizaram a solidão da personagem que tinha sido
humilhada pelos poderosos e logo depois abandonada pelos amigos. Assim, como decidiram
Oduvaldo Vianna Filho, em 1972, para a Joana de Paulo Pontes e Chico Buarque, só resta o
suicídio, a fuga da própria tragédia diária.
Mesmo que estejamos num momento histórico em que a tragédia, enquanto forma,
torna-se de difícil realização, ele, ao mesmo tempo, abriga uma série de conflitos
insolúveis. Desde Eurípides, que teceu um conjunto de narrativas míticas sobre Medéia,
a história de amor-abandono-vingança está à disposição de uma outra discussão, poucas
vezes considerada, em torno da situação da mulher e do “estrangeiro”, do “bárbaro”,
lançado em meio a uma cultura extremamente fechada como a grega. Sem direitos, a não
ser aqueles de natureza divina ou relativa à sua ascendência desvalorizada naquela outra
civilização, Medéia tem que reagir com as armas que ela bem conhece: a astúcia, a
negociação, a dissimulação de seus sentimentos e a sua “ciência”. Perseguimos aqui a
maneira pela qual o tragediógrafo grego construiu o seu enredo, dando destaque a essas
características da personagem e canonizando sua imagem de mãe-assassina (MACIEL,
2004, p. 20 -21)
Referências
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BUARQUE, Chico. PONTES, Paulo. Gota d'água. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.
COSTA, Lígia Militz da. A poética de Aristóteles: mímese e verossimilhança. São Paulo: Ática,
2006.
KURY, Mário da Gama. Introdução. In. EURÍPIDES. Medéia; Hipólito; As Troianas. Rio de
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MACIEL, Diógenes André Vieira. Das Naus Argivas ao Subúrbio Carioca – Percursos de um
mito grego da Medéia (1972) à Gota D’água (1975). Fênix – Revista de História e Estudos
Culturais, v. 1, n. 1, Ano 1, p. 1-21, outubro-novembro-dezembro de 2004. Disponível em:
<http://www.revistafenix.pro.br> Acesso em 25 de agosto de 2011.
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PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Prefácio. In. ARISTÓTELES. Poética. Lisboa: FCG, 2004.
RABELO, Adriano de Paula. A melodia, a palavra, a dialética: O teatro de Chico Buarque. São
Paulo: USP, 2008.
SOUTO, Andrea do Roccio. A dramaturgia e sua trajetória milenar: Das Medéias clássicas à
Gota d'água brasileira. São Leopoldo: UNISINOS, 1998.
VIEIRA, Paulo. Paulo Pontes: a arte das coisas sabidas. 1989. 190fls. Dissertação (Mestrado em
Letras) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1989.