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Cantorio de Santos Reis CD 1 *

01 Retirada da bandeira / Pedrinho - BR VWR-15-00001


Toada São João

02 Saída da bandeira / Vanderlei - BR VWR-15-00002


Fundo musical: Romaria, de Walter José

03 Visita a moradora / João Cigano - BR VWR-15-00003


Toada do Ronaldo

04 Anunciação / Lindomar - BR VWR-15-00004


Toada Ai meu Deus

05 Nascimento / Divino da Veinha - BR VWR-15-00005


Toada (do) João Baianinho

06 Encontro com Herodes / Eurípedes - BR VWR-15-00006


Fundo musical: toada Violinha

07 Visita / Pedrinho - BR VWR-15-00007


Toada Xique-Xique

08 Canto para falecido / João Cigano - BR VWR-15-00008


Toada paulista para falecido

09 Encontro de bandeiras / Thiago - BR VWR-15-00009


Toada Ei, ai

10 Encontro com a festeira / Luís Carlos - BR VWR-15-00010


Toada São Sebastião (variante adaptada por Luís Carlos)

11 Profecia / Divino do Juca - BR VWR-15-00011


Toada do Lourenço

12 Agradecimento de mesa / Lourenço - BR VWR-15-00012


Agradecimento Lento

* As letras são de composição dos respectivos embaixadores, à exceção da faixa 10,


parceria de Di Mariano e Luís Carlos. A autoria das toadas está indicada no capítulo 3.
Toadas de Santos Reis em
Inhumas, Goiás
Tradição, circulação e criação individual
Realização da extensão e da pesquisa 2° Tesoureiro
Vanderlei Pereira Maciel
Universidade Federal de Goiás
Reitor 1º Secretário
Orlando Afonso Valle do Amaral Thiago Divino de Oliveira

Vice-Reitor 2º Secretário
Manoel Rodrigues Chaves Lucas Rafael Belarmino da Silva

Pró-reitor de Graduação Conselho fiscal


Luiz Mello de Almeida Neto Antônio Batista da Silva
Olair Ferreira Coelho
Pró-reitor de Pós-Graduação
José Alexandre Felizola Diniz Filho Expedito Ribeiro de Castro

Pró-reitora de Pesquisa e Inovação Conselho consultivo


Maria Clorinda Soares Fioravanti Maria Divina Dias Gouvea
Lucineia Ruiz Fontana
Pró-reitora de Extensão e Cultura Alzira Ferreira Silva
Giselle Ferreira Ottoni Candido
Diretor de patrimônio
Pró-reitor de Administração e Finanças Fernando Belarmino da Silva
Carlito Lariucci
Diretor de eventos culturais e educativos
Pró-reitor de Desenvolvimento Institucional e Recursos
Adão Gonçalo Pimenta
Humanos
Geci José Pereira da Silva Diretor de Marketing
Pró-reitor de Assuntos da Comunidade Universitária Luciano de Almeida Lopes
Elson Ferreira de Morais

Associação Devotos de Santos Reis Projeto de extensão e de pesquisa


Presidente
Luís Carlos Gomes Frazão Uso comercial de expressões culturais tradicionais
Vice-presidente Coordenação: Sebastião Rios
Lázaro Belmiro dos Reis Extensão e pesquisa: Sebastião Rios e Talita Viana
Bolsistas: Evelyse Castro - PROEXT; Rannier Venâncio
1º Tesoureiro Asevedo Silva - PROBEC; Lucas Azevedo de Castro Bon-
Fernando Belarmino da Silva
fá - PROEXT; Deborah Ferreira Cordeiro Gomes - PIBIC
Toadas de Santos Reis em
Inhumas, Goiás
Tradição, circulação e criação individual

Sebastião Rios
Talita Viana

Fotografia
Rogério Neves

Goiânia 2015
© 2015, Sebastião Rios e Talita Viana

Revisão
Evelyse Castro
Gabriela Marques
Joana Abreu

Projeto gráfico e diagramação


Elvis Kleber
Vitor Teles Ferreira

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Seção de Normalização CEGRAF/ UFG

R586t Rios, Sebastião


Toadas de Santos Reis em Inhumas – Goiás :
tradição, circulação e criação individual / Sebastião
Rios; Talita Viana; Fotografias de Rogério Neves. –
Goiânia : Gráfica UFG, 2015.
228 p.

ISBN 978-85-68359-74-7

1. Folia de Reis de Inhumas. 2. Cultura Goiana.


3. Manifestações Culturais. I. Título.

CDU 398.33(817.3)

Catalogação na fonte: Carminda de Aguiar Pereira CRB1 2974 e Natalia Rocha CRB1 3054
Edição do Livro Edição de partituras
José Reis de Geus – Zé do Choro
Faculdade de Ciências Sociais – FCS
Revisão da edição de partituras
Diretor
Paulo Guicheney
Dijaci David de Oliveira
Vice-Diretora Projeto gráfico e diagramação
Janine Helfst Leicht Colaço Elvis Kleber
Vitor Teles Ferreira
Conselho Editorial
Carlos Liberato – UFS
Daniel Bitter – UFF
Jessé Souza – UFJF Produção do CD
Lara Amorim – UFPB
Mauro Victoria Soares – UFPE Produção executiva
Pedro Célio A. Borges – UFG (presidente) Juliana Ribeiro Marra
Sérgio de Sá – UnB
Direção musical
Fotografia Luís Carlos
Rogério Neves Sebastião Rios
Fotos de acervos pessoais
Captação de áudio
Markus Garscha (páginas 85, 107 e primeira e segunda
Luís Carlos
linhas superiores da página 225)
Sebastião Rios
Transcrição musical Talita Viana
João Fernandes
Masterização
Cifras (harmonia) Andy Costa (Zen Studios)
João Fernandes
Arte do Rótulo
José Reis de Geus – Zé do Choro
Elvis Kleber
Sebastião Rios
Revisão da transcrição musical
Keit Guimarães
Roberto Corrêa
Alles geben die Götter, die unendlichen,
Ihren Lieblingen ganz,
Alle Freuden, die unendlichen,
Alle Schmerzen, die unendlichen, ganz

Os deuses, infinitos, tudo dão,


a seus preferidos, por inteiro.
Todas as alegrias, infinitas,
Todas as dores, infinitas, por inteiro.
Goethe (em carta à Baronesa de Stolberg)

Aos foliões, infinitos

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Agradecimentos

Ademir Martins Fontes, Alda Dantas, Alete Oliveira, An- Agradeço ainda aos estudantes de graduação e pós-gradua-
dré e Andrade, Antônia Barbosa do Amaral Machado, Cás- ção da UFG, cuja leitura atenta e comentários aos originais
sia Soares Duarte, Clévia Ferreira Duarte Garrote, Clube e à diagramação muito enriqueceram a exposição dos re-
do Violeiro Caipira de Brasília, Dalila de Sousa, Divino de sultados do trabalho de extensão e pesquisa aqui apresen-
Freitas, Eide Rocha, Francisco Vianna, Giovanna Lisboa, tados: Alberto Campos de Oliveira Filho, Ana Paula Batis-
Graça Borges, Helen Cristina Colodeto, Helena Schmidt ta da Silva Beltrão, Ana Paula Martins do Couto Oliveira,
Rios, Hélio Antonio Batista, Igor Kopcac, Irajane Guedes Andréia de Souza Pires, Arthur Alves Santiago, Antonio de
da Silva, Joana Mendonça, Juliana Saenger, Letícia Cristina Jesus Pereira, Carlos Eduardo Emílio Rego, Carlos Eduar-
de Alcântara Rodrigues, Luzia Vieira de Souza, Magdalena do Matutino Gomes, Ceila Portilho, Danillo Bueno Pires
Haidegger, Margarida Maria Gonçalves Costa e Christiane de Faria, Daphene Moreira Oliva, Daykylorrane Amélia
Gonçalves Costa, Neusa Vitória de Siqueira Martins, Pau- dos Santos, Denis Malaquias, Denise Pereira de Castro,
la Pereira Lima, Regiane Miranda Santos, Valdeci Vieira Dercídeo Soares Ferreira, Dinael Leal dos Santos, Emerson
da Silva, Verlany Souza Marinho de Biage, Volmi Batista, Alexandre Souza Gomes, Érica Narayana Pires Pimentel,
Waldomiro Bariani Ortencio, Walter José, Zilma Bueno de Ésio Paulino Roque, Esther Christina Silva Teles, Fernanda
Souza e Lázaro Rosa Lino. Ramos Parreira, Gabriel Naves Mecenas, Gabriela Ansorge
Morais, Gustavo Carvalho de Saboya, Heloany Rodrigues
de Almeida, Ildeu Iussef Garcia Felipe, Izabela Resende
Araújo, Jacira Curado Barbosa, Jane Kelle Marques Vile-
la, Joana Dark Leite, João Victor Souza Gomes, Josélia das
Neves, Judivan Alves Ferreira, Layza Danielle Diógenes de
Souza, Leandro Dias Barbosa, Leyber Alves Soares, Lucas
Teixeira Correia, Luísa Martins Ferreira, Magna Tavares
da Cunha, Marcilene Miranda de Almeida Sá, Maria Clara
Curti Vieira Alves, Matheus Martins da Silva, Meirielly de
Moraes Santos, Mileni Borges Martins, Mirelly Ferreira da
Silva, Myriam de Bastos e Barbosa Cerqueira, Núbia Mes-
quita de Lima, Paulo Henrique Tavares Damasceno, Rava-
na da Silva Lobo, Roberta Vieira Rocha, Roberto Alves da
Silva, Samuel Ribeiro Zaratim, Selma Maria de Oliveira,
Sueli Silva da Rocha, Tainá Luíza Barreto Marques, Thaís
Rodrigues Oliveira, Thayná Ferreira Fujioka, Valmir Sér-
gio de Oliveira Filho.
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Índice

Apresentação, por Sebastião Rios, Talita Viana e Letícia C. R. Vianna . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13


- As bases da política federal para o patrimônio cultural imaterial
- Como e por que fizemos o registro da diversidade de toadas de Santos Reis em Inhumas
Folias de Reis em Inhumas, Goiás, por Sebastião Rios e Talita Viana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27
- O que é uma Folia de Reis
- Breve história da Folia de Reis no Brasil
- Composição e disposição espacial das companhias de Reis
- As funções de um giro de Folia de Reis
- A Folia de Reis como sistema de relações sociais
- Especificidades da Folia de Reis de Inhumas, Goiás
Transmissão de saberes na Folia de Reis, por Talita Viana, Sebastião Rios e Rannier Venâncio . . . . . . . . . . . . . . . . 75
Toadas de Santos Reis em Inhumas, Goiás, por Sebastião Rios e Talita Viana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95
- Sentidos e estrutura musical das toadas de Santos Reis
- O trabalho de identificação das origens e difusão das toadas
- Toadas executadas nos giros
- Mapa dos lugares de atuação das companhias de Reis na região
Partituras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 148
Criações individuais em manifestações culturais coletivas, tradicionais e difusas, . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163
por Sebastião Rios, Marcos Alves de Souza, Evelyse Castro e Talita Viana
- Relações entre direito individual de autor e bem cultural da comunidade
- As diferentes concepções de autoria no Barroco e no Romantismo
- Possibilidades e limites do inventário de bens culturais
As gravações das toadas, por Talita Viana e Sebastião Rios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 195
- O processo de gravação
- O tempo da folia e o tempo do CD
- A gravação das vozes para a transcrição musical

Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 215
Autores do livro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 219
Cantorio de Santos Reis (CD 1) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 220
Ficha técnica dos CDs . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 226
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Apresentação Além de sua qualidade musical, a Folia de Reis em
Inhumas se destaca pela grande variedade de toadas
Sebastião Rios (que compreende a estrutura dos versos e das respos-
Talita Viana tas, a melodia, o ritmo e o acompanhamento do acor-
Letícia C. R. Vianna deão e demais instrumentos harmônicos) apresenta-
das em seus giros. O levantamento preliminar delas
junto aos embaixadores e foliões havia chegado ao ex-
Este livro é resultado do projeto de extensão pressivo número de vinte e cinco toadas diferentes. Na
“Uso comercial de expressões culturais tradicio- execução do projeto, entretanto, foram identificadas
nais”, realizado com o apoio do PROEXT – MEC/ quarenta e duas toadas, sem contar algumas varian-
SESu e do IPHAN/MinC, na linha Preservação do tes muito próximas e outras toadas de cuja existência
Patrimônio Cultural Brasileiro, subitem Preserva- tivemos notícia, mas não foi possível gravar. Dessas
ção e Salvaguarda do Patrimônio Cultural. Um de quarenta e duas toadas, quarenta foram gravadas e de-
seus focos foi o levantamento da variedade de toa- zesseis têm autoria identificada.
das de Reis em Inhumas e região, com a respectiva
identificação da autoria dessas toadas, quando era A existência dessa variedade de toadas de Reis -
o caso. Outro foi a investigação das demandas e que comparece também no conjunto da manifesta-
alterações surgidas na manifestação a partir de sua ção - deve-se à migração para a região, especialmente
movimentação fora de seu lugar tradicional opera- forte entre as décadas de 1920 e 1970, e ainda a uma
do pela circulação de gravações – LPs, CDs, DVDs intrincada e extensa rede de colaboração mútua e de
–, eventualmente dentro das regras do mercado fo- reciprocidade estabelecida com foliões de cidades
nográfico. Visando a preservação da memória mu- próximas, como Araçu, Goiânia, Goianira, Itauçu,
sical das Folias de Reis na região, o referido projeto Santa Rosa, Trindade.
promoveu ainda o registro em áudio dessas toadas.
Outro aspecto relevante ligado à referida varie-
Os CDs para a divulgação desta tradição mu- dade é a quantidade de foliões existentes e de folias
sical e o registro fotográfico do giro de algumas que são tiradas na região. Mesmo considerando um
Companhias de Reis da cidade e da região foram decréscimo nos últimos anos, os números ainda são
incluídos por meio do projeto “Livro e CD da Cia impressionantes e seria impossível a um pesquisador
de Santos Reis de Inhumas – Goiás”, aprovado no frequentar todos os giros e conhecer todos os foliões
Edital nº 1/2013 – Fundo Cultural da Secretaria de em atividade na região. Conseguintemente, este livro
Cultura do Estado de Goiás – SeCult, na linha de apresenta um quadro apenas parcial deste universo
ação Fomento ao Patrimônio Cultural Material e – ou melhor, multiverso – e alguns grupos, pessoas
Imaterial, na modalidade de Patrimônio Imaterial. e giros igualmente importantes não foram aqui men-
Natureza da proposta: Memória. cionados por motivos de ordem prática.
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A Folia de Reis em Inhumas tem ligação estreita seminário teve ainda a participação da Companhia
com o meio urbano há pelo menos quatro décadas e de Santos Reis de Inhumas nas duas noites.
muitos de seus foliões exercem, hoje, ofícios tipica-
O evento se revestiu de grande importância pela
mente urbanos. Este fato não impede, todavia, que ela
atualidade e pertinência do tema e, especialmente,
mantenha um grande trânsito e circularidade com o
pela presença dos mestres da cultura popular na uni-
meio rural e apresente, nessa situação urbana, uma
versidade pública, na condição de palestrantes, rein-
característica marcante das folias que se desenvolve-
tegrando na universidade, pelo menos momentanea-
ram primeiro no meio rural, migrando depois para
mente, as dimensões sensível e intuitiva da arte e do
a cidade: ela é uma manifestação religiosa de grande
conhecimento espiritual.
significado para a educação informal dos membros da
comunidade, constituindo um grande repositório de Com essa ação esperamos ter indicado um cami-
crenças, valores e conhecimentos tradicionais. nho para que, num futuro breve, foliões e outros mes-
tres da cultura popular possam fazer parte do nosso
Apesar de sua importância cultural e de sua quali- quadro de professores. Isso permitirá que possamos
dade musical, os foliões têm escasso reconhecimento ter acesso aos sentidos, cantos e técnicas do universo
fora de seu meio mais próximo. Mesmo sendo mes- da Folia de Reis e de outras manifestações da cultura
tres da cultura popular, estão fora das escolas do mu- popular tradicional, como já vem ocorrendo com ini-
nicípio e da universidade, onde deveriam entrar pela ciativas semelhantes na Universidade de Brasília, na
porta da frente, na condição de professores. Universidade Federal de Minas Gerais, na Universi-
Na realização do projeto de extensão, foi pro- dade Federal do Pará, na Universidade Federal do Sul
movido, na Universidade Federal de Goiás, nos dias da Bahia, na Universidade Federal de Juiz de Fora e na
21 e 22 de agosto de 2014, o seminário “Criação in- Universidade Estadual do Ceará, por meio do Encon-
tro de Saberes, projeto estruturante do Instituto Na-
dividual em manifestações culturais coletivas e di-
cional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino
fusas: direito autoral, propriedade intelectual e pa-
Superior e na Pesquisa, coordenado pelo professor
trimônio cultural”, sob coordenação de Sebastião
José Jorge de Carvalho.
Rios, que contou com a presença dos palestrantes
Luis Carlos Gomes Frazão e Lourenço Francisco A importância do seminário no desenvolvimento
Ferreira (embaixadores da Cia de Santos Reis de do projeto poderá ser verificada pelo leitor nas inú-
Inhumas – Goiás), Carla Belas (docente do Mes- meras referências a ele no texto. A sintonia entre os
trado Profissional em Preservação do Patrimônio palestrantes, a troca de experiências e o diálogo de
Cultural do IPHAN), Letícia Vianna (Consultora saberes foi marcante. Isso, inclusive, nos permitiu
do IPHAN) e Marcos Alves de Souza (Diretor de contar com a co-autoria de Marcos Alves de Souza no
Direitos Intelectuais do Ministério da Cultura). O capítulo quatro e incluir, na parte desta apresentação

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que trata da política de preservação do patrimônio Cada sociedade possui vários sistemas simbólicos
cultural, o texto de Letícia Vianna construído a partir convergentes e divergentes, compartilhados e trans-
de sua apresentação no seminário e do debate que se mitidos, vividos na plenitude por todo o conjunto
seguiu. Em seguida retomamos com nossas reflexões ou apenas por segmentos diferentes dela. Entende-se
sobre o trabalho de campo. aqui por cultura esses sistemas simbólicos ou de sig-
nificados, os valores, crenças, práticas e costumes; éti-
ca, estética, conhecimentos e técnicas, modos de viver
As bases da política federal para o e visões de mundo que orientam e dão sentido às exis-
tências individuais em coletividades humanas.
patrimônio cultural imaterial
Patrimônio cultural diz respeito aos conjuntos de
Letícia C. R. Vianna conhecimentos e realizações de uma sociedade, que
são acumulados ao longo de sua história e lhe confe-
A palavra patrimônio pode significar uma por- rem os traços de sua singularidade e identidade em
ção de coisas que geralmente têm grande valor para relação às outras sociedades, comunidades ou grupos.
pessoas, grupo de pessoas, comunidades ou nações
A atual legislação que trata da proteção do patri-
e coisas que podem ter valor para todo o conjunto
mônio cultural brasileiro tem seguido as recomenda-
da humanidade. A palavra remete à ideia de riqueza
ções da Unesco; é fundamentada em bases relativistas
constituída e transmitida, herança ou legado que in-
que já vinham sendo construídas e amadurecidas ao
fluencia o modo de ser e a identidade dos indivíduos
longo da história.
e grupos sociais.
Nos artigos 215 e 216 da Constituição promulga-
Mas a noção exata do que seja patrimônio é relati-
da em 1988, o conceito de Patrimônio Cultural abarca
va, pois depende de quem fala e de que ponto de vista
tanto obras arquitetônicas, urbanísticas e artísticas de
fala. As definições podem partir de diferentes pers-
grande valor, o patrimônio material, quanto manifes-
pectivas, que podem ou não se sobrepor, como a pers-
tações de natureza “imaterial”, relacionadas à cultura
pectiva afetiva, a econômica, a ambiental, a cultural.
no sentido antropológico: visões de mundo, memó-
Uma das características mais marcantes da espécie rias, relações sociais e simbólicas, saberes e práticas;
humana é a grande diversidade de configurações so- experiências diferenciadas nos grupos humanos,
cioculturais possíveis no tempo e no espaço. Diferente chaves das identidades sociais. Incluem-se aí as cele-
das sociedades das abelhas e formigas, aparentemente brações e saberes da cultura popular, as festas, a reli-
sempre idênticas na forma organizacional, as socieda- giosidade, a musicalidade e as danças, as comidas e
des humanas são sempre únicas em função das espe- bebidas, as artes e artesanatos, os mistérios e mitos,
cificidades culturais nelas desenvolvidas. a literatura oral e tantas, tantas expressões diferentes
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que fazem nosso país culturalmente tão diverso e rico. bens em si, que têm natureza dinâmica e intangível. O
patrimônio imaterial como as festas e celebrações, as
O principal instrumento de preservação do pa- músicas, danças, comidas, saberes e técnicas próprias
trimônio material é o instituto do tombamento, cuja da cultura popular só se conservarão, efetivamente,
legislação está sendo amadurecida desde pelo menos se vividos por pessoas em condições, com garantias,
a primeira metade do século XX. A legislação para o liberdade e interesses em vivenciá-los de modo
patrimônio imaterial, entretanto, é recente. No Decre- dinâmico e criativo.
to n. 3.551 de 04 de agosto de 2000, os principais ins-
trumentos de salvaguarda desse patrimônio, até hoje Assim, a nova legislação de preservação do patri-
instituídos, são o inventário permanente, o registro em mônio cultural só será eficaz na medida em que seja
livros análogos aos livros de tombo e as políticas de amplamente conhecida pelos diferentes segmentos da
preservação e fomento que devem ser estabelecidas. sociedade e que as comunidades locais e a socieda-
de abrangente tenham condições de estar mobiliza-
Esses instrumentos não são fechados, normativos das para a prática permanente, para a transmissão e
e restritivos, mas abertos aos pontos de vista e expec- aprendizado de saberes, a pesquisa, documentação,
tativas dos portadores de tradições culturais específi- apoio e reconhecimento da riqueza cultural brasileira,
cas. Pressupõem a dinâmica própria dessas tradições, de maneira crítica e participativa.
sem pretender, portanto, “engessar” suas formas e
conteúdos no tempo e no espaço, o que é fundamen- Letícia Vianna
tal, pois a questão não é nada, nada simples.
Apenas a legislação não basta para garantir a sal-
vaguarda desses bens. De fato, muitas expressões cul-
turais da maior importância se perderam por falta de
legislação eficiente, mas também existem muitos bens
culturais que se conservaram por séculos e séculos
sob nenhuma ou apenas incipiente legislação de pro-
teção. As leis, sem dúvida, podem favorecer as condi-
ções para a preservação do patrimônio cultural; mas
ele só é efetivamente preservado por meio da vivência
voluntária das pessoas.
Os documentos engavetados, os inventários, a
descrição dos bens contidas nos livros do IPHAN são
apenas referências dos bens, mas não dão conta dos
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Destaca-se, então, a importância da atualização suas áreas periféricas. Os cantos e toadas da Folia de
constante dos princípios do relativismo cultural para Reis trazem a marca da sensibilidade dos foliões que,
as novas gerações; a valorização da diversidade cultu- contrastando com seu cotidiano de trabalho duro e
ral com respeito e tolerância; o estímulo permanente precárias condições materiais da existência, se revela
à curiosidade pelas culturas e identidades tradicionais na leveza de um cantorio ao mesmo tempo rústico –
das comunidades locais, com ampla divulgação para quiçá rude – e delicado. Simples em sua harmonia e
que sejam conhecidas e reconhecidas na própria co- deveras complexa na sobreposição e encaixe de vozes,
munidade e na sociedade abrangente. De modo que a Folia de Reis constitui uma das maiores celebrações
seja preservada a vontade de apreender, compreender, da cultura e da religiosidade popular no Brasil.
vivenciar, repassar e reinventar as tradições com liber-
dade, criatividade e senso de justiça social, uma vez Os grupos de Folia de Reis preservam, há várias
que a preservação da diversidade cultural e a supera- gerações, cantos, toadas e batidas com as cores e sa-
ção das desigualdades socioeconômicas são os maio- bores específicos das localidades em que surgiram e
res desafios na sociedade brasileira. das circunstâncias de sua difusão. Este livro e CDs da
Cia de Santos Reis de Inhumas, Goiás, se inserem no
esforço de salvaguarda desse bem cultural, chamando
atenção para práticas e valores sociais que, embora re-
levantes, são residuais na sociedade urbana, industrial
e capitalista, dominada pela racionalidade instrumen-
Como e por que fizemos o regis- tal. Esperamos que esse livro e CDs chamem a atenção
tro da diversidade de toadas de e desperte o interesse de um neto, de um sobrinho,
de uma filha de um folião pela manifestação. Espera-
Santos Reis em Inhumas
mos, igualmente, que o interesse que as instituições
fomentadoras e envolvidas na realização do projeto
Sebastião Rios
– IPHAN, MEC, MinC, UFG, SeCult – demonstram
Talita Viana
ter por essa manifestação basicamente familiar tam-
bém desperte o interesse local por ela, atingindo ou-
A Folia de Reis comemora o nascimento de Cris- tros segmentos sociais em Inhumas. Esperamos, por
to, revivendo a viagem dos Três Reis do Oriente para fim, que a destinação de verba por parte do MEC e da
adorar o Menino Jesus. É uma complexa manifestação SeCult para projetos culturais desta natureza desperte
de pessoas tradicionalmente habitantes das pequenas nas prefeituras da região o sentimento de responsa-
cidades do interior e do sertão, mas hoje também bilidade pela manifestação e, notadamente, pelo bem
presente nas grandes regiões metropolitanas, espe- estar econômico e social das pessoas que preservam
cialmente, do Centro-Sul do Brasil; geralmente em e mantêm as Folias de Reis. O livro será distribuído
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para as escolas e bibliotecas de Inhumas e das demais gosto numa situação de imposição da cultura erudita
cidades da região, visando o acesso de crianças e ado- – que estigmatiza a cultura popular tradicional – ou
lescentes a este material. da produção da indústria cultural voltada para o en-
tretenimento das massas que, quando não ignora a
Antigamente, muita gente aprendeu a cantar e a
cultura popular tradicional, mostra-a de uma forma
tocar nas folias e demais manifestações da cultura po-
deturpada?
pular. Hoje, tem escolas de música. Mas o embaixador
da Folia de Reis não está nessas escolas. Do mesmo O estabelecimento de medidas de salvaguarda da
modo, tempos atrás, uma parte das pessoas aprendia Folia de Reis – como as aventadas acima ou outras
seus fundamentos religiosos – então, quase exclu- possíveis – precisa, entretanto, levar em consideração
sivamente católicos – na Folia de Reis, no Congado, a centralidade da fé do folião na manutenção da ma-
nas rezas de terço e novenas e nas festas de padro- nifestação. Experiências como as do Luís Carlos na
eiro. Hoje, aprende no catecismo. Mas o embaixador escola municipal em Goiânia ou com um grupo de
de folia tampouco é convidado para ensinar lá. E é crianças de Inhumas são muito interessantes e posi-
pouco provável que venha a ser. Nas escolas munici- tivas. Elas retomam ações semelhantes da década de
pais, estaduais ou particulares, muitas vezes os foliões 1990, quando foram criados uma escolinha de folião
entram na condição de faxineiro, merendeira, vigia. por João Cigano, na Inhuminha, e um grupo mirim
Todas profissões muito dignas, mas os embaixadores de Folia de Reis em Inhumas. Tais ações constituem
e palhaços da Folia de Reis deveriam entrar na escola exemplo e testemunho da fé dos foliões e de sua for-
também na sua condição de mestres da cultura popu- ça. Cumpre lembrar, porém, que a fé, ainda que pos-
lar, ocupando a sala de aula. sa ser estimulada e ter sua manifestação incentivada,
Pelo projeto “Mais Cultura nas Escolas” - pioneiro ainda que se possa tentar transmiti-la e ensiná-la, ela
do governo federal em parceria com os municípios - é, sobretudo, algo íntimo, que cada pessoa precisa ter
o embaixador Luís Carlos atuou em 2015 na Escola ou desenvolver. E, porque a Folia de Reis depende da
Municipal São José, no Conjunto Primavera, em Goiâ- fé, sem ela faz-se, na melhor das hipóteses, um bom
nia. Mas isso é uma experiência muito recente e re- grupo que canta folia; mas não um grupo de Folia de
alizada apenas em duas escolas em toda a cidade ¹. Reis no sentido profundo do termo, uma vez que ela
Então, como a geração mais nova poderia gostar de é movida pela fé.
algo que não conhece? E como poderia sustentar seu No início desta apresentação, antecipamos a diver-
1. A Escola Municipal Presidente Vargas, na Vila João Vaz, contou com a participação de sidade das toadas de Reis, especificamente, e da Folia
integrantes do Terno Catupé Dourado, da Congada. de Reis, em geral, na região de Inhumas como uma de
2. CD lançado em janeiro de 2006, com o registro em áudio do Encontro de Folias suas marcas mais características. Cumpre agora ressal-
de Reis do DF. Cassiano é o nome artístico de João Monteiro da Costa Neto, da
dupla caipira Zé Mulato e Cassiano. tar a extensão disso e suas consequências para nossa
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exposição. Em função de sua diversidade não é possível Tentando ser fiel a essa diversidade, este livro ten-
falar na Folia de Reis em Inhumas e região no singular. ta mostrar a pluralidade das percepções dos foliões,
Durante a pesquisa de campo que gerou o CD duplo apresentando as diferentes falas na forma de um mo-
“Folia de Reis: tradição e fé” ², Cassiano sintetizou esta saico. Deste modo, respeitamos a pretensão de legiti-
situação: “Tião, Folia de Reis é tudo igual. E cada vez midade intrínseca a cada percepção da Folia de Reis,
que você dobra uma serra, muda tudo!” bem como a cada versão sobre a origem ou autoria de
uma toada.
Essa diversidade – que consideramos uma rique-
za – diz respeito tanto a diferenças nos giros como Coerente com esse propósito de entender os me-
na própria percepção da Folia de Reis pelos foliões. andros internos relativos à percepção da criação, pre-

Evelyse Castro e Lucas Bonfá recolhendo a autorização de Tião Paraíba durante gravação

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servação e difusão das toadas, bastou-nos o estabele- o trabalho de campo em 2012 e, por fim, Evely-
cimento dos vínculos que ligam o criador à sua obra, se Castro, estudante de Direito, veio a conhecer
focando no reconhecimento das eventuais autorias este universo em 2013, participando do trabalho
pelos próprios foliões. Na linguagem técnica do direi- de campo durante o ano de 2014, em que foi de-
to autoral, esta é a parte relativa aos direitos morais senvolvido o projeto PROEXT “Uso comercial de
dos autores. Conseguintemente, não nos interessou expressões culturais tradicionais”. O apoio da Se-
investigar e estabelecer a verdade – única e absoluta – Cult permitiu o engajamento do fotógrafo Rogério
a respeito da origem e eventual autoria de cada toada. Neves na equipe. Deste modo, além de várias mãos
Tampouco era nossa pretensão registrar na Biblioteca tivemos diversos olhares na construção de nossa
Nacional - ou órgão equivalente - as toadas cuja au- narrativa.
toria conseguimos identificar. Menos, ainda, a partir
desse passo, reivindicar o pagamento de direitos au- Com relação à presença de diversas vozes em
torais; o que extrapolaria tanto nossa pretensão como nosso texto, acresce ainda que, terminada a pri-
nossa capacidade de atuação. meira versão dele, retornamos algumas vezes a
Inhumas para discutir o texto com os foliões; in-
Por fim, com relação à nossa exposição, cumpre
clusive com aqueles que não leem. Nesse processo,
fazer algumas advertências ao leitor. Por se tratar
esclarecemos algumas questões ainda nebulosas,
de um trabalho escrito em equipe, algumas passa-
obtivemos novas informações e colocamos nos-
gens no texto podem aparecer na primeira pessoa
sas compreensões e percepções em discussão. O
do plural e outras, às vezes contíguas, na primeira
mesmo se deu com a montagem dos CDs. O re-
do singular; sem prejuízo do uso da voz passiva ou
sultado geral foi a inclusão de mais vozes e olhares
da terceira pessoa. Optamos por manter esta hete-
na construção dessa narrativa, com a consequente
rogeneidade justamente para dar conta da múltipla
apresentação de novas perspectivas de investiga-
autoria. Múltipla e diversa foi também nossa estada
ção e reflexão.
em campo e a respectiva inserção no universo das
Folias de Reis na região. Sebastião Rios conheceu Nossa chegada em Inhumas abriu também a
alguns foliões de Inhumas em Itaguari, em 2003, porta para a complexa rede de solidariedade com
e, por intermédio desses foliões - notadamente o outras folias e assim estivemos também em Ara-
embaixador Luís Carlos - acompanha as Folias de çu, Avelinópolis, Caturaí, Damolândia, Goiânia,
Reis de Inhumas desde 2006. Talita Viana esteve Itauçu, Petrolina, Santa Rosa, Trindade. Como já
pela primeira vez em Inhumas em meados de 2009, afirmado anteriormente, mesmo nesse trabalho de
passando a frequentar as Folias de Reis na cidade extensão junto a essas comunidades que já tem dez
e arredores desde então. Rannier Venâncio, estu- anos, seria impossível conhecer e interagir com
dante de Ciências Sociais, começou a acompanhar todos os grupos e foliões da região. Mas, se o tra-
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balho de campo, a pesquisa nunca têm fim, os pro- onde nasci e cresci, não tinha contato com folias
jetos têm prazo para sua finalização. O que deixa e, diferentemente da facilidade de encaixe de vo-
sempre algo de arbitrário na colocação do ponto zes dos “foliões natos”, esse aprendizado foi para
final. mim mais custoso. Repetia no violão ou na viola,
após o encerramento das funções, à noite, as vozes
Nossa forma de atuação no trabalho de campo,
das respostas e a melodia das embaixadas das to-
ainda que sem grandes delongas e aprofundamen-
adas ouvidas durante o giro daquele dia / noite. E
to teórico, merece algumas considerações metodo-
perturbava os foliões pedindo para cantarem, iso-
lógicas a respeito do que denomino “participação
ladamente, a primeira e a segunda voz de deter-
observativa”, parodiando Fals-Borda e Carlos Ro-
minadas toadas. E tentava repeti-las, pedindo que
drigues Brandão.
conferissem se estava certo. Até hoje recorro a este
É possível que a motivação primeira para a rea- expediente para aprender uma toada desconhecida
lização deste trabalho – que os autores e foliões de- ou corrigir alguma nota nas conhecidas – que já
sejam que tenha uma boa circulação e alcance um vão se tornando habituais.
público razoável – tenha sido meu próprio escla-
E qual não era minha frustração quando, depois
recimento, isto é, que tenha sido escrito, gravado
de muito esforço para aprender uma toada, sem-
e transcrito para mim – Sebastião Rios – mesmo.
pre aparecia outra desconhecida. Às vezes, conse-
Explico. Tendo me aproximado da Folia de Reis de
guia, a partir da ajuda de algum companheiro que
Inhumas na condição de produtor cultural, exten-
me mostrava a melodia da resposta, pegar a toada
sionista e pesquisador, logo comecei a participar
nova nas primeiras estrofes e continuava cantando.
dela; inicialmente, tocando viola e na sequência
Noutras ocasiões, conseguia intuitivamente encai-
tentando aprender a segunda voz da resposta. Num
xar a primeira voz entre a segunda e a terceira voz
segundo momento, passei a tentar fazer também a
dos companheiros mais experientes. Mas isso não
primeira voz.
impedia que de vez em quando precisasse, enver-
Embora conheça e aprecie a Folia de Reis desde gonhado, pedir que algum folião mais experiente
criança, vendo e ouvindo as folias que visitavam, me substituísse no cantorio. Assim, fui perceben-
todo início de janeiro, a fazenda da minha avó ma- do, na prática, o inusitado da diversidade de toa-
terna – vó Júlia –, próxima à estação do Cervo em das na região. E a minha vontade de aprendê-las,
Nepomuceno, Sul de Minas Gerais, ou a casa do somada à curiosidade a respeito de suas origens e
Zé Ponte, vizinho do meu avô paterno – vô Zezé eventual autoria, foi o estímulo e a motivação para
–, em Itapecerica, também em Minas, minha parti- encetar o projeto de extensão. Assim, se não servir
cipação como folião começa após o contato com o a mais ninguém, as gravações e a transcrição musi-
grupo de Inhumas, ainda em Itaguari. Em Brasília, cal têm pelo menos um cliente cativo…
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Minha posição no grupo, cantando na res- momentos, a partir dessa vivência, tive com os
posta, me legitimou a estar do lado do embaixa- foliões conversas mais sistemáticas e registradas
dor, tendo, por dever de ofício, de prestar muita em áudio, nas quais pude apresentar meus ques-
atenção em seus versos e botar reparo em seu tionamentos e indagações. Fora isso, o caderno
diálogo cantado e rimado com os donos das ca- de campo – às vezes o verso do talão de cheque
sas visitadas. Essa participação observativa foi ou coisa parecida – também foi paulatinamente
minha grande escola de Folia de Reis. Em outros sendo preenchido.

Tião Mineiro, Seu Vicente, Sebastião e Divino da Veinha

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Quando, em 2011, Talita começou a atuar envolvimento existencial e emotivo com a Folia,
como caixeira nos grupos, o ângulo da nossa temperado pela reflexão a respeito das observa-
observação se expandiu, porque a caixa fica na ções e balizado pelas leituras de autores que tra-
rabeira do grupo. Assim, comecei a ter acesso taram do tema. Se obtive sucesso na abordagem
ao que ocorria nas minhas costas. Sua presença cabe ao leitor avaliar.
abriu também um canal de comunicação com as
mulheres, que, embora com menor visibilidade Em um dos CDs, apresentamos o cantorio da
e modesta participação nos grupos propriamen- profecia e das funções centrais da folia. No ou-
te ditos, têm função fundamental no sistema da tro, buscamos dar uma mostra da diversidade
folia, isto é, no conjunto dos devotos que rece- das toadas de Reis na região. Foram feitas grava-
bem o grupo de cantores. ções nos giros de folia – em Damolândia, Itauçu
e Inhumas – e, de forma controlada, mas preser-
No resumo da ópera, minha dupla condição vando a espontaneidade das funções, na varan-
de folião e estudioso de folia permitiu um mo- da da chácara da d’Arc (Maria d’Arc Miguel de
vimento de aproximação e distanciamento da Castro) e do Cará (Expedito Ribeiro de Castro),
manifestação, permitindo, ao mesmo tempo, um em Inhumas.

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Folias de Reis em Inhumas – Goiás Carlos e Fernando Belarmino da Silva coordenam o
giro da Cia de Santos Reis de Inhumas, tradicional-
Sebastião Rios mente na segunda semana de dezembro. Dionízio
Talita Viana Francisco dos Santos - que tinha uma quinta voz das
mais límpidas e afinadas na região -, a partir de um
O que é uma Folia de Reis voto, levantou uma coroa que passou a girar na últi-
ma semana de dezembro, em 1980. Essa coroa passou
cerca de dez anos na família de Dona Brecholina (Bre-
Folias de Reis são cortejos religiosos populares cholina Maria Gomes) e Seu Lourenço, sob respon-
que giram – com maior frequência, mas não exclu- sabilidade deste, a partir de 1983, quando Dona Gas-
sivamente – no período do Natal (noite de 24 de de- parina, irmã de Brecholina, recebeu a coroa. Naquela
zembro) até o dia de Reis (6 de janeiro), representan- ocasião, o embaixador João Baianinho fez a passagem
do a viagem dos Reis do Oriente a Belém, para adorar da coroa para a família que, portanto, assumiu a res-
o Menino Jesus. De casa em casa, elas pedem donati- ponsabilidade de organizar a festa no ano seguinte.
vos, em dinheiro ou espécie, para fazer uma festa de Quando essa coroa saiu da família de Seu Lourenço
encerramento em homenagem a Santos Reis. e Dona Brecholina, Lazinho Bizoca (Lázaro Antonio
Em Inhumas, as Folias de Reis devem ser tra- Custódio) passou a tirar essa folia na terceira semana
tadas no plural. Embora seu fundamento e sua es- de dezembro, mantendo uma tradição que também
trutura básica tenha variação mínima e as forma- passou por sua família. Em 2013 e 2014, entretanto,
ções dos grupos tenham se misturado a ponto de esta folia foi tirada por Hélio José Mendes e será, pro-
praticamente ter se tornado a mesma turma que, vavelmente tirada por Thiago Divino de Oliveira, em
com pequenas variações de acordo com as afinida- 2015, uma vez que a festeira é sua tia.
des e disponibilidade, atende aos convites dos res-
A partir de 2013, a Folia de Reis da Inhumi-
ponsáveis e dos festeiros para ajudar nos giros, os
nha, coordenada por João Cigano (João do Carmo
diferentes embaixadores, responsáveis pela organi-
Barbosa) e Toninho (Antônio Candido Machado
zação e realização de seus respectivos giros, neles
Filho), passou a girar na última semana de dezem-
imprimem sua marca particular.
bro, contando com a ajuda do embaixador Pedri-
Divino da Veinha sai com uma folia em agosto, re- nho (Pedro Batista da Silva). Este, por sua vez, tira
colhendo donativos para um asilo de idosos, outra em sua folia, com a ajuda de João Cigano, na primeira
setembro, da família dos foliões, Pedro Beijão (Pedro semana de janeiro, em Itauçu. Zinho (José Batista
Ribeiro de Castro), Cará e Totó (João Ribeiro de Cas- dos Santos), Ronaldo e Joaquim Tomas tiram uma
tro) e mais uma, no final de novembro, cuja coroa, ge- folia da família, em julho. Didito (Benedito Alber-
ralmente, fica em sua família e gira em Inhumas. Luís to de Morais) tira uma folia em Santa Rosa, na se-
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gunda semana de dezembro. Luís Carlos e Hélio ti- A menção à comunidade é de extrema relevân-
ram a folia goiana em Itaguari, do 31 de dezembro cia, uma vez que o grupo que realiza o cantorio faz
ao 6 de janeiro. Zezé Araguarina (José Lourenço parte de um sistema mais amplo de relações e de
Neto) tira uma folia geralmente em maio. trocas, no qual se incluem os festeiros, os mora-
dores visitados e aqueles que dão os almoços e os
As folias acima referidas são todas de coroa, pousos. Os festeiros organizam, junto com o em-
ou seja, aquelas que se repetem na mesma data, baixador responsável, o giro, marcando os almo-
mudando o festeiro responsável pela sua organiza- ços e os pousos e se responsabilizando pela festa
ção. E a listagem está muito longe de ser comple- da entrega. Além desses compromissos horizontais
ta e abrangente. Fora essas, há ainda várias folias entre os homens, os devotos que recebem a Folia
de promessa, que são tiradas para cumprimento de Reis em suas casas têm também um compro-
de votos e agradecimento por graças alcançadas. misso vertical, com os Três Reis Magos. Nele está
Estas não têm um calendário fixo, dependendo da envolvido um sistema de trocas de bênçãos e entre-
disponibilidade dos embaixadores e foliões para tenimento por refeições, donativos e dinheiro para
tirá-las. Pedrinho é um dos mais disponíveis e fre- a realização da festa de entrega.
quentes na coordenação dessas folias.
A comunicação do grupo de folia com os donos
A Cia de Santos Reis de Inhumas foi criada com da casa e com os festeiros se faz por meio da mú-
a intenção de se tornar uma espécie de federação sica. Esta é, portanto, central nas funções da Folia
desses grupos de folia, girando preferencialmente de Reis e indissociável das obrigações religiosas e
nas casas dos foliões e tendo também estes como da devoção que por meio dela se expressa. Trata-
seus festeiros. A articulação dos vários grupos, en- se, assim, de uma função religiosa conduzida pela
tretanto, tem se mostrado tarefa mais difícil do que música. Neste sentido, embora presente, o prazer
o previsto por seus articuladores e a companhia, estético de ouvir e cantar, tocar e dançar é indis-
embora não tenha abandonado seu propósito ini- sociável do contexto do ritual. Os foliões são, nor-
cial, é percebida por muitos como mais um grupo malmente, bons cantores e alguns também mui-
de Folia de Reis na cidade. to bons instrumentistas. Ao apresentar os cantos
estão, porém, expressando, antes, sua devoção ou
A essa pluralidade de giros de Folia de Reis em
cumprindo uma promessa.
Inhumas acrescenta-se ainda as das cidades pró-
ximas, que contam, geralmente, com a participa- Perguntado por que largava o trabalho e a ocupa-
ção de foliões de Inhumas, compondo uma grande ção com suas coisas e seus negócios para andar três
rede de colaboração mútua e de reciprocidade es- dias com a companhia de Reis, Divino da Veinha
tabelecida entre os vários grupos e comunidades. apresenta a força dessa devoção:

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É porque é minha vida e minha paixão. O grupo é precedido pelos palhaços da compa-
Enquanto Deus me der vida e saúde e (eu) nhia, que anunciam a presença da folia e indagam ao
aguentar arrastar, eu tô junto com aque- morador se ele recebe a bandeira de Santos Reis e se
la bandeira. Então é minha paixão mesmo. aceita o cantorio. Ao chegar à casa a ser visitada, o
Num tem outra coisa que me incentiva mais grupo forma na porta de entrada ou dentro da casa,
do que isso. Graças a Deus. Porque Deus já conforme a indicação do morador, e entoa os cantos.
me deu essa missão foi pra cumprir. Pois, en- No caso do almoço e do pouso, ao se aproximar da
tão, estou dentro dela até quando Deus per- casa, o grupo forma duas fileiras encabeçadas pelos
mitir (Divino da Veinha, novembro de 2013). palhaços, se aproxima tocando uma marcha e se posi-
ciona para começar o cantorio no portão da casa.
Folia cantando para morador

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Marcha na chegada no almoço

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As narrativas presentes no cantorio têm sua fun- Mesmo situadas no texto bíblico, a que alguns
damentação em passagens bíblicas ligadas às profecias embaixadores costumeiramente recorrem, há que
do Antigo Testamento a respeito da vinda do Messias considerar, entretanto, que a fixação escrita não pode
(por exemplo, Isaías VII, 14. IX, 5 e 6. XI, 1 - 10; Jere- ser considerada a regra de transmissão dessas passa-
mias XXIII, 5 e 6. XXXIII, 15 e 16; Miquéias V, 1 - 3; gens. Em vários casos, como afirmam vários foliões,
Zacarias VI, 12 e 13. IX, 9) e do Novo Testamento so- “a leitura é pouca”. Os cantos que narram estas passa-
bre a aparição do anjo Gabriel para anunciar à Maria gens bíblicas são, assim, muitas vezes preservados e
sua concepção pelo Espírito Santo (Lucas I, 26 - 38), transmitidos de avós e pais para filhos e netos, de tios
a visita de Maria à sua prima Isabel (Lucas I, 39 - 45), para sobrinhos, numa tradição oral, sem prejuízo de,
o nascimento de Cristo (Mateus I, 18 - 25; Lucas II, em algum momento, serem fixados na forma escrita.
1 - 20) e a viagem dos Magos do Oriente para adorar A fixação escrita dos versos agrupados por temas –
o Menino Jesus na lapinha, em Belém (Mateus II, 1 - Anunciação de Maria, Viagem dos Reis etc. –, costu-
12). É possível que o nome de Reis se sobrepondo à ma ser denominada coluna ou tabela. Há que reparar,
referência aos Magos, como aparece em Mateus, seja entretanto, que o termo “coluna” pode ser usado tam-
decorrente da associação dessas passagens com os bém para versos fixos, porém memorizados. E, neste
versículos 10 e 11 do Salmo LXXI: “10 Os reis de Tár- caso, o termo se refere à fixação em si e não especi-
sis e das ilhas lhe trarão presentes, os reis da Arábia e ficamente à forma dessa fixação, que tanto pode ser
de Sabá lhe oferecerão seus dons. 11 Todos os reis hão escrita como memorizada.
de adorá-lo, hão de servi-lo todas as nações”.
Assim, trata-se, na maior parte dos casos, de can-
O intuito central do giro da folia é propagar e celebrar tos antigos, herdados e aprendidos que apresentam
estes acontecimentos. Assim, os foliões compreendem um traço cultural coletivo advindo da perda da refe-
sua atuação como uma missão de ensinar e evangelizar: rência de seus criadores com o passar do tempo. Mes-
Quando eu comecei a me interessar, eu fui procurar mo quando a autoria é perfeitamente identificável,
a Bíblia para ver. Aí que eu fui descobrir que uma prevalece a conexão estreita do talento individual e da
Companhia de Reis é um Evangelho que você sai criatividade do artista com saberes, fazeres e valores
pregando nas casas (Luís Carlos, Inhumas, 2005). da comunidade em que estão inseridos. Nesse contex-
to, o grupo de foliões e o conjunto dos moradores que
[Então,] a Folia de Reis para mim, em primeiro lu- o recebem funcionam como instância de controle e
gar, é como se fosse um Evangelho ambulante. Por- aceitação – ou rejeição – de eventuais inovações.
que eu sei que as pessoas procuram a igreja para
ouvir o Evangelho. E a Folia de Reis, ao contrário, Originários de um modo de vida rústico, estes
vai nos lares levar o Evangelho (Luís Carlos, semi- bens simbólicos criados por homens do povo, oficiais
nário, agosto de 2014) mecânicos ou lavradores, têm ligações diretas com as
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condições concretas de uma batalha dura pela sobre-
vivência. Distintamente, contudo, dos rumos de se-
cularização e racionalização tomados pela sociedade
urbana, industrial, moderna apontados por Weber
(2004), na concepção da sabedoria popular, o mundo
da necessidade está longe de ser desencantado. Al-
fredo Bosi (1992 e 2002) mostra como o realismo no
trabalho e na esfera econômica básica está associado
com a sobrevivência em um universo potencialmente
mágico, construído de acasos, azares e sortes, estan-
do sujeito à intervenção de potências malignas e be-
nignas. Nessa concepção, a abundância e a fartura no
plano material e econômico dependem diretamente
da harmonia e equilíbrio no plano espiritual. Do mes-
mo modo, a perda de um emprego, um acidente do
indivíduo ou flagelos como seca, inundação, guerra,
pragas que afetam a comunidade são sinais visíveis de
que algo não vai bem no plano das forças divinas e
espirituais. Assim, sendo o ritual da Folia de Reis vol-
tado para a promoção da bem aventurança e atração
das bênçãos do céu, na mesma medida e em sentido
inverso, ele deve esconjurar as forças malignas.
Nesta operação ritual, a bandeira de Santos Reis
ocupa lugar central e constitui meio privilegiado para
a intermediação com a ordem supramundana. Ela
é capaz de trazer as bênçãos e as graças de Deus, de
propiciar ganhos materiais e de curar enfermos. Seu
Lourenço e Dona Brecholina relatam que, em meados
da década de 1980, num dia de giro da folia cuja coroa
ficou 10 anos na família deles, uma senhora chamou
para a folia passar na casa dela. Na saída, perguntou
quantas casas faltavam até o pouso. Eram duas, mas a
senhora tinha um voto de uma filha – que tinha em
Sebastião dos Santos (Tião Bigode)
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torno de 10 anos de idade – carregar a bandeira pas- Há que considerar, entretanto, que, ainda que a
sando em três casas. Seu Lourenço falou que não ha- bandeira torne os Santos Reis presentes na casa do
veria problema, pois bastaria indagar em mais uma devoto, o ritual como um todo é mediado em diversas
casa no roteiro do pouso se receberiam a bandeira dos instâncias. Dentre elas, o embaixador, que puxa o can-
Três Reis; o que era frequente na época. O grupo saiu torio, ocupa lugar de destaque. Ele também é respon-
com a menina carregando a bandeira, ladeada pelos sável direto pela intermediação das forças sagradas.
palhaços – João Guará e Dito Grilo (pai do folião Para bem exercer sua missão, deve conjugar habilida-
Abacate – Iraídes Pereira Mendanha) e pela alferes, des musicais, capacidade de liderança e conhecimen-
Cleonice Maria Ferreira de Souza, filha de Lourenço to dos fundamentos da folia.
e D. Brecholina, então com seus nove anos de idade.
O grupo era acompanhado, ainda, da mãe da menina Outra capacidade sempre muito lembrada pelos
e Seu Lourenço e Dona Brecholina vinham próximos embaixadores em Inhumas é a intuição para perce-
a eles. Depois de passar pelas três casas, já na porta ber a situação do momento e a agilidade para criar os
do pouso, a alferes Cleonice perguntou à menina até versos na hora, no improviso. O embaixador Douglas
onde ela carregaria a bandeira, ao que a menina res- assim sintetiza o fenômeno se referindo a uma passa-
pondeu prontamente: “vou até o pouso”. Nesse mo- gem em que, no meio do cantorio para a dona de uma
mento, a mãe da menina começou a gritar, agrade- casa, ela pediu para o grupo entrar num dos quartos
cendo a Deus e aos Três Reis, chorando de emoção. da casa para cantar para seu filho, mas não deu outras
E, indagada se estava bem e o que havia acontecido, explicações. Ao entrar, o embaixador se deparou com
relatou que a filha era muda e que a graça de ela co- o rapaz deitado na cama, com os olhos fechados.
meçar a falar era justamente o motivo do pedido para Aí é o repente, né!? Aí parece que vem na memória,
levar a bandeira nas três casas. sabe, o repente. Naquele prazo da resposta e requin-
ta. Você tá com fé, concentrado. Tá com fé e já faz
os versos naquele momento rápido. Igual ele tava lá
A passagem exemplificava a importância da ban-
deitado com problema nas vistas. Aí já fiz os versos
deira no ritual da Folia de Reis. Ao receber a bandeira
pra Santa Luzia. Pra iluminar a vista dele, pra vol-
e passá-la pelos cômodos da casa, os devotos alme-
tar a vista dele… Então, é igual o Zinho falou, é o
jam receber bênçãos e purificar sua casa, limpando as
repente, né!? (Douglas, dezembro de 2013).
energias negativas. O mesmo se dá com o pedido ou
a promessa de carregar a bandeira dos Três Reis Naquele momento, apenas a senhora com a ban-
Santos. E os devotos “esperam que esses benefícios deira, o embaixador e a primeira voz da resposta pu-
venham diretamente do objeto material, por meio deram entrar no quarto, que era pequeno. Os demais
de sua presença, proximidade, visibilidade e contato” integrantes do grupo precisaram se posicionar da
(BITTER, 2010, 129). porta para fora. Terminado o cantorio, a dona da casa
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explicou, então, que o filho estava trabalhando com tem muito pouco. O que fala da Viagem dos
solda elétrica sem a devida proteção e tinha machu- Reis é muito pouco. E o resto é mais de ver os
cado o olho. outros cantar.
Essa é uma típica situação em que não cabe um (…) Duas pessoas que eu mais aprendi: uma é
verso pronto. E, de um modo geral, o cantorio é quase meu pai e outra é meu tio Joaquim. Por causa
sempre relacional, ou seja, vai depender em grande que eles sempre estavam cantando juntos. Essas
medida de como quem pegou a bandeira se porta pe- toadas de [embaixar de] dois. Aí eles cantavam e
rante o grupo. O embaixador Zinho diferencia alguns eu ia decorando.
momentos em que os versos são mais previsíveis de
outros em que, ao contrário, é mais comum serem E vai aprendendo mais. Você vai na Folia e vê o
criados na hora. cara cantando. E fala: “esse verso é bonito”. Sem-
pre aprende alguma coisa. Um embaixador can-
Tem aqueles na hora. Já [no cantorio] num arco, ta diferente. Então, o jeito de montar o verso às
a maioria você já sabe, né!? Mas, pra pedir esmo- vezes é quase o mesmo, mas uma palavrazinha
la, depende conforme o cara pega [a bandeira]. a mais diferencia o verso. Aí um dia você tá na
O jeito que a bandeira chegou. Conforme o cara Folia e lembra. Às vezes você tá num momento
tá com a família completa, ou se tá um ou dois igual o outro estava, [e pensa]: “cabe esse verso
pegando. Daí você vai fazendo… O arco, não. A aqui”. A gente vai aprendendo (Zinho, dezembro
maioria você já vai sabendo. Fala dos enfeites, de 2013).
porque tá tudo quase do mesmo jeito, né!? (Zi-
nho, dezembro de 2013).
E, indagado se é tudo na memória ou se tem versos
escritos, acrescenta: “na memória! Tem escrito não!” Como a arte de outros mestres da cultura popu-
E conclui, dando uma indicação importante sobre as lar, também o cantorio da Folia de Reis, ao mesmo
formas orais de transmissão de conhecimento: tempo em que guarda utilidade para as necessida-
des práticas da vida, revela-se misterioso ao lidar
Embaixar folia é repente. A gente canta o que com uma força transcendental. O povo reconhece
está vendo ali na frente. A gente vê e vai in- tais mestres como homens e mulheres dotados de
ventando e vai falando. Repente é um dom que força íntima e capazes de agir como intermediários
Deus dá pra gente, né!? Eu aprendi a embai- entre o semelhante e o plano do sagrado (BOSI,
xar folia mesmo de ver os outros cantar. Nun- 1992 e 2002). Daí porque a benção que o capitão
ca peguei uma cópia. Nunca peguei nada. Fui ou embaixador de folia traz – em nome dos Santos
vendo. Já li a Bíblia, umas palavrinhas, mas Reis – é tão desejada.
34
Zinho

35
Breve história da Folia de Reis passa a predominar um conteúdo sacro-religioso na
no Brasil folia, que vem a representar os próprios Reis Magos
indo adorar o Menino Jesus, no caso da Folia de Reis.
Quando, na colonização do Brasil, o cristianismo A possível origem desse deslocamento para um
europeu entrou em contato com as práticas animis- conteúdo religioso está no drama sacro encenado nas
tas da África e da América, o caráter mais sensível do igrejas de Portugal, no período do Natal, durante a
catolicismo português, com seu recurso às imagens e Idade Média. Com o tempo, esses dramas deixam de
à simbologia dos sacramentos que davam concretu- ser apresentados exclusivamente em latim e se liber-
de ao intangível, ajudou a estabelecer uma mediação tam da música litúrgica. Há também um deslocamen-
entre as crenças dos tupis e o ideário cristão. Forjan- to da ênfase do Officium Pastorum – o nascimento e
do um paralelismo um tanto precário entre os dois a chegada dos pastores à manjedoura – para o Offi-
universos religiosos e culturais, os jesuítas associaram cium Stellae, que se presta melhor à encenação dra-
os rituais tupis - cujo núcleo era o culto aos mortos - mática por ter mais personagens e ações: compreende
às potências demoníacas. Os sacerdotes combateram o anúncio cifrado aos Reis na aparição da estrela, a
as cerimônias autóctones, substituindo-as por uma viagem destes seguindo-a, o encontro com Herodes
liturgia coral e imagética que era renovada em cada em Jerusalém, a adoração do menino na manjedoura,
procissão. Além disso, apresentavam aos catecúme- a entrega dos presentes a Maria e José, o sonho revela-
nos uma legião de anjos e santos que podiam ser in- dor e a volta por outro caminho, evitando o reencon-
vocados em caso de necessidade. Santos que, de certo tro com Herodes, o que desencadeia a matança dos
modo, também são almas de mortos que intercedem inocentes (MOREYRA, 1982).
pelos vivos, o que facilitava sua adoção (BOSI, 1992). Assim, a folia e o auto religioso existentes em Por-
É neste contexto que as folias chegam ao Brasil, pela tugal perdem essas características de dança e drama
mão dos primeiros missionários. na colônia portuguesa na América, adquirindo o as-
Em Portugal, o termo folia já existia no século pecto precatório, de pedir donativos para a realização
XVI. Aparece, por exemplo, no Auto da Sibila Cas- da festa de Reis, no dia 6 de janeiro, e um curioso sis-
tema coral, com influência dos povos autóctones da
sandra, de Gil Vicente, o que é bastante indicativo da
América e dos africanos escravizados para cá trazidos.
popularidade que a folia então já teria (MOREYRA,
1982). O dicionário Houaiss dá como primeira acep- Aqui, a folia, como a música e o drama, foi usada
ção do termo uma antiga dança portuguesa movi- pelos jesuítas para a catequese. Os Padres Manoel da
mentada, ao som de pandeiro e canto; dança que é Nóbrega e José de Anchieta, por exemplo, usavam a
contemporânea do surgimento das folias no cancio- folia e outras danças nas procissões e nos autos, muitos
neiro ibérico no século XVI. Na América portuguesa, escritos na língua geral tupi-guarani. Com a consoli-
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dação da colonização, os rituais usados na catequese dade de penetração e reprodução entre as camadas
do índio disseminaram-se entre colonos portugueses, populares. Assim, as festas religiosas conduzidas por
negros escravos e mestiços de toda sorte e foram in- beatos populares, rezadores, guias de folia e benzedo-
corporados às festas dos padroeiros. Deste modo, a res terminam por constituir rituais distintos e adqui-
combinação de procissão seguida de folia tornou-se rem novas funções.
recorrente na formação das expressões da música tra-
Proibidos nos templos, os rituais da religiosidade
dicional, como a Folia de Reis, Folia do Divino, Folia
popular acabam estabelecendo-se nos locais menos
de São Sebastião, Dança de São Gonçalo.
sujeitos ao controle da Igreja: as periferias das cida-
Assim, desde suas origens, a fé e a religiosidade des, as currutelas e as capelas eretas e mantidas pelas
do povo, vindas de diferentes matrizes culturais, são comunidades rurais. Isto fez com que muitas Folias de
elementos centrais dessa manifestação cultural e reli- Reis ficassem circunscritas ao ambiente do campo, le-
giosa. Forjada em séculos de labuta no campo, de lida vando vários estudiosos a considerá-las um ritual do
com a terra, ela permaneceu em razão da fé dos foli- catolicismo rural.
ões e do pagamento de promessas dos devotos. Nesse Outro aspecto histórico na Folia de Reis e em
percurso de mais de cinco séculos, entretanto, alguns outras festas da cultura popular é o trânsito entre as
elementos implicaram mudanças significativas. Uma atividades de produção da existência material, con-
das mais relevantes foi a paulatina separação entre a substanciado na oferta de alimento, e a esfera reli-
cultura do povo e a cultura da elite, acentuada a par- giosa espiritual. Essas festas estão historicamente
tir do movimento romântico, que implicou, na longa fundamentadas num modelo de sustentação material
duração, o afastamento da instituição eclesiástica de baseado na redistribuição de riquezas. Diferentemen-
práticas rituais populares que ela mesma havia cria- te da Folia de Reis adstrita aos bairros distantes das
do, mas que já não conseguia submeter ao controle de cidades do interior ou à periferia das grandes cidades,
seus sacerdotes. Assim, esse afastamento da igreja numa situação rural mais tradicional e antiga, a festa
das formas de devoção popular – notadamente das envolvia a transferência de renda dos mais ricos, que
folias – acaba por criar um estatuto especial para a se concretizava na oferta de comida, de bebida e de
religiosidade popular. certas parcelas monetárias pelos fazendeiros que se
obrigavam ainda a receber as folias em suas casas.
A convivência do mágico com o religioso instituí-
do nas práticas da religiosidade popular, não raro com Desde o período colonial, estas formas de con-
predominância do primeiro, é vista como prática pro- tribuição estão presentes, embora o festejo fosse de
fanadora pela Igreja. Sua condenação, entretanto, traz iniciativa basicamente comunitária, estando os pode-
como consequência o estabelecimento de um sistema res oficiais quase ausentes da sua sustentação. Assim,
religioso autônomo, alternativo e com maior capaci- essa contribuição dos estratos superiores fundamen-
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tava-se em tradição secular que reforçava a festa geralmente cedido pela prefeitura – ou carrocerias
como ocasião de redistribuição de riquezas, muito de caminhão, carreta de trator, carros etc. Os foli-
comum em comunidades fechadas com estrita cir- ões passam também a voltar para suas casas após
culação monetária. A contribuição dos ricos nos as atividades de cada dia, reencontrando-se no dia
festejos populares, neste antigo contexto rural, era, seguinte. Assim, o pouso, que efetivamente signi-
pois, geralmente vista como compromisso social ficava que os foliões dormiam reunidos durante
fortemente ancorado e componente de legitimação uma semana, em varandas de casa de fazenda, num
de sua posição social (AGUIAR, 2005). paiol etc., ganha um novo sentido: o descanso da
bandeira e dos instrumentos.
Esta situação, contudo, começa a ser alterada
com a introdução do agronegócio e a consequente Também a maior circulação da manifestação
mecanização da lavoura, que acarretam um pro- em diferentes estratos sociais sofre com essa alte-
cesso de urbanização, particularmente acentuado ração e saída do meio rural, prejudicando a manu-
na década de 1970. Esse processo leva a uma gran- tenção da festa como espaço de redistribuição de
de migração do campo para as cidades, fazendo riquezas. Por outro lado, surgem outras formas de
com que as Folias de Reis reaparecessem na peri- contribuição, com fornecimento de subsídios por
feria destas. Este fenômeno leva a algumas conse- parte dos poderes públicos locais, regionais e fe-
quências na organização do ritual da Folia de Reis. derais, com motivação de fundo cultural, turístico,
O giro, que normalmente se dava no período do político e religioso. É, por exemplo, o caso dos pro-
Natal, entre 24 de dezembro e 6 de janeiro, acaba jetos que originaram este livro, que visa a divulga-
perdendo esta delimitação clara. Algumas folias ção e preservação da festa por meio de fomento de
sequer giram propriamente: são convidadas para órgãos estatais do Estado de Goiás e da União.
pagamento de promessa e apenas fazem o cantorio
na casa de alguns devotos, em um dia ou um fim de Assim, adaptada, em muitas localidades, ao
semana. Pode ser também que o grupo só se reú- ambiente urbano – ou, mais precisamente, subur-
na à noite, depois do expediente durante o dia. Ou bano –, a Folia de Reis, assim como outras celebra-
ainda cumpra parte de suas obrigações num fim de ções da cultura popular, todavia, se reproduz no
semana, pare durante a semana e as retome no fim espaço da vida familiar e comunitária, viabilizada
de semana seguinte. pela rede formada por parentes e vizinhos, geral-
mente adeptos da mesma religião. Desta forma,
Além disso, com a diminuição de moradores o festejo tem mostrado força e vitalidade para se
no meio rural, as distâncias entre uma casa e outra manter numa situação de heterogeneidade social e
aumentam, inviabilizando, em muitos casos, o giro em contato com novidades eruditas ou veiculadas
a pé. As companhias passam a girar em ônibus - pela mídia.
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Composição e disposição espacial bandeira. Usam uma farda colorida e trazem o rosto
das companhias de Reis coberto por uma máscara de aspecto normalmente
amedrontador, eventualmente com partes de couro e
dentes de animais.
Os grupos de músicos e cantores que integram as
várias companhias de Reis têm uma disposição espacial Perante o altar e o presépio, onde estão os Três Reis
própria. Esta não é muito perceptível nos deslocamentos Santos, Maria, José e o Menino Jesus, mantém a másca-
pelas ruas das cidades ou pelos caminhos na roça, mas se ra levantada. Trata-se de um momento solene da Folia
torna evidente assim que o grupo forma para dar início de Reis, quando o grupo “avista quem ele queria”. Fonte
ao cantorio em cada função, normalmente nas varan- de emanação do bem, ele não pode ser conspurcado
das ou dentro das casas ³. O alferes caminha e se posta pelo palhaço que tem um trânsito com o mal, confor-
sempre na frente do grupo, carregando a bandeira com me veremos abaixo.
a imagem dos Reis Magos. É função de grande respon- Nas visitas, eles se antecipam ao grupo e, ladeando
sabilidade, já que a bandeira constitui objeto sagrado da a bandeira, batem nos portões consultando os donos da
folia por excelência. A imagem nela estampada repre- casa para saber se estes querem receber a bandeira dos
senta, normalmente, os Três Reis em marcha ou a cena Três Reis Santos e se aceitam o cantorio. Nos arcos e em
da visita a Maria, José e o Menino Jesus na manjedoura. frente ao presépio, costumam apresentar em versos os
Da mesma forma como a estrela indicou o caminho para temas da Folia de Reis e, por isso, devem entender tanto
os Magos do Oriente, a bandeira é também denominada do fundamento da folia como o embaixador, com o qual
a guia do grupo e deve, portanto, sempre ir à frente do dividem algumas tarefas relativas à apresentação dos
mesmo, ladeada e protegida pelos dois vigias. acontecimento relativos ao nascimento do Menino Jesus
Durante o cantorio ou imediatamente após seu en- que estão sendo revividos. No agradecimento de mesa,
cerramento, o alferes recebe os donativos oferecidos os palhaços também costumam apresentar alguns versos
pelos moradores das casas visitadas. louvando a mesa e a refeição recebida, os donos da casa e
convidados. Essa performance tem relação com o papel
Os palhaços - também conhecidos na região por do palhaço na folia; assunto a que retornaremos.
vigia, pastorinho, bastião 4 - acompanham e vigiam a
No contexto da Folia de Reis, não cabe uma rígida
3. Em algumas situações especificas, vistas como excepcionais, pode acontecer de separação entre as esferas do sagrado e do profano, pre-
o grupo cantar na rua. Acontece, por exemplo, quando algum devoto encontra ca-
sualmente com um grupo de folia no percurso entre uma casa e outra e pede para valecendo, antes, uma continuidade e permeabilidade
segurar a bandeira e o grupo cantar para ele. Também quando um devoto, cuja casa entre essas dimensões. Não obstante, em momentos
ficou fora do roteiro do giro ou que, por algum motivo, não estava em casa quando a folia
passou, vem para a festa da entrega da folia e pede para pegar a bandeira imediatamente de menor solenidade, os palhaços executam danças e
antes da entrega. fazem brincadeiras entre eles e com os donos da casa,
4. O termo marungo, comum no Sul de Minas, não é corrente em Inhumas. geralmente pedindo donativos para si.
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As Folias de Reis na região de Inhumas, geral- te disse do amor. Então, você tendo amor, pensando
mente, usam dois palhaços. Sua função, origem e re- sempre em Deus, sempre em Santos Reis, então não
presentação é dos temas mais controversos na folia, existe dificuldade na situação que você encontra.
cabendo explicações distintas da parte dos foliões. Al- Você vai encontrando. A situação logo te toca o que
guns identificam a origem de suas brincadeiras com você tem que cantar. Então, a gente não pode mis-
a tarefa de retardar e desviar os soldados de Herodes, turar outros assuntos com aquele assunto da folia,
quando da matança dos inocentes. Outros, com sol- aquele assunto de Santos Reis, bíblico. Senão atra-
dados de Herodes arrependidos e convertidos. Num palha. Então, a gente vai tranquilo, porque a gente
e noutro caso, os palhaços lidam diretamente com a sabe que no momento Deus manda o que a gente
presença do mal na Folia de Reis. tem que falar. Pra mim sempre mandou (Luís Car-
los, Inhumas, 2005).
Logo atrás do alferes com a bandeira, ladeado pe-
los vigias, se posta o embaixador - também conhecido
Atrás do embaixador formam os integrantes da
como guia ou capitão. O embaixador é o responsável
resposta: segunda, primeira e terceira voz. Atrás des-
por puxar o cantorio. Para bem exercer sua missão,
ses, a requinta: quarta, quinta e sexta voz. A disposi-
deve conjugar habilidades musicais, capacidade de
ção espacial da resposta é próxima de uma meia lua
liderança e conhecimento do fundamento da folia, o
ou de um triângulo de vértice baixo, ficando a primei-
que muitas vezes se dá pela transmissão oral. Os ver-
ra voz quase de frente ao embaixador, a terceira no
sos podem ser fixos ou criados na hora. Quando são
vértice e a segunda na outra extremidade, ao lado do
fixos, seu agrupamento por tema é denominado de
embaixador.
coluna ou tabela, que tanto pode ser escrita como me-
morizada. Quando criados na hora, os versos, mais A embaixada também pode ser executada em
do que um improviso, são percebidos como de inspi- dueto. Nesse caso, o ajudante do embaixador canta os
ração divina: mesmos versos numa voz mais aguda, num intervalo
de terça. Para saber os versos que o embaixador vai
Quando você vai fazer uma visita, você chega lá
tirar, o ajudante atrasa ligeiramente sua entrada na
na casa e fica sabendo mais ou menos da situação.
frase musical. A embaixada em dueto altera ligeira-
Nesse caso não tem jeito de escrever. Isso é uma si-
mente a disposição espacial apresentada. O ajudante
tuação que acontece ali na hora. Como é que é isso?
se posiciona de frente para o embaixador, recuando
Você cria os versos. Às vezes você já tá girando há
um pouco o folião que faz a primeira voz.
algumas horas, já tá muito cansado e os versos vai
saindo tudo direitinho. De onde vem isso? Quem é Atrás da resposta, numa segunda meia lua ou tri-
que tá cantando ali naquela hora, colocando os ver- ângulo de vértice baixo, se posiciona a requinta, fican-
sos no lugar certo? Aí que vem aquela parte que eu do a sexta voz no vértice.
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Segundo Seu Lourenço, essa posição espacial em uma vez que isso envolveria uma logística complexa e
meia lua ou triangular é importante porque permite custosa. Nessa formação reduzida, Luís Carlos estava
que os cantores projetem suas vozes para um mesmo embaixando e, na resposta, na posição triangular, es-
ponto; “para as três vozes casar, enlaçar”. Isso forma távamos João Fernandes (segunda voz e violão), Seu
um fenômeno acústico interessante, que amplia os Lourenço (terceira voz e acordeão) e eu, Sebastião
harmônicos nas linhas melódicas encaixadas. No caso Rios, (primeira voz e viola). Seu Lourenço e eu está-
da quarta, da quinta e da sexta voz, que sustentam o vamos acumulando a função das vozes da requinta,
acorde de I grau de Fá maior oitavado, a projeção das fazendo também a quinta e a quarta voz, respecti-
vozes para o mesmo ponto cria um movimento as- vamente. E isso funcionou bem acusticamente, por-
cendente comparável ao de uma massa de ar quente que Maria Divina, que estava fazendo a sexta voz, se
em um tubo imaginário; o que remete às relações do posicionou no vértice do triângulo em relação a nós
cantorio da folia com a espiritualidade e a elevação dois. Assim, apesar da formação reduzida, tínhamos
ao plano do sagrado. Com isso, cria-se uma dimensão as duas meias-luas ou triângulos da resposta e da re-
superior de harmonia, que volta a incidir na qualida- quinta.
de musical do grupo. Em outra situação, numa saída de pouso em
A relação da posição espacial dos cantores com o Inhumas, em dezembro de 2013, estávamos com
encaixe das vozes é algo sabido e praticado pelos gru- dificuldade de sair para o giro em razão do núme-
pos de Folia de Reis. Em Inhumas, Seu Lourenço usou ro exíguo de foliões. Propus então a Seu Lourenço
os termos “casar” e “enlaçar” as vozes ao se referir a que saíssemos assim mesmo, por causa do adian-
este fenômeno. Ao apresentar o contexto em que sua tado da hora, e eu, que estava fazendo a primeira
explicação me foi dada, chamo a atenção do leitor para voz, faria também a quarta voz da requinta, como
o fato de que “uma bela formulação ajuda a gente a havíamos feito em Goiânia. Quando chegasse al-
aprender o que já sabia”, como diria o saudoso profes- gum companheiro que cantasse numa dessas altu-
sor Oswaldino Marques. Assim, embora já saibamos, ras, esse folião assumiria uma delas e eu continua-
a gente pode “saber mais além”, no dizer do palhaço ria fazendo a outra. Assim, começamos o cantorio
Zé Mendonça, da Folia de Reis Devotos dos Magos, para fazer a retirada da bandeira e seguir com o
de Unaí, Minas Gerais. A passagem ilustra igualmente giro, mas, apesar de a afinação estar correta, acus-
as perspectivas da “participação observante”. ticamente não soou bem e o resultado não estava
convincente. Imediatamente, Seu Lourenço, que
Em abril de 2013, havíamos feito uma apresen- estava fazendo a terceira voz, me pediu para parar
tação da Cia de Santos Reis de Inhumas num evento e assumiu a quarta voz a partir da segunda estrofe
em Goiânia. Como se tratava de uma apresentação do cantorio. Terminado o cantorio, fui – na minha
curta, preferimos não mobilizar um grupo completo, dupla condição de folião e pesquisador – pergun-
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Da direita para a esquerda: morador; Luís Carlos; André, Sebastião e Pacheco (resposta); Jorge, Seu Orlando e Maria Divina (requinta).

tar a ele porque havia assumido a quarta voz e que Na formação mais comum em Inhumas e região,
diferença faria ser ele ou eu a fazê-la. Foi aí que me a resposta repete um ou mais dos versos cantados
explicou que, na distância em que eu me encontra- pelo embaixador e a requinta sustenta as três notas
va da quinta e da sexta voz, era impossível “casar”, do acorde oitavado no final da resposta. Além des-
“enlaçar” as vozes (Lourenço, janeiro de 2014). sas, têm algumas toadas “dobradas”, em que a quarta,
Como ele estava na posição da terceira voz, bastava a quinta e a sexta voz também respondem os versos
virar o rosto ligeiramente para trás que estava for- do embaixador. Nesse caso, a formação passa a ser de
mado o segundo triângulo; com a única diferença uma fileira ombro a ombro, ligeiramente inclinada,
que a quinta voz ficou no vértice, mas isso é um com os seis integrantes posicionados no lado oposto
detalhe irrelevante, uma vez que não interfere no do embaixador. Esta fileira é organizada pela altura
fenômeno acústico em questão. das vozes, das mais graves para as mais agudas. Assim,
começa pela segunda voz 5 e segue com a primeira,
5. Embora sua denominação possa gerar alguma confusão, a segunda voz é efetiva- terceira, quarta, quinta e sexta voz. As toadas dobra-
mente a mais grave da resposta nas Folias de Reis de Inhumas. É possível que essa
denominação derive da música caipira – forte na região e no meio – em que, no
das são, hoje, entretanto, mais raras. No trabalho de
dueto, a segunda voz é a mais grave e a primeira, a mais aguda. campo, tivemos notícias de algumas toadas dobradas
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que eram cantadas na região, mas identificamos ape- mação possível é com a caixa ao lado da sanfona e
nas duas em uso e só conseguimos gravar uma delas o pandeiro ao lado da caixa.
em sua estrutura original, justamente porque os foli-
O caixeiro é o responsável pela sustentação do an-
ões da requinta já não têm o costume de “dobrar” as
damento do cantorio. Na maioria das formações dos
três primeiras vozes da resposta.
grupos de Folia de Reis em Inhumas e região há uma
Há ainda as toadas goianas, que não têm a requin- batida recorrente, que se aproxima de um padrão. Al-
ta. Sua formação é, portanto, apenas com a resposta gumas variantes, entretanto, são encontradas. Apenas
(segunda, primeira e terceira voz) na mesma posição o grupo do embaixador Divino da Veinha costuma
triangular oblíqua em relação ao embaixador. No tra- variar a batida da caixa dependendo da toada em exe-
balho de campo, identificamos duas variantes de toa- cução, contando com três batidas distintas.
da goiana e conseguimos gravar uma.
Tradicionalmente, as caixas eram feitas de forma
Vários dos foliões que cantam na resposta também artesanal pelos próprios foliões, de um tronco de ma-
são instrumentistas. Normalmente, tocam violão, vio- deira escavado, com couro esticado por cordas. Hoje,
la ou cavaquinho. O violão é hoje o instrumento mais são mais encontrados os instrumentos industrializa-
usado pelos embaixadores e pelos integrantes da res- dos, alguns mais apropriados à percussão do samba,
posta. Em seguida, vem a viola caipira (ou de arame) que não reproduzem exatamente o timbre da caixa
e o cavaquinho, com a mesma frequência. de folia tradicional. Há ainda caixas semiartesanais,
produzidas a partir de latão de leite de plástico pelo
Os instrumentos de percussão - caixa e pandei- embaixador Hélio José Mendes, que é exímio artesão
ro - e o acordeão raramente são executados pelos e fabrica também as máscaras do grupo.
integrantes da resposta. Quando isso acontece, geral-
mente é em razão de um baixo número de foliões no
momento e a conseguinte necessidade de um folião As funções de um giro de Folia
exercer mais de uma função na formação do grupo de Reis
naquela premência. Nessa circunstância, pode acon-
tecer também de o embaixador tocar simultaneamen-
te a sanfona enquanto puxa o cantorio. O giro compreende todo o período em que a folia
sai, revivendo, em cada casa visitada, a noite de ado-
Nas formações mais comuns, o sanfoneiro fica ração ao Menino Deus pelos Três Reis do Oriente e
posicionado na lateral do grupo, do mesmo lado recolhendo donativos para um banquete comum re-
do embaixador e entre os dois conjuntos da res- alizado na festa da entrega da folia, que, tradicional-
posta. A caixa e o pandeiro fecham a formação do mente, era realizada no dia 6 de janeiro. Na atualida-
grupo, posicionados atrás da requinta. Outra for- de, as folias giram em Inhumas e região praticamente
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durante o ano inteiro, respeitado o período de inter- os cantos de início do giro, inicialmente invocando a
dição da quaresma. O número de dias do giro varia de proteção do grupo, pedindo para que o giro ocorra
acordo com o grupo e se é uma folia de promessa ou em boa paz e livre de qualquer má influência e tam-
de coroa. Na região, o mais comum são giros de três e bém explicando aos festeiros e a todos os demais pre-
de seis dias, geralmente fazendo a entrega da folia na sentes o sentido da jornada que está começando. A
tarde / noite do sábado. seguir, a bandeira com a imagem dos Reis Magos, que
havia sido retirada do altar preparado para essa oca-
Em outras localidades, um giro mais extenso é mui-
sião pelos festeiros, é entregue ao alferes, que a deve
tas vezes associado à duração da viagem dos Magos do
levar sempre à frente do grupo.
Oriente até Belém. Reforçando essa associação, algu-
mas folias fazem o giro à noite, imitando os Santos Reis Durante o giro, a Folia de Reis visita os moradores
que seguiam a Estrela Guia. Este tampouco é o caso das de um determinado território definido pelo festeiro e
Folias de Reis em Inhumas, que giram durante o dia, pelo embaixador responsável, articulando sua rede de
fazendo a chegada nos pousos ao anoitecer. parentes, compadres, vizinhos, amigos. Passando de
A saída da bandeira é o primeiro ritual do giro. A casa em casa, abençoando os moradores, seus lares,
bandeira, que fica guardada em local especial na casa seus terreiros e seus bens, o grupo recolhe donativos
do responsável pela folia durante o ano, é retirada para a festa de entrega da folia, ou para alguma insti-
para o início do giro. Normalmente, a saída da ban- tuição de caridade. Mesmo sendo a visita costumeira
deira é precedida da reza de um terço, que pode ser ou já tendo sido previamente acertada, os palhaços
antecipada para a véspera para não atrasar a saída. Em sempre consultam os donos da casa se querem rece-
algumas localidades, no momento da saída da bandei- ber a bandeira dos Três Reis e se aceitam o cantorio.
ra, além da reza do terço, os instrumentos são benzi- Em caso afirmativo, pedem licença para o grupo pas-
dos pelo embaixador, por um benzedor da comunida- sar pelo portão e indagam se o morador quer receber
de ou pelo padre, mas não presenciamos esse rito em o cantorio dentro de casa ou na varanda da frente.
Inhumas. Na sequência do ritual, o grupo se reúne e
As visitas podem ser por devoção. Neste caso, o
alguns se responsabilizam por afinar os instrumentos.
cantorio tende a ser mais breve. Se houver um altar
Os responsáveis fazem uma preleção, normalmente
armado, primeiro a folia se dirige a ele e faz sua
lembrando aos foliões suas responsabilidades durante
saudação. Depois, a bandeira é retirada da frente
o giro e exortando a ordem, companheirismo e união
do altar e posicionada em frente ao morador. Nesse
e ainda, em alguns casos, restringindo ou mesmo
proibindo o uso de bebidas alcoólicas. momento, são cantadas algumas estrofes saudando
a família e invocando as bênçãos de Santos Reis
Afinados os instrumentos e definidos os foliões para aquele lar. O morador recebe a bandeira e a
que participarão do cantorio da saída, são entoados leva a todos os cômodos da casa.
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Em troca da benção que traz, o grupo pede, ge- moço e pouso denominam tanto a casa em que a folia
ralmente, uma oferta para a festa da entrega da folia encerra as atividades da manhã ou do dia quanto as
e convida os moradores para estarem presentes. Esta funções que ali ocorrem; e estão associados às paradas
parte pode ficar também a cargo dos vigias. dos Reis em seu caminho para Belém. Neles, há um
maior número de funções obrigatórias. Os palhaços
As visitas também podem ser devidas a pagamen-
pedem licença para chegar e a companhia se aproxi-
to de promessa. Ou ainda, a promessa que vinha sen-
ma da casa tocando uma marcha, organizada em duas
do cumprida no decorrer da caminhada – por exem-
fileiras. O alferes para com a bandeira tendo a imagem
plo, levar a bandeira em tantas casas ou durante tanto
voltada para os donos da casa, que aguardam em fren-
tempo – pode ser finalizada durante uma visita. Então
te ao portão aberto e enfeitado com um arco.
o embaixador irá se informar do teor da mesma, aju-
dando o devoto a cumpri-la. O grupo faz algumas evoluções acompanhando os
palhaços que encabeçam cada uma das filas. Depois,
Nas casas em que há o presépio montado, a função
é bem mais extensa. A bandeira é recebida e posicio- o grupo é formado atrás da bandeira, na disposição
nada perante o altar e os foliões entoam os cantos da espacial própria para o cantorio, que começa em se-
Anunciação de Maria, do Nascimento de Jesus e da guida. Nos arcos – que, segundo alguns, também sim-
Viagem dos Reis Magos. Este canto costuma ser fixo bolizam as paradas dos Reis –, há o revezamento entre
e conhecido como canto das 25 estrofes ou Hino do o cantorio e a declamação de versos pelos palhaços.
Nascimento. Neste momento, revive-se a visita dos Geralmente, há também um letreiro com iniciais para
Três Reis do Oriente – comumente percebido como os palhaços decifrarem a íntegra dos versos sugeri-
a entidade Santos Reis – ao Menino Deus, ali presen- dos, bem como presentes escondidos para eles entre
te na casa do devoto. As imagens de santos no altar os enfeites do arco, armados com palhas de coqueiro
também se tornam tema da cantoria, com versos qua- ou palmeira ou ainda taquaras.
se sempre improvisados. Uma parte desse cantorio Em cada arco, além do pedido de licença para en-
pode, alternativamente, ser declamado em versos por
trar e da saudação ao morador, são cantadas partes da
um ou pelos dois palhaços.
profecia ou doutrina – Anunciação de Maria, Nasci-
As refeições conjuntas realizadas no almoço e no mento de Jesus e Viagem dos Três Reis. Passando pelos
pouso são de grande relevância para a comunhão e dois arcos, a companhia chega até o altar em que está
união do grupo e definidores das regras de perten- montado o presépio e encerra o cantorio saudando o
cimento a ele. Embora abertos a quem aparecer, os altar e o presépio, eventualmente complementando
almoços e a janta servida nos pousos articulam es- ou reiterando passagens da profecia cantada nos ar-
pecialmente amigos, parentes e vizinhos numa di- cos. Para encerrar o cantorio, são feitos os pedidos de
mensão sacralizada do alimento em comunhão. Al- descanso para a bandeira e para os instrumentos, de
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um cômodo para os palhaços retirarem o fardamento importante significado para o pertencimento no gru-
e do alimento, no caso do almoço. No pouso, este pe- po. A contiguidade das comidas e bebidas com as fun-
ditório tem uma pequena variação: o agasalho para a ções religiosas – elementos que a cultura erudita, de
bandeira e os instrumentos durante a noite. viés europeizante, comumente distingue entre profa-
nos e sagrados – exemplifica a cosmologia presente na
Terminado o cantorio, é servido o almoço ou o cultura popular tradicional, que não separa cotidiano
jantar para os foliões e visitantes. Um terço obriga- de sagrado, plano físico e material do plano espiritual.
tório pode ser rezado antes ou depois do almoço, de- Assim, do mesmo modo como a presença da bandei-
pendendo da hora da chegada do grupo na casa. No ra dos Três Reis do Oriente e o cantorio canalizam as
pouso, o mais comum é a reza do terço antes da janta. bênçãos dos céus e promovem a harmonia e equilí-
Às vezes, em razão do adiantado da hora, o terço é brio no plano espiritual, a refeição ritual comunitária
adiado para a saída do pouso, no dia seguinte. Isso, conjura a abundância e a fartura no plano material e
entretanto, é evitado pelos responsáveis pelo giro econômico, numa festa em que não é pertinente aque-
e pelos donos da casa, porque deixa pendente uma la separação entre sagrado e profano.
obrigação. No giro da Companhia de Santos Reis de
Inhumas, na segunda semana de dezembro, o terço foi Além disso, as refeições comunitárias reforçam os
substituído, em 2014, por uma celebração da palavra. laços de pertencimento ao grupo na mesma medida
em que reiteram sua solidariedade e as obrigações re-
Após o terço, com as panelas postas em cima da cíprocas de ajuda entre seus membros. Nesse sentido,
mesa, os foliões se reúnem em volta dela para cantar o a mobilização de parentes, amigos, vizinhos na pre-
bendito de mesa; um canto de agradecimento a Deus paração dos almoços e da janta servida nos pousos
e ao dono da casa pela comida ali servida. No almo- lembra os antigos mutirões dos bairros rurais (CAN-
ço, o agradecimento costuma ser feito após a refeição. DIDO, 1988). A esse respeito, cabe lembrar ainda a
No pouso, antes de jantar. Nesse canto são louvados e etimologia mais aceita para o termo “companheiro”:
abençoados também serventes e cozinheiras, agrade- derivado da expressão latina cum panis, em que cum é
cendo seu trabalho. a preposição “com” e panis é o substantivo masculino
No pouso, especialmente, os foliões são recebidos “pão”. O termo tem o sentido original de participantes
com muita fartura, mesmo que a casa seja humilde e do mesmo pão estendido à ideia de uma convivência
os donos de poucas posses, uma vez que contam com íntima e profunda, que pode envolver inclusive laços
ajuda de amigos, parentes, vizinhos. matrimoniais. Assim, a participação nessas refeições
marca tanto os companheiros de jornada e de missão,
Isto já diz muito sobre as cosmologias que orien- que são os foliões integrantes do grupo de cantorio,
tam a festa e explicam a importância das funções ri- como os companheiros de devoção, ou seja o conjun-
tuais compostas por grandes refeições coletivas, com to dos devotos que recebem o grupo durante o giro.
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O clima do pouso costuma ser de festa, com músi- Encerrando o giro, o grupo de foliões é recebido
ca mecânica sendo executada quando não está acon- pelos festeiros no local onde será realizada a festa de
tecendo o cantorio. Os cantos de diversão – encon- entrega da bandeira com uma grande ceia comuni-
tradiços em algumas localidades após a desobriga das tária. Dois arcos são montados da mesma forma que
funções devocionais – entretanto, são mais raros nas nos pousos. E o cantorio se encerra em frente ao altar
Folias de Reis em Inhumas. Isso porque alguns embai- com a entrega da folia e a passagem das coroas para
xadores preferem não misturar cantos profanos com os festeiros do ano seguinte. Após a entrega e a pas-
o cantorio de Reis e também porque, após o jantar, sagem das coroas, é realizada a ceia para os foliões e
a maioria dos foliões prefere ir para casa e descansar visitantes, ao que se segue uma festa que pode con-
para retomar a jornada no outro dia cedo, ou ir para tar com apresentação musical e um pagode – termo
o trabalho 6. Assim, nos casos em que os responsáveis que no linguajar interiorano, predominante no meio,
admitem os cantos de diversão nos intervalos das fun- equivale a baile. No caso da Cia de Santos Reis, antes
ções devocionais, eles acabam sendo mais frequentes do jantar é celebrada uma missa, na festa da entrega.
durante o dia. E trata-se, no mais das vezes, da exe-
cução do repertório do universo musical caipira. Na
folia comandada pelo embaixador João Cigano, even- A Folia de Reis como sistema de
tualmente de um catira executado pelo próprio e por relações sociais
sua filha, Luana dos Santos Barbosa.
Acompanhando a Folia de Reis em Inhumas des- Os foliões que participam diretamente do cantorio
de 2006, apenas no final de 2013 vivenciei um pouso em seus vários papéis e posições constituem apenas
no sentido original do termo. E isso porque o gru- uma das partes de um sistema de relações e de trocas
po do embaixador Divino da Veinha estava, excep- mais amplo, que compreende também os devotos – os
cionalmente, girando no Souza, área rural de Da- festeiros, os moradores visitados e aqueles que dão os
molândia, o que inviabilizava o retorno dos foliões almoços e os pousos. Os festeiros são o casal que re-
para casa. Para além desta ocasião, não tive sequer cebe a coroa, no final de um giro, com a incumbência
referências de memória de outros tempos em que os de organizar, junto com os responsáveis pelo grupo
foliões só regressavam a suas casas depois da entrega de Folia de Reis, o giro do ano seguinte. Para tanto,
da bandeira, permanecendo reunidos durante todo o mobilizam amigos, parentes, compadres e comadres,
giro e efetivamente pousando na última casa em que vizinhos. São eles que mobilizam sua rede de relações
chegavam a cada noite. para pedir e marcar os almoços e os pousos que serão
oferecidos para o grupo durante o giro. Os festeiros se
6. As Folias de Reis em Inhumas e região contam com um número maior de foliões a partir
comprometem igualmente a fazer a festa da entrega.
das 17 horas, em razão de alguns só poderem se integrar ao grupo após o expediente. Assim, no cantorio, é comum os donativos serem
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pedidos de casa em casa para ajudar os festeiros a tado, na cabeça dos novos festeiros, ela consegue
cumprir sua missão. ver a coroa verdadeira que, vindo do céu, pousa
na cabeça dos novos festeiros. Assim, ela percebe,
Dona Brecholina, que tem o dom da visão dado antes da definição pública, as cabeças que serão
pelo Divino Espírito Santo, afirma que a escolha coroadas para o ano seguinte. Segundo ela, esse
dos festeiros vem do alto e que, antes de os palha- dom foi desenvolvido junto aos Servos de Deus da
ços colocarem a coroa simbólica, de papel enfei- Renovação Carismática.
Divino da Veinha e Dona Divina recebendo a coroa

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Os festeiros, os moradores das casas visitadas, os conhecida como Fia, por exemplo, é a alferes da
donos dos almoços e dos pousos, ao estabelecerem Cia de Santos Reis de Inhumas. Em outros giros,
uma relação de compromisso com a Folia de Reis, se faz a sexta voz e toca o pandeiro. Mas também
comprometem no mesmo ato com os próprios Reis pode estar fora do cantorio quando outros grupos
Magos, além de outros santos (BITTER, 2010), muitas vão almoçar ou pousar em sua casa, o que ocorre
vezes por meio de uma promessa. Assim, o giro da Fo- com frequência. Néia (Lucineia Ruiz Fontana) atua
lia de Reis amalgama uma extensa rede de reciprocida- muitas vezes como alferes, mas também pode estar
des, de obrigações mútuas em que são trocados servi- na organização de um almoço ou em funções de
ços religiosos, gentilezas, refeições, dinheiro, bênçãos, coordenação de um giro. O mesmo vale para d’Arc
entretenimento. Esta rede de reciprocidade perpassa ou Dona Brecholina, que ajudam com frequência
diversos aspectos da realidade (econômico, estético, nos almoços e jantas, mas que foram, em várias
moral, religioso) e envolve trocas em dois planos: entre ocasiões, festeiras ao lado de seus esposos.
os homens e mulheres, especificamente entre o grupo
de Folia de Reis e os devotos visitados; e trocas entre es- No giro da folia, revive-se a viagem dos Três Reis
tes (grupo de folia e devotos visitados) e as divindades. do Oriente para visitar o Menino Deus, com todas as
Com relação às últimas, releva notar, conforme a in- suas peripécias e vicissitudes. Como todo o ritual é
dicação de Mauss (2003), que constitui um sistema de vinculado à narrativa bíblica das circunstâncias do
trocas em que participam tanto deuses como homens e nascimento de Jesus, a presença do mal é uma cons-
mulheres, com benefícios mútuos e recíprocos. tante, ainda que não manifestado em algum empeci-
lho ou desventura. E não poderia ser diferente, uma
O sistema da Folia de Reis cria, assim, formas de vez que “quando foi na marcha dos Três Reis”, confor-
sociabilidade fundadas em fortes laços de solidarie- me a feliz expressão do palhaço Waldacir, da Folia de
dade, envolvendo parentes, amigos, vizinhos e, ge- Reis de Unaí, Minas Gerias, eles tiveram que passar
ralmente, adeptos de uma mesma religião. O giro da pela cidade do Rei Herodes que, ao saber do nasci-
Folia de Reis envolve uma série de funções que con- mento do Rei Messias, decide encontrá-lo e matá-lo.
vergem para a produção do comprometimento recí-
proco e para o estabelecimento de vínculos morais A necessidade de evitar o mal também está ins-
duradouros entre os participantes. Aqui releva notar, crita na própria narrativa que origina a Folia de Reis.
que, embora não de todo ausente das funções musi- Avisados em sonho profético que o Menino que eles
cais nos grupos, a presença das mulheres é mais sig- foram adorar é alvo do desejo de destruição por parte
nificativa no sistema da Folia de Reis; sem prejuízo do rei Herodes e seus soldados, os Reis Magos fazem
do fato de que aquelas que atuam no grupo do can- um caminho de volta diferente, evitando o encontro
torio, em outros momentos, poderem estar em uma com Herodes. Assim, o episódio que celebra o nas-
função diferente. Maria Divina Dias Gouvea, mais cimento do Menino Deus, que veio para nosso bem,
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também chama atenção para a necessidade de se li- doutrina. A vela acesa, a luz da estrela que guiou os
vrar do mal 7. O episódio fundamenta também a in- Três Reis Magos. E a ferradura, seria uma metonímia
terdição de cruzar a bandeira no giro, uma vez que do burrinho que, puxado pelo cabresto por São José,
isso implicaria em passar, em algum momento, pelo levou Maria e o Menino Jesus na fuga para o Egito,
mesmo caminho da ida. escapando da perseguição de Herodes. Havia, entre-
tanto, segundo o relato de João Cigano, certa maldade
No espaço do ritual, os foliões lidam com as forças
da parte do dono do almoço, que estava experimen-
da desordem e do caos e buscam, por meio da ins-
tando o embaixador. Sustentado em sua fé e atento a
tauração da ordem e do cosmos promovida pela Folia
sua intuição, João Cigano rodeou a “casca de banana”
de Reis, a preservação ou restauração da bem-aven-
jogada no seu caminho e contornou a maldade.
turança. Além de uma ideia abstrata, a maldade pode
se materializar na inveja, na intriga e em outras forças Ao mencionar o fato, João Cigano faz referência
de desintegração, que estão na própria etimologia do ao embaixador João Pedro Carvalhaes, com quem ele
termo diabólico: o que desune. As forças diabólicas se iniciou na Folia de Reis da Inhuminha. Segundo
devem ser evitadas e/ou neutralizadas. Esse é o papel ele, o povo comentava que o embaixador João Pedro
do embaixador e do palhaço, que são as figuras que li- sabia amarrar uma folia, tendo trazido suas concep-
dam diretamente com o mal na Folia de Reis. Não por ções de Folia de Reis – juntamente com algumas to-
acaso, os primeiros versos para a saída da folia ou para adas – de Jacuí, no Sul de Minas Gerais. Assim, para
o primeiro cantorio do dia pelo embaixador fazem o evitar embaraços no giro, esse embaixador tinha suas
pedido de benção e proteção e “pra livrar do mal que defesas: só cruzar a bandeira por necessidade; cantar
envém”. Assim, o embaixador deve ser capaz de “rode- para falecido de joelho, sem sanfona, pandeiro e cai-
ar” ou neutralizar as forças malignas, “pegando” com xa; e para sair com a folia ou retomar o giro a cada
Santos Reis e protegendo todo o grupo. manhã, “empelotava” os foliões e dava três voltas com
João Cigano relatou que, numa chegada em um a bandeira em torno do grupo, que depois a beijava 8
almoço, quando ainda era um embaixador pouco (caderno de campo, dezembro de 2013).
experiente, foi recebido por um morador portando Com relação a essa capacidade de o embaixador
uma ferradura, a Bíblia e uma vela acesa. Cumpria clarear a situação e livrar o grupo de algum embara-
a ele, cantando, fazer referência a cada um daqueles ço, presenciamos uma cena muito reveladora durante
símbolos. Segundo o mesmo, a Bíblia representaria a o giro da Cia de Santos Reis, em dezembro de 2013.
7. Voltada em princípio para a proteção do mal que vem de fora, a fórmula abrange, A folia havia chegado na casa de Fernando, ex-semi-
todavia, também o que pode estar nos próprios corações dos foliões: nas tentações narista, folião e embaixador e um dos coordenadores
a que estão submetidos, nas vaidades, no eventual desprezo a algum companheiro.
da Companhia. Estava embaixando o Padre Edmilson
8. Esse último ritual é em tudo semelhante ao que é feito pelo capitão Domingos
David, da Folia de Reis de Unaí - MG. Cf. DVD “A marcha dos Três Reis”, 2011. Luiz de Almeida, folião e Reitor do Seminário Maior
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de Anápolis. A pedido dos donos da casa, fora feita Reis. Igual o Domingos falou, “se você achar, você
a leitura da passagem do Evangelho de Mateus rela- volta pra me avisar, porque eu também quero visi-
tiva à Viagem dos Magos do Oriente e a Cia cantou no tar.” E ele não queria visitar. Ele queria matar, que-
presépio que estava montado e também para o dono da ria destruir o menino Jesus. Então, o palhaço envol-
casa. Após um pequeno descanso e um café, na hora da veu ele enquanto os Três Reis distanciavam. Até que
retirada da bandeira, Fernando assumiu a embaixada e quando ele [Herodes] chegou lá, Maria, São José e o
pediu ao Padre Edmilson que levantasse a bandeira do Menino Jesus já tinham levantado e fugido (DVD A
altar, pois queria fazer-lhe uma homenagem. Algo acon- marcha dos Três Reis, 2011).
teceu, entretanto, e Fernando perdeu o fio da meada, não
conseguia alinhavar os versos e dar seguimento ao canto- O mito organiza o rito. As forças benéficas lhe são
rio. Concentrado e com muita calma, o Padre Edmilson inerentes tanto quanto as maléficas. Elas ocupam, entre-
passou a bandeira três vezes por cima do embaixador e tanto, posições diferentes. E as regras, obrigações e proi-
do grupo, que reencontrou o rumo e pôde fazer a retirada bições – sem desconsiderar eventuais transgressões – de-
da bandeira e seguir para a entrega da folia. marcam limites e diferenciam os respectivos papéis dos
foliões; delimitação e diferenciação ligadas a uma mora-
Essa passagem mostra a importância da atuação lidade das ações (BITTER, 2010). Como o ritual, toda-
do embaixador na promoção da bem aventurança via, precisa, simultaneamente, reunir as forças benéficas
e na atração das bênçãos do céu, na mesma medida e maléficas para poder, então, separá-las adequadamente
em que, em sentido inverso, ele deve evitar ou con- – promovendo as primeiras e amansando ou evitando as
sertar algum “atrapalho” que suceda ao grupo. Perce- segundas, – esta fronteira se torna fluida e permeável e,
bemos, ainda, o poder da bandeira nesta restauração notadamente, os papéis do capitão e do palhaço, comple-
da ordem. Ao palhaço, entretanto, compete estabele- mentares e, em alguma medida, reversíveis.
cer uma relação direta, face a face, com o mal; que é
Deste modo, prevalece na Folia de Reis uma tendên-
constitutivo e está na própria origem da Folia de Reis.
cia a atenuar e tornar comunicáveis, dentro de certos li-
Essa acepção não é tão explicitamente marcada nas
mites, as polaridades do bem e do mal, do alto e do baixo,
Folias de Reis de Inhumas e região, embora apareça
do sagrado e do profano. O palhaço é, nela, a figura mais
subentendida em várias formulações dos foliões. Uma
vulnerável, já que lida de forma mais direta com potências
formulação explícita, por exemplo, comparece na ex-
perigosas. Por isso mesmo, está submetido a um maior
plicação da origem do palhaço e de suas funções na
número de regras e interdições. Com a máscara no rosto,
folia apresentada pelo palhaço Waldacir Martins de
ele não deve se aproximar do presépio, já que a própria
Melo, da Folia de Reis de Unaí - MG:
aparência grotesca da máscara refere-se simbolicamente
O palhaço foi unicamente uma ajuda que impedis- a seres maléficos. Esta mesma aparência grotesca, às vezes
se que o Herodes acompanhasse a marcha dos Três monstruosa, visa, por outro lado, afugentar as potências
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Nenzinho benzendo o grupo com a bandeira

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negativas. Assim, a máscara é veneno que, devidamente sua heterogeneidade. Embora boa parte dos foliões
controlado e amansado, converte-se em antídoto. da resposta e da requinta seja comum a diversas for-
mações e muitos embaixadores ajudem no giro de
O palhaço é a figura por excelência que realiza o outros, a concepção da Folia de Reis que predomina
trânsito entre o bem e o mal, o alto e o baixo, o divi- em cada uma das formações é a do embaixador res-
no e o diabólico na Folia de Reis. Mas o embaixador ponsável por aquele grupo ou por aquele giro. E en-
também precisa ter competência para exorcizar o mal. tre um embaixador e outro encontramos, ao lado de
Ainda que seu lugar e papel na folia seja o do bem, ele um substrato comum, diferenças consideráveis nessa
precisa, para melhor combater, conhecer e, portanto, concepção. A principal delas parece ser a relativa ao
conviver de alguma forma com o mal, inclusive o pró- vínculo com a oralidade.
prio. A esse respeito é interessante a formulação do ca-
pitão Dominguinho, da Folia de Reis Devotos dos Ma- O pertencimento a uma tradição oral e suas for-
gos, de Unaí, Minas Gerais. Ao explicar seus rituais de mas de transmissão de conhecimento tem implica-
proteção contra o mal, ele inclui “tirar as tentações da ções para além de um grau maior ou menor de in-
gente”, assumindo que o mal pode vir dele mesmo e dos corporação de elementos escritos. Ele se reflete num
demais foliões, rejeitando qualquer forma de manique- maior apego à tradição ou, ao contrário, numa maior
ísmo. Afinal, trata-se de uma festa de homens e mulhe- abertura às inovações na folia. Ele se mostra presente
res, neste mundo, e não de uma reunião de santos no igualmente no desejo de manter a Folia de Reis em seus
céu. As posições do embaixador e do palhaço, embora espaços tradicionais ou no desejo de também levar a
axialmente opostas, são, portanto, complementares e Folia de Reis para participação em eventos externos
em grande medida reversíveis, devendo o palhaço en- e encontros de Folias de Reis, que incluem, normal-
tender das profecias e do fundamento tanto quanto o mente, apresentações de palco com sonorização. Este
embaixador e poder dizer em verso o que aquele diz último quesito implica ainda a maior abertura para o
cantando; do mesmo modo como o capitão deve saber registro do cantorio em suportes como CDs e DVDs,
suprir, pelo cantorio, eventuais lacunas ou falhas do pa- abrindo um diálogo da tradição com a modernidade
lhaço na chegada de uma casa. e as inovações tecnológicas e, eventualmente, com o
mercado fonográfico.

Especificidades da Folia de Reis As diferentes concepções de Folia de Reis se mos-


traram, como era de se esperar, bastante evidentes nas
em Inhumas, Goiás
gravações controladas das oito formações distintas re-
gistradas. Essa discussão será retomada e aprofunda-
O primeiro elemento a ser destacado na caracte- da no capítulo cinco. Por ora, basta adiantar que, em-
rização da Folia de Reis em Inhumas é, como vimos, bora algumas categorias analíticas como oralidade e
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Zé Galdino (Miraci Rosa Lino)


escrita, tradição e modernidade sejam perfeitamente A atuação de Fernando na coordenação da Cia
aplicáveis para o melhor entendimento do fenômeno, de Santos Reis de Inhumas também é bastante re-
elas são fluidas e permeáveis, sendo contraproducente veladora da convivência de valores tradicionais e
tentar estabelecer uma separação rígida e estanque. modernos. Fernando é um dos embaixadores mais
novos em atuação em Inhumas. Ele tem extremo
Assim, por exemplo, cruzar a bandeira no giro é zelo em fazer um giro bonito, sem fatos que pos-
um tabu para certos capitães, porque, em sua concep- sam denegrir a imagem da Folia de Reis. E nesses
ção, isso fere a tradição e confronta com o mito que termos ele realiza uma ação no sentido de manu-
organiza o rito: a passagem bíblica do sonho proféti- tenção da tradição. Um dos seus esforços é a res-
co para os Magos do Oriente voltarem por outro ca- trição do consumo de bebidas alcoólicas durante o
minho, evitando o reencontro com Herodes. Outros giro, que é uma prática tradicional que ele combate
capitães respeitam a regra apenas para não ofender ferrenhamente; e com sucesso. Da mesma forma,
a sensibilidade dos primeiros, mas no fundo consi- introduziu a celebração da palavra em substituição
deram isso um tabu cuja não observância não teria à reza do terço nos pousos, durante o giro em 2014,
qualquer implicação deletéria para os foliões ou para o que configura também uma inovação. Tal ino-
a tradição, que todos querem manter. vação, entretanto, busca atrair outros católicos aos
Outro quesito que corrobora a fluidez dessas pousos e, nesse sentido, é uma forma de difundir a
fronteiras é o fato de que algumas toadas chegaram tradição para círculos antes distantes dela.
em Inhumas por meio de programas de rádio, LPs, Olhando por esse ângulo, este livro também se
CDs e DVDs, ou seja, pelos meios modernos de co- insere num movimento de inovação que visa a ma-
municação. Parte delas são, entretanto, toadas tradi- nutenção da festa, buscando garantir a continuidade
cionais; moderno foi apenas o meio de sua difusão. da tradição. Assim, oralidade / escrita, modernidade
Além disso, a partir desses processos modernos de / tradição, inovação / manutenção devem ser enten-
difusão, algumas toadas de autoria conhecida foram didas como categorias analíticas não reducionistas e
incorporadas há tanto tempo que já vão se tornando não estanques. Elas devem ajudar a dar conta da com-
tradicionais. No mesmo sentido, boa parte dos em- plexidade do fenômeno, de seu movimento no tem-
baixadores na região convivem hoje com novidades po e no espaço e do fato de que um embaixador em
como apresentações de palco sonorizadas em encon- um quesito pode estar alinhado em um polo e, noutro
tros de folia e outros eventos. E, embora, haja certa quesito, num polo diferente; o que poderia ser visto,
adaptação para essas oportunidades, como a exten- de fora, como incoerente, mas que guarda enorme co-
são do cantorio, a disposição do grupo no palco etc., erência interna. Seu Lourenço, por exemplo, é ao mes-
nem por isso eles mudam seus rituais quando estão mo tempo dos mais ligados à oralidade e suas formas
cumprindo um giro. de transmissão de conhecimento e dos mais presentes
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Fernando

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nas missas e demais rituais da igreja, que pertencem à co anos, atuou nas duas funções, até deixar definitiva-
tradição escrita da cultura erudita. mente a farda há uns 20 anos. Seu relato a respeito da
complementaridade das duas funções e da relação de
Essa maleabilidade - e, no extremo, reversibili- confiança necessária entre o embaixador e o palhaço
dade - entre os termos guarda relação com a própria – relação muitas vezes forjada no processo de forma-
formação flexível e intercambiável dos grupos. Cada ção dos foliões – é deveras esclarecedor:
um dos grupos de Folia de Reis da região tem uma
autonomia apenas relativa, pois dependem em algu- Igual andava Seu João, Seu Dimas, os outros aí.
ma medida do reforço de foliões às vezes mais iden- Então, eles gostavam mais de eu na farda. Eles gos-
tificados com outros embaixadores ou grupos para tavam que eu chegasse no pouso, assim, num trem
viabilizar seus giros. Com relação a essa participação mais [importante]. O pastorinho, sendo bom, ele
de alguns foliões em mais de um grupo ou formação, ajuda muito. Ele adianta bastante para o embaixa-
cumpre acrescentar que isso é mais frequente entre os dor. Então, muitas coisas ele resolve. Palhaço tem de
cantores da resposta e da requinta e mesmo entre os saber mais do que o embaixador. Porque tem coisa
embaixadores. E menos frequente entre sanfoneiros, que o embaixador sabe e ele não sabe e vice-versa.
palhaços, caixeiros e pandeiristas; nesta ordem.
Uma feita, finado Seu Dimas [cantando] de embai-
Não obstante essa diferença de concepção sobre a xador, ele engasgou com uns trem lá. Aí ele chamou
Folia de Reis apresentada, alguns ou vários aspectos eu lá. Era um centro lá. O cara parou ele lá dentro e
são comuns às trajetórias dos grupos e dos foliões. A ele embananou e mandou me chamar. [Cheguei lá,
complementaridade entre o palhaço e o embaixador tinha] santo para todo lado. Nem não entendi aqui-
é um desses aspectos. Ela é constitutiva do processo lo, não. Vai passar apuro pra lá. Mas Deus deu po-
de formação da maioria dos embaixadores em atua- der para mim e eu cheguei lá e risquei uma mão de
ção na região. Quase todos passaram pela farda antes cá. Fui embora para lá, falando. E já tirei a bandei-
de começar a embaixar. Alguns mantiveram as duas ra. E o cara saiu pra fora e falou [pro Seu Dimas]:
atividades por um período. E, quando o grupo quer “Rapaz, você tem que dar graças a Deus por esse
fazer uma chegada de almoço ou de pouso com uma cara, senão vocês não ia sair fácil daqui, não. Vocês
atuação impecável dos vigias, se não houver um pa- iam enrolar um bocado de hora aqui” (Pedrinho,
lhaço experiente no momento, alguns embaixadores junho de 2014).
costumam reassumir a antiga função.
Pedrinho lembra que o embaixador Dimas de-
O embaixador Pedrinho, por exemplo, tem 64 pois se deu conta de que não havia aberto o canto-
anos de idade e 50 anos de Folia de Reis. Começou rio pedindo licença ao pai de santo, dono do ter-
vestindo farda de palhaço. E, nos últimos 25 anos, reiro, para cantar lá dentro. E por isso havia ficado
tem atuado como embaixador. Durante cerca de cin- agarrado. E conclui:
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Seu Dimas, coitado, embananou. Ele, sabido, em- uma conversa com seu cunhado e compadre Dé, em-
bananou lá dentro. E ele era benzedor. Ele falava: baixador já falecido, pai do Zinho:
— Pedrinho, eu tiro o chapéu para você. Fora de Na época eu tomava umas pinguinhas e ele falou
brincadeira. para mim:
A mulher dele, dona Abadia, até hoje, fala: — Compadre se você não estiver bebendo pinga, eu
não tenho medo de encontrar com folia em lugar
— Rapaz, você, sei não!? Você é muito entendido.
nenhum. Se você estiver sadio, né?
Eu disse:
Ele pensava da pinga. Mas eu falei:
— Deus dá muita força. Na hora o repertório vem.
— Compadre Dé, mas não estorva…
Tem que ter paciência. Tem que ter humildade. E
— Não. Se você estiver sem a pinga. [Senão] tenho
vamos embora. O que vier na frente, eu vou falan-
medo na hora que encontrar qualquer folia, qual-
do. O que der certo, né!? Depois, o Dimas pegou
quer coisa… Se estiver normal [é diferente]. [Ago-
uma confiança comigo, moço do céu! Falava que
ra mudou]. Igual nós vai em Trindade, que nós faz
toda folia que ele ia tirar, tinha de me levar. Ele ia
encontro lá. Todo mundo fica abismado. Chorou os
lá na roça. Eu tava roçando pasto, ele ia lá atrás de
mim (Pedrinho, junho de 2014). embaixador de lá, né!? Mas [isso] vem com a hu-
mildade da gente. [A gente] trata todo mundo bem.
Na sequência de seu depoimento, Pedrinho toca Eles achou bom demais. Aí já virou foi saudação
em duas mudanças relevantes para a configuração mesmo. Nós vai lá, encontra um com o outro, saúda
atual da Folia de Reis em Inhumas: o maior contato o outro e tal.
entre os grupos de folia na cidade e na região e um
aumento da restrição ao uso de bebidas alcoólicas pe- Todo ano eles quer que nós vai na chegada lá na
los foliões. Com relação ao primeiro quesito, as for- igrejinha de Santos Reis. A deles lá, eles sempre faz
mações dos grupos de Folia de Reis em Inhumas se depois do dia 6. Que aí termina a nossa. O embai-
misturaram a ponto de praticamente ter se tornado a xador João Gueroba é amigo demais da gente, [e
mesma turma que, com pequenas variações de acordo sempre fala]:
com as afinidades e disponibilidade, atende aos con- — Pedrinho, tem que vir. Tem que trazer a turma.
vites dos embaixadores responsáveis e dos festeiros
para ajudar nos giros. Mas a situação anterior era de Aí eles faz a festa na igrejinha e nós faz o encontro.
maior separação e desconfiança entre os grupos. É o Dali do encontro, vai todo mundo para a igreja. Eu
que se depreende da fala de Pedrinho, se referindo a faço a minha chegada. Ele faz a dele. Depois sai a

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procissão. Aí, de distância em distância, um canta derado ajudava a suportar longos trajetos a pé, muitas
um pouco na procissão (Pedrinho, junho de 2014). vezes à noite e debaixo de chuva.
Esses fluxos entre as folias, advindos da maior Novamente, nesse quesito a situação tampouco
circulação e do aumento do contato entre os grupos pode ser avaliada em termos gerais, uma vez que há
é, em termos históricos, recente. Antes, os territó- uma grande diferença na forma de tratar o tema pelos
rios eram mais delimitados e os grupos mais repar- diferentes embaixadores responsáveis pelos grupos.
tidos. Isso não implica, entretanto, que não havia Tirante um ou outro grupo – amplamente minoritá-
a circulação. Apenas ela era mais delimitada e cir- rios – em que não há qualquer restrição, percebe-se
cunscrita. Um grupo – relativamente fechado – que uma gradação que vai da menor à maior restrição,
tivesse um parente, amigo ou folião seu em outra lo- chegando à proibição absoluta – que não impede,
calidade, para ali se deslocava no intuito de ajudar aliás, eventuais transgressões, que precisam, entre-
naquele giro especificamente. A novidade, então, é tanto, ser discretas.
uma circulação mais indiscriminada. Com relação O maior argumento dos que praticam as restrições
a Inhumas, isso compreende andanças por Araçu, mais severas é que alguns bons foliões teriam deixado de
Avelinópolis, Caturaí, Damolândia, Goiânia, Goia- girar por causa do uso da cachaça pelos companheiros,
nira, Itaguari, Itauçu, Petrolina, Santa Rosa, Taqua- assim como algumas pessoas que recebiam a folia e da-
ral, Trindade. Tanto nas sedes dos municípios como vam um almoço ou um pouso teriam deixado de fazê-lo,
nos distritos e nas áreas rurais. avaliando que nos grupos teriam muitos bêbados. Segun-
O segundo aspecto mencionado pelo embaixador do Fernando, apreciador de uma boa cachacinha fora da
Pedrinho diz respeito às crescentes restrições ao uso folia e um dos maiores paladinos da restrição,
de bebidas alcoólicas pelos foliões. Trata-se de mudar hoje, em comparação a dez, quinze anos atrás, mu-
a imagem da Folia de Reis, às vezes – não raro, erro- dou não foi só 100%, não, mas 200%. Hoje, nós vamos
neamente – associada ao uso indiscriminado da ca- numa folia, tem alguma pessoa que bebe. Mas, dois ou
chaça e à bebedeira. Numa situação mais tradicional, três foliões, no máximo. Porque hoje está até difícil de
um meirinho costumava levar a pinga numa capanga arrumar folião pra tirar folia, né!? E, antigamente, era
e distribuía apenas em alguns momentos e sob autori- a maioria [que bebia]. Então, esse fato mudou, mas
zação do capitão ou do gerente. Também era de praxe parece que a fama acompanhou. Aí a minha preocu-
o dono da casa visitada consultar o responsável antes pação é como mudar a mentalidade desse povo. Hoje,
de oferecer ao grupo. Em Itapecerica, Minas Gerais – por mais que uma pessoa veja um grupo em que todos
que exportou alguns foliões para a região de Inhumas estão sãos, não tem ninguém bebendo, não tem cacha-
– é comum o uso ritual da cachaça misturada com er- ça, ainda assim as pessoas falam: “aquela folia só tinha
vas para proteção espiritual. Além disso, seu uso mo- bêbado” (Fernando, maio de 2014).
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Há que acrescentar ainda a esse relato que, na aos rumos mais gerais da sociedade, que têm impli-
Folia de Reis de Inhumas – e nisso ela não se di- cações na manutenção das expressões da cultura po-
fere de outras que conheço –, existe um número pular em todo o país e mesmo mundo afora. Mesmo
preponderante de foliões que largaram a bebida há com essas dificuldades mencionadas, Inhumas cons-
muito tempo. Levando isso em conta, na condição titui um grande polo da Folia de Reis na região, com
de organizador da Cia de Santos Reis, Fernando se participação significativa de seus foliões nas folias dos
esforça para, durante o giro, mudar a mentalidade municípios vizinhos. Há que considerar, neste aspec-
daquelas pessoas que antigamente recebiam a folia, to, que isso é devido, em parte, ao fato de Inhumas
davam almoço, davam pouso e que hoje já não es- ter recebido parte dos imigrantes rurais desses mu-
tão participando mais. Ele próprio reconhece, con- nicípios que, com a mecanização do campo, buscou a
tudo, que o problema é de ordem estrutural e que região metropolitana de Goiânia. Deste modo, como
diz respeito também – e talvez principalmente – tem foliões originários de Santa Rosa, Itauçu, Araçu
às transformações pelas quais passou a sociedade etc., Inhumas acaba tendo vínculos com as folias des-
ocidental, urbana, industrial. sas cidades.
A folia é uma expressão de fé. Ela nasceu num povo Além das peculiaridades apontadas, o caractere
simples para manifestar a fé. E hoje, no geral, não distintivo da Folia de Reis em Inhumas é a enorme di-
existe mais um grande número de famílias na zona versidade de toadas apresentadas nos giros; fato intri-
rural, onde a folia era mais ampla, tinha mais [par- gante e que foi a motivação primeira para a realização
ticipantes]. O povo mudou pra cidade. E, no geral, desta investigação. Em nosso trabalho de campo, con-
tanto no catolicismo [como] no protestantismo, pela seguimos identificar quarenta e duas toadas diferen-
secularização, tem uma estagnação da fé. A fé das tes, a imensa maioria habitualmente cantada durante
pessoas… Muitas pessoas viam uma bandeira de os giros dos grupos de Folia de Reis na região. Apenas
Santos Reis passando pela rua, iam lá, beijavam a uma ou outra comparecem como referência de uma
bandeira, ou pediam pra passar na casa. Hoje, elas toada antes mais executada e agora caída em desuso.
respeitam, mas não tem mais aquela devoção forte,
firme, aquela crença concreta, aquela fé concreta. Das toadas identificadas, conseguimos gravar
Hoje, muitos foliões são devotos de Santos Reis, mas quarenta. O intercâmbio entre as folias – também em
muitos deles não dão almoço nem pouso de folia razão dos encontros de Folia de Reis que passaram a
e muito menos tiram uma folia. Então, é difícil de existir na região –, a circulação de gravações de can-
compreender esse fato (Fernando, maio de 2014). torio de Reis, as toadas trazidas pelos imigrantes para
a região – tudo isso ajuda a explicar essa diversidade
Embora afetem diretamente as condições da Folia incomum. O desejo de renovação do repertório – ain-
de Reis na cidade, essas considerações dizem respeito da que isso seja também realizado pela recuperação,
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depois de certo tempo, de toadas antigas – é também mundo, porque Santos Reis é para todos, enaltece o
um fator relevante. Por fim, a distinção e o prestígio reconhecimento e a divulgação da autoria da toada
ligados ao conhecimento de várias toadas também Xique-Xique, composição de seu pai.
devem ser considerados. E esses últimos aparecem,
especialmente, nas novas criações. É bom saber. Porque é uma lembrança. Que ele já
faleceu faz tempo, né!? Essa seria uma lembrança pra
No terceiro capítulo, apresentaremos cada toada se- gente guardar na memória. Mas a maioria canta às
paradamente, com destaque para aquelas cuja autoria foi vezes sem saber de quem é, de onde veio. Porque ela
possível identificar. No quarto capítulo, nos deteremos é bonita. Aí as pessoas vão cantando sem saber quem
nas questões relativas à autoria e à criação individual nes- compôs a música (Zinho, dezembro de 2013).
sa manifestação cultural tradicional, coletiva e difusa. Por
hora, cumpre enfatizar que, embora os foliões louvem o Corroborando esta percepção das toadas como
esforço para identificar eventuais autores de toadas e dar pecúlio comum das companhias de Santos Reis, o
a eles o devido reconhecimento, no cantorio executado embaixador Luís Carlos acrescenta a nuance da in-
nos giros das folias, as toadas são consideradas um pecú- terpretação e eventuais alterações na melodia, que ele
lio comum de todos os foliões. denomina por “dar uma volta” na voz.
Cada embaixador canta cada toada de um jeito. A
É de todo mundo. Santo Reis é pra todos. Quem maioria das toadas a gente ouve outros embaixado-
fez o verso, a toada ou quem deixou de fazer não res cantar. Aí aquelas que a gente interessa e que dá
importa. O que importa é fazer ela bem feita, né!? mais certo com a voz e com o estilo da gente, aí a gente
Às vezes, depende do jeito que o cara fez. Gosto de pega e copia do outro. Pode ser a mesma toada, mas
cantar do jeito que a toada é. Tem gente que gosta cada um canta de forma diferente. Tem diferença. Às
de mudar um pouquinho. Meu estilo, não. Igual a vezes uma volta na voz. Às vezes no próprio instru-
toada do Ronaldo. Eu praticamente canto ela do jei- mento também. E a gente dá uma mudada na voz,
to que fez (Zinho, dezembro de 2013). porque cada um tem um timbre de voz… As toadas
de folia, a maioria é assim mesmo. Quando a gente
ouve um embaixador cantar uma toada que a gente
Considerá-las pecúlio comum dos grupos, toda- gosta, vai pondo ela no repertório. E é assim que vai
via, não invalida o esforço para o reconhecimento da aumentando (Luís Carlos, dezembro de 2013).
autoria. Apenas indica que todo folião pode cantar
qualquer toada nos momentos apropriados do giro, Alinhado com o pensamento de Luís Carlos, Divi-
sem a necessidade de pedir autorização ou licença. no da Veinha acrescenta o desejo de renovação do re-
Assim, sem que isso implique uma contradição, o pertório, ao apresentar quantas toadas diferentes sabe
mesmo Zinho que afirma que as toadas são de todo embaixar e responder.
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Tem muitas toadas. E são tantas que a gente até es- também era companheiro. Então, eles cantam toada
quece. [Eu sei] mais ou menos umas vinte toadas. que eu faço. Eu canto toada que eles faz. E por aí nós
Daí pra lá. É muita toada. Só que a gente vai dei- vamos indo (Divino da Veinha, novembro de 2013).
xando elas, né!? Você vai fazendo umas novas e lar-
A imigração – notadamente, de mineiros – para
gando as velhas pra trás. (…)
a região, que nas décadas de 1950, 1960 até 1970 era
Tem que modificar. Tem que ter uma diferença. Por- fronteira da expansão agropecuária, também tem im-
que se nós ficar toda a vida malhando só numa malha, plicações para a não diferenciação entre autoria de
a pessoa enjoa. Inclusive, é poucos hoje que tá dando toada e predileção por uma toada. Assim, algumas
valor. Você sabe muito bem disso. Como hoje tá sendo toadas acabaram conhecidas pelos nomes de foliões e
muito discriminada a Folia de Reis, então, se você não embaixadores antigos que as introduziram na região
fizer as coisas pra incentivar mais os devotos de Santos e gostavam de cantar nela. Esse é o caso das toadas do
Reis, a pessoa cansa daquilo. A pessoa sendo um de- Dairão ou do Mangelo e da toada do Franésio. Efeti-
voto de Santos Reis, que gosta de uma folia, gosta de vamente, é muito difícil saber se eles seriam os auto-
dar um pouso, de dar um almoço, então incentiva ver res, se as trouxeram de suas regiões de origem e as in-
uma coisa mais... Igual nós, todo ano que nós vinha troduziram em Inhumas ou se ajudaram a mantê-las
aqui, nós vinha com uma toada diferente. E com isso e preservá-las.
aí incentivava o povo. Como até hoje, graças a Deus
(Divino da Veinha, novembro de 2013). A origem ou autoria de cada uma dessas toadas
é apresentada separadamente no capítulo três, com
E, respondendo sobre como aprendeu essas to- graus variados de segurança na atribuição da autoria
adas, Divino da Veinha se coloca numa correia de ou de recuperação da trajetória de sua difusão. Ain-
transmissão da tradição, citando vários embaixadores da que, em alguns casos, seja difícil considerar esses
antigos, que foram elos importantes nessa corrente. foliões como autores, isso em nada diminui a impor-
Sua percepção dessa forma de transmissão e apropria- tância de terem trazido e mantido uma determinada
ção das toadas aponta para o fato de muitos foliões toada, contribuindo para a atual diversidade do re-
não fazerem uma diferenciação entre autoria ou pre- pertório. E a introdução, manutenção ou identificação
dileção por uma determinada toada. com certas toadas constituem elementos de distinção
e prestígio nos grupos.
[Aprendi] umas ouvindo. Outras fazendo a letra.
Usando de gravação. [Mas a] maioria, de uns pe- A autoria, como vemos, pode ser dinâmica e flui-
gando dos outros. Canto toada do Luís Carlos. Canto da, como a própria folia, suas histórias e processos,
toada do Mangelo. Canto toada do finado Zé Baia- envolvendo imigração, circulação de folias e de gra-
no, toada do Dairão, que foi um professor nosso, do vações ou veiculações pela mídia no processo de di-
Eurípedes Lúcio, companheirão, do Zé Jacaré, que fusão e de apropriação de toadas no repertório. A di-
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vulgação de toadas pelos programas de rádio e pelas A que eu mais gosto de cantar é uma toada do Ro-
gravações, primeiro em vinis de 78 rpm, LPs e fitas naldo, que ele fez. Essa do pai [Xique-Xique] eu
cassete e, posteriormente, em CDs, vídeos e DVDs, gosto de cantar também, só que eu canto ela mais
também contribui para a confusão relativa à autoria sozinho e ela foi feita cantando de dois. E uma to-
das toadas; desta feita sobre se a toada seria da autoria ada que eles falam toada de São João. E a do João
de quem gravou. Nem sempre há indicação de autoria Baianinho. Essa eu também gosto! Gosto porque te-
e, quando há, às vezes não é claro se a composição se nho maior facilidade de cantar.
refere apenas à letra ou se também à musica.
Tem umas toadas mais fáceis de você encaixar o
O caso se complica um pouco quando se trata de verso, né!? Igual aquela de São João. Aquela toada
um CD ou DVD de algum grupo de Folia de Reis feito é fácil de você encaixar o verso. É mais fácil de você
de forma mais artesanal – e geralmente informal –, terminar o verso, porque tem umas palavras que
como é a regra. Raramente há indicação de origem ou às vezes encumprida mais ou diminui, né!? Então,
de autoria nesses trabalhos. Além disso, é interessante você tem mais o controle da voz (Zinho, dezembro
notar que, no caso das gravações, pode ocorrer tam- de 2013).
bém algo semelhante ao que aconteceu com as toadas
trazidas pelos imigrantes: quem introduz num giro a Assim, o repertório coletivo vai aumentando propor-
toada ouvida numa gravação ou pelo rádio, aparece cionalmente ao aumento do repertório dos embaixado-
como dono ou compositor. Outro aspecto relevante res, que segue muito fielmente um critério de gosto pes-
também é que, no afã de renovar o repertório, sair soal e maior adaptação a determinadas toadas. Assim das
com uma toada nova, extraída de uma gravação ou quarenta e duas toadas identificadas, cada embaixador,
ouvida num programa de rádio, é igualmente elemen- individualmente, sabe cantar entre quinze a vinte.
to de prestígio e de distinção. É o que observamos, Acima, vimos que as mesmas toadas sempre têm
por exemplo, no depoimento do embaixador Divino uma interpretação ligeiramente diferente por cada
da Veinha a respeito da toada São João. embaixador. O mesmo vale para os foliões que can-
Essa toada São João (…) eu [aprendi] assistindo o tam na resposta. Na verdade, as gravações mostraram
DVD. [Depois], eu saí com ela e daí por diante os que um mesmo folião, fazendo uma mesma voz, pode
companheiro tudo foi pegando. Que o primeiro que fazer melodias ligeiramente diferentes de uma estrofe
cantou ela aqui em Inhumas foi eu. Eu que tirei ela para outra; o que, evidentemente, traz uma complica-
(Divino da Veinha, novembro de 2013). ção a mais para a transcrição musical 9.

Indagado sobre a toada que mais gosta de cantar, 9. Afinal, qual melodia representaria o padrão e qual seria o desvio? Qual o critério
para essa definição? Ao fim e ao cabo, vali-me de minha experiência cantando na
Zinho fornece mais detalhes sobre o processo de acu- resposta e da experiência do violeiro e pesquisador Roberto Corrêa, que fez a revi-
mulação de toadas no repertório de cada embaixador. são da transcrição.

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As diferenças na interpretação dos embaixa- Essas localidades podem ser também um distrito
dores e da resposta podem também vir a ser um ou um povoado, como é o caso do Cerrado da Con-
primeiro passo num processo de diferenciação ceição, que acabou batizando a toada Cerradinho. Seu
de uma toada, até que, em algum momento, uma Lourenço afirma que escutou essa toada pela primei-
alteração mais significativa – casual ou intencio- ra vez girando com uma folia lá, há uns quinze anos.
nal – passa a ser vista como uma toada nova. A Logo a turma de Inhumas começou a cantar nessa to-
identificação precisa de quem compôs uma toada ada também. E o processo de difusão é, segundo ele,
ou criou determinados versos, entretanto, não era muito rápido.
preocupação dos foliões quando nos propusemos
a tentar levantar essas informações no trabalho de É que toada é o seguinte: surgiu a toada, um pega,
campo. Sequer para os próprios autores e compo- outro pega. Logo tá esparramado. Então, a turma
sitores. Com o desenvolvimento do trabalho, esses de Inhumas pegou também e começou a cantar ela.
passaram também a dar mais atenção a esse aspec- E todo mundo gosta dela, né!? (Seu Lourenço, no-
to, notadamente no que diz respeito aos direitos vembro de 2013).
morais do autor: aqueles que vinculam o autor a
sua obra, mas sem consequências no plano dos di- A associação de uma localidade com uma to-
reitos patrimoniais. ada pode, entretanto, ser controversa. Alguns fo-
liões, não sabendo exatamente a origem da toada
O trabalho identificou que a maioria das toa- São João, aventaram a possibilidade de que poderia
das usuais em Inhumas e região são mesmo tra- ter vindo da cidade vizinha de Brazabrantes, que
dicionais, isto é, carreadas por várias gerações e antes se chamava São João Batista do Meia Ponte.
de autoria desconhecida. Dentre as que tiveram a Como vimos, essa explicação confronta com a in-
autoria identificada, destacam-se a toada do João formação do embaixador Divino da Veinha. E sua
Baianinho e a toada do Ronaldo – cujos autores es- denominação como toada (de) São João parece ter
tão indicados no próprio nome da toada –, a toada vindo do fato de o embaixador Lindomar ter tira-
São Sebastião, de Seu Lourenço, e a referida Xique do uma folia de São João, em Goianira, cantando
-Xique, de Dé e Nenzinho. Ao todo, são dezesseis nessa toada.
toadas com autoria identificada com algum grau
de segurança. Outras toadas já são conhecidas pela Outro aspecto que precisa ser levado em consi-
localidade em que foram ouvidas pela primeira vez: deração é que nossa preocupação esteve restrita à
Damolândia, Petrolina. Nesse caso, algum grupo recepção das toadas em Inhumas. Assim, a autoria
as aprendeu girando com a Folia de Reis nessas lo- ou a denominação acaba sendo relacional e con-
calidades e as trouxe para Inhumas, onde ficaram textual. Estamos tratando, por exemplo, por Da-
conhecidas com o nome de sua origem. molândia uma toada lá aprendida pelos foliões de
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Inhumas. Mas não sabemos se é uma composição e um elemento que confere prestígio e distinção aos
de algum folião de Damolândia, se veio de outra foliões da cidade nesse meio.
região no processo de imigração referido, acompa-
nhando a expansão da fronteira agrícola, ou ainda Outra característica da Folia de Reis, mas que não
se alguém saiu com essa toada lá após a ouvir pelo diz respeito especificamente à situação da manifesta-
rádio ou em CD etc. ção em Inhumas, é a preocupação frequente dos foliões
quanto à aceitação da Folia de Reis pelas gerações mais
Seja como for, essa diversidade de toadas é uma novas; preocupação que tem implicação na própria
das marcas mais fortes da Folia de Reis em Inhumas continuidade da Folia de Reis. De um modo geral, há
Folia caminhando na região do Souza (Damolândia)

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uma diminuição no número de foliões e uma partici- contraditória: o número de folias que saem anualmen-
pação pequena de crianças, adolescentes e jovens nos te aumentou, acompanhando a elevação da quantida-
grupos. Mas, da mesma forma que outros quesitos, de de interessados em tirar uma folia, por promessa
tampouco este pode ser tomado de modo absoluto, ou devoção; mas diminuiu o número de foliões; dimi-
porque há uma variação considerável entre as diferen- nuiu o número de famílias que querem receber a ban-
tes formações dos grupos de Folia de Reis na região. deira de Santos Reis, inclusive entre os católicos; está
mais difícil conseguir quem queira dar um almoço ou
Esse assunto será tratado mais detidamente no se- um pouso, que são fundamentais na sustentação ma-
gundo capítulo, em que consideraremos os processos terial do giro da folia.
de transmissão de saberes na Folia de Reis. Cabe ob-
servar, entretanto, que estamos diante de uma mani- Este fenômeno precisa ser analisado no quadro
festação cultural religiosa que, a partir de sua origem mais geral do processo de urbanização e de seculari-
nas passagens bíblicas relacionadas ao nascimento de zação da sociedade, com a consequente perda de força
Jesus, tem início histórico na colonização portuguesa do calendário ritual litúrgico tradicional. Nesses ter-
na América. E tem mostrado uma longevidade e força mos, não se trata de um fenômeno adstrito à Folia de
surpreendentes. Mas, assim como foi criada, ela pode Reis na região. Outro dado a ser considerado é que,
vir a desaparecer um dia, como várias manifestações, na situação rural, predominavam as formas autôno-
povos e línguas desapareceram. Este livro e CDs da mas do catolicismo popular; até pela menor presen-
Cia de Santos Reis de Inhumas – Goiás se insere jus- ça do clero regular. Na cidade, ao contrário, o clero
tamente nesse esforço de salvaguarda de um bem é presente e as paróquias funcionam regularmente.
cultural, chamando atenção para práticas e valores Mas muitos dos católicos praticantes seguem o culto
sociais que, embora relevantes, são residuais na socie- romanizado e não têm qualquer vínculo com a Folia
dade urbana industrial capitalista, dominada pela ra- de Reis. O mesmo vale para a maior parte dos padres
cionalidade instrumental. Neste sentido, a realização e párocos. Com o agravante de que esses podem ainda
do projeto representa um esforço para a continuidade considerar a Folia de Reis como deturpação supersti-
da manifestação nesse processo histórico complexo ciosa do rito católico ou ver os foliões como concor-
e multifacetado, que implica incorporação de novos rentes no mercado religioso.
elementos, abandono de alguns antigos e ressignifi- Destarte, temos que os foliões são católicos 10;
cação de outros; esforço que reúne patrocinadores, embora praticantes de uma vertente do catolicismo
equipe do projeto, foliões e devotos. popular. Mas a recíproca não é verdadeira. Uma
Além dos questionamentos a respeito de sua ma- 10. Tirante uma eventual consulta num benzedor – perfeitamente inserida nos mores da
cultura popular – não identificamos, em Inhumas, qualquer vinculação da Folia de Reis
nutenção e continuidade, a Folia de Reis em Inhumas com outras religiões, como acontece algumas vezes em outras regiões, notadamente com
vive, hoje, uma situação complexa e de alguma forma relação ao espiritismo cardecista ou a umbanda e, mais raro, ao Santo Daime.

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parte significativa dos católicos na cidade não tem Retomando a questão da diminuição do número
relação com a Folia de Reis. E aqui cabe lembrar de foliões, esse fenômeno me pareceu, a princípio,
que estamos tratando de diferenças culturais em uma das motivações para as Folias de Reis na região
uma sociedade estratificada, em que a cultura eru- terem começado a girar também fora do período na-
dita e a popular são nitidamente separadas, embo- talino. Poderia ter sido uma forma de conseguir aten-
ra estabeleçam alguns pontos de contato 11. der a esse aumento da demanda para tirar as folias,
mesmo contando com um número menor de foliões.
Releva notar, entretanto, que a desconfiança do Vários foliões, todavia, afirmaram que a prática de ti-
clero com relação à Folia de Reis e a outras formas do rar Folias de Reis nos meses de fevereiro, maio, junho,
catolicismo popular costuma ser menor na região do
julho, agosto, setembro, outubro e novembro – ou
que na média do país. Isso porque boa parte dessas
seja, praticamente durante todo o ano, exceptuado o
cidades por onde circulam os foliões de Inhumas ti-
período da quaresma – é antiga e que viria de um
veram influência ou pertenciam à Diocese de Goiás,
momento em que a diminuição do número de foliões
quando esta era dirigida pelo Bispo Dom Tomás Bal-
não estava colocada.
duíno, notório por advogar a opção preferencial pelos
pobres inscrita na Teologia da Libertação e pratica- A redução do número de foliões também é re-
da pelas Comissões Pastorais da Terra, então muito latada como um elemento sensível no relaxamento
ativas. Talvez por esse motivo – associado ainda ao da divisão territorial, uma vez que cada grupo pas-
fato de alguns clérigos da região terem origem rural e saria a depender mais da ajuda de outros foliões,
vivência da Folia de Reis em sua infância e juventude normalmente identificados com grupos ou embai-
– , a região conta com alguns padres bastante abertos xadores de outros bairros ou setores. A maior de-
aos rituais da Folia de Reis ou mesmo foliões, como o pendência da ajuda dos foliões de um grupo “B”
já referido Padre Edmilson e o Padre Agnaldo Divino ou “C” por parte de um grupo “A” seria também
Gonzaga, que atuou em Trindade, Heitoraí e Itaguari um impeditivo para a saída simultânea desses gru-
e hoje é o prefeito nesta última. pos de folias durante os meses de dezembro e ja-
neiro. Mas seja qual for o motivo da dispersão dos
11. A esse respeito, ver Alfredo Bosi, Cultura brasileira e culturas brasileiras, em giros, o fato é que as Folias de Reis fora do tempo
Dialética da colonização (1992). são muito frequentes tanto em Inhumas como em
12. Nem todos os embaixadores na região se dispõem a assumir essa responsabili-
dade, que é partilhada com o festeiro. Ela envolve, entre outras, convidar e reunir
toda a região. E, ainda assim, os embaixadores que
os foliões a cada manhã e cuidar de quem irá levá-los para suas casas depois do costumam assumir o compromisso de tirar uma
encerramento das atividades, à noite. Alguns se comprometem a ajudar o embai-
xador responsável alguns dias ou mesmo durante todo o período do giro, mas não
folia 12 não dão conta da demanda que lhes che-
tiram folias sob sua responsabilidade. Outros fazem as duas coisas: tanto tiram ga. Acompanhando a Folia de Reis em Inhumas, é
uma ou mais folias sob sua responsabilidade como ajudam os colegas responsáveis
em outras. Os compromissos de ajuda recíproca tornou raros, quiçá inexistentes, os
frequente se deparar com alguém solicitando a um
embaixadores que só atuam nas folias sob sua responsabilidade. embaixador que ele ajude a cumprir um voto que
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Chegada no almoço na casa do Zezinho (José Rodrigues de Azevedo)

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está devendo. E não menos comum é esse embai- [o intercâmbio] ajudou, porque veio uma união,
xador, um tanto constrangido, responder que não né? Fez uma união. Porque nossa comunidade de
tem condições de atender ao solicitante, em função folia, nós não tem turma. Por exemplo, igual eu
de outras folias já agendadas, e indicar que ele ten- vou sair com uma folia. Então chamo um, dois,
te com outro colega. três. Já tem uns quatro, cinco ou dez que seja,
sempre firme comigo. Mas, sobre vir mais [fo-
Preocupada com a manutenção da festa, e com liões] de fora, já deu uma explicação pra todos
seu incentivo e divulgação, a Cia de Santos Reis de os folião. Uma demonstração pra todos os folião
Inhumas foi institucionalizada e formalizada no que, como os Reis uniu os três pra fazer aque-
final de 2014. O processo foi conduzido por um la jornada, então quanto mais formos ajuntar,
de seus coordenadores, Fernando. Com a regula- mais essa semelhança nós tamo fazendo. União!
rização, a associação passa a poder participar di- Que nós somos comunidade. Pode ser dez turmas
retamente de editais culturais, investir em compra de folia, mas se forma uma comunidade só. Por-
e manutenção de instrumentos e, futuramente, até que não tem diferença da nossa função, da nossa
numa sede própria. É cedo para avaliar o impacto profecia. Não tem diferença de uma folia com a
do registro cartorial da associação de devotos da outra. Porque eu posso cantar diferente. Eu posso
Folia de Reis na cidade. Até porque a Cia de Santos ter um sistema diferente do outro. Você sabe que
Reis responde por um grupo e um giro específicos, cada região que você vai numa folia o sistema de
embora tenha sido criada com o intuito de agregar cantar é um, a toada de cantar é outra, num é?
as folias e foliões da cidade e permaneça aberta a Então, todos têm diferenças. Mas nossa comuni-
esse ideal. dade é uma só. São todos companheiros dos Três
O ideal de união, aliás, é ressaltado pelo embai- Reis Santos. A companhia da jornada é uma só
xador Divino da Veinha, quando avalia o aumento (Divino da Veinha, novembro de 2013).
do fluxo entre grupos de folias e entre os próprios
foliões. Segundo ele,

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Divino da Veinha

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Transmissão de saberes na Folia Os aprendizados dos saberes circundantes nas
de Reis Folias de Reis não acontecem em espaços formais e
institucionalizados de ensino 13. A transmissão des-
Talita Viana tes saberes se dá no próprio giro, no descanso da folia
Sebastião Rios após um almoço, em espaços de brincadeira. O fazer
Rannier Venâncio junto (ou fazer com), a observação e consequente imi-
tação, a experimentação observada e coordenada por
alguém mais experiente, são comumente formas ob-
Tornar-se um folião passa pelo aprendizado de servadas de inserção e aprendizado dos novos foliões.
inúmeros saberes: as etapas rituais de um giro; os E aparecem quase que na totalidade das histórias de
sentidos e os valores circundantes, os versos para ingresso nas companhias.
as respectivas funções da folia – saudação do pre-
sépio e do altar, a comunicação com os moradores Os laços de parentesco, amizade, compadrio, reve-
etc.; o encaixe de vozes da resposta e da requinta; lam-se igualmente centrais. É bastante comum a men-
a execução dos instrumentos; as performances dos ção a pais, avôs, além de outros vínculos nos processos
palhaços; como se comportar na chegada de um de aprendizagem. Nos relatos de embaixadores, princi-
pouso; como lidar com a bandeira; onde cada voz palmente, é comum a referência a um mestre, a quem
e cada instrumento deve se posicionar na formação se acompanhou e de quem se tornou um aprendiz:
do grupo; as diversas toadas. Nos dedicamos, nes- Nesse comecinho meu, quando eu era mais jovem,
te capítulo, a olhar para os constantes processos de tinha um embaixador com nome de (José) Revalino.
transmissão destes saberes, seja de embaixadores Ele me deu muita força. E, nas casas que ele estava
para seus aprendizes, dos foliões mais experientes muito cansado, ele punha eu pra cantar versos. E
em determinado instrumento para os iniciantes, de ficava perto de mim, me ensinando alguns versos...
palhaços renomados para os palhacinhos que come- E aí eu, também interessado, fui fazendo verso por
çam a apresentar suas primeiras performances. minha conta também. E hoje eu embaixo! Foi assim
13. Foliões e outros mestres da cultura popular ainda não fazem parte do quadro que começou (Luís Carlos, dezembro de 2013).
de professores de nossas instituições de ensino. Assim, dificilmente aprenderemos,
dentro da escola ou universidade, os sentidos, cantos e técnicas do universo da folia Da mesma forma, também para nós, extensio-
e outras manifestações da cultura popular. Iniciativas como o Encontro de Saberes,
projeto estruturante do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no
nistas e pesquisadores, o fazer com / aprender fazen-
Ensino Superior e na Pesquisa – INCTI, têm lançado alternativas a este quadro. A do, foi fundamental no processo da pesquisa. E foi
proposta principal do projeto é incluir como docentes do ensino superior os mestres
e mestras representantes da rica diversidade de saberes e práticas tradicionais em
igualmente central na formulação das perguntas que
todas as áreas do conhecimento e assim reconhecer o valor desses saberes e o prota- norteiam este trabalho: a experiência de integrar a
gonismo de seus mestres como sujeitos da arte e do pensamento humano (Encontro
de Saberes. Livreto de divulgação do Instituto de Inclusão no Ensino Superior e na
companhia durante suas várias visitas em um giro, ex-
Pesquisa). perimentando a diversidade com que iam aparecendo
75
diversas toadas, foi decisiva na formulação de nossas começamos a compreender a complexidade destes
questões, além de constituir método de investigação. processos que contém uma lógica outra que não a es-
Ainda, aprender a cantar, a bater a caixa – e depois en- colar ou acadêmica com a qual estamos tão acostuma-
sinar à Marina, uma jovem foliã –, foram experiências dos. E poder, em outro momento, ocupar brevemente
ímpares no trabalho de campo e de compreensão dos o posto de alguém que ensina, também nos ensinou
mecanismos de transmissão de saberes e aprendizado os meandros e estratégias – igualmente complexos –
nas Folias de Reis. Ao ocupar o lugar de um aprendiz, de transmissão dos saberes.

Na direita da foto: Maria Divina com a bandeira, no primeiro plano; e seu neto, Artur, com a caixa, no fundo.

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Releva ressaltar a importância da presença do Corrêa, nos cursos de verão da Escola de Música de
mestre nestes processos de ensinamento e transmis- Brasília, e com Mábia Felipe, professora formada na
são de saberes. Estamos diante de uma tradição no- Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade
tadamente oral que, ainda que conte, eventualmente, Federal de Goiás. Assim, comecei a me interessar
com algum suporte escrito, prescinde da escrita para pelo cantorio da Folia de Reis e tentar participar.
existir ou permanecer, constituindo uma forma dis- A professora Mábia avaliou meu repertório e, en-
tinta de conhecer e de estar no mundo. Para que haja tre outros problemas identificados, concluiu que eu
a transmissão e continuidade de saberes e valores das cantava num registro muito grave, em que não con-
folias, é necessária a presença do mestre embaixador seguia dar cor nem brilho à voz. Tampouco proje-
ou foliões mais experientes transmitindo, nos atos, seu ção. E passamos a trabalhar exercícios de respiração
conhecimento. E o ato inclui não apenas a oralidade e de técnica vocal para alcançar um registro mais
enquanto palavras ou discurso verbal, mas também e agudo. Nesse ínterim, fui participar do giro de uma
principalmente a vivência destes saberes e valores nos folia em Inhumas. O embaixador, Seu Lourenço,
seus próprios locais de prática. construtor de cisternas e poços artesianos, ouviu-
me cantando a segunda voz – a mais grave da res-
Destarte, durante um giro, presenciamos vários posta – e logo deu o mesmo diagnóstico:
momentos em que foliões com mais tempo e experi-
ência na manifestação ensinam e corrigem os recém — Não! Sua voz aí está errada. Vem cá.
-ingressantes, demonstram as ações e técnicas corretas Quando a folia chegou à casa seguinte, chamou
e orientam a reprodução pelo aprendiz. Alguns mais outro folião, João Guará, e fomos para a calçada
experientes são, inclusive, responsáveis por identificar oposta. Ao ouvir o cantorio, íamos reproduzindo a
características nos principiantes que permitam colo- resposta. Eu na segunda voz, João Guará na primei-
cá-los para desenvolver determinada função na com- ra e Seu Lourenço na terceira. A minha tarefa era
panhia – e não outra. Esta espécie de orientação ficou prestar atenção e pegar a primeira voz, que tem um
bastante evidente na passagem abaixo, vivenciada por intervalo de terça acima da mais grave. Fui tentan-
Sebastião Rios. Leiamos seu relato: do fazer a primeira voz. João Guará havia passado
para a segunda. Na casa seguinte:
Embora conhecedor da manifestação desde a in-
fância, do tempo em que passava as férias escola- — Agora vamos cantar lá, pertinho do pessoal.
res na fazenda dos avós maternos no sul de Minas
Umas três estrofes pra frente:
Gerais, aproximei-me da Folia de Reis na condição
de pesquisador. Já tocava violão e logo depois come- — Agora nós vamos cantar, mas vamos jogar
cei a aprender também viola caipira e frequentar nossa voz por cima da deles, pra escutar mais a
um curso de canto, respectivamente, com Roberto nossa voz que a deles.
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E finalmente, uma casa pra frente: Este foi o caso do embaixador e sanfoneiro
Thiago, que praticamente nasceu dentro da Folia
— Agora vamos, que eu vou embaixar e você vai
de Reis, uma vez que é filho de Zé Jacaré (José Divi-
cantar essa voz aqui comigo.
no de Oliveira), que, por sua vez, começou na folia
O que fez Seu Lourenço? Identificou o problema e como sanfoneiro de seu pai, Revalino e depois pas-
estabeleceu, na hora, um programa de ensino em sou a ser também embaixador. Thiago acompanha
algumas etapas para superá-lo. Pura técnica: de a folia desde os cinco anos de idade. Ele aprendeu
performance (no sentido de execução) e de ensino. primeiramente a bater a caixa. Atualmente, além
E aqui importa pouco ou nada que ele não expresse de embaixar, toca sanfona, violão e faz várias das
essa técnica nos mesmos termos da professora, can- vozes da resposta e requinta. Sobre o processo de
tora lírica formada na Escola de Música. É encaixe aprendizado da sanfona, ele conta:
de voz dentro de uma sequência de acordes na to-
Não podia dar uma brechinha. Qualquer brechi-
nalidade de Fá maior. Isso ele sabe. A primeira voz
nha que dava eu estava com a sanfona no colo.
na resposta tem uma altura intermediária entre a
Era rezando o terço e eu fazendo barulho. Até
segunda e a terceira. E são técnicas difíceis. A afina-
que eu toquei a primeira vez. A primeira vez que
ção é precisa. Qualquer das seis vozes que desafinar,
eu toquei, Nossa Senhora! Eu suava, a barriga
desanda o conjunto (RIOS, 2014).
esfriava. Tive que tocar sentado, porque eu era
Esta orientação de Seu Lourenço ocorreu duran- menino e a sanfona era grande. Eu tocava senta-
te um giro da folia. Depois de identificado o proble- do. Depois passou o medo e foi só alegria! (Thia-
ma, o embaixador desenvolveu toda uma sequência go, maio de 2014).
de etapas a serem desempenhadas por Sebastião para
Ou seja, a folia continuava cumprindo suas
que ele conseguisse acertar a voz indicada, dando-lhe
obrigações – rezando o terço – enquanto o meni-
cor, brilho e projeção. Enquanto o grupo de foliões
cumpria a jornada de visitas, Seu Lourenço, Sebastião, no, no cômodo onde geralmente se guarda os ins-
João Guará (João Bosco dos Santos), desenvolviam o trumentos durante a reza ou alguma visita mais
processo de ensino e aprendizagem do cantorio. Esta demorada, desvendava os mistérios da sanfona.
sobreposição de funções acontece frequentemente Esta é, com algumas variantes, uma cena co-
nos giros: as transmissões de saberes, aprendizados, mum durante os giros: durante um lanche, no des-
vão acontecendo concomitantemente à jornada da canso após o almoço, é hora de pegar uma toada
bandeira. Às vezes diretamente dentro do cantorio ou nova, aprender uma posição no violão, a batida da
outras etapas rituais – como a chegada num arco, para caixa. Fernando explica:
os palhaços –, às vezes durante pausas, seja do grupo
todo ou de alguns foliões. Os violões, eu comecei a aprender em casa, tocar
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em casa. Mas quando tinha uma folia e estava num determinado local esperando a hora de che-
parada em uma casa tomando café ou esperando gar. A gente se reúne naquele determinado local
a hora de chegar, a gente reunia um grupinho e e começa a fazer um ensaio. E quando também
começava a tocar entre nós, para aprender. Ge- tem alguém aprendendo a gente aproveita esses
ralmente as toadas, novas toadas, novos ritmos, momentos para poder ensinar, pra passar (Fer-
aprende-se assim, quando a folia está parada nando, maio de 2014).

79
Releva destacar, ainda, o caráter coletivo, comu- Sebastião: Douglas, você mexe com folia desde
nitário, destes processos de transmissão de saberes. quando?
“Quando tem alguém aprendendo a gente aproveita
esses momentos para poder ensinar, pra passar”. Um Douglas: Quando eu aprendi eu tava com uns oito
trechinho da conversa com Douglas ajuda a eluci- anos.
dar essa dimensão comunitária dos ensinamentos e Sebastião: E você fazia o que?
aprendizados. Era uma quinta-feira, durante o giro da
Cia de Santos Reis de Inhumas. Douglas: Batia pandeiro, caixa... Fazia a requinta

Xuxa

80
lá atrás. O meu tio era embaixador, né!? O Zé Baia- Xuxa, Cleomar e outros integrantes desta folia mirim
no. Aí ele faleceu. Inclusive era até parceiro do Divi- atuam como embaixadores e desempenham outras
no da Veinha. Era ele, o finado Totó. Aí ele morreu funções na folia: caixa, resposta. E cumprem, junta-
e eu fiquei mais os meninos, mais o finado Totó. Aí mente com Divino da Veinha e Seu Lourenço (pro-
fui crescendo e já passei pra ajudar a turma de cá porcionalmente, é claro, a seus tempos de jornada!), o
também, participando... Inclusive até o Zinho falou papel de transmitir estes saberes para os foliões mais
do finado Velho Dé, que eu ajudava também. Eu novos. Com relação ao aprendizado dos versos, para
mais o Xuxinha, aquele pretinho. A gente canta de- cantar como embaixador, Douglas complementa:
mais a toada Xique-Xique. Aí fui desenvolvendo.
Douglas: O estudo é muito pouco, sabe? Então você
Sebastião: E embaixar, você começou quando? ouve um embaixador mais experiente e aí já vai
cantar. Igual, o Divino da Veinha arruma umas pa-
Douglas: Comecei com uns 16, 17 anos. O pessoal
lavras assim mais…, pega a profecia. Sempre que ele
soltou uma vez uma folia mirim na casa do Divino
canta os meninos dele e eu prestamos atenção. Mas
da Veinha. Nós fomos todos. Com cavaquinho... E
não sou muito assim de ficar pedindo explicação.
até o Lourenço foi praticando [com a gente]. Nós
A gente fica sem graça. Mas aí a gente vai vendo
saímos naquela toada goiana. Saiu até no jornal!
cantar, vai cantando e vai gravando na memória.
(…) O finado Totó não queria deixar, porque ele era
muito esquentado; achava que iria virar só bagun- Sebastião: Mas, hoje, se precisar chegar num presé-
ça. Aí o Divino da Veinha mais o Lourenço foram, pio você chega?
deram uma ensaiada... Saiu três dias. Arrumou
pouso, tudo arrumadinho. Os almoços... Douglas: Canto. Não faz igual os velhos não, mas…
Porque estamos crescendo agora, né!? Aprenden-
Sebastião: Só novo? do... (Douglas, dezembro de 2013).
Douglas: Só novo! Os mais velhos era eu e o Xuxa! Zinho é filho de Dé, a quem Douglas se refere
Até o caçula dele era novinho. como Velho Dé. E foi com ele e com seu tio, Joaquim,
que ele mais aprendeu sobre folia. Segundo Zinho,
Sebastião: Quem, o Cleomar?
“eles sempre estavam cantando junto, né!?, cantando
Douglas: Cleomar, que nem tocava sanfona não! Aí folia junto. Essas toadas de dois. Aí ele cantava e eu ia
nós fomos desenvolvendo. decorando” (Zinho, dezembro de 2013). E essa “fór-
mula” de transmissão dos versos, de como embaixar,
Contando sobre sua história na Folia de Reis, por um ou mais embaixadores, parece se repetir em
Douglas traz à tona a rede de foliões da qual faz par- quase todos os relatos de embaixadores com quem
te, sem perder de vista os falecidos. Atualmente, ele, conversamos. Ainda que se tenha o hábito de ler a Bí-
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blia, as profecias, a presença de um ou mais mestres é desenvolve na folia. Assim, um embaixador consegue
recorrente. acessar versos por inspiração; da mesma forma que
consegue criar segundo as circunstâncias e, ainda, de-
Divino da Veinha destaca, ainda, que: corar e reproduzir um vasto arsenal de versos mais ou
A resposta é a que tem mais oportunidade de apren- menos fixos. Ressaltamos, no entanto, que essas “mo-
der a embaixar uma folia, porque ali ele está ouvin- dalidades” de criação na prática do giro se misturam e
do tudo que canta, esta respondendo o que canta. se complementam. A explicação de Luís Carlos sobre
Então é mais fácil de aprender isso (Divino da Vei- o repente elucida este fenômeno:
nha, maio de 2014). Pra cantar é exatamente um repertório assim, de
Ou seja, à medida que vai escutando os versos en- repente. Tem que ter o repente na hora. Porque mui-
toados pelo embaixador, o folião – principalmente se tas vezes você chega nas casa e não sabe nem o que
estiver cantando na resposta – vai incorporando-os vai acontecer nem o que vai ver na hora, né!? Aí
em uma espécie de arsenal de versos. Isto notadamen- você tem que inventar. Essa palavra inventar é uma
te com relação aos versos considerados fixos, que va- forma de dizer, mas a realidade não é bem inven-
riam pouco; mas também vale para aqueles criados na tar. Vem lá uma, parece que até uma mensagem que
hora, segundo a circunstância, já que o folião aprende vem de cima. E não é bem inventar. É completar o
a forma pela qual se cria no repente e aumenta sua que você está sentindo naquele momento. Dizer o
gama de rimas e combinações: que você sente daquilo que você está vendo naquele
momento. E agora tem uns versos que a gente faz,
Repente é um dom que Deus dá pra gente, né!? Eu estuda e decora. Mas é pra chegar num presépio,
aprendi a embaixar folia mesmo de ver os outros numa coisa que você já sabe o que vai acontecer lá
cantar, nunca peguei uma cópia. Nunca peguei na frente. Lá naquela casa tem um presépio. Então
nada. Fui vendo. E embaixar folia é repente. A gen- lá naquela casa eu vou cantar sabendo. Agora, as
te canta o que está vendo ali na frente, né!? A gente casas que você chega e encontra tudo de surpresa, aí
vê e vai inventando e vai falando (Zinho, dezembro você tem que fazer, inventar na hora. Aí é o repente
de 2013). (Luís Carlos, dezembro de 2013).
A referência, na fala de Zinho, ao dom dado por Zinho lembrou, ainda, das embaixadas que seu
Deus, torna a questão da transmissão de saberes na pai, Dé, e seu tio Joaquim, faziam de dois. Isto é, um
Folia de Reis ainda mais complexa. Porque temos, dos dois fica responsável por embaixar – entoando os
em alguns casos, o aprendizado de elementos da folia versos – e o outro o acompanha em um dueto, geral-
associado à presença de um dom, que não se ensina. mente com uma voz em um intervalo de terça mais
A pessoa nasce com um dom, de conexão divina, e o alto; intervalo comum nas duplas de música caipira e
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que demonstra sua origem nas folias. Divino da Vei- pra ele ajudar a falar o verso junto, certinho. Porque
nha e Seu Lourenço, acostumados a embaixar de dois se ele atravessar na frente do embaixador, ele fala
há aproximadamente quarenta anos, nos explicam um verso eu falo outro! Aí atrapalha!
como funciona esta parceria:
Lourenço: A gente é acostumado com isso, conhe-
Divino da Veinha: O primeiro que puxa é o embai- cido há muito tempo, a gente vai indo acostuma...
xador. Agora o outro parceiro ele faz é acompanhar. Quando ele começa a abrir a boca a gente já sabe
De forma que ele tem que atrasar um pouquinho qual verso ele vai cantar, né!? Então a gente sempre
Lazinho e Divino da Veinha embaixando em dupla

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dá uma atrasadinha pra não atalhar o verso que ele com o companheiro, porque ajuda a gente a firmar
vai cantar. Mas também a gente tá acostumado. Na o ritmo da cantoria.
hora que ele inicia, que dá início no verso, a gente
sabe o que vai ter pra frente. E mais é o costume! Lourenço: Uai, de vez em quando eu canto so-
Graças a Deus nós fica junto muito tempo, cantan- zinho. Tem umas toadas que sozinho pega bem,
do muito junto. né!? Mas tem umas que a gente tem que ir de
dois. Sempre que a gente está de dupla, a gente
Divino da Veinha: Tem que fazer um verso pra po- tem que tirar na segunda pro outro ir na primei-
der completar aquele que tá apresentando. Nós va- ra, né!? Firma a voz! Principalmente aquela de
mos entrosar no verso! Mas ele, como embaixador, São Sebastião. Eu gosto de cantar de dois, enten-
já sabe como vai rimar. Que que acontece? Ele vai deu? É bom cantar de dois. É gostoso! (dezembro
atrasar um pouquinho pra ele ver onde é que eu vou de 2013).
cair com a rimação. Porque o verso tem varias rima-
ções junto com ele. Dá de uma forma e dá d’outra. E Conversar com Seu Lourenço e Divino da Vei-
então é devido disso aí que ele atrasa um pouquinho nha a respeito da embaixada de dois foi surpreen-
pra saber em qual delas eu vou cair. Mas como nos é dente. Afinal, sempre foi muito intrigante observar
treinado e acostumado ele já sabe onde eu vou cair. dois foliões embaixando “ao mesmo tempo”. E como
explicam os embaixadores, na verdade existe uma
Talita: Desde quando vocês cantam juntos?
diferença entre embaixar e acompanhar. E, para que
Divino da Veinha: Tem bastante ano, né compadre? este acompanhamento funcione perfeitamente, o fo-
lião que está acompanhando precisa saber como que
Lourenço: Pra falar a quantidade de ano não dá nem o embaixador completará o verso: “o verso tem vá-
pra saber, mas menos de trinta anos não tem não! rias rimações junto com ele”; assim, o início do verso
Divino da Veinha: É de trinta a quarenta anos jun- já indica as possibilidades do que vem em seguida.
tos. Então quer dizer que eu já sei o que ele sabe. E Mas, como não existe apenas uma possibilidade, o
ele sabe o que eu sei. Fica fácil de embaixar! folião que acompanha atrasa um pouquinho sua en-
trada para saber mais precisamente qual das opções
Lourenço: Muita hora a pessoa até admira, mas por o embaixador escolherá. No entanto, ressalta Divino
que que você sabe que que ele vai cantar? da Veinha e Seu Lourenço: “nós é treinado e acostu-
E questionados com relação à preferência entre mado”; convivem e cantam juntos há muito tempo!
embaixar sozinho ou de dupla: Assim, conhecendo em profundidade um ao outro,
consegue-se “prever” – “quando ele começa a abrir a
Divino da Veinha: Todos dois pra mim. Tanto faz boca” – onde que o embaixador “vai cair com a rima-
sozinho ou com a dupla. Mas de preferência mais ção”. Ou seja, presenciamos, na explicação, uma exal-
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tação das relações duradouras e antigas! Afinal, não Outro ponto a ser destacado a partir das falas de
é todo dia que encontramos parceiros de folia que Seu Lourenço e Divino da Veinha é o arsenal de ver-
cantam há cerca de quarenta anos juntos. O mesmo sos da Folia de Reis e, assim, a criação dentro de uma
é válido para João Cigano e Toninho, que além de tradição. Existe uma infinidade de versos tradicionais
serem cunhados, cantam juntos como companheiros – sendo que “o verso tem várias rimações junto com
na resposta, desde 1978 e, na embaixada, há mais ou ele”. E o embaixador escolherá uma dessas rimações
menos treze anos, quando João Cigano começou a na composição do verso. Assim, quanto mais versos
embaixar na região da Inhuminha. e possibilidades de combinação um embaixador co-
nhece – ou tem acesso – maior sua gama de criação
Manoel aprendendo a tocar o pandeiro dentro da tradição. O processo de se tornar um em-
baixador carece, portanto, também da incorporação
desta coleção – tradicional, mas não completamente
fixa ou engessada! À medida que acessa e coloca os
versos em ação no cantorio, cada embaixador acres-
centa sua marca pessoal.
Para se tornar um embaixador, todavia, um folião
precisa saber mais do que decorar ou criar versos no
repente, segundo as situações do giro. O embaixador
precisa conhecer a fundo a profecia, saber com segu-
rança as passagens do nascimento de Jesus e de outras
circunstâncias de sua vida. Além disso, ele exerce uma
importante mediação tanto entre os seres humanos
como entre esses e Deus e as santidades. Em outras
folias – e nas folias da região de Inhumas, em outros
tempos – alguns embaixadores exercem também a
função de líder espiritual, apresentando a capacidade
de benzer um folião ou o grupo e de restaurar o equi-
líbrio e a harmonia deste numa situação adversa, ro-
deando ou neutralizando as forças malignas, pegando
com Santos Reis (RIOS e VIANA, 2012).
Os palhaços têm igualmente a obrigação de co-
nhecer a profecia, tanto quanto ou mais que o embai-
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xador. Eles inclusive têm a responsabilidade de lidar parecendo compreender a importância do ingresso de
com o mal muitas vezes de forma mais direta que o novos pastorinhos na companhia, atendiam aos seus
embaixador, uma vez que coube a eles enganar os sol- pedidos de presente, dando sempre um trocado, um
dados de Herodes para ajudar na fuga de Maria, José e sabonete ou alguma outra prenda. Assim, inicialmente
o Menino Jesus para o Egito. A relação entre palhaços envergonhados, foram, paulatinamente, se soltando e
e embaixadores e seus saberes é tão íntima que pra- incrementando as performances – dançando, fazendo
ticamente todo embaixador com quem conversamos versos para pedir presentes e agradecendo os donos da
em Inhumas e região já trabalhou na farda. Vivencia- casa –, chegando a haver, em alguns momentos, dispu-
mos, inclusive, em Inhumas, um dia em que os pa- ta para garantir um lugar na farda!
lhaços mais experientes não puderam comparecer no
giro antes do fim de seu expediente de trabalho e foi Muito do que eles desempenharam foi aprendido
Thiago, embaixador, quem assumiu um dos postos, a partir da observação de palhaços mais experientes
numa chegada de pouso. Brilhantemente, aliás 14! na farda. Durante as chegadas nos almoços e pousos,
no entanto, na presença dos arcos, entrou em ação a
Este e o dia subsequente foram especialmente in- transmissão direta de saberes por um palhaço mais
teressantes para acompanharmos o processo de trans- antigo. Thiago, que neste momento optou por uma
missão de saberes relativos ao palhaço. Devido às jor- espécie de aula prática, ficava ao lado dos palhaci-
nadas de trabalho e ao fato de Vanderlei, um palhaço nhos, dizendo em seus ouvidos, passo a passo, os ver-
experiente, ser festeiro naquele ano, a companhia não sos que eles deviam falar e como deveriam proceder:
pôde contar com nenhum de seus pastorinhos “titula- pedir licença para os donos da casa; fazer as mesuras
res”. Sobrou para as crianças – Artur de Deus Pinheiro próprias dos pastorinhos; perguntar se tinha presente
Gouvea, de doze anos (neto de Maria Divina); Manoel no arco para os dois bastião; procurar os presentes;
Pereira Maciel, de nove anos (filho de Vanderlei) e Kai- fazer versos agradecendo; dar uma série de vivas; e,
ke Reis Silva, de doze anos (filho de Toninho, Antônio finalmente, passar a palavra para o embaixador. Em
Batista da Silva) – a responsabilidade de vestir as fardas. muitos momentos, os palhacinhos não entendiam o
Se revezando, dois a dois, os meninos desempenharam que seu mestre falava e virava uma grande confusão!
algumas de suas primeiras performances na farda! Os Contudo, os donos da casa, cientes da importância do
integrantes da companhia e donos das casas trataram que estavam presenciando, reagiam como se estivesse
logo de incentivar os garotos, com várias espécies de ocorrendo tudo perfeitamente.
reforço positivo. Os foliões aplaudiam as danças e grita-
vam vivas aos novos palhacinhos. Os donos das casas, Mateus Machado Taveira, de seis anos, neto de
Dona Divina (Eva Lopes Machado), de Itauçu, tam-
14. O mesmo presenciamos em um giro de folia na região do Serra Abaixo, com
bém é um jovem palhacinho. Ele, nos conta sua avó,
Fernando na farda. desde muito novinho se interessa pela folia, princi-
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palmente pelos palhaços. Quando tinha por volta de viva / na panela de mandioca”. Assim, sem conseguir
quatro anos ganhou uma farda e uma máscara, feitas controlar o riso, Toninho precisou explicar-lhe que os
especialmente para ele. Foi no ano de 2013, a primeira Reis não bebiam coca-cola em sua viagem.
vez que o vimos na folia. Ele, ainda bastante princi-
piante na função, acompanhava os dois pastorinhos Estas foram as primeiras vezes em que vimos pa-
mais experientes, ficando sob sua responsabilidade lhacinhos sendo iniciados nas Folias de Reis em Inhu-
dar os vivas, depois que eles proferissem os versos. mas e região. E, embora nesta circunstância a farda
Diante do presépio, se comportava da maneira corre- tenha cumprido importante papel na socialização dos
ta, imitando os mais velhos – na hora de tirar a más- meninos na folia, geralmente a entrada das crianças
cara, ajoelhar, se aproximar e afastar da manjedoura. se dá via pandeiro e caixa e, em alguns casos, também
Mas ficava em silêncio, aguardando o momento de na sexta voz. Artur começou batendo caixa. Kaike e
falar Viva o Menino Jesus! Em janeiro de 2015, tive- Manoel tocam pandeiro. Marina Pereira Maciel, de
mos a surpresa de encontrar Mateus novamente. Só quatorze anos, irmã de Manoel, experimentou bater
que, dessa vez, dividindo com os outros dois palha- a caixa em 2014. Mateus também está começando a
ços os versos obrigatórios do presépio e mais seguro tocar pandeiro.
de suas responsabilidades e maneiras corretas de agir Os netos de Divino da Veinha seguem o mesmo
nos giros. Mateus tem uma habilidade impressionan- caminho. Wakman Pereira dos Santos Filho, de dez
te para decorar versos dos palhaços. E quase não se anos, seu irmão, Jean Carlos Pereira dos Santos, de
acanha se um morador lhe pede que dance ou recite seis anos, o primo, Eduardo Vieira dos Santos de qua-
um versinho. Numa casa, na região da Inhuminha, torze anos e a prima, Mireli Vieira dos Santos, de de-
presenciamos essa habilidade mais uma vez. O em- zessete anos tocam caixa e pandeiro. Luiz Henrique
baixador Thiago lhe ensinava alguns versos divertidos Moreira dos Santos, de quatro anos, está aprendendo
do tempo em que vestia a farda e Mateus rapidamente a tocar pandeiro e começando na farda. E o avô, sem-
os incorporou a seu repertório! pre muito orgulhoso dos netos, faz questão de deixá
-los tocar na sua folia, na qual a preferência para tocar
Mateus, entretanto, afirma que aprende mais ob-
o pandeiro e a caixa são, muitas vezes, motivo de briga
servando os palhaços mais experientes do que quan-
entre os meninos – que, evidentemente, não querem
do lhe sopram o que deve falar. E já mostra capacida-
abrir mão dos instrumentos para o outro poder tocar!
de de criações de seus próprios versos; o que algumas
vezes leva a audiência à risada. Foi, por exemplo, o A gravação dos cantos de Divino da Veinha con-
que ocorreu em uma folia em Inhumas. Instado a dar tou com Wakman na execução da caixa. Apesar de ter
um viva para cada panela na mesa dos foliões, saiu- ficado ansioso com a situação de gravação e, por isso,
se com o seguinte verso: “Os Três Reis envém giran- ter tido alguma dificuldade para manter o andamento
do / cansados de beber coca / vamos todos dar um e a intensidade da batida, seu avô em momento algum
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cogitou substituí-lo. Sob os olhos atentos do padrinho sem significar um problema (felizmente, não signifi-
Cleomar Vieira dos Santos, Wakman bateu a caixa em caram!), para o projeto como um todo e para a Folia
todos os cantos gravados pelo avô. Seu irmão, Jean de Reis, foi fundamental a manutenção de Wakman
Carlos, mesmo não tendo participado, acompanhou na função: permitir que ele ocupasse posto de tama-
toda a gravação. nha responsabilidade e importância ao lado do avô
constitui um poderoso mecanismo de transmissão de
Embora para o resultado final da gravação de Di- saber e de salvaguarda da folia. E então, tivemos Di-
vino da Veinha as pequenas oscilações da caixa pudes- vino da Veinha embaixando; seu filho, Cleomar, na
Luiz Henrique com o palhaço

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sanfona e na sexta voz; e seu neto, Wakman, na caixa. para um iniciante calcular sua duração correta. Daí
a intervenção de Fernando, uma vez que essa pausa
Outro exemplo interessante da transmissão de é preenchida justamente com as batidas no aro. Ao
saberes e do investimento nas novas gerações se deu fazer a sequência completa – as batidas no couro e no
com Manoel e Marina, filhos de Vanderlei. Manoel aro – o processo se tornou mais simples e facilitou seu
está aprendendo a tocar o pandeiro. Ele ganhou o ins- aprendizado. Fernando, que acompanha a folia desde
trumento de seus pais e, em várias casas que a folia en- criança – passando pelas etapas de aprendizado e en-
trava para cantar, lá estava ele com pandeiro na mão. sinamento – conhecia uma maneira didática de ensi-
A orientação geral era de que ele ficasse ao lado do nar naquele contexto.
outro pandeirista, acompanhando seus movimentos.
E o menino, ansioso, ora acertava a batida, ora des- Muitos foliões que exercem mais de uma fun-
concentrava e quase atrapalhava toda a companhia. ção na companhia relatam que o aprendizado dos
Depois de algumas ralhadas e outras orientações, lá ia vários saberes que hoje detêm foi gradual, atra-
ele tocar de novo! Apesar de ainda não ter tanta firme- vessando várias etapas e níveis de dificuldade.
za no pandeiro, Manoel pegou com facilidade a bati- A maioria relata que começou batendo a caixa e
da da caixa. Sua irmã, Marina, de catorze anos, havia o pandeiro, sendo estes uma espécie de porta de
me pedido que a ensinasse a batê-la e ele, mais que entrada para os mais jovens. No entanto, há foli-
depressa, foi se aproximando e afirmando que que- ões que cantam na resposta, atuam como palhaço
ria aprender também. Talvez por ser a primeira vez e não conseguem tocar a caixa ou o pandeiro. Não
que Marina acompanhava mais detidamente a folia, há, portanto, uma sequência fixa de aprendizagem
precisamos de mais tempo para que ela incorporasse seguida por todo folião.
o ritmo da folia. Manoel, que vem sempre acompa-
nhando seu pai nos giros – e mais estimulado a ponto A esse respeito, a trajetória de Fernando é emble-
mática. Nascido numa família com tradição na Folia
de ter ganhado um pandeiro – já tinha a batida da
de Reis, que sempre dava almoço nos giros, ele via
caixa praticamente internalizada. Faltava controlar o
muitas folias na infância, na região da Água Verme-
andamento e a intensidade das batidas.
lha, tendo desde pequeno verdadeira fascinação pela
Assistindo às minhas tentativas de ensinar Mari- festa. Didito, seu padrinho, foi o primeiro que o levou
na a bater o instrumento, Fernando, crescido na fo- na folia, na região do Serra Abaixo, por volta de 1999,
lia, se aproximou e corrigiu: “Ela tem que bater no quando ele tinha em torno de 12 anos. Depois Didito
couro e no aro”. Pensando que seria mais simples colocou-o para vestir farda e também para embaixar.
começar apenas com a batida do couro, eu orienta- João Guará o ensinou a fazer os versos do palhaço, in-
ra Marina a concentrar nele e esquecer o aro. Dessa clusive emprestando um livro com as colunas. Geneci,
maneira, no entanto, ficava uma pausa longa e difícil por sua vez, ensinava a Fernando e Thiago versos de
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embaixada por meio de desafio entre eles com versos instrumento nem cantava, quando a folia foi jantar,
de folia, quando esses eram meninos. E ensinou-os foi escorraçado por um dos serventes que o man-
também a tocar violão. dou sair da fila e esperar que os foliões se servis-
sem primeiro. Era um tempo em que menino não
Uma maior atenção e cuidado com a transmissão retrucava os mais velhos. Lourenço saiu chorando
de conhecimentos às novas gerações, entretanto, são e não quis – e sequer conseguiria – comer, tão ma-
características relativamente recentes na Folia de Reis goado ficara. E avisou a sua mãe que só voltaria
na região; possivelmente derivada da legítima preocu- para a folia quando pudesse desempenhar algum
pação com a continuidade da festa. Foliões mais anti- papel no grupo.
gos relatam, ao contrário, que, entrando no grupo, pre-
cisavam criar seu próprio caminho para ir aprendendo, Para manter o cumprimento da promessa, a famí-
pela participação no giro e observação dos mais expe- lia providenciou um cavaquinho, que o menino logo
rientes, essa variada gama de conhecimentos. A entra- aprendeu. Assim, com oito anos de idade, Lourenço
da de Seu Lourenço na folia mostra bem essa diferença. participou efetivamente de sua primeira folia, tocan-
do o instrumento. Logo, passou para o violão e a viola.
Seu Lourenço começou a acompanhar a folia com Depois, já rapaz, começou a tocar também a sanfona.
sete anos de idade, cumprindo uma promessa feita Hoje, no alto de seus setenta e dois anos, é um folião
por sua mãe, benzedeira muito devota de Santos Reis. completo. Faz todas as vozes – da embaixada à sexta –
Um pouco antes de completar um ano de idade, Seu e toca todos os instrumentos da folia. Tendo aprendi-
Lourenço havia começado a andar, mas logo depois
ficou alguns meses entrevado, e não conseguia mais Rannier e Lourenço em apresentação no seminário
caminhar. Sua mãe fez, então, a promessa de que, se
o menino sarasse, assim que tivesse idade suficiente,
todo ano acompanharia a Folia de Reis durante três
dias. Assim, quando completou sete anos, o menino
Lourenço começou a cumprir a promessa feita para
sua cura, acompanhando, na garupa do cavalo de um
folião amigo de seus pais, o grupo de folia de Bastião
de Souza, que girava na região compreendida entre
a Cachoeira das Lages e o Córrego Quilombo (Santa
Amália).
Em seu primeiro giro, porém o menino sofreu
uma grande decepção. Naquele tempo, a folia não
usava divisa e, como ele ainda não tocava nenhum
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do tudo isso praticamente sozinho, segue cumprindo de Bastião de Souza na região, juntamente com sua
a promessa feita por sua mãe, escolhendo uma dentre namorada, que cantava na requinta. Faltando pouco
as muitas folias que participa em um ano para, duran- para a chegada no pouso, a namorada, que vinha can-
te três dias, cantar ou tocar em todas as casas em que tando em várias casas seguidas, avisou ao capitão que
a folia passa. queria descansar um pouco, pensando em aproveitar
a oportunidade para se encontrar com o namorado.
Nos idos em que Seu Lourenço era um iniciante
Bastião de Souza, percebendo os móveis recôndi-
na Folia de Reis, há sessenta anos, os embaixado-
tos do pedido, que feria um preceito de abstinência
res eram mais raros. Desse tempo, ele se lembra de
observado pelos antigos, apenas avisou: “Então, está
Bastião de Souza, Zé Pequeno, Agostinho, Chico
Capoeira e Joaquim Caixeta. A maior parte desses bem! Mas você não canta em mais nenhuma casa hoje
embaixadores antigos se diferenciavam dos atuais nem amanhã”. Em seguida, a moça perdeu a voz. No
por serem sabidos; termo local usado para desig- terceiro dia, Bastião de Souza chamou a jovem, mo-
nar que eram rezadores, benzedores, conheciam lhou um graveto num copo d’água, e deu para ela be-
plantas medicinais e tinham um repertório de fór- ber. Em seguida falou: “Agora pode ir cantar”. E a voz
mulas, ritos e rezas para se proteger e também li- saiu limpinha e linda.
vrar seu grupo da maldade alheia – especialmente A forma de lidar com as crianças nos grupos de
da inveja e do mau-olhado de outros grupos e/ou folia alterou-se significativamente, como podemos
embaixadores, normalmente percebidos como ri- perceber. O giro da Folia de Reis, entretanto, perma-
vais. É desse tempo e dessa característica que vem nece como o principal responsável pela continuidade
os causos – quase sempre referidos, sem circuns- da manifestação ao longo de gerações: o próprio giro
tâncias precisas, ao tempo dos antigos – das dis- fornece condições para sua perpetuação. Nele se ensi-
putas de versos que se seguiam a um encontro de na, aprende, cria. E não há um ponto final no apren-
bandeiras, que obrigavam o perdedor a entregar dizado dos foliões: a circulação de saberes, toadas e
sua bandeira e seus instrumentos ao ganhador.
versos é infindável. Completa, Divino da Veinha:
Esses foliões antigos são geralmente percebidos,
Eu venho aprendendo por observação e não tive
hoje, como pessoas severas, intransigentes com a dis-
professor fixo assim não. Porque nós, embaixado-
ciplina do grupo e com a observação de certos pre-
res, é o seguinte: eu canto uma coisa, eu ensino. Por
ceitos e interdições. E não hesitavam em educar pelo
exemplo, eu canto uma coisa que o Luís Carlos não
castigo exemplar.
sabe, ele aprende comigo. Ele canta uma coisa que
Zé Galdino, que atua na farda e na quarta voz no eu não sei e eu aprendo com ele. Então de forma
Cerrado da Conceição, lembra que ainda rapaz, em que um capitão, embaixador, ensina uns aos outros
torno de seus dezesseis anos, estava girando no grupo (Divino da Veinha, maio de 2014).
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Toadas de Santos Reis em forte migração para o município, com os contatos dos
Inhumas, Goiás embaixadores com LPs, fitas cassetes, vídeos e CDs de
Folias de Reis de outras localidades, com o intercâm-
Sebastião Rios bio decorrente da participação de foliões de Inhumas
Talita Viana nas folias da região (Araçu, Caturaí, Damolândia, Ita-
beraí, Itaguari, Itauçu, Petrolina, Santa Rosa, Taqua-
ral, Trindade entre outras) e em encontros de Folia
Sentidos e estrutura musical das de Reis.
toadas de Santos Reis
As toadas costumam ser identificadas pelo nome
do folião – contemporâneo ou antigo – que as criou e/
A Folia de Reis reúne uma série de funções re- ou repassou (João Baianinho, Geneci), da localidade
ligiosas que são conduzidas por meio da música. A em que foi ouvida (Cerradinho, Damolândia, Trinda-
devoção, o cumprimento de uma promessa, a ofer- de), da estrutura de vozes na resposta ao cantorio do
ta de um almoço ou de um pouso, a realização das embaixador, de um trecho da resposta, da estrutura
visitas, a saudação de um altar ou de um presépio, da estrofe etc.
tudo se perfaz mediante o cantorio, embora em al-
A estrutura mais frequente da Folia de Reis na re-
guns momentos algumas dessas funções possam
gião é a folia de seis vozes, também chamada de folia
ser delegadas aos palhaços da companhia, que se
mineira. Nessa formação, o embaixador, às vezes com
desencumbirão delas recitando os versos apropria-
um ajudante, tira a toada cantando toda a estrofe, que
dos. Deste modo, a comunicação do embaixador
pode ser uma quadra - o que é mais comum - ou um
com os donos da casa e com os festeiros é realiza-
dístico, isto é, uma estrofe de apenas dois versos. Neste
da por intermédio da música, que ocupa, portanto,
caso, a toada é chamada de meio verso porque é neces-
posição central nas funções da Folia de Reis e é in-
sário um segundo dístico para fechar o sentido e a rima
dissociável das obrigações religiosas e da devoção
da estrofe. Apenas a toada Violinha apresentou estrofe
que ela compreende.
distinta, de oito versos, denominada oitava. À embaixa-
As Folias de Reis de Inhumas se destacam pela da segue-se a resposta que repete um ou dois dos versos
grande variedade de toadas apresentadas em seus gi- tirados pelo embaixador. A resposta é entoada por três
ros. A toada compreende a estrutura dos versos e das vozes – segunda, primeira e terceira. A seguir, entra a
respostas, a melodia e o ritmo dos cantos de Reis. No requinta, um segundo conjunto de três vozes – quarta,
trabalho de campo, foram identificadas quarenta e quinta e sexta –, que sustenta de forma prolongada as
duas toadas diferentes. Essa diversidade de toadas não três notas do acorde de primeiro grau oitavado. Apenas
é comum em uma mesma cidade e tem relação com a nas toadas dobradas a requinta tem função diferente.
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A disposição espacial da resposta é de uma meia lua Quando a embaixada é executada em dueto, o
de frente (e ligeiramente oblíqua) ao embaixador. A re- ajudante do embaixador canta os mesmos versos
quinta forma uma segunda meia lua atrás da resposta. numa linha melódica paralela mais aguda, geral-
A embaixada em dueto altera essa disposição espacial, mente num intervalo de terça. O ajudante retarda
deslocando ligeiramente a resposta para trás da dupla de um pouco sua entrada na frase musical para desco-
embaixador e ajudante. brir os versos que o embaixador vai tirar.

Formação do coral vista de trás: requinta, resposta, embaixador e morador

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De modo geral, a resposta inicia-se com a segunda, conjunto do grupo; criando uma harmonia que trans-
a primeira e a terceira voz entrando juntas. No final cende a música.
da frase, elas caem, respectivamente, nas três notas do
acorde maior da tonalidade da folia – o mais das ve- No registro das toadas realizadas pelo projeto, há
zes Fá –, preparando a entrada da quarta, da quinta e duas exceções a esse esquema apresentado para as fo-
da sexta voz, que reproduzem esse acorde maior uma lias de seis vozes. A primeira é a toada dobrada. Nela,
oitava acima. Assim, numa toada em que a estrofe tem numa formação de fileira ombro a ombro ligeiramen-
quatro versos e a resposta repete o último – que é a te inclinada e posicionada no lado oposto do embai-
mais frequente –, as três vozes da resposta cantam o xador, todos os seis integrantes respondem os versos.
verso arrematando-o no “ai” final com as notas F3, A3 Esta fileira é organizada na sequência das vozes mais
e C4. As três vozes da requinta entram nesse mesmo graves para as mais agudas: segunda, primeira, ter-
“ai” com as notas F4, A4 e C5 prolongadas, enquanto ceira, quarta, quinta e sexta voz. Esse esquema vale
as três primeiras vozes da resposta vão desaparecen- também para a ordem de entrada da quarta, da quinta
do. O quinto grau oitavado, cantado pela sexta voz, é a e da sexta voz. As três primeiras entram juntas. Sua
nota mais aguda, C5 no caso da tonalidade de Fá. Por denominação deriva do fato de que, nesse tipo de to-
este motivo a sexta voz não raro é feita por criança ou ada, os foliões da requinta, que cantam na quarta, na
por mulher (CORRÊA, 2006). A entrada da requinta quinta e na sexta voz, dobram as três primeiras vozes
pode ter algumas variações. As três vozes podem en- da resposta.
trar juntas, mas também pode acontecer de a quarta
voz entrar um pouco antes e/ou a sexta voz aguardar A outra exceção são as toadas goianas, que não
uma pausa de semicolcheia antes de entrar. têm a requinta. Na posição triangular oblíqua em re-
lação ao embaixador se posiciona apenas a resposta:
A disposição espacial em meia lua ou triangular segunda, primeira e terceira voz, que repete duas ve-
permite que os cantores projetem suas vozes para um zes os dois últimos versos da quadra tirada pelo em-
mesmo ponto, ampliando os harmônicos nas linhas baixador. É importante não confundir esse sentido de
melódicas encaixadas. O casamento ou enlace das toada goiana com a estrutura musical da Folia de Reis
vozes, como diz Seu Lourenço, forma um fenômeno de quatro vozes, que também é conhecida como Folia
acústico interessante, que, especialmente no caso da Goiana. Na folia de quatro vozes, o “guia puxa a to-
requinta, cria um movimento ascendente que reforça, ada, acompanhado de seu ajudante. Eles cantam em
musicalmente, as intenções de religação com a espiri- dueto os dois primeiros versos de uma quadra, geral-
tualidade e de elevação ao plano do sagrado promo- mente de sete sílabas e, em seguida, o contraguia e seu
vido pela letra do cantorio. E, normalmente, há uma ajudante, também em dueto, respondem, cantando os
relação muito próxima da boa paz e da união dos fo- mesmos versos ou completando a estrofe com os dois
liões e dos devotos com a afinação e a integração de versos seguintes” (CORRÊA, 2006). Essa estrutura
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é mais comum nas Folias do Divino Espírito Santo, teúdo do cantorio com início, meio e fim e com
que, embora bastante presentes no Estado de Goiás, as rimas no final do segundo e do quarto verso.
são menos frequentes na região. Correspondentemente, uma toada de meio verso,
é aquela em que o embaixador primeiro canta um
Alguns cantos de agradecimento de mesa, tam- dístico - dois versos ou duas linhas - e entra a res-
bém denominados bendito de mesa, com versos posta. Em seguida, o embaixador canta as duas li-
fixos, têm a estrutura em que a embaixada, em du- nhas que completam o verso, fechando o sentido
pla, tira os dois primeiros versos e a resposta em e a rima. Nas toadas de meio verso, o embaixador
três vozes completa os outros dois versos da estro- pode cantar os dois versos uma vez, repetir apenas
fe. O agradecimento de mesa a capela também tem um deles ou repetir ambos. O mesmo vale para a
essa forma de completar a estrofe. Mas se diferen- resposta 15.
cia no fato de um grupo de quatro ou cinco vozes
diferentes tirar os dois primeiros versos da estrofe No tratamento de cada toada especificamente,
e outro grupo, com formação semelhante, comple- evitamos o uso de itálico nas referências aos ver-
tá-la. Esse canto a capela se assemelha com o ter- sos ou estrofes. Coerente com a ideia de divulgar
ço cantado e com a ladainha em latim registrados a Folia de Reis também para fora de seus círcu-
em Sagarana, distrito de Arinos, Minas Gerais (CD los habituais, no geral adotamos a terminologia
“Folia de Reis: tradição e fé”). dos estudos literários. O contexto permite ao lei-
tor entender se o termo verso está sendo usado no
O violão é, hoje, na região, o instrumento mais sentido técnico dos estudos de literatura ou se na
usado pelos embaixadores e pelos integrantes da res- acepção de uma estrofe composta por uma quadra,
posta, seguido da viola caipira (ou de arame) e do ca- como é usual entre os foliões.
vaquinho, que comparecem com a mesma frequên-
cia. Poucos embaixadores tiram o cantorio sem tocar O trabalho de identificação das
algum desses instrumentos. Na requinta, o acompa-
nhamento por instrumento é menos frequente do
origens e difusão das toadas
que na resposta. O caixeiro, o pandeirista e o acor-
deonista, normalmente não participam do cantorio. Como já foi reiterado acima, as Folias de Reis
Quando o fazem, costuma ser pela necessidade de em Inhumas se caracterizam pela diversidade e
exercer mais de uma função, num momento em que
15. Essas variações nas toadas de meio verso não têm denominação específica em
o grupo conta com poucos foliões. Inhumas e região. O pesquisador e violeiro Roberto Corrêa (2006) apresenta a
seguinte nomenclatura para a região de Uberaba, Minas Gerais: Reis grande ou
Na terminologia dos foliões, um verso corres- Toada-trovada-nos-quatro-cantos, quando a quadra é cantada de uma só vez pelo
guia; Reis dobrado, quando o guia canta os dois primeiros versos da quadra de
ponde a uma quadra. E uma linha, a um verso. quatro linhas, repetindo versos; Reis pequeno, quando o guia canta os dois primei-
Nesta acepção, um verso apresenta parte do con- ros versos com repetição de apenas um deles (três linhas).

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pela pluralidade, com diferenças na organização atribuição segura de autoria visando o registro nos
dos giros que, em alguma medida, refletem dife- órgãos competentes para que os autores pudessem
renças na própria concepção da Folia de Reis. Essa gozar dos benefícios financeiros advindos do rece-
pluralidade de percepções compareceu também bimento de direitos autorais. Nos interessou, antes,
na tentativa de investigar a origem das diversas entender como, internamente, os foliões trataram
toadas, de esclarecer seu processo de difusão e, dessa questão, a partir de nossas provocações; até
quando era o caso, de estabelecer sua autoria. Nes- então o tema não estava na ordem do dia.
se trabalho de detetive perseguindo os rastros de
uma toada, foi sendo montado um quebra-cabeça Tentando manter a coerência entre o procedi-
com as perguntas e as respostas sobre sua origens, mento da investigação e o método de exposição
difusão, e criação. Este quebra-cabeça permane- dos resultados, as lacunas e incongruências do
ce incompleto e tem algumas incongruências que nossa quebra-cabeça, advindas em parte da plura-
dizem, sobretudo, respeito a respostas divergentes lidade das percepções a respeito da criação de toa-
que derivam de concepções diferentes do que ve- das, foram apresentadas na forma de um mosaico
nha a ser a “autoria” de uma toada. Alguns consi- com as diferentes falas.
deram autoria a efetiva criação de uma toada nova Essas falas precisam ser entendidas no campo da
por um folião. E, nesse quesito, uma linha tênue criação cultural em que foram proferidas, que é a Fo-
e imprecisa, variável conforme a percepção do fo- lia de Reis. A criação ou a introdução de uma nova
lião, separa um jeito diferente de cantar uma toada toada configura quesito de distinção e atribuição de
conhecida – que seria uma interpretação diferente prestígio nesse campo, sendo, portanto, objeto de dis-
– da criação de uma toada nova. Em outros casos, putas nos moldes pensados por Pierre Bourdieu. De
identifica-se como dono da toada aquele que pri- um modo geral, prevalecem na comunidade dos de-
meiro saiu com ela na região, trazendo-a de outro votos os sentimentos de solidariedade e de comunhão
lugar ou tendo-a aprendido a partir de uma audi- e a ética da partilha, mas isso não elimina a emulação,
ção de LP, CD, DVD, programa de rádio etc. Há a disputa e os conflitos no sistema da folia, que envol-
ainda a identificação de uma toada com determi- ve os vários grupos e os devotos.
nado folião, quando a toada é de sua predileção.
Os poucos questionamentos da criação ou da
Essa diversidade de percepções constitui ao primazia de sair com uma toada na região vieram,
mesmo tempo uma riqueza e um problema. Nós o mais das vezes, de embaixadores que “correm na
optamos por fruir esta riqueza e nos abster de ten- mesma faixa”. Em alguns casos, eram providos de
tar resolver um problema tão intrincado. E pude- fundamentos. Noutros, felizmente mais raros, apenas
mos fazê-lo sem restringir o escopo de nosso tra- o extravasamento de características humanas, dema-
balho, uma vez que este nunca teve em mente a siadamente humanas, como o ciúme. Nesse quadro
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de disputas dentro de um campo de produção sim- nação engenhosa de elementos dados pela tradição,
bólica, a solidariedade prevalecente confere os limi- em detrimento do conceito romântico de autoria,
tes do aceitável para os conflitos; o que não impede que pressupõe invenção, novidade e originalidade na
que, excepcionalmente, descambe para o inaceitável. criação de uma obra por um indivíduo relativamente
Ainda nesse caso, a exclusão de algum folião do con- autônomo. Em termos práticos, o que, da perspectiva
vívio com os grupos e a comunidade dos devotos é deste, poderia ser visto como plágio, da perspectiva
muito raro. Quando vimos, a exclusão dizia respeito daquele pode ser percebido como adaptação criativa.
ao estado de embriaguez; e não à pessoa que naquele
momento estava embriagada. Uma vez sóbria, aquela Divino da Veinha defende a necessidade de apre-
pessoa era novamente admitida no grupo. sentar novas toadas para incentivar mais a devoção
e não cansar as pessoas que recebem a bandeira. Ao
Tendo em vista essa percepção da Folia de Reis explicar a relação da letra com a música numa nova
como um campo de produção simbólica, estabele- composição, ele corrobora a ideia da criação a par-
cemos as seguintes categorias básicas para orientar a tir de elementos dados pela tradição, que configura o
discussão: a) as toadas tradicionais, que entendemos conceito de engenho barroco.
como aquelas carreadas pela tradição há algumas ge-
rações e cuja referência de autoria se perdeu no pro- Sebastião: Como é que você faz uma toada? Você
cesso; b) as toadas cuja autoria pode ser estabelecida pega uma antiga, dá uma mexida, ou você começa
com relativa segurança a partir do cotejamento dos do zero?
relatos ou de seu registro; c) as toadas difundidas pela
mídia. Convém, lembrar, entretanto, que essas catego- Divino: É. Tira uns versos que cabe naquela que eu
rias são comunicáveis e que a mesma toada pode per- estou fazendo. Talvez eu pego uma parte, uma pa-
tencer, simultaneamente ou em momentos diferentes lavra de um, uma palavra do outro. E então tiro
de sua difusão, a mais de uma dessas categorias. naquela montagem que eu estou fazendo. Ali forma
a toada.
É preciso não olvidar também que estamos tratan-
do de questões relativas à criação individual em mani- Sebastião: Mas você está falando mais dos versos,
festação tradicional, coletiva e difusa, na qual a comu- das palavras ou da melodia?
nidade dos devotos dá os parâmetros para a criação
Divino: Das palavras. Dos versos, melhor! Agora na
das toadas e/ou dos versos e preserva a prerrogativa
toada da melodia, isso aí a gente mesmo faz. Vê que
de aceitar ou não as inovações apresentadas pelos
é que assenta mais nela. A toada que assenta, vai e
indivíduos inseridos em sua rede de solidariedade e
fica mais certinho.
compromissos recíprocos. Por este motivo, considera-
mos mais produtivo trabalhar com o conceito barroco Sebastião: Então tem uns versos que cabem melhor
de engenho, que admite a criação a partir da combi- em umas toadas do que em outras?
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Divino: Justamente. Tem uns versos que cabem Sebastião: Você acha importante identificar
mais. Dá mais certo numa do que pra outra. quem é o compositor da toada? Isso pra você é
Tudo é composição do que assenta com o outro. uma coisa importante?
Que não adianta você cantar uma letra que a
música não ajuda. Então a letra tem que ser com Divino: É. Eu acho muito importante a gente sa-
a música que ajuda ela. Que é a música que se- ber, porque é uma coisa valiosa, né!? Que a gente
gura o ritmo, que enfeita a letra. Você sabe que tem que dar valor (Divino da Veinha, novembro
é a música. de 2013).

Eterno, Seu Vicente, Alberto e Lindomar Evangelista

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Toadas executadas nos giros da na região em razão de sua inclusão no CD “Trova,
Prosa e Viola”, que intercala causos contados pelo sau-
doso Geraldinho Nogueira com canções da dupla e
Toada Ai meu Deus declamações de poemas por Hamilton Carneiro. Este
CD gozou de muito prestígio e intensa circulação a
A toada Ai meu Deus é conhecida em Inhumas
partir da gravação do show homônimo, que estreou
há uns quinze anos. Ela é comumente associada ao
em dezembro de 1992 e foi apresentado em todo o ano
repertório do embaixador Lindomar Evangelista, que
de 1993 e no primeiro semestre de 1994. O espetáculo
a gravou na faixa 3 de seu CD “Cantando para Deus.
foi produzido e apresentado por Hamilton Carneiro,
Vol I.”, de 2012. Lindomar, todavia, afirma tê-la ouvi-
apresentador do programa “Frutos da Terra”, da TV
do pela primeira vez em um giro de folia em Inhumas,
Anhanguera, afiliada da Rede Globo em Goiás.
há uns dez anos, mas já não se lembra mais com qual
embaixador. A toada foi gravada originalmente como Folia do
Divino. Na versão de 2002, remasterizada e dividida
É uma toada com estrofe de quatro versos, em que
em dois volumes, assinada pela produtora Stylus e au-
a resposta repete o terceiro e o quarto. A requinta en-
torizada pelo Programa Frutos da Terra, ela compõe
tra cantando “Meu Deus”.
a faixa 2 do volume I - ISRC direto - BR ANH - 01 -
No projeto, ela foi gravada pelo embaixador Lin- 00111. Os compositores da letra e da toada são André
domar (faixa 4 do CD 1), que prefere denominá-la e Andrade, Geraldinho e Hamilton Carneiro.
Cantando pra Deus. A versão por ele gravada tem
A toada de André e Andrade tem estrofe de quatro
pequenas modificações com relação a que ouviu ori-
versos. A resposta repete o terceiro e o quarto versos.
ginalmente no giro. O embaixador João Cigano tam-
No projeto, foi gravada pelo embaixador Pedrinho
bém costuma cantar a toada.
(faixa 1 do CD 2).

Toada de André e Andrade


Toada (do) Cerradinho
A toada de André e Andrade 16 é muito conheci-
A toada do Cerradinho deve seu nome à localidade
16. André (José de Freitas Machado) e Andrade (Sebastião de Freitas Machado)
nasceram, respectivamente, em 01/04/1952 e 30/05/1948, na cidade de Itaguari, em que teria surgido: Cerrado da Conceição. Trata-se
Goiás. Filhos de João de Freitas Machado e Maria José Pereira, tiveram sua forma- de um pequeno povoado, pertencente ao município
ção musical na Folia de Reis, acompanhando o pai, que era compositor e catireiro.
Dupla de muito sucesso, com extensa carreira e numerosa discografia, continuam de Inhumas, às margens do Córrego da Conceição.
participando e incentivando a Folia de Reis de Itaguari, juntamente com os demais Também denominado Cerradinho, o povoado está
irmãos, que inclui a dupla Irmãs Freitas. http://blogdomarrequinho.blogspot.com.
br/2012/06/andre-andrade.html. Acesso em 11/06/2015. localizado próximo à rodovia GO 426, no sentido
102
Inhumas - Santa Rosa, entrando à esquerda na Venda Lourenço: É que toada é o seguinte: surgiu a toada,
do Barata e logo pegando à direita. Daí segue por mais um pega, outro pega, né!? Logo tá esparramado. En-
dez quilômetros no sentido oeste numa estrada de tão, a turma de Inhumas pegou também e começou
terra. Outro acesso é pela Rodovia GO 070, no senti- a cantar ela. E todo mundo gosta dela, né!? (Lou-
do de Itauçu, entrando à direita nas proximidades do renço, novembro de 2013).
povoado Santa Amália. Como vários outros da região,
sua população teve um decréscimo significativo a par-
tir da década de 1990, em função da migração para Sebastião: Você acha que essa toada do Cerradinho
as cidades próximas, no caso, notadamente Inhumas. pode ter saído do Cerrado da Conceição?
Seu Lourenço afirma ter escutado a toada do Cer- Pedrinho: Cerradinho. Saiu de nós lá.
radinho pela primeira vez com uma turma do Cer-
Sebastião: Primeira vez que você escutou foi por lá?
rado da Conceição: Divino do Juca, João Farrapo e
Valdez. Segundo ele, isso teria acontecido há apro- Pedrinho: Foi. Aí já saiu e começou um pra aqui,
ximadamente quinze anos. Esta datação, entretanto, outro pra lá e esparramou. Agora eu não sei se ela
pode não ser muito precisa. Pedrinho corrobora a in- é de lá. Isso eu não sei, rapaz. É o tal negócio, se a
formação de Seu Lourenço e confirma que a primei- gente soubesse...
ra vez que ouviu a toada foi efetivamente no Cerrado
Sebastião: Se você soubesse que algum dia ia vir um
da Conceição, com os embaixadores Dé e Nenzinho.
chato querendo saber disso!
Mas, como na ocasião em que a escutou estava na far-
da, isso teria pelo menos vinte anos. Pedrinho: Não! Mas é um prazer que a gente tem. Se
a gente tivesse guardado certinho, né!? Mas essa eu
Além de concordarem a respeito do local em que
vi ela no Cerrado mesmo (Pedrinho, junho de 2014).
ouviram a toada pela primeira vez, suas explicações a
respeito das formas de difusão das toadas também são Na sequência de sua explicação, Pedrinho também
coincidentes. expressa um lugar comum entre os entrevistados no tra-
balho de campo: saber ao certo a origem de uma toada
Sebastião: Tem quanto tempo mais ou menos que não fazia parte de suas preocupações. Se imaginassem
você escutou essa toada? que isso um dia interessaria, provavelmente teriam guar-
Lourenço: Quinze anos. dado ou buscado a informação. De qualquer modo, sabe-
mos que a toada veio do Cerradinho para Inhumas. Não
Sebastião: E foi mais ou menos a hora em que a temos informação, entretanto, se teria sido composta por
turma de Inhumas começou a cantar essa toada algum folião de lá ou, caso isso não tenha ocorrido, como
também? a toada teria chegado no Cerradinho.
103
A toada do Cerradinho tem estrofe de 4 versos em João Cigano: Eu acho muito importante, porque
que a resposta repete apenas o último. Harmonicamen- cada embaixador que cria uma própria toada de-
te, ela tem uma passagem no acorde de sol maior, que monstra que ele dedica à tradição e tem inspiração
é o segundo grau da tonalidade de Fá maior. Isso cor- realmente. É inspirado por Santos Reis a criar aque-
responde ao quinto grau do acorde de Dó maior com la toada.
sétima menor (C7m), que por sua vez é o quinto grau
da tônica, Fá maior. Essa passagem é rara na música Lucas: E você tem interesse em reivindicar direito de
popular tradicional. Na terminologia popular, o acorde autor sobre as toadas que você criou?
de quinto grau com a sétima menor é chamado de se- João Cigano: Eu já vi gente cantar toada minha e
gunda posição ou acorde de preparação para o repouso falar: “fui eu que fiz”.
na primeira posição ou tônica, no caso Fá maior.
Talita: E aí, como é que foi?
A toada (do) Cerradinho é uma das mais tocadas em
Inhumas e região. No projeto foi gravada pelos embaixa- João Cigano: Aí quem tava perto falou: “foi o João
dores Divino da Veinha e Thiago (faixa 2 do CD 2). Tam- Cigano que fez”. E fica assim: é o João Cigano? Ou
bém é da predileção dos embaixadores Luís Carlos, é...? Mas deixa. Tem nada não. Não tenho nada con-
Pedrinho, Lourenço, Hélio. tra também que outro embaixador vê e canta. Agora,
é claro que se falar que é dele, eu já fico meio [con-
Toada Cigana trariado. E penso]: “uai, eu faço a toada e o cara fala
que é dele?” Mas também não é questão de ficar com
raiva do companheiro. Tudo é festa [de Santos Reis].
A toada Cigana foi criada na Inhuminha pelo em-
baixador João Cigano. Quando ele a apresentou pela A resposta de João Cigano enfatiza o aspecto do
primeira vez, alguns foliões do seu grupo acharam direito moral do autor de ser identificado com sua
que parecia toada paulista. Outros, que parecia baia- obra e reconhecido como seu criador. Além disso,
na. Como ele havia cantado, mas não tinha colocado o embaixador faz uma importante distinção a res-
um nome ainda, eles acabaram chamando de toada peito da diferença entre a criação da parte musical
Cigana, por causa de seu apelido. João Cigano, entre- e do verso:
tanto, esclarece que se trata apenas de um apelido, por
ele não ser realmente cigano (João Cigano, dezembro João Cigano: Não tem um verso pra toada porque,
de 2013). na verdade, na Folia de Reis, a gente tem muito
verso próprio [para cada situação. Por exemplo],
Indagado sobre o que pensa a respeito da identi- no altar. E acontece de, na hora, a gente tirar um
ficação da autoria de uma toada, João Cigano deu a de ideia, dentro da linha, e fazer. Eu costumo dizer
seguinte explicação: que, na Folia de Reis, a gente tem que cantar con-
104
João Cigano

105
forme o que acontece. Não tem como planejar uns transmissão da tradição. Em sua família, todo mun-
versos, porque [ao] chegar lá [pode] ser diferente. do gosta de folia, mas, durante muito tempo, ele
Às vezes acontece da gente fazer um verso num de- não soube da existência de nenhum outro folião na
terminado momento ali e depois nem a gente sabe família. Desde a idade de oito anos, João Cigano ia
ele mais. Esqueceu, passou. E foi na inspiração mes- nas folias, dançava catira, batia caixa, vestia farda de
mo! Então tem essas diferenças de verso pra cada palhaço. Com onze para doze anos começou a cantar
momento. na requinta, fazendo a quarta, a quinta e a sexta voz.
Por volta de 21 anos de idade, passou a embaixar fo-
Talita: E como é que cria uma toada? lia. E veio a descobrir, de uma forma inusitada e de-
João Cigano: Agora aí é difícil, porque, na verdade, pois de bastante tempo atuando como embaixador,
quando a gente tá na folia, é difícil a gente criar. As que havia, sim, outro folião na família.
duas toadas que eu criei, eu estava até trabalhando. João Cigano: Um dia, um irmão meu perguntou a
E aí a gente canta e vai pensando: “vou fazer uma meu pai: “Por que só o João canta folia e nós não
toada de folia pra diferenciar um pouco”. Aí eu fui damos conta nem de entoar uma moda, uma mú-
colocando a toada mesmo, porque os versos é igual sica? O senhor gostava de folia?” Aí ele falou: “olha,
eu te falei: “verso é pra cada momento”. Aí a gente eu gosto até hoje, mas o meu pai, onde tinha uma
fica pensando, assim, cantando. Quando cheguei Folia de Reis, ele estava embaixando, dançando um
em casa, peguei o violão e [pensei]: “agora vou ver catira, cantando”. Então, [foi] por causa do meu
aqui se vai dar certo em tal altura, se tem que ser avô. Eu acho que herdei dele. Porque meu pai não
em Mi maior, ou se pode cantar ela em Fá”. E é por cantava, só tocava sanfoninha oito baixo, mas não
aí. É uma coisa assim que não tem muita explica- na folia. Herdei do meu avô. Geralmente puxa, né!?
ção. É inspiração mesmo. Assim, eu até agradeço a Tradição. Puxa o dom.
Deus, porque eu acho que é uma inspiração que dá
pra gente. Porque […] tem gente que fala folia fora Talita: E onde seu avô era embaixador?
do tempo. Eu acho que não. Que todo tempo é tem-
João Cigano: No Estado de São Paulo, Ituverava. É
po da gente lembrar de Jesus. Mas, na verdade, a fo-
engraçado que até nós canta umas toadas paulistas
lia quando está vesprando o Natal, uns dias depois
e eu vi o embaixador na época [cantar] umas toa-
do Natal e até nos dias de Reis, ela é mais inspirada,
das paulistas e achei muito bonito. Aí, por meu pai
tem até mais verso na cachola da gente.
ter falado aquilo, eu falei: “toada que meu avô gos-
Indiretamente ligadas a seu processo de criação, as tava”. Paulista. Era paulista, né!? Dá uma diferença
motivações para João Cigano entrar na folia dão pras toadas. Eu diria que Goiás é uma riqueza de
também uma pista interessante a respeito dos in- cultura, porque mistura muita toada. Toada baia-
trincados caminhos da memória e das formas de na, paulista. Então dá um tchan…
106
Daí que, não por coincidência, João Cigano gravou entretanto, que essas toadas são ditas paulistas em ra-
duas toadas neste projeto denominadas toadas pau- zão de sua sonoridade e não em função de sua origem.
listas: uma de composição do embaixador Albano
Salvador de Souza e outra - cantada para falecido -, A toada Cigana também lembra, pela sonoridade, as
do embaixador João Pedro Carvalhaes. Há que notar, toadas paulistas. Ela tem estrofe de 4 versos. A resposta
repete o último verso da quadra com uma pequena parti-
cularidade. Ao final do verso, a resposta canta “oi, ai” e faz
uma pausa, acompanhada pelos instrumentistas. Ao re-
tomar a frase seguinte, a resposta canta “ai, ai”, preparan-
do a entrada da requinta no terceiro “ai”. Segundo João
Cigano, esta suspensão é que dá o tchan da toada.
No projeto, ela foi gravada por João Cigano (faixa
3 do CD 2).

Toada (do grupo) do Divino da


Veinha

Esta toada é comumente executada no grupo do


embaixador Divino da Veinha. Trata-se de uma toada
com estrofe de quatro versos em que a resposta repe-
te o terceiro e o quarto versos. Embora isso caracteri-
ze uma estrutura relativamente comum, ela tem duas
particularidades. O quarto verso é destacado na estrofe
por uma guia da sanfona que o introduz e pela elevação
da altura da melodia. Reiterando este efeito, apenas a
segunda e a primeira voz respondem o terceiro verso,
cuja melodia é mais grave. Assim, a terceira voz, que
tem o registro mais agudo da resposta, salienta a ele-
vação da altura da melodia ao entrar no quarto verso
após a guia da sanfona. No grupo de Divino da Veinha,
a toada também é, geralmente, executada com uma ba-
tida da caixa distinta.
107
Toada Congada conhecimento ou perda de referência da autoria é jus-
tamente o que caracteriza a toada tradicional.
Seu Lourenço conhece a toada Congada desde seu A toada também pode ter sido incorporada ao re-
primeiro giro de folia com o embaixador Bastião de pertório das Folias de Reis a partir das gravações de
Souza, quando tinha sete anos de idade; há mais de danças de Congo registradas em discos por artistas da
sessenta anos, portanto. Ele não sabe, entretanto, se música sertaneja como Melrinho e Belguinha, João
seria uma composição de Bastião de Souza. Este des- Mariano e Pardalzinho, Moreno e Moreninho. Neste
Lourenço, Maurinho, Cleomar e Jorge

108
caso, tanto é possível que se trate de toada tradicio- va cantá-la reproduzindo a melodia da embaixada no
nal, posteriormente difundida por meio da gravação solo da viola. E acrescenta uma curiosidade. Naqueles
ou que, depois de certo tempo de circulação dessas idos, o fumo era a única coisa que o palhaço ganhava e
gravações das décadas de 1950, 1960 e 1970, ela tenha ficava com ele. O mais era entregue ao festeiro. Assim,
sido incorporada ao repertório dos grupos de folia, na melodia da toada Congada, o próprio embaixador
com a perda de referência dos autores; o que caracte- pedia o fumo para os foliões: “Esse toque é pra ganhar
riza a circularidade do processo de difusão. fumo / é fumo, é fumo, é fumo bão / pra cada um dos
folião / é bão, é bão é, é bão, é bão.” Como praticamen-
Praticamente caída em desuso, o embaixador te todos os moradores plantavam, os foliões voltavam
Thiago gravou a toada Congada no intuito de promo- pra casa com o embornal cheio de fumo de rolo.
ver seu resgate e de apresentar toadas diferentes em
suas gravações. Assim, temos um movimento interes-
sante de promoção da novidade pela recuperação de Toada (do) Córrego Rico
uma toada antiga, promovido pelo mais jovem em-
baixador participante do projeto. Segundo Thiago, o A toada (do) Córrego Rico deve seu nome à loca-
nome da toada se deveria ao fato de ela ter uma batida lidade onde é executada com frequência nos giros da
mais acelerada, que lembraria os cantos da Congada, Folia de Reis. O povoado fica no Município de Catu-
outrora encontráveis na região. raí. Indo de Inhumas para Araçu, entra-se a esquerda
depois do Córrego Serra Abaixo, e anda-se aproxima-
A toada Congada é de meio verso, ou seja, aquela damente cinco quilômetros. O folião Ormírio Pache-
em que uma quadra é subdividida em dois conjuntos co, de Inhumas, sempre gira nessa folia.
de dois versos e a resposta entra a primeira vez ao fi-
nal do primeiro conjunto e, depois, ao final do segun- Segundo João Cigano, trata-se de toada antiga,
do. A rima, nesse caso, se perfaz com a execução da conhecida em Itauçu há trinta anos pelo menos. Era
segunda parte, “que completa o verso”. Assim, a rima bastante executada pelos embaixadores antigos da re-
se dá entre o segundo verso do primeiro conjunto e gião: Dimas, Felipe e Geraldo Cândido.
o segundo verso do segundo conjunto; o que exige
Córrego Rico é uma toada de meio verso em que a
especial atenção do embaixador, já que a resposta se
resposta repete o segundo verso do dístico.
intercala na embaixada.
No projeto, a toada foi gravada por Lindomar (fai-
O embaixador canta o primeiro verso uma vez e
xa 4 do CD 2). Na folia da Inhuminha, em 2014, ela
o segundo verso duas vezes. E a resposta reproduz o
foi executada por Eugênio (da dupla Eumar e Eugê-
dístico da mesma forma.
nio) e por João Cigano. Também é executada com fre-
Segundo Seu Lourenço, Bastião de Souza costuma- quência nos giros da Folia de Reis em Inhumas.
109
Thiago

110
Toada (de) Damolândia nos 19 anos de idade, João Cigano passou a ajudá-lo na
embaixada. Nessa época, João Pedro Carvalhaes tinha
Esta toada está incorporada há muito tempo ao em torno de sessenta para setenta anos de idade e logo
repertório dos foliões de Inhumas, sendo considera- veio a falecer (João Cigano, dezembro de 2013).
da uma toada tradicional. É identificada como tendo Assim, a informação que temos é que o embaixa-
vindo de Damolândia; daí seu nome. Não temos in- dor João Pedro Carvalhaes cantava essa toada, que
formação se teria sido levada para Damolândia por trouxe de Jacuí, Minas Gerais. Não é sabido se ele a
imigrantes ou se é composição de algum folião da teria composto ou apenas trazido na mudança para
cidade. Goiás. Sua proximidade estilística com as toadas cos-
tumeiras dessa parte do Sul de Minas Gerais, entre-
A toada (de) Damolândia é uma quadra. A respos-
tanto, leva a crer que se trataria de toada tradicional
ta reproduz o quarto verso. Da predileção dos embai-
na própria região de origem.
xadores Lourenço e Divino da Veinha é considerada
uma toada macia (faixa 5 do CD 2), isto é, com anda- Além dessa toada, o embaixador João Pedro Car-
mento mais lento. Isso faz os foliões desconfiarem de valhaes cantava outras toadas trazidas de Minas Ge-
uma possível origem mineira, uma vez que as toadas rais, uma delas também dobrada. Esta, porém, não
goianas geralmente são mais aceleradas. A toada de conseguimos registrar e, ao que tudo indica, caiu em
Damolândia costuma ser solicitada pelos foliões da desuso. Alguns familiares do embaixador João Pedro
resposta e da requinta tanto por a apreciarem como permanecem na região da Inhuminha, que passou por
em homenagem à memória do embaixador Eurípides um processo drástico de despovoamento com a me-
Lúcio, a cujo repertório é associada. canização da lavoura. Outros, residentes atualmente
em Itauçu e em Inhumas, costumam comparecer na
região, prestigiando o giro da Folia de Reis.
Toada Dobrada
A toada Dobrada deve seu nome ao fato de, nela, a
Toada tradicional trazida pelo embaixador João requinta – quarta, quinta e sexta voz – também cantar
Pedro Carvalhaes, de Jacuí, Minas Gerais, para a os versos tirados pelo embaixador, como faz a respos-
Inhuminha, nas cabeceiras do Rio Meia Ponte. Hoje, ta. A formação espacial do grupo para a execução da
a Folia da Inhuminha é tocada pelo embaixador João toada dobrada é a de uma fileira com os seis integran-
Cigano e seu cunhado Toninho, contando ainda com tes da resposta posicionados no lado oposto do em-
a ajuda do embaixador Pedrinho e de seu grupo. João baixador e do ajudante. Esta fileira é organizada pela
Cigano conheceu o embaixador João Pedro Carvalha- altura das vozes, das mais graves para as mais agudas.
es quando era menino e não lembra, portanto, a época Assim, começa pela segunda voz e segue com a pri-
em que ele veio para Itauçu. Quando tinha mais ou me- meira, terceira, quarta, quinta e sexta vozes.
111
A estrofe da toada Dobrada tem quatro versos. O outras toadas, passaram a tocar a toada dobrada em
embaixador canta em solo os três primeiros versos da Fá, o que dificulta para as vozes mais agudas.
quadra e o ajudante do embaixador entra na segunda
sílaba do quarto verso. A segunda voz, a primeira voz No projeto, a toada dobrada foi gravada pelo em-
e a terceira voz da resposta repetem inicialmente duas baixador João Cigano (faixa 6 do CD 2). Com grandes
vezes o terceiro verso e, depois, o quarto verso tam- alterações recentes em seu grupo, João Cigano está
bém duas vezes. A entrada da quarta, quinta e sex- tentando agora reintroduzir a toada Dobrada, ensi-
ta voz corresponde a sua disposição na fileira. Deste nando-a aos foliões que o acompanham atualmente.
modo, a quarta voz e a quinta entram na segunda síla- Da formação original, ele conta com Toninho, seu
ba do quarto verso e a sexta voz entra na segunda sí- cunhado, ajudando o embaixador, Caneta (Valdelino
laba de sua repetição. Uma vez que entraram no coro, Luís Batista) – que é genro do embaixador João Pedro
todas as vozes permanecem até o fim da resposta. Carvalhaes –, na segunda voz, e com João Batista Fer-
reira, na quinta. Outros foliões vêm do grupo do em-
Com relação ao encaixe das vozes, a segunda e a baixador Pedrinho, que passou a atuar em conjunto
primeira voz sobem a melodia no terceiro verso e des- com João Cigano a partir de 2014. Destarte, os grupos
cem no quarto, fazendo o movimento inverso da en- de Folia de Reis de João Cigano e de Pedrinho têm
trada das vozes agudas da quarta, quinta e sexta voz. atuado juntos na região, tirando a folia de João Ciga-
Na parte da métrica, a toada dobrada tem a particula- no, da Inhuminha (mas também em Itauçu), entre 25
ridade de a primeira sílaba do segundo, do terceiro e e 30 de dezembro, e a do Pedrinho, em Itauçu, de 1 a
do quarto versos serem antecipadas nas exclamações 6 de janeiro. A gravação contou ainda com a ajuda do
que acompanham o verso anterior, notando-se, as- folião Licinho (Moralício Tertuliano da Silva) que é
sim, um deslocamento entre a frase literária e a frase do grupo da família do embaixador Olício, todos de
musical. Deste modo, na primeira frase musical, cor-
Itauçu.
respondente ao primeiro verso, a última nota da frase
coincide com a primeira sílaba do segundo verso, que Pedrinho confirma a dificuldade de cantar nes-
é antecipado. E isso se repete na segunda frase musi- sa toada, pela sua maior complexidade e também
cal com relação ao terceiro verso e na terceira frase porque, nos giros sob sua responsabilidade ou em
com relação ao quarto verso. que vinha ajudando, nunca mais ninguém a cantou.
Ele chegou a conhecer o embaixador João Pedro, na
A caixa entra junto com a resposta e não é tocada
Inhuminha, e ouviu os foliões mais antigos cantarem
durante a embaixada.
a toada dobrada durante um curto período, mas não
Até pouco tempo, as Folias de Reis da Inhuminha chegou a aprendê-la. Da sua família, que veio de For-
e de Ordália giravam quase exclusivamente nessa to- miga, Minas Gerais, para região de Itauçu, ele lembra
ada dobrada, tocada em Mi maior. Com a entrada de de seu pai e de seu cunhado e compadre Dé a canta-
112
rem. E imagina que seus sobrinhos Ronaldo e Zinho sentou no acordeão, João Cigano e Toninho fizeram a
bem como seu irmão Joaquim Tomás, que chegaram embaixada (faixa 7 do CD 2). E a resposta precisou de
a cantá-la na região, talvez ainda saibam. algumas estrofes de ensaio até resgatá-la da memória.
A toada dobrada do Geneci é de meio verso. O
Esquema da entrada das vozes embaixador canta o primeiro verso duas vezes. O se-
gundo verso é cantado uma vez pelo embaixador e a
Embaixador resposta emenda sem pausa ou intervalo instrumen-
Cada um de um país ai, ai, ai / seus camelos então tal, cantando-o uma vez. A rima, como sói acontecer
selou ai, ai, ai / se puseram em viagem ai, ai, ai nas toadas de meio verso, é perfeita no final do se-
gundo dístico, que completa a estrofe.
Ajudante
no o - riente ele encontrou ai, ai
Toada Ei, ai
2ª, 1ª e 3ª
Ai se puseram em viagem ai, ai / se puseram em Segundo João Cigano e Seu Lourenço, a toada Ei,
viagem ai, ai, ai / ai teria surgido na região do Cerrado da Conceição
e da Água Vermelha, uma região de fazendas onde,
4ª e 5ª 6ª
antigamente, existia uma venda. A região da Água
no o - riente ele encontrou ai, ai, ai / no o - riente Vermelha está localizada entre a Venda do Barata, na
ele encontrou ai, ai GO 426, e o Cerrado da Conceição. Se esta versão for
correta seus autores – ou seu autor – seriam, portanto,
o povo do Cerrado e da Água Vermelha.
Toada dobrada do Geneci
Outros foliões indicam como possível origem a
Trata-se, provavelmente, de toada tradicional. região de Damolândia, que mantém um fluxo inten-
Geneci costumava cantá-la, mas, atualmente, isso es- so com as folias do Cerrado da Conceição e da Barra
barra na falta de costume e conhecimento dos foliões Grande. Trata-se de uma toada bastante difundida em
da requinta. Segundo Seu Lourenço, Eurípides Lúcio toda a região, mas, embora dispersas, as informações
também cantava essa toada 17. referentes à origem da toada sugerem que, na forma
como foi registrada no projeto, não seria muito antiga.
Por conta dessa dificuldade da requinta, sua apresen-
tação tornou-se mais rara e, pelo mesmo motivo, ela foi 17. O embaixador Eurípides Lúcio ficou conhecido na região por sempre variar as
toadas durante o giro. Segundo os foliões que chegaram a girar com ele, era muito
registrada no projeto sem a requinta dobrar a resposta. raro ele cantar a mesma toada em duas casas seguidas. E isso pode ter influenciado
Ajudados a lembrar da melodia por Thiago, que a apre- a proliferação de toadas de Reis na região.

113
A toada Ei, ai tem estrofe de quatro versos, com e Thiago (faixa 9 do CD 1). Uma das toadas mais lem-
antecipação da primeira sílaba do segundo e do ter- bradas e cantadas na região, faz parte do repertório de
ceiro versos na frase musical imediatamente anterior. praticamente todos os embaixadores.
A resposta repete o quarto verso da quadra, introdu-
zido pela expressão ei, ai – que dá o nome à toada – Toada dos Elias
cantada duas vezes.
No projeto, a toada Ei, ai foi gravada pelos embai- A toada dos Elias é uma toada tradicional de Itape-
xadores Divino da Veinha, Divino do Juca, Pedrinho cerica, Minas Gerais, introduzida há uns dois ou três
Geneci

114
anos em Inhumas. A história de sua difusão na região da caixa. Talvez por esse motivo, João Cigano a te-
de Inhumas me é bem conhecida pela circunstância de nha chamado de “Congada”.
ser Itapecerica a terra natal de meu pai - que também
assina Sebastião Rios - e de seus antepassados. Essa Tendo sido rapidamente adotada por vários em-
toada é a que comparece com maior frequência em baixadores, foi também chamada de toada nova em
um registro da Folia de Reis da família Elias, feito por função do diálogo que normalmente se estabelece en-
mim em janeiro de 2011. Assim, eu já conhecia a toada tre o sanfoneiro e o embaixador antes de começar um
quando de sua introdução na região de Inhumas. cantorio: “qual toada?” “Toca aquela nova”.

O coordenador e primeiro embaixador do gru- Não temos informações mais precisas a respeito
po de Folia de Reis da Família Elias, o senhor Elias do surgimento e difusão da toada em Itapecerica. Seu
Rodrigues, é sobrinho de Seu Vicente Francisco Vicente, entretanto, afirma não tê-la conhecido nos
Rodrigues, folião e congadeiro que veio para a tempos em que morava em Itapecerica.
região de Inhumas, na década de 1960. Além de A toada dos Elias tem uma estrofe de quatro
Seu Vicente, outros membros da família vieram, versos com uma guia executada pelo acordeão e
há muitos anos, para Petrolina. A partir dos anos a entoação de uma frase com “ai, ai, ai” entre o
2010, o grupo de Folia de Reis dos Elias passou a terceiro e o quarto verso. Quando embaixada em
fazer um giro em Petrolina, no início de janeiro. dupla, o ajudante pode cantar toda a estrofe ou
Além de Seu Vicente, outros foliões de Inhumas apenas esta frase e o quarto verso. Depois de uma
têm participado desse giro. Entre eles, Seu Juqui-
segunda guia da sanfona ao final da embaixada, a
nha, outro itapecericano ausente. Assim, firmada
resposta canta a mesma frase com “ai, ai, ai” e o
nos laços de parentesco, essa toada foi difundida
quarto verso.
em Petrolina e Inhumas simultaneamente pela pre-
sença do grupo de Itapecerica nesta região e pela No projeto, a toada dos Elias foi gravada pelos em-
circulação de seu CD e de seu DVD. baixadores Divino da Veinha (faixa 8 do CD 2) e João
Cigano.
Divino da Veinha foi quem primeiro saiu com
a toada em Inhumas. Ele a conheceu por meio do
DVD do grupo e, em razão de sua origem, chamou Toada do Franésio
-a de Mineirinha. Em sua versão, o primeiro verso
e a resposta são cantados ligeiramente diferentes A toada do Franésio é uma toada antiga, originá-
da gravação dos Elias. A toada também ganhou um ria de Araçu, incorporada há mais de vinte anos pelos
andamento mais rápido. No grupo de Divino da foliões de Inhumas. Divino da Veinha recupera sua
Veinha, foi mantida, entretanto, a batida original trajetória até os dias atuais:
115
O Franésio morava em Araçu. Já faleceu e deixou Complementando a informação de Divino da Vei-
ela com o Eurípedes Lúcio. Seu Eurípedes Lúcio nha, Lazinho (Lázaro Belmiro dos Reis) acrescentou
prosseguiu. Dele passou pra nós e até hoje estamos ainda o antigo embaixador Revalino, que também
reafirmando ela. E vamos continuar cantando ela cantava costumeiramente nessa toada.
enquanto puder vir saúde a nós (Divino da Veinha,
novembro de 2013). Revalino, Eurípedes Lúcio e Franésio eram com-

Seu Vicente

116
padres entre si 18. Franésio, que era alguns anos mais Eurivan: Mas quando ele [Franésio] foi ensinar meu
velho e já embaixava folia, foi quem ensinou Eurí- pai a embaixar, ele já cantava essa toada. Eu não sei
pedes Lúcio a embaixar. Todos moravam em Araçu. se a autoria é dele ou se veio de outro lugar.
Franésio e Eurípedes Lúcio inclusive nasceram lá.
Revalino teria chegado depois a Araçu e foi o pri- Sebastião: Ou se era da predileção dele?
meiro a se mudar para Inhumas (Eurivan Lúcio, Eurivan: A coisa que eu sei é que ele foi o primeiro
maio de 2014). Eurípedes Lúcio, que era atuante na a cantar ela em Araçu.
política da região, mudou-se para Inhumas e retor-
nou a Araçu. Nessas andanças, a toada do Franésio A toada do Franésio é uma toada de meio verso.
foi incorporada ao repertório da Folia de Reis em O embaixador canta o primeiro e o segundo verso do
Inhumas. Os foliões de Inhumas, entretanto, não sa- dístico e, depois de uma guia da sanfona, repete o se-
bem afirmar ao certo se a toada seria da autoria ou gundo. Na repetição do segundo verso, é comum o
da predileção de Franésio. Se for da predileção, ela dueto com a participação da primeira voz da resposta
teria origem mais remota. ou do ajudante do embaixador. A resposta repete da
mesma forma: canta o primeiro verso uma vez e o se-
Lazinho: Que nós conhecemos foi em Araçu. Ela
gundo duas vezes.
pode até ter mais outras origens, só que de lá de
Araçu que nós ficamos conhecendo essa toada.
Toada Goiana
Sebastião: Mas, lá em Araçu, o pessoal acha que o
Franésio é que fez ela?
Trata-se de toada tradicional de Goiás, muito
Lazinho: Exato. Lá todo mundo fala “toada do Fra- cantada nas Folias de Reis de Itaguari. O embaixa-
nésio” (Lazinho, novembro de 2013). dor Luís Carlos costuma cantá-la como toada para
passagem das coroas.
Eurivan Lúcio, que é filho de Eurípedes Lúcio 19,
corrobora as informações de Divino da Veinha e de A principal característica desta toada é o com-
Lazinho: passo ternário (3/4), conhecido na música caipira
como valseado. A batida da caixa é peculiar. Duran-
te dois compassos, marca apenas o primeiro tempo.
18. Revalino é pai do sanfoneiro e embaixador Zé Jacaré – já falecido – e avô do
Thiago, o embaixador mais novo que participou do projeto. Eurípedes Lúcio é pai No terceiro compasso, marca o primeiro tempo e faz
do sanfoneiro e embaixador Eurivan Lúcio, que é afilhado do Franésio – cuja grafia uma virada com uma sequência de cinco colcheias
correta é Farnésio.
que começa no segundo tempo do terceiro compas-
19. Eurípedes Adão de Araújo, nascido em Araçu em 19 de junho de 1940. Era
conhecido como Eurípedes Lúcio, que também é sobrenome da família, embora não so, finalizando no tempo forte do quarto compasso.
usado no registro civil. Há que notar que essa toada integra uma família de
117
toadas goianas com características semelhantes 20. O embaixador Pedrinho, entretanto, reivindica
a autoria.
A toada Goiana tem estrofe de quatro versos. O
embaixador canta o primeiro e o segundo verso e re- Sebastião: Todo mundo fala que a toada é de
pete esses dois versos. Depois, canta uma vez o terceiro Goianira. Ninguém fala que a composição é do
e o quarto verso e a resposta entra repetindo o terceiro Pedrinho. Você acha importante saber e falar
e o quarto verso mais duas vezes. A toada Goiana não quem fez?
tem a requinta ou desponte (faixa 9 do CD 2).
Pedrinho: Uai, é muito bom, né!? Legal demais. A
21
A toada Goiana foi gravada pelo embaixador gente ainda dá uma de compositor. E a gente tem
Luís Carlos no CD “Luís Carlos cantando a profecia que ter ideias para ver se faz outras. Porque tem
As sete dores de Maria”, faixa 03, Passagem das coroas. muitos modos [de fazer]. Você pega aí um ritmo,
sai uma toada diferente, talvez. Igual essa lá, eu
Toada de Goianira peguei assim: inspirei um pouquinho, Compadre
Dé falou: “Uai, que toada você vai cantar aí?”
Como o nome indica, essa toada veio de Goianira “Qual que é?” Aí saiu lá. Aí ele falou: “Uai, onde
para Inhumas. Alguns foliões afirmam tê-la conhecido você arrumou isso?”. Intenção nossa mesmo. Fez
com o embaixador Lindomar Evangelista, que residia intenção e o trem dá mais ou menos. Aí ele falou:
em Goianira. A toada é associada ainda com o repertó- “Não, e é boa!”. Aí tocou a toada do Pedrinho, a
rio do embaixador Pelé (Ademir Felicíssimo), de Itau- toada do Pedrinho e ficou. Aí passou para toada
çu. Este lembra que, num pouso na casa de Toninho, Goianira, porque saiu lá, né!? Primeira vez que
em Itauçu, há uns trinta e cinco anos, ele chegou can- nós cantou ela foi lá em Goianira.
tando essa toada, que ele, por sua vez, remete ao reper- Sebastião: Você fez. Aí as outras pessoas cantam
tório do antigo embaixador Felipe, de Itaberaí. também. É diferente da música caipira ou qual-
quer tipo de música que quem fez pode receber
os direitos dele. Agora, você fez para a folia. O
20. Luís Carlos, por exemplo, canta a toada conforme aqui registrado. João Cigano,
numa variante que não foi registrada no projeto.
folião pegou e está cantando para a folia, você
21. É importante evitar uma confusão. O termo “toada Goiana” é diferente de “folia
acha que ele está te prejudicando cantando a sua
goiana”, que designa uma estrutura de toada cantada em dueto por duas duplas. toada?
Esse tipo de cantorio pode se dar de três maneiras: a) com a segunda dupla res-
pondendo a primeira, isto é, repetindo os versos ou parte dos versos cantados pela Pedrinho: Não! Isso é uma tradição né!? Então, a
primeira dupla; b) com a segunda dupla complementando a estrofe iniciada pela
primeira dupla, ou seja, cantando o terceiro e o quarto versos de uma quadra; ou gente faz pra Santos Reis. Aquela fé que a gente
ainda c) com a sequência do cantorio pela segunda dupla, que canta uma nova es- tem. O companheiro gostou, pode cantar. Eu pen-
trofe. Embora apareça também em Folia de Reis, a folia goiana acabou se tornando
mais típica da Folia do Divino Espírito Santo. so assim. Igual essa lá, todo mundo esparramou
118
Pedrinho

119
e cantou. Eu até parei de cantar ela uns tempos,
porque estava muito cantada. Agora parece que
deu uma parada de novo; que era direto nessa
toada. O meu irmão mesmo, o meu irmão gos-
ta demais de cantar essa toada. Eu falei: “Não!
Para um pouco”.
Sebastião: Qual irmão? O Joaquim?
Pedrinho: O Joaquim. Direto ele chegava e falava
que ia cantar essa toada. Não, moço! Falei pra
turma que tem que mudar a toada. Agora ele pa-
rou um bocado. Agora ele sai em outros ritmos,
mas gostava demais dela.
A reivindicação de autoria da parte de Pedrinho
é confirmada por Nenzinho (Vercilei Rosa Lino), o
folião mais velho que participou do projeto e que
é parceiro de Dé, cunhado de Pedrinho, na toada
Xique-Xique.
A toada (de) Goianira foi gravada pelo embaixa-
dor Lindomar, no CD “Lindomar Evangelista. Can-
tando para Deus”, faixa 12, As Bem Aventuranças, com
uma ligeira variação na melodia da resposta. No pro-
jeto, foi gravada pelos embaixadores Lourenço e Luís
Carlos (faixa 10 do CD 2).

Toada (do) João Baianinho

A toada (do) João Baianinho é a mais cantada


nos giros de Folia de Reis em Inhumas e quiçá da
região. Essa toada deve seu nome ao apelido de seu
compositor, João Reinaldo da Silva, nascido em
04/08/1926, na área rural de Nova Veneza, e faleci-
Título de eleitor de João Baianinho
120
do em Inhumas, em 1985. João Baianinho morava em bailes na Barra Grande e em Itauçu. Teve oportu-
num sítio na Barra Grande, que fica na margem nidade de tentar carreira como músico. Consta, po-
direita da rodovia GO 426, no sentido de Inhumas rém, que a mãe, preocupada com a má fama associada
para Santa Rosa. Três quilômetros após a Venda do ao ofício, teria simulado uma doença quando ele teve
Barata, entra-se a direita e anda mais dois quilô- oportunidade de se apresentar na rádio.
metros.
Segundo José Ricardo das Neves, companheiro
Barbeiro e lavrador, João Baianinho teve uma vida de folia de João Baianinho, depois que ele veio para
bastante movimentada e morou em várias localidades Inhumas, em 1978, voltou a atuar nas folias da Barra
na região. Entre 1927 e 1956, residiu na Barra Grande. Grande, de Damolândia, da região da Venda do Bara-
Depois mudou-se para Damolândia, onde ficou até ta, e da Cachoeira (esta no município de Petrolina).
1969. Entre 1969 e 1974, morou em Itaguari. Daí resi- Isto é, possivelmente, a explicação porque, embora
diu três anos fora da região, em Marianópolis, Tocan- seja uma composição mais antiga, a toada do João
tins. Retornou em 1978, residindo em Inhumas até Baianinho tenha começado a circular mais em Inhu-
falecer, em 1985, aos cinquenta e nove anos de idade. mas após uma apresentação na Escola Estadual Ari
Quando de sua vinda para Inhumas, o embaixador Valadão, por volta de 1981. Seu Lourenço recorda que
Divino do Juca (Divino Carlos da Silva) se aproximou foi nessa ocasião que aprendeu a toada. Na apresenta-
dele para aprender os fundamentos da Folia de Reis, ção ele estava tocando o acordeão e lembra ainda que
tendo feito cópia de suas colunas. Totó estava fazendo uma das vozes da resposta. Após
essa apresentação, os foliões de Inhumas passaram a
Segundo seu filho, Valdeci Vieira da Silva, além se referir à toada como do João Baianinho.
de folião, João Baianinho era poeta e escritor. De sua
vasta produção, a esposa Luzia Vieira de Souza lem- Essa toada, praticamente o Brasil inteiro conhece
bra de uma sextilha que dá bem a medida das dificul- ela como João Baianinho. Um dia ele arrumou essa
dades da lida e do esforço de contorná-las para sair música lá. Deu trabalho demais para nós pegar jun-
nas folias: Baiano não tem cadência / Nem sabedoria / to com ele. Ele ensinando nós, pra nós poder cantar.
Parece alucinado / Quando fala em folia / Coitado de Mas ele foi ensinando e nós foi pegando. Aí cantava
quem é pobre / Inventa arranjar família. junto com ele. Toada do João Baianinho é bem co-
nhecida lá em Inhumas. E todo mundo sabe que ela
Embaixador muito respeitado na região, João Baia- é dele (Lourenço, seminário, agosto de 2014).
ninho tirava os versos tocando a sanfona e marcando
o ritmo no pé. Também tocava caixa na folia. Apesar A medida da admiração e do respeito que os
de nunca ter possuído um acordeão, era conhecido foliões atuais de Inhumas têm por sua figura fica
por sua capacidade de tocar o instrumento uma noite clara em vários depoimentos recolhidos no traba-
inteira sem repetir um toque. Quando jovem, tocava lho de campo. Divino da Veinha não chegou a can-
121
tar junto com João Baianinho e sequer o conheceu toadas aprendidas em outras localidades ou pela
pessoalmente. Mas isso em nada diminui sua ad- mídia. Mas, no caso da toada (do) João Baianinho,
miração pela figura do folião e nem a avaliação de a conversa muda.
seu legado.
Sebastião: Essa toada do João Baianinho, as pessoas
João Baianinho é um companheiro velho. Um pro- aqui em Inhumas sabem que é dele?
fessor nosso velho de muitos anos. Faleceu, mas
deixou as gravações, deixou a cantoria, deixou Didito: Exatamente. Quase todas as pessoas aqui
todo um sistema que é de bom numa companhia sabem.
de Santos Reis. Então, por isso, hoje, a tradição dele Sebastião: Os que fazem parte da folia ou os mora-
nós continuamos a seguir a mesma coisa (Divino da dores da cidade?
Veinha, novembro de 2013).
Didito: Os da folia e a cidade inteira sabe também.
Sobre a fama do embaixador, seu filho Valdeci Sabem! É dele! Se algum [outro] falar que é deles,
lembra que outras folias corriam da folia do João pode trazer eles que eu desminto. Não, isso não! Eu
Baianinho, para evitar um encontro e uma eventu- era pequeno quando o João Baianinho fez ela. Essa
al disputa entre os embaixadores. Valdeci lembra é do João Baianinho mesmo.
ainda que, em Itaguari, no giro da folia em 1972,
estava irritando um palhaço junto com outros me- Tendo como referência a informação de Didito,
ninos. O palhaço, que perdeu a paciência e, cor- que lembra de ter ouvido a toada quando tinha em
rendo atrás dos meninos, acabou lhe acertando torno de dez para onze anos, na Barra Grande, a
uma chicotada no ombro, ficou apertado quando toada deve ter sido criada em meados da década
levaram o caso ao conhecimento do embaixador e de 1960, tendo, assim, em torno de cinquenta anos
dos responsáveis pela folia, pois o menino – em- de existência.
bora um capetinha como todo bom menino – era
filho do João Baianinho. O palhaço foi tirado da A toada (do) João Baianinho tem uma estrofe
farda na hora e dispensado da folia naquele ano. de quatro versos. A resposta repete o último verso
da quadra.
O embaixador Didito (Benedito Alberto de
Morais), bastante cético com relação a atribuição A toada (do) João Baianinho foi gravada por Luís
de autoria de toadas, abre uma clara exceção para Carlos no CD duplo “Folia de Reis: tradição e fé”,
falar da toada (do) João Baianinho. Em sua percep- Giro 1, faixa 01, Anunciação. Os embaixadores Divi-
ção, mesmo quando algum folião reivindica a au- no do Juca, Divino da Veinha (faixa 5 do CD 1), João
toria de uma toada, trata-se antes da adaptação de Cigano, Lindomar e Thiago gravaram esta toada no
temas tradicionais, da apresentação inaugural de projeto.
122
Toada (do) João Mariano / Embora de autoria de Bariani Ortencio e contando
Bariani Ortencio com uma gravação anterior de Melrinho e Belguinha,
essa toada foi disseminada em Goiás e Minas Gerais
Esta toada ficou conhecida pelo nome do cantor e associada ao nome do cantor João Mariano. Nesses
compositor de música caipira João Mariano 22, a par- quase sessenta anos de circulação, ela ganhou con-
tir de sua divulgação no LP “João Mariano e Pardalzi- tornos de uma toada tradicional. E este fato mostra a
nho: Folia de Reis”, face B, faixa 1, Folia de Reis, Selo circularidade entre as criações individuais veiculadas
Califórnia, CL 402, provavelmente da segunda meta- pela mídia e os cantos carreados pela tradição; sem
de da década de 1960. No LP, consta como composi- prejuízo do fato de que uma mesma criação pode, em
tor w. bariani (assim em minúsculo mesmo). Trata-se momentos diferentes ou mesmo simultaneamente,
do escritor, compositor, ativista cultural, folclorista, pertencer a mais de uma dessas esferas.
pescador, cozinheiro – dentre outros! – Waldomiro
A toada (do) João Mariano / Bariani Ortencio é
Bariani Ortencio, do Bazar Paulistinha – o célebre e
uma toada de meio verso. A resposta repete os dois
soberano Bazar do Waldomiro – e da Comissão Goia-
versos do dístico. Por este motivo, ela costuma ser evi-
na de Folclore. Trabalho posterior, o CD “Folias de
tada quando a Folia de Reis está com o tempo muito
Bariani Ortencio”, de 2004, faz uma compilação de
contado até a chegada de um almoço ou de um pouso.
suas folias e apresenta a composição como parafolcló-
A toada tem duas peculiaridades. A melodia da em-
rica, ou seja, de autor conhecido, baseada em temática
baixada, especialmente sua última nota, é bem grave.
folclórica a partir de estudos realizados em Goiás nas
Cantando na tonalidade de Fá maior, a mais costu-
décadas de 1940 e 1950.
22. João Batista de Toledo (João Mariano), nasceu em Paraúna, Goiás, em
Essa Folia de Reis, já havia sido gravada por Mel- 22/05/1927, e faleceu em Goiânia, em 22/11/1991. Nas várias gravações de folias,
rinho e Belguinha e Zino Prado 23, primeiro em dis- fazia a 1ª ou a 3ª voz. A dupla, formada com Jair José Pessoa (Pardalzinho), atuou
entre 1965 e 1975. http://blogdomarrequinho.blogspot.com.br/2014/02/João-ma-
co de 78 rotações por minuto – aqueles vinis antigos, riano-pardalzinho.html. Acesso em 11/06/2015.
grossos e pesados, com apenas uma faixa de cada lado 23. Originários da região de Paraúna, Goiás, os irmãos Jerônimo Emídio de Paula e
–, em 1958, pela Mocambo 24. Em 1962, foi incluída Amadeu Emídio de Paula formaram a dupla Melrinho e Belguinha, com a partici-
pação do acordeonista Zino Prado. O trio gravou dois LPs “Melrinho e Belguinha” e
no LP “Melrinho e Belguinha” – com participação do “Casinha da Serra”. http://blogdomarrequinho.blogspot.com.br/2014/02/merinho
sanfoneiro Zino Prado –, da mesma Mocambo. Esta -belguinha.html. Acesso em 11/06/2015.

gravação consta do CD “Folias de Bariani Ortencio”, 24. Segundo Samuel Machado Filho, sob número 15247-A, matriz R-1013. https://
www.youtube.com/watch?v=dq3TBryeI4M. Acesso em 4 de junho de 2015.
que tem ainda outra gravação da mesma música e le-
25. Ao que tudo indica, João Mariano e Pardalzinho e Melrinho e Belguinha nunca
tra pela Folia de Reis das Lages, de Itapuranga, Goiás, foram propriamente embaixadores de Folia de Reis, ou seja aqueles que assumem
com o folião e embaixador, professor, pesquisador, a responsabilidade de tirar uma folia. Assim como várias outras duplas, incorpo-
raram faixas com trechos de cantorio de Reis e de outras folias em seus trabalhos.
antropólogo, educador, folclorista – dentre outros! – Trata-se de uma aproximação frequente de cantores da música caipira com as fo-
Jadir Pessoa na embaixada 25. lias, que mostra as origens daquela.

123
meira na região, poucos embaixadores têm um re- ser lenta para “mexer lá dentro e fazer quem recebe a
gistro de voz que permite chegar nessa nota com boa bandeira meditar”.
projeção. A resposta, ao contrário, é bastante alta. A
A melodia da embaixada e da resposta da toada
segunda voz pega uma terça mais alta do que o em-
Lenta é mais alta do que as da toada de Trindade e
baixador, sendo que, na maioria das demais toadas da
ainda de outra variante associada ao repertório de Zi-
região, a altura da segunda voz da resposta costuma
nho e de Fernando. É uma toada de meio verso em
ser a mesma do embaixador.
que a resposta repete apenas o segundo verso do dís-
Além das gravações mencionadas acima, essa to- tico. No final do primeiro verso, o embaixador canta
ada foi gravada pela Folia de Reis João Timóteo, de ai, aai, ai e antecipa a primeira sílaba do segundo ver-
João Pinheiro, Minas Gerais, no CD “Folia de Reis: so. A resposta entra na última nota do segundo verso
tradição e fé”, giro 2, faixa 5, Agradecimento de oferta. cantado pelo embaixador com o mesmo ai, aai, ai e
A mesma gravação foi, posteriormente, incluída no antecipação da primeira sílaba do segundo verso, que
CD “Folia de Reis João Timóteo”. No projeto, ela foi ela repete.
gravada pelos embaixadores Divino do Juca e Pedri- Vários embaixadores cantam essa toada. No pro-
nho (faixa 11 do CD 2). Em Inhumas ela é cantada jeto, ela foi gravado por Divino da Veinha e por Seu
pelo embaixador Douglas, que alcança as notas mais Lourenço (faixa 12 do CD 2).
graves com conforto e boa projeção. Outros embaixa-
dores também cantam nela, mas normalmente sobem
Toada do Lourenço
a última nota da embaixada. Era o caso, por exemplo
do embaixador Zé Jacaré, que apreciava essa toada.
Seu Lourenço compôs a toada com dezessete anos
de idade – há cinquenta e cinco anos, portanto – a par-
Toada Lenta tir de uma adaptação da toada Congada. O caminho
dessa adaptação é perfeitamente historiável e tivemos
A toada Lenta foi composta por Lourenço a partir a oportunidade de escutar sua descrição pelo próprio
da toada de Trindade, por volta de 1983. Naquela épo- Lourenço. Acontece, entretanto, de a toada ser idên-
ca, Lourenço cantava quase exclusivamente esta toada tica à outra tradicional cantada pelo capitão Julinho
nos sete dias de giro da folia cuja coroa ficou dez anos (Júlio Antonio Filho) na região de Perdões e Santo
em sua família. Como o nome indica, a toada Len- Antônio do Amparo, em Minas Gerais. Este fato não
ta tem um andamento mais cadenciado e as notas da invalida, contudo, a reivindicação de autoria da parte
melodia mais longas. Comentando as circunstâncias de Seu Lourenço, uma vez que é plausível que ele não
em que a toada foi composta, Dona Brecholina, espo- tivesse conhecimento da existência dessa toada tra-
sa de Seu Lourenço, afirma que a toada de Reis precisa dicional ao compor a sua. Não é impossível também
124
que a tenha criado a partir de alguma reminiscência mulado se oferece aos indivíduos como potencialida-
de toada igual ou semelhante escutada na infância e de, que apenas parcialmente poderá ser incorporada
preservada de forma inconsciente ou subconsciente. por cada pessoa no decorrer de sua vida. As criações
individuais, ao contrário, vão se acumulando em uma
Em se tratando de manifestação da Graça Divina,
espécie de acervo coletivo, em princípio disponível,
na celebração justamente da Epifania, a hipótese de
mas cujo acesso implica um enorme empenho indivi-
sua manifestação em momentos e lugares diferentes,
dual (SIMMEL, 2005).
na forma de inspiração para criação da toada, tam-
pouco deve ser desprezada. Mormente considerando O gênio, todavia, prescinde desse aturado esfor-
tratar-se de uma manifestação cultural religiosa que é ço durante um longo tempo de formação, dispondo
coletiva e difusa. de alguma forma de acesso direto ao conhecimento.
Colocando reparo na idade em que Seu Lourenço Como exemplo, podemos citar Wolfgang Amadeus
compôs a toada – dezessete anos –, outras questões Mozart e João Guimarães Rosa. Mozart executava
comparecem. Como ele poderia acessar o conheci- com seis anos de idade peças que seu pai, Leopold,
mento para criar uma toada e fazer uma embaixada preparara para um extenso programa de aprendiza-
de Reis numa idade em que geralmente não se tem do de violino que um bom aluno normal alcançaria
experiência ou maturidade para tanto? Como se daria executar por volta dos dezoito anos de idade (ELIAS,
tal acesso? Como entender / explicar esse fenômeno? 1995). Guimarães Rosa, além de falar português, es-
O termo alemão “Einfall” pode ser apropriado para panhol, francês, inglês, alemão e italiano, possuía
tentar entendê-lo. Significando “ideia”, sua tradução li- conhecimentos suficientes para ler livros em latim,
teral seria “que cai dentro”, também invasão, incursão. grego clássico, grego moderno, sueco, dinamarquês,
Essa ideia de queda, movimento descendente, do alto, servo-croata, russo, húngaro, persa, chinês, japonês,
que penetra a consciência do indivíduo (re)liga com as hindu, árabe (LORENZ, 1983).
dimensões intuitivas e espirituais do conhecimento.
Para nossa discussão de autoria individual em mani-
O processo que caracteriza o gênio também pode festações culturais coletivas, tradicionais e difusas, não
ajudar a entender esse fenômeno. Normalmente, o interessa o processo do gênio em si, mas a capacidade
acesso do indivíduo aos bens culturais criados e acu- de acesso ao conhecimento. Esse acesso pode acontecer
mulados por uma coletividade ao longo de gerações direta e imediatamente – como no caso do gênio – ou
é árduo e moroso. Podemos citar como exemplo o por meio de muito esforço e dedicação. Pode também
aprendizado de uma especialidade científica ou ar- se dar simultaneamente ou mais ou menos ao mesmo
tística, de uma língua estrangeira. E mais complexa tempo por pessoas ou coletividades distintas, em luga-
ainda é a criação ou invenção nas variadas áreas das res diferentes, sem que as pessoas ou coletividades que
artes e das ciências. O conhecimento objetivado acu- tiveram acesso àquele conhecimento ou criação especí-
125
Lourenço e Luís Carlos

126
fica tivessem notícia umas das outras. E pode também Toada do Mangelo
acontecer em lugares e momentos distintos.
Essa gama variável de possibilidades de aceder A origem ou a autoria da toada do Mangelo
o conhecimento e/ou ter a inspiração para a criação (Geraldo Venâncio) é controversa 26. Em janeiro de
de algo inexistente ou desconhecido dificulta sobre- 2014, a Folia de Reis coordenada pelo embaixador
maneira a atribuição de quem seria efetivamente o Geneci visitou a casa de Mangelo, em Araçu. Na em-
criador de uma obra ou inventor de um artefato, mor- baixada estava Didito, que cantou na toada do Man-
mente quando se trata de manifestações coletivas e gelo como homenagem ao dono da casa. Na ocasião,
tive oportunidade de conversar com Mangelo, que
difusas. Daí porque admitimos como perfeitamente
afirmou ser a toada de sua lavra e ainda que não era
plausível a possibilidade de Seu Lourenço ter efeti-
a única toada por ele composta.
vamente criado, na região de Inhumas, na década de
1960, uma toada que, então, já seria tradicional na re- Outros foliões, entretanto lembraram que Adair Le-
gião de Perdões e Santo Antônio do Amparo. mes, mais conhecido como Dairão, também dizia que
a toada era dele. Dairão, já falecido, também residiu em
A toada do Lourenço é de meio verso. A resposta
Araçu, tendo se mudado posteriormente para Inhumas.
repete os dois versos do dístico. E no trabalho de campo, encontramos uma terceira rei-
No projeto, a toada do Lourenço foi gravada por vindicação de autoria da parte de um folião que atua na
Luís Carlos e por Divino do Juca (faixa 11 do CD 1). região da Venda do Barata e do Serra Abaixo; e ainda a
Este se referiu à toada como do Zé Galdino, possi- afirmação de um folião de Inhumas de que teria encon-
velmente por tê-la conhecido por intermédio deste trado um embaixador em Goianésia, com 65 anos de atu-
folião. Zé Galdino, entretanto, afirma ter conhecido ação na Folia de Reis, que dizia conhecer essa toada – por
a toada no grupo de Bastião de Souza, que seu Lou- um nome diferente – desde menino. Esta informação não
renço acompanhava quando da composição da toada. é compatível com a autoria da toada por Mangelo, que
deve ter por volta de 70 anos de idade, e talvez nem mes-
Temos registro dessa toada por Seu Lourenço em gra-
mo por Adair Lemes, que era um pouco mais velho.
vação de campo, durante um giro em Damolândia. As
condições técnicas da gravação, porém, são precárias, Sem entrar no mérito desta controvérsia, releva
com muito ruído e interferência de conversas. Ciente salientar que a associação de uma toada ao nome de
da coincidência de sua composição com uma toada
tradicional de outra região, Seu Lourenço preferiu 26. O projeto, como já salientado, não tem a pretensão de estabelecer positivamente
essas autorias e menos ainda de tomar qualquer providência no sentido de seu
não gravá-la em condições controladas. A gravação registro nos órgãos competentes. Assim, apresentamos o mosaico das versões le-
vantadas no trabalho de campo. E, abdicando da tentativa de estabelecer qualquer
do capitão Julinho encontra-se no extra Folia de Reis critério para aferir seu teor de veracidade, nos contentamos com o que elas são:
do DVD “Cê me dá licença”. testemunhos e versões subjetivas que têm uma legítima pretensão de validade.

127
um folião pode significar três coisas diferentes em falam assim: “é toada do Mangelo”. [Outros,] “a
Inhumas: a efetiva autoria da toada; uma predileção toada do Dairão!”, certo!? Inclusive, o Dairão,
pela toada; ou o fato de ter sido o primeiro a sair com ele já faleceu. Ele era pai de um dos palhaços que
a toada na região – tendo aprendido ou trazido de ou- tá nessa folia, do Júnior. Então, ele cantava sem-
tra localidade ou ainda escutado na mídia. pre nessa toada. Então, toda vez que nós canta
nessa toada a gente sempre alembra do Dairão e
A dificuldade de estabelecimento da autoria
sempre alembra do Mangelo também.
desta toada aponta para um aspecto importante
das manifestações culturais tradicionais, coletivas O dono, nós num sabe realmente quem são os
e difusas. São considerados tradicionais justamen- donos dela. Mas é uma toada muito bonita, de
te aqueles cantos carreados por sucessivas gera- meio verso. É uma toada tradicional que todo
ções, cuja autoria se perdeu na bruma do tempo. mundo gosta até hoje (Luís Carlos, novembro de
Assim, sem desmerecer nenhuma das reivindica- 2013).
ções de autoria aventadas, trata-se de uma toada
que está se tornando tradicional na região, sendo A toada do Mangelo é de meio verso. A resposta
conhecida há pelo menos 45 anos. Embaixadores repete o segundo verso do dístico.
antigos, como Geraldo Cândido, na região de Itau- No projeto, a toada do Mangelo foi gravada por
çu, e Revalino, no eixo Inhumas – Araçu, também Luís Carlos, Thiago, Lourenço e Divino do Juca
cantavam a toada do Mangelo. (faixa 13 do CD 2). Ela costuma ser cantada nos
Mais importante talvez que o estabelecimento giros também pelo embaixador Didito. Mangelo,
seguro dessa autoria seja, nesse caso específico, a re- quando estava em atividade, embaixava preferen-
verência a seus possíveis e eventuais criadores, adap- cialmente nela.
tadores ou preservadores. Reverência que mostra os
caminhos da construção da memória oral na manifes-
tação. É o que fica claro na formulação do embaixador
Toada Mineira
Luís Carlos:
Essa toada, Sebastião, ela é uma toada tradi- Divino da Veinha pegou esta toada ouvindo pelo
cional lá da região de Inhumas, de muitos anos. rádio, há muitos anos, e a incorporou a seu repertó-
Aí, tinha um embaixador com nome de Daí- rio. Ele lembra que os poucos programas de rádio que
rão. Ele gostava sempre de cantar nessa toada. costumavam tocar Folia de Reis geralmente identi-
E tem também um outro embaixador por nome ficavam os grupos, mas não se recorda mais de que
de Mangelo que também cantava sempre nessa grupo se tratava. Ficou na sua lembrança apenas que
toada. Então, hoje, pra nós, tem uns folião que seria uma toada mineira, daí sua denominação.
128
Mangelo

129
Lourenço afirma tê-la ouvido passando pelas bar- Nesse contexto, é difícil saber se a toada já se-
racas na festa de Trindade, mas tampouco sabe exata- ria conhecida em Inhumas, ligadas às Congadas
mente a origem. ou Danças de Congos na região (Itauçu, Cidade de
Goiás, Goiânia), ou se, ao contrário, foi incorpo-
A toada é de meio verso. A resposta canta apenas o
rada a partir da gravação. No primeiro caso, pode
segundo verso do dístico. Logo no começo da toada, en-
tratar-se de uma toada tradicional que foi adapta-
tra um acorde de segundo grau, que, na tonalidade de Fá
da para a gravação. No segundo, de uma toada que,
maior, é um acorde de Sol maior. Essa peculiaridade em
a partir de sua difusão pela mídia, vai se tornando
sua harmonia lhe dá uma sonoridade bastante específica.
tradicional pelo esquecimento de seu compositor.
No projeto, foi gravada por Divino da Veinha (fai- Seja qual for o caso, na região era uma toada costu-
xa 14 do CD 2), que também é o único embaixador meira do embaixador Eurípides Lúcio – já falecido
que ouvimos cantá-la. – de João Azul, de Araçu, e da turma dos Moisés,
de Palmital – no caminho de Araçu para Avelinó-
Toada Nossa Senhora do Rosário polis –, segundo informações de Seu Lourenço.
A toada Nossa Senhora do Rosário tem estrofe de
Num esforço para relembrar toadas antigas, em quatro versos com repetição do terceiro e do quarto
desuso, apareceu a referência à toada Nossa Senho- versos pela resposta (faixa 15 do CD 2). Na gravação
ra do Rosário. A forma como a toada foi preserva- do LP, a batida da caixa se aproxima dos toques das
da em Inhumas guarda semelhança com a faixa 10 danças de Congo da região, mas na gravação para o
- Homenagem à Nossa Senhora do Rosário, do LP projeto a batida foi a costumeira das demais toadas.
“Folia do Divino” (Califórnia – CL - 4183), de João
Mariano e Pardalzinho, provavelmente do início
Toada paulista
da década de 1970. No encarte do LP, consta como
compositor Pedro Pinto. Atuando juntos entre
1965 e 1975, João Mariano e Pardalzinho gravaram Essa toada foi criada pelo embaixador e sanfo-
pela Gravadora Califórnia, de São Paulo, três LPs: neiro Albano Salvador de Souza. Segundo João Ci-
“Folia de Reis”; “Os Três Reis Magos”; e “Folia do gano, ela tem o estilo das toadas paulistas e deste fato
Divino” 27. Como os nomes dos LPs indicam, junto advém sua denominação. Albano morou e atuou na
com canções sertanejas, a dupla gravou uma série Folia de Reis da Água Vermelha e depois, mudando-
de folias a partir de pesquisas folclóricas sobre as se para Itauçu, assumiu a Folia de Reis do Entronca-
tradições populares em Goiás. mento, pequeno povoado em torno de algumas ven-
das e lanchonete no entroncamento das rodovias GO
27. http://blogdomarrequinho.blogspot.com.br/2014/02/João-mariano-pardalzi-
nho.html. Acesso em 05/06/2015. 070 com a GO 154, que liga a Taquaral e Itaguari.
130
Incorporada ao repertório do embaixador João dante cantam o dístico uma vez. No pedido, a res-
Cigano, a toada Paulista acabou ficando mais identi- posta repete todo o dístico. No agradecimento, ape-
ficada com a Folia de Reis da Inhuminha. nas o segundo verso.
A toada Paulista denomina um conjunto de duas No projeto, a toada paulista foi gravada por João
toadas de meio verso, uma para pedir e outra para Cigano (faixa 16 do CD 2).
agradecer a oferta. Em ambas o embaixador e o aju-

Folião veterano da Inhuminha, Caneta é genro de João Pedro


131
Toada paulista para falecido vado para Inhumas. Tampouco sabemos se a to-
ada foi trazida para a região ou se foi composta
O embaixador João Pedro Carvalhaes compôs por algum folião de lá. Segundo Seu Lourenço, sua
esta toada inspirada no estilo das toadas paulis- incorporação ao repertório dos foliões de Inhumas
tas. Por ser “mais sentida”, João Cigano a cantou não é muito antiga.
na casa dos familiares do embaixador João Pedro,
A toada (de) Petrolina é de meio verso. O em-
na Inhuminha, no primeiro giro após seu faleci-
baixador canta o primeiro verso do dístico duas
mento. A partir desse cantorio em homenagem ao
antigo embaixador da Folia de Reis da Inhuminha, vezes e depois canta uma vez o segundo verso. A
a toada ficou identificada com a função de canto resposta entra e repete o segundo verso.
para falecido. No projeto, a toada de Petrolina foi gravada por
A toada e o ritual que envolve sua execução são Seu Lourenço (faixa 17 do CD 2).
adstritos ao giro da Folia de Reis da região da Inhu-
minha. Na tradição estabelecida por João Cigano,
quando os donos da casa pedem para cantar para Toada Romaria
algum falecido da família, o cantorio é feito depois
das funções rituais obrigatórias, fora da casa, com Alguém ligado à festa de Trindade gravou essa
todos os foliões e os donos da casa de joelhos e toada, que costuma ser cantada na região de Da-
sem a sanfona, a caixa e o pandeiro; como forma molândia como homenagem aos foliões e devotos
de respeito. de Santos Reis que também participam da romaria
A toada é de meio verso. O embaixador canta o de carros de bois na Festa do Divino Pai Eterno,
primeiro verso da estrofe duas vezes e depois canta em Trindade, Goiás.
uma vez o segundo verso. A resposta entra e repete A embaixada canta uma estrofe de quatro ver-
o segundo verso. sos. A resposta – também em estrofe de quatro ver-
No projeto, foi gravada por João Cigano (faixa sos, com repetição do terceiro e do quarto verso – é
8 do CD 1). uma adaptação do refrão de um canto regional que
faz menção à romaria religiosa.
Toada (de) Petrolina Divino da Veinha chegou cantando essa toada
na entrega de sua Folia de Reis que, em novembro
Toada aprendida em Petrolina, mas não temos de 2013, ocorreu no Souza, na zona rural de Da-
temos informação sobre quem primeiro a teria le- molândia.
132
Toada do Ronaldo século XIX. O conceito romântico de autoria implica
invenção e novidade e trata, no sentido inverso, como
Ronaldo (Benedito Batista dos Santos) compôs plágio obras semelhantes a outras preexistentes.
essa toada a partir de adaptação criativa da toada de Se usarmos os critérios da estética barroca, a
Trindade que, em Inhumas, é cantada como uma toada questão pode ser vista de outro ângulo. Os vínculos
de meio verso. Assim, Ronaldo acrescentou mais dois do indivíduo com a coletividade eram mais fortes no
versos na estrofe que serviu de base para sua composi- período barroco – segunda metade do século XVII e
ção. A resposta, por sua vez, foi adaptada da resposta boa parte do século XVIII – e a estética barroca tem
de uma toada de Formiga, Minas Gerais, que é terra como uma de suas características o exercício de uma
natal de seu pai, João Tomas, dos tios e de seu avô. arte combinatória em que se valoriza o engenho do
A toada foi composta por volta de 2005. Além de autor ao combinar de maneira criativa elementos da-
sua divulgação nos giros de folia, a toada do Ronaldo dos pela tradição. Distintamente do Romantismo, as
teve difusão a partir de sua inclusão no CD “Os devo- referências explícitas a obras preexistentes constituem
tos dos 3 Reis”, que reuniu os embaixadores Joaquim quesito de prestígio no Barroco, pois demonstram eru-
Tomas, Ronaldo, Eurivan e Divino da Veinha e foi dição e conhecimento e familiaridade com a tradição.
lançado no ano de 2009. Lançando mão do conceito barroco, que valoriza
O nome artístico Ronaldo acabou sobrepujando o o engenho do autor ao apresentar de forma criativa
nome de batismo e por isso a toada é conhecida em uma nova combinação de elementos dados pela tradi-
Inhumas como toada do Ronaldo. Em sua carreira de ção, preferimos pensar as alterações apresentadas na
cantor e compositor, ele se apresenta com Os Reis do nova toada como adaptação criativa da toada de Trin-
Forró, formado pela dupla Ronaldo e Rodrigo. dade – como apresentado por Ronaldo – ou mesmo
dessa antiga toada da Inhuminha, caso a possível in-
O embaixador João Cigano avalia que a toada do fluência lembrada por João Cigano tenha sido efetiva.
Ronaldo deriva da modificação do jeito de cantar uma
toada antiga da Inhuminha. Tratando-se da delicada Essa eventual influência ou mesmo semelhan-
relação da criação individual em uma manifesta- ça, entretanto, não foi confirmada pelo embaixa-
ção religiosa e cultural tradicional, coletiva e difusa, dor Pedrinho, que é tio de Ronaldo e conhecedor
pensamos, entretanto, que os critérios de autoria do da região da Inhuminha. Perguntado explicita-
Romantismo, hoje predominantes, não são os mais mente sobre a possibilidade de essa toada antiga
adequados para considerar as composições de toadas da Inhuminha ter também servido de modelo para
de Reis. O movimento cultural romântico inaugurou a composição de Ronaldo, Pedrinho afirmou taxa-
uma cultura burguesa individualista no Ocidente, no tivamente desconhecê-la.

133
Pedrinho: Essa toada, Sebastião, falar a verda- não viu. Eu não vi.
de para você, eu não lembro dela na Inhuminha
igual eles falam, não. Eu vi essa toada com ele Sebastião: Então, essa toada que o Ronaldo fez,
[Ronaldo] mesmo. O único que saiu com ela aí. você, lá na Inhuminha, nunca escutou?
Agora, eu ouvi conversa assim, que ele modificou Pedrinho: Não. Eu não tenho lembrança. Tudo
ela um pouquinho, né!? Diz que tem. Eu nunca que nós mexe [com folia na região], eu não tenho
vi. Também pode que qualquer um aqui ainda lembrança (Pedrinho, junho de 2014).

Ronaldo

134
Com relação ainda a influências na composição da Sebastião: Isso tem quanto tempo?
toada, Luís Carlos afirma que ela tem semelhança com
uma toada de meio verso gravada por Irídio e Irineu, Zinho: Tem bastante tempo. Meu pai era vivo ain-
que Ronaldo teria adaptado, levantando a melodia da. Meu pai faleceu, tá com sete anos. [Então,] tem
no segundo verso e acrescentando mais dois versos uns nove anos.
para inteirar a estrofe de quatro versos. Efetivamen- Sebastião: Hoje todo mundo canta ela?
te, a melodia do primeiro verso da toada do Ronaldo
é idêntica à melodia de uma toada de Reis gravada Zinho: Canta. A maioria (Zinho, dezembro de 2013).
pela dupla: Saída de Santos Reis, composição de Rei O depoimento de Zinho foi trazido mais com o in-
da Mata, Irídio e Irineu, faixa 06 do LP “O menino e a tuito de revelar os meandros da composição e de sua
rosa” (Copacabana – COELP-41680 – 1982) 28. apresentação inaugural, uma vez que, se Ronaldo co-
Ronaldo, entretanto, afirmou desconhecer a gra- nhecesse e tivesse se inspirado na gravação de Irídio
vação de Irídio e Irineu 29. Seu primo Zinho tampou- e Irineu, isso apenas acrescentaria um elemento da
co confirmou essa influência. tradição usado em sua composição e não alteraria o
valor e o êxito dela, cumprindo plenamente o objetivo
Zinho: O pessoal falou, mas eu convivo com o Ronaldo do autor de deixar um legado para a Cia de Reis, eter-
há muito tempo, porque nós é parente, e eu acho que nizando seu nome entre os foliões, da mesma forma
ele nunca viu não. Pode ser de ele ter visto e nunca me como sucedeu a João Baianinho.
falado, mas a gente mexe com folia junto desde muitos
anos. E ele disse: “Rapaz eu tô fazendo uma toada mui- A toada do Ronaldo tem estrofe de quatro versos.
to bonita. Na hora que eu tiver com ela pronta, eu vou A resposta repete o último verso. Em sua gravação,
te ensinar pra nós cantar”. Aí passou uns três meses e Ronaldo faz a embaixada solo. João Cigano, que em-
a toada tava pronta. Nós ia sair com nossa folia e fala- baixa frequentemente em dupla, incorporou a toada
mos assim: “Nós vai lançar aquela toada”. Meu pai era em seu repertório com Toninho fazendo o dueto no
vivo ainda. [E o Ronaldo propôs]: “Eu embaixo, você primeiro e no terceiro verso.
vai responder, seu pai faz as três e eu toco a sanfona e No projeto, a toada do Ronaldo foi gravada por
nós vai levar”. Demos uma ensaiadinha nela [e pensa- João Cigano (faixa 3 do CD 1) e por Luís Carlos.
mos:] “essa toada é bonita mesmo”.

28. Reeditado, posteriormente, em CD, a faixa teve o nome alterado para Saída Toada de Santa Fé
da Folia – Congada e foi acrescido a indicação dos direitos da Editora Alvorada.
29. No trabalho de revisão do texto pelos foliões, mostramos para Ronaldo a toada
de Irídio e Irineu. Ele reafirmou desconhecê-la até aquele momento e ficou admira-
O embaixador Geneci costumava cantar essa toa-
do com a coincidência da melodia do primeiro verso. da nas Folias de Reis de Santa Fé – acesso pela BR 070
135
no sentido de Barra do Garças, Mato Grosso, entran- da toada por Divino da Veinha e lembra a circuns-
do à direita na GO 173 depois de Jussara. tância em que a cantou pela primeira vez, há uns
sete anos. Ele ia embaixar na casa de uma senhora
A toada de Santa Fé é de meio verso, com repeti- chamada Ivone, quando Divino propôs a execução
ção dos dois versos pela resposta (faixa 18 do CD 2). dessa toada. E isso foi feito com Divino da Veinha,
que já havia apresentado a toada para Seu Louren-
Toada (de) Santa Rosa ço no caminho, tocando a sanfona e soprando a
melodia para ele.
Como o nome indica, essa toada vem da cidade de Embora não tenha sido esclarecido o porquê da
Santa Rosa, que tem intenso intercâmbio com as folias nomeação da toada como São João, é provável que
e os foliões de Reis de Inhumas. advenha de uma Folia de São João em Goianira, ti-
A toada de Santa Rosa é de meio verso, com repe- rada pelo embaixador Lindomar nessa toada. Assim,
tição do segundo verso. quando o sanfoneiro indagava qual seria a toada a
executar, os que haviam participado dessa folia res-
No projeto, a toada (de) Santa Rosa foi gravada pondiam: “aquela do São João”. Outra possibilidade –
pelo embaixador Divino do Juca (faixa 19 do CD 2). e não excludentes – é que seja apenas um nome para
diferenciar das outras toadas, mas homenageando
Toada São João um santo muito prestigiado pelos foliões de Inhumas;
santo esse que tem participação central no batismo e
Não faz muito tempo que a toada São João foi em outros episódios da vida de Jesus, cujo nascimento
introduzida em Inhumas. Luís Carlos, por exemplo, a Folia de Reis celebra.
incorporou-a recentemente no repertório, depois de A toada de São João tem estrofe de quatro versos e
ouvir outros embaixadores cantarem-na em Inhumas. repetição do último pela resposta. Sua melodia é mais
Foi aventada a possibilidade de o nome da toada ter alta do que o costumeiro, tornando-a confortável para
relação com a atual Brazabrantes, antiga São João Ba- os embaixadores de registro mais agudo e, inversa-
tista do Meia Ponte. Isso, porém, não foi confirma- mente, evitada pelos embaixadores de registro mais
do e, embora bastante próxima geograficamente, os grave, especialmente quando estão com a voz cansada
grupos de Folia de Reis de Inhumas praticamente não depois de alguns dias de giro.
têm relações com foliões de Brazabrantes, o que dimi-
nui as probabilidades dessa hipótese. No projeto, a toada São João foi gravada pelos em-
baixadores Divino da Veinha e Pedrinho (faixa 1 do
Divino da Veinha afirma ter sido o introdutor CD 1). Além desses, é da predileção de João Cigano,
dela em Inhumas. Lourenço confirma a introdução Ronaldo e Luís Carlos.
136
Toada São Sebastião Sebastião: Seu Lourenço, o senhor não fez só a melo-
dia da embaixada. O senhor fez a resposta, primeira,
A toada de São Sebastião foi originalmente com- segunda e terceira também.
posta por Seu Lourenço para tirar uma Folia de São
Sebastião, cumprindo uma promessa de sua madri- Lourenço: Eu comecei cantando de dois, a toada de
nha, em Inhumas, há mais de 30 anos. Indagado sobre São Sebastião. Aí a gente sempre passou para a res-
a motivação para a composição e sobre seu processo posta o jeito de responder. E passou para a requinta
de criação, Seu Lourenço deu a seguinte explicação: também. Primeiro deu um trabalhinho, mas não foi
difícil, não. Todo mundo pegou certinho (Lourenço,
Lourenço: Para poder diferenciar mais um pouqui- seminário, agosto de 2014).
nho da de Santos Reis, a gente arrumou essa toada.
A autoria da toada São Sebastião é ponto pacífi-
A gente mudou ela, depois pôs o nome de Toada de
co em Inhumas. Perguntado – durante o trabalho de
São Sebastião. Na época não tinha outra toada [de
campo e no seminário realizado na UFG – se os foli-
São Sebastião], né!? Aí nós pôs essa.
ões e devotos sabem que a toada é de sua autoria, as
Sebastião: Mas [para fazer] essa toada de São Se- respostas de Seu Lourenço confirmam, porém, uma
bastião, tinha outra já conhecida e que o senhor tendência nas criações individuais em manifestações
mexeu nela um pouco. coletivas, tradicionais e difusas de as obras caminha-
rem para constituir parte de um pecúlio comum das
Lourenço: É, mais ou menos imitando. Sempre tem comunidades que as preservam.
uma toada de um jeito. Aí a gente pegou e tirou um
pedacinho de uma, um pedacinho de outra e faz a Cê faz uma toada, o povo acostuma com ela. Depois
outra, né!? É por isso que surge um outro tipo de vai mudando. Um fala que é d’um, outro fala que
toada. Por causa disso. Porque ela é quase imitan- é d’outro, né!? Hoje todo mundo fala “São Sebas-
do o jeito que nós canta [a que já existia], mas ela tião”, mas o autor dela fui eu (Lourenço, novembro
é bem diferente. Para começar, nem requinta num de 2013).
tinha. A gente mudou, pôs requinta nela: quatro, A maioria sabe [quem é o autor]. A gente que faz tam-
cinco, seis, que a gente pôs nela. Aí ela mudou. Até bém não preocupa. Só faz lá e deixa de mão. Vai fazen-
muita gente achou ela bastante bonita. Então a gen- do, deixando pra trás. Muita gente sabe que foi música
te ficou muito satisfeito com essa toada. Divino Es- minha, que eu fiz de São Sebastião. O Luís Carlos gra-
pírito Santo inspira. A gente pede força e potência vou ela já. Pode olhar no CD do Luís Carlos que tá meu
para poder fazer. E a gente é acostumado desde me- nome lá (Lourenço, seminário, agosto de 2014).
nino, sempre nessa luta, sempre girando com Folia
de Santos Reis, Folia de São Sebastião. Aí a gente As Folias de São Sebastião são raras em Inhu-
vem pelejando cada vez mais. mas, ao contrário das Folias de Santos Reis que são
137
muito frequentes. A primeira Folia de São Sebas- dá mais certo com a voz e com o estilo da gente,
tião que Seu Lourenço tirou foi justamente aquela aí a gente pega e copia do outro. Pode ser a mes-
para cumprir o voto de sua madrinha, que ensejou ma toada, mas cada um canta de forma diferente.
a composição da toada. A última foi bem recen- Tem diferença. Às vezes uma volta na voz. Às vezes
te: “Meu cunhado tinha uma e nós venceu. Termi- no próprio instrumento também. E a gente dá uma
nou o tempo dela, né!? A promessa dela. E agora mudada na voz, porque cada um tem um timbre de
acabou”. Nesse contexto, a toada de São Sebastião voz… As toadas de folia, a maioria é assim mesmo.
acabou sendo incorporada ao cantorio de Reis. O Quando a gente ouve um embaixador cantar uma
próprio autor foi o primeiro a cantar Reis nela. toada que a gente gosta, vai pondo ela no repertó-
Depois outros embaixadores também começaram rio. […]
a cantá-la com versos de Reis. E isso marca uma
característica de Inhumas também presenciada em A toada São Sebastião, eu gravei ela num CD meu
Avelinópolis, Goiás: a não distinção entre as toa- da forma que nós cantamos aqui. E num CD de um
das usadas na Folias de Reis e na Folia de São Se- amigo meu de Goiânia, Di Mariano, eu fiz partici-
bastião, mudando apenas o tema e os versos 30. pação cantando a mesma toada. Mas aí eu mudei
o jeito de cantar ela. No CD dele eu faço de outra
A toada São Sebastião foi gravada por Luís Car- forma. Muda um pouco o estilo (Luís Carlos, de-
los no CD “As sete dores de Maria”, faixa 07, Már- zembro de 2013).
tir São Sebastião, Anima Produções, 2007. Essa
gravação foi feita exatamente como composta por A toada São Sebastião é uma toada de meio
Lourenço. Numa participação especial no CD “Di verso com repetição apenas do segundo verso pela
resposta.
Mariano: Folia de Reis” 31 – faixa 07, Encontro com
a festeira –, entretanto, Luís Carlos fez uma adap- No projeto, a toada São Sebastião foi gravada
tação, levantando a melodia no segundo verso. Ao pelos embaixadores Lourenço, Thiago, Divino do
comentar esse processo de incorporação e eventu- Juca e Pedrinho da forma como composta por Seu
al adaptação, Luís Carlos reforça a percepção das Lourenço. E por Luís Carlos (faixa 10 do CD 1), em
toadas como pecúlio comum dos grupos de Folia sua variante.
de Reis e acrescenta as nuanças da interpretação e
de pequenas variações na melodia como parte do
processo de diferenciação das toadas. 30. Em Sagarana, distrito de Arinos – Minas Gerais, e em Silvânia – Goiás há toa-
das específicas para as Folias de São Sebastião. As melodias são distintas das toadas
de Reis e a batida da caixa também é diferente.
Cada embaixador canta cada toada de um jeito. A
31. CD independente, produzido por Rogério Ferrari. Não consta data, mas é
maioria das toadas a gente ouve outros embaixa- provavelmente de 2012 ou de 2013. Letra de Di Mariano. Na ficha técnica consta
dores cantar. Aí aquelas que a gente interessa e que “direitos reservados” na indicação da autoria da música.

138
Toada de Trindade O andamento da toada de Trindade é cadenciado,
com notas longas. O embaixador canta o dístico uma
A toada de Trindade, na forma como é tocada em vez. No final do primeiro verso, ele canta ai, aai, ai e
Inhumas, é uma toada de meio verso cujo dístico é idên- antecipa, na frase musical do primeiro verso, a pri-
tico ao conjunto do primeiro e do segundo verso e tam- meira sílaba do segundo verso. A resposta entra no
bém ao conjunto do terceiro e do quarto versos da toada final do segundo verso cantado pelo embaixador com
gravada por Walter José, no CD “Lembrança de Trindade os mesmos ai, aai, ai e antecipação da primeira sílaba
– Romaria 5”, faixa 2 – Santa Folia do Divino (sem indica- do segundo verso, que ela repete. Hélio e Geneci cos-
ção de autor; Produzido por Milton Rodrigues – Grava- tumam cantar essa toada.
dora OM). Na gravação de Walter José – considerado por
alguns romeiros o cantor oficial da Romaria de Trindade, Toada Vila Nova
Goiás – a toada tem estrofe de quatro versos.
A toada Vila Nova deve seu nome à antiga deno-
A mesma toada foi gravada ainda pela dupla Pena
minação do Povoado de Deuslândia, localizado na ro-
Branca e Xavantinho 32, no CD “Violas e Canções”, faixa
dovia GO 222, entre Inhumas e Nova Veneza, e per-
08 – Santos Reis (Velas). No encarte consta como sendo
tencente ao município de Brazabrantes. Segundo Seu
obra de domínio público, recolhida pela cantora e folclo-
Lourenço, seu compositor é José Eleutério, folião da
rista goiana Ely Camargo. A gravação da dupla apresenta
Vila Nova, que canta nas três vozes da resposta.
quatro estrofes de cinco versos, sendo o quinto verso can-
tado na estrutura da resposta, mas com a continuação da A toada tem algumas ligações com o grupo de Divi-
letra ao invés da repetição do quarto verso. no da Veinha. Zé Eleutério é irmão do palhaço Eurípedes
Inácio da Silva, que costuma acompanhar Divino da Vei-
Tomando como referência a gravação de Walter
nha. Como não é embaixador, quando compôs a toada,
José, que dá o nome à toada na região, a toada é canta-
ele mostrou-a primeiramente para Divino da Veinha,
da em Inhumas na forma de uma toada de meio verso.
que estava trabalhando para a família na Vila Nova.
Nessa forma, como vimos, a resposta entra dividindo
Totó, que era da mesma turma, costumava cantar nela.
a estrofe em dois dísticos: o primeiro e o segundo ver-
E, por fim, o primeiro verso da toada, composta há
sos; e o terceiro e o quarto versos. A rima se dá entre
cerca de vinte anos, parece ter servido de inspiração
os dois últimos versos de cada um dos dois dísticos.
para a criação da toada do grupo do Divino da Veinha.
32. José Ramiro Sobrinho, o Pena Branca, nasceu em Igarapava – SP, no dia 04
de setembro de 1939 e faleceu em São Paulo – SP, no dia 08 de fevereiro de 2010.
A toada tem estrofe de quatro versos com repetição
Ranulfo Ramiro da Silva, o Xavantinho, nasceu em Cruzeiro dos Peixotos, Distrito do terceiro e do quarto verso pela resposta.Thiago, que
de Uberlândia – MG, em 26 de dezembro de 1942 e faleceu em São Paulo – SP, em
08 de outubro de 1999. Começaram a carreira musical no Triângulo Mineiro e na
fez um esforço de resgate de toadas antigas, gravou a
região Centro-Oeste, no final da década de 1950. toada Vila Nova no projeto (faixa 20 do CD 2).
139
Toada Violinha mente desde que foi lançada. Segundo Didito, a dupla
André e Andrade tem conhecimento de que a música
A toada Violinha surgiu a partir da adaptação de deles virou toada de Reis: “Eles sabem. Que canta até
versos de Reis à melodia do cururu Meu amor e minha em Itaguari. Lá nós canta ela e eles ajuda nós cantar,
viola, gravado pela dupla André e Andrade na faixa 02 certo? Eles acham muito bom, ainda incentivou”.
do CD “Rolinha fogo apagô”, de 2004 (Anima Produ-
ções). A letra e a música são da autoria de André. Em Assim, a toada Violinha passou pelo mesmo pro-
Inhumas, não há informação sobre quem teria origi- cesso das demais: quando um embaixador escuta um
nalmente feito esta adaptação. A toada está incorpora- canto de Reis que acha bonito e apropriado, o incor-
da no repertório dos embaixadores da região pratica- pora em seu repertório.
Didito

140
Indagado se esse costume que vale para as toadas Toada Xique-Xique
de Reis valeria também para uma música que tem au-
toria estabelecida e direito autoral protegido, Didito A toada Xique-Xique foi composta pelos embai-
não hesitou na resposta.
xadores Dé (José Costa) e Nenzinho (Vercilei Rosa
Sebastião, eu acho que é a mesma coisa, porque isso Lima), por ocasião de um levantamento de mastro
manda é da fé. Tendo fé, valido é. Porque eu acho numa reza no Cerrado da Conceição. Zinho, que é fi-
que ninguém é mais que o outro. Eu acho que só lho de Dé, dá alguns detalhes sobre o momento de sua
mais do que nós é aquele que esta lá no céu. Então, criação e posterior transmissão.
eu acho que a oportunidade Deus deu para todos.
Zinho: Essa toada foi no terço de Bom Jesus da
Então, eu acho que o departamento deles é música.
É artista. Cantar moda, né!? E [também] faz parte Lapa. As mulheres estavam cantando um cântico e
da tradição de companhia de Reis. Eu acho que eles ele achou interessante e, no caminho pra casa, ele
ficariam muito satisfeitos. começou a cantar e fazer a toada de folia.

Única toada de dois versos 33 apresentada em Sebastião: Isso lá em Bom Jesus da Lapa, na Bahia?
Inhumas, essa toada é considerada particularmente Zinho: Não, em Cerrado da Conceição. Lá tinha
difícil, uma vez que o embaixador tem de articular um terço em todo mês de agosto! Aí nasceu a toada.
uma estrofe de oito versos (oitava), rimando o final Aí um dia nós viemos aqui pra Inhumas e o Divino
do 2º, do 4º, do 6º e do 8º verso. Outra particularida- do Juca, que tinha visto nós cantar lá em Itauçu,
de da execução da toada Violinha é que a embaixada pediu pra nós cantar ela aqui. Achou bonita. Aí a
acompanha a forma como o cururu foi gravado pela
gente foi levando ela e o povo aprendendo. Aí nas-
dupla: solo nos primeiros quatro versos e dueto nos
ceu desse tipo.
últimos quatro. A resposta repete o sétimo e o oitavo
versos. Talita: Isso foi quando?
No projeto, a toada Violinha foi gravada pelos embai- Zinho: Foi no último ano que eu morei lá. Eu vim
xadores Lourenço e Thiago (faixa 21 do CD 2). É ainda da embora em noventa e três. Foi em noventa e um,
predileção dos embaixadores Pedrinho e Didito. dois, por aí.

33. Na terminologia dos foliões, um verso corresponde a uma quadra. Assim, o Em um giro de folia no Cerrado da Conceição,
sentido dos versos de Reis são apresentados em uma estrofe de quatro versos, com Nenzinho nos mostrou o canto da reza de Bom Jesus
a rima no final do segundo e do quarto versos. A toada de meio verso, é, portanto,
composta de dois dísticos, estrofe de dois versos, cujo sentido e rima se completam da Lapa. A letra era a seguinte: “Meu Bom Jesus / Sua
no conjunto. Por analogia, estamos usando o termo toada de dois versos para nos
referir a uma oitava – estrofe de oito versos. Este termo, entretanto, não é habitual
casa cheira / Cheira cravo e rosa / Flor de laranjeira”.
entre os foliões. Nessas ocasiões, quando a reza era destinada a pedir
141
chuva, as pessoas levavam uma bacia d’água e molha-
vam o pé do mastro ou de um cruzeiro. E chovia na-
quela mesma tarde ou noite.
Seu Nenzinho mostrou ainda uma segunda toa-
da, baseada numa reza de São João. Mas essa não teve
o mesmo sucesso da toada Xique-Xique. Os compa-
nheiros do Cerrado da Conceição não pegaram a toa-
da, que acabou não vingando.
Segundo Zinho, a toada Xique-Xique é conhecida
praticamente de todos os embaixadores de Inhumas,
mas o mesmo não se dá com relação a sua autoria.
Sebastião: Essa toada Xique-Xique, todo embaixa-
dor de Inhumas canta ela?
Zinho: Uns noventa por cento. Até o Luís Carlos foi
lá e pediu pra gravar ela e eu falei: “não moço, tá
com você, a toada tá em boas mãos”.
Sebastião: Os embaixadores cantam e sabem que
ela é do Dé?
Zinho: A minoria. Que sabe é poucos. Os que sabe
são os mais antigos. Esses mais jovens poucos sabem.
O nome da toada pode ter relação com uma so-
noridade nordestina, especialmente de uma guia da
sanfona executada costumeiramente por Ormílio Pa-
checo. Seus compositores, porém, são goianos.
Talita: E por que Xique-Xique?
Zinho: Esse foi o povo que pôs. Acho que pelo jeito
de tocar a sanfona. Aí ficou Xique-Xique. Pela for-
ma de bater.

142
Sebastião: Seu povo não é baiano e nem nordestino torio de agradecimento da mesa não costumava ser
não, né!? acompanhado por instrumentos musicais. Acres-
ce, porém que, além desse canto a capela – ouvido e
Zinho: Não. É goiano mesmo. Minha mãe é mineira
gravado em Itaguari com participação de foliões de
e meu pai é goiano, daqui de Inhumas mesmo.
Inhumas, em janeiro de 2005 –, nas nossas andanças
Nenzinho também é goiano, do próprio Cerradi- nas folias na região ouvimos apenas outro bendito a
nho, e, aliás, não aprecia muito o nome que os foliões capela, em Avelinópolis – Goiás, em uma Folia de São
de Inhumas colocaram na toada. Sebastião. Assim, na região de Inhumas, o que antes
era regra tornou-se exceção.
A toada Xique-Xique tem estrofe de quatro versos,
com repetição do último. Este canto a capela é de meio verso com a continua-
ção do cantorio pela resposta, ou seja, sem a repetição
A toada Xique-Xique foi gravada por Luís Carlos
dos versos da embaixada pela resposta. Divididos em
no CD “As sete dores de Maria”, faixa 04 Cidade de
dois grupos, o primeiro deles, formado por quatro ou
Belém, Anima Produções, 2007. No projeto, ela foi
cinco foliões, puxa o cantorio, cantando o primeiro
gravada por Luís Carlos, Thiago, Divino do Juca, Pe-
verso do dístico duas vezes e o segundo, uma vez. En-
drinho (faixa 7 do CD 1).
tra a resposta, formado por um segundo grupo seme-
lhante ao primeiro, que completa o verso cantando da
Toadas de agradecimento mesma forma. Assim, nessa toada a capela, temos um
canto coral com encaixe de quatro a cinco vozes em
de mesa alturas diferentes que entram juntas cantando a mes-
ma letra. Essa toada não tem requinta.
A capela
Seu Lourenço aprendeu este agradecimento de Toada (goiana) Antiga
mesa a capela há mais de quarenta e cinco anos, com
um folião de Araçu chamado Bastião Sanfona, que era Essa toada é associada ao repertório de alguns em-
companheiro do Mangelo. Segundo Seu Lourenço, o baixadores antigos da região. Seu Lourenço a relacio-
embaixador Bastião de Souza também cantava esse na ao repertório de Bastião de Souza. João Cigano, ao
bendito de mesa. Trata-se, provavelmente, de toada do embaixador Felipe, de Itaberaí.
tradicional. Luís Carlos, que a gravou no CD “Folia de
Era uma toada costumeira no giro, mas tornou-se
Reis: tradição e fé” – faixa 8 do giro 2, Bendito de mesa
mais usada para agradecer a mesa. Em sua versão ori-
–, por sua vez, aprendeu-a com Seu Lourenço.
ginal, não tinha desponte ou requinta, daí o nome de
Vários foliões afirmaram que, antigamente, o can- goiana (João Cigano, dezembro de 2013).
143
A toada (goiana) Antiga também é de meio verso Galopeira
com a continuação do cantorio pela resposta. O em-
baixador com o ajudante cantam o primeiro verso Usada também nos cantorios das demais funções
uma vez e o segundo, duas. A resposta canta o se- da Folia de Reis, a toada Galopeira (faixa 24 do CD 2)
gundo dístico da mesma forma, completando o sen- acabou se tornando mais frequente no agradecimento
tido da estrofe e perfazendo a rima entre o segundo de mesa. É uma toada disseminada na região e exe-
verso – cantado pelo embaixador – e o quarto verso cutada com frequência, mas, segundo Seu Lourenço,
– cantado pela resposta. A requinta entra na sequên- não seria muito antiga. Ele afirma tê-la ouvido pela
cia da resposta. primeira vez com Eurípides Lúcio, na Vila Nova, há
aproximadamente 15 anos. Essa datação, contudo,
No projeto, essa toada foi gravada por Divino da pode não ser muito precisa.
Veinha e por João Cigano (faixa 22 do CD 2). Louren-
ço costuma cantá-la também. Uma semelhança estilística com a polca paraguaia
Galopeira, composição de Maurício Cardozo Ocampo
Toada (do grupo) do Divino da e versão de Pedro Bento, gravada por Chitãozinho e
Xororó 34, em 1970, no LP de mesmo nome, pode es-
Veinha – Agradecimento de mesa tar na origem da designação da toada e talvez na ins-
piração ou influência em sua criação.
Essa toada de agradecimento de mesa é frequente
no grupo do Divino da Veinha. Alguns foliões lem- O embaixador com o ajudante cantam os quatro
bram de uma toada mais antiga semelhante a essa, versos da quadra e a resposta repete o último. A re-
cantada pelo embaixador Eurípides Lúcio em outras quinta entra na sequência da resposta.
funções do giro.
Nessa toada de agradecimento de mesa, o em- Agradecimento Lento
baixador com o ajudante cantam os quatro versos da
quadra e a resposta repete o último verso. A requinta Este agradecimento de mesa Lento, do repertório
entra na sequência da resposta. do embaixador Bastião de Souza, foi recuperado por
Seu Lourenço para fins de registro no projeto, uma
No projeto, ela foi gravada por Divino da Veinha vez que andava praticamente esquecido. Como o
(faixa 23 do CD 2). nome indica, a toada tem um andamento lento, lem-
brando as ladainhas.
34. Dupla formada pelos irmãos José de Lima Sobrinho, nascido em 05 de maio de
1954, e Durval de Lima, Xororó, nascido em 30 de setembro de 1957. Naturais de Nesta versão, foi gravado na tonalidade de Fá
Astorga, Paraná, começaram a carreira ainda meninos, adotando o nome Chitão-
zinho e Xororó em 1969. maior, com um fundo musical de acordeão, viola e
144
violão. É possível que, originalmente, fosse um canto Toada do Moreno e Moreninho
a capela. Os acordes menores (de ré menor e de sol
menor) no último verso, pouco habituais no gênero e A toada do Moreno e Moreninho foi incorporada
muitas vezes desconhecidos de boa parte dos foliões, no repertório das Folias de Reis na região há muito
reforçam esta possibilidade. tempo, provavelmente, a partir da audição de gravação
O embaixador com o ajudante cantam os quatro em 78 rpm ou LP da faixa Folia de Reis (Pedido), ou
versos da quadra e a resposta repete o terceiro e o ainda de sua veiculação pelo rádio. Pedrinho, por
quarto. A toada não tem requinta. exemplo, afirma ter escutado essa toada pela primeira
vez há mais de 20 anos, em programa da Rádio
No projeto, foi gravada por Lourenço (faixa 12 do CD 1). Difusora de Goiânia (atualmente, na frequência AM

145
640). A partir de então, Pedrinho incorporou-a em No projeto, a toada do Moreno e Moreninho foi
seu repertório. gravada por Pedrinho (faixa 25 do CD 2).
Folia de Reis (Pedido) consta como a primeira
Folia de Reis gravada pela dupla Moreno e Valseado
Moreninho 35 e, possivelmente, a primeira Folia de
Reis gravada em álbum de música sertaneja, em 1954 O bendito Valseado foi adaptado para canto e
(gravadora Sinter, 78 rpm, 00-00.319, matrizes S-682 dança de agradecimento de mesa pelo embaixador
e S-683). Essa gravação teve um percurso longo. Em João Pedro Carvalhaes a partir de uma dança de São
1966, foi incluída no LP “Moreno e Moreninho – Gonçalo trazida de sua região de origem, Jacuí –
Capelinha de Santos Reis”, faixa 03. Em 1970, no LP MG. João Cigano deu seguimento ao agradecimento
“Moreno e Moreninho – Folia de Reis”, faixa 11. Em Valseado na Folia de Reis da Inhuminha. Esta forma
1975, foi novamente incluída em outro LP da dupla: de fazer o agradecimento de mesa foi, durante muito
“Moreno e Moreninho – Hinos de Reis”, gravadora tempo, a mais executada na região. Com as alterações
Sabiá, na faixa 01. Como o nome indica, o terceiro na formação do grupo, hoje está sendo reintroduzida.
LP fez a compilação do extenso cantorio de Reis
gravado em trabalhos anteriores. No agradecimento Valseado, o grupo se posiciona
em duas fileiras ombro a ombro nos dois lados da
A faixa pode ser ouvida em https://www.youtube. mesa. Puxando a coreografia, João Cigano faz um
com/watch?v=2g_Wcxn0_s0 (acesso em 10/06/2015). passo para a direita, para e encosta a perna esquerda.
É uma folia amaxixada, com violino, trombone e Depois faz um passo para a esquerda, para e encosta a
baixo tuba, e consta como composição da dupla. perna direita. O passo é acompanhado de um ligeiro
movimento de abaixar o corpo no movimento lateral
A toada do Moreno e Moreninho é cantada da
seguinte forma: o embaixador com o ajudante cantam e de levantá-lo quando volta a juntar as duas pernas.
os dois primeiros versos. A resposta entra e completa a A toada tem um compasso quaternário (4/4).
quadra, perfazendo a rima entre o segundo e o quarto Assim, o nome Valseado se refere apenas ao fato
verso do conjunto. A requinta entra na sequência da de que o agradecimento é dançado e não deve ser
resposta. confundido com o ritmo valseado, que é ternário (3/4).
O embaixador com o ajudante cantam os dois versos da
35. Cantores, compositores e apresentadores, os irmãos Moreno (Pedro Cioffi) e
Moreninho (João Cioffi), nasceram em Machado – MG, em 1925 e 1927, respecti- estrofe de meio verso. A resposta repete o último.
vamente. Iniciaram a vida artística na Rádio Cultura de Poços de Caldas e se apre-
sentaram durante muitos anos na Rádio Record, em São Paulo, a partir da década No projeto, a toada foi gravada pelo embaixador
de 1950. Têm extensa discografia. Informação de Adalésio Vieira com a indicação
do número do 78 rpm retificada por Samuel Machado Filho. https://www.youtube.
João Cigano, cujo grupo é o único que a executa (faixa
com/watch?v=ipDOouypBp4, acesso em 10/06/2015. 26 do CD 2).
146
Toada Ai meu Deus Toada de André e Andrade

Toada (do) Cerradinho

148
Toada Cigana

Toada Congada

Toada (do grupo) do Divino da Veinha

149
Toada (do) Córrego Rico Toada Dobrada

Toada (de) Damolândia

Toada dobrada do Geneci

150
Toada dos Elias

Toada Ei, ai

Toada do Franésio

151
Toada (de) Goianira

Toada Goiana

Toada (do) João Baianinho

152
Toada (do) João Mariano / Bariani Ortencio Toada do Lourenço

Toada Lenta Toada do Mangelo

153
Toada Mineira Toada paulista (Pedido)

Toada Nossa Senhora do Rosário

Toada paulista (Agradecimento)

154
Toada paulista para falecido Toada Romaria

Toada (de) Petrolina

155
Toada do Ronaldo Toada (de) Santa Rosa

Toada São João

Toada de Santa Fé

156
Toada São Sebastião Toada Violinha

Toada Vila Nova

Toada Xique-Xique

157
Agradecimento (do grupo) do Divino da Veinha

Toada (goiana) Antiga

Galopeira

158
Agradecimento Lento

Valseado

Toada do Moreno e Moreninho

159
160
161
162
Criações individuais em manifes- como pode lidar, simultaneamente, com o sagrado e
tações culturais coletivas, tradi- com o profano. Próxima da esfera do trabalho, ela não
exclui necessariamente elementos de lazer (CAVAL-
cionais e difusas CANTI, 2003). E – o que importa mais diretamente
ao caso aqui tratado – seu traço cultural coletivo não
Sebastião Rios impede a autoria individual; ele implica, antes, a es-
Marcos Alves de Souza treita conexão do talento individual, da criatividade
Evelyse Castro do artista com saberes, fazeres e valores do povo.
Talita Viana
A Folia de Reis em Inhumas se encontra clara-
mente nessa situação de heterogeneidade social e con-
Relações entre direito de autor e tato com produtos veiculados pela mídia. No trabalho
bem cultural da comunidade de campo, foram identificadas várias letras e toadas
de compositores conhecidos. A maioria deles vivos
e atuantes, outros já falecidos. O reconhecimento da
As manifestações da cultura popular tradicional
autoria é muito valorizado entre os foliões e a pers-
têm forte traço grupal e a tradição desempenha pa-
pectiva desse reconhecimento extrapolar os limites
pel de coesão social e moral nas comunidades que as
tradicionais de atuação dos grupos é extremamente
mantém. Usos e costumes, lendas e narrativas, cantos
bem vinda; o que mostra a vigência dos aspectos mo-
e rezas são formas de explicação do mundo fundadas
em um valor cognitivo consensualmente estabelecido. rais relativos ao direito autoral.
Elas estabelecem modelos de comportamento, pre- Há que considerar, entretanto, que os autores de
servam crenças e valores (BOSI, 2002). De um modo toadas ou versos não fazem qualquer restrição ao uso
geral, essas manifestações são caracterizadas pela sua de suas composições na atuação das Folias de Reis,
antiguidade e persistência, com certa tendência para na região ou fora. Assim, embora valorizem o reco-
o anonimato dos criadores – cuja referência vai se nhecimento da autoria, os foliões consideram as obras
perdendo com o passar do tempo – e por fortes traços como pecúlio comum da comunidade de devotos de
da oralidade, que muita vez extravasa para a fixação Santos Reis. Essa percepção tem implicações sobre os
escrita, quando há (CASCUDO, 1952). aspectos patrimoniais e econômicos ligados aos direi-
Convém lembrar, contudo, que a cultura e o sa- tos autorais. Até o caso extremo da cópia não autori-
ber do povo são heterogêneos e se desenvolveram a zada, em caso de gravações, é minimizado pelo fato
partir de processos que são históricos e complexos. A de ela, ao fim e ao cabo, contribuir para o principal
produção artística e cultural do povo pode integrar intuito do folião: a evangelização; a comunicação da
elementos de escrita ao lado dos de oralidade, assim boa nova do nascimento de Jesus.
163
É precisamente isso que percebemos no depoi- polêmico. Eu não estou aqui para passar a mão na
mento de Luís Carlos colhido no trabalho de campo e cabeça de ninguém e sei que pirataria está errado.
em sua fala no seminário Criação individual em ma- Sei que não é certo. Mas, no meu caso, eu também
nifestações culturais coletivas e difusas: direito autoral, não tenho o direito de chegar no pirateiro e falar
propriedade intelectual e patrimônio cultural. para ele parar de piratear o meu CD. Porque, se eu
pedi para evangelizar, eu quero é que pirateia mes-
Sebastião: Você gravou aquelas toadas todas. Seus
mo, certo!? Eu quero que chegue em todas as bancas
CDs correram esse mundo. A partir daí, já aconte-
(Seminário, agosto de 2014).
ceu de você escutar alguma composição sua e o povo
nem saber que é de sua autoria? Na fala de Luís Carlos, fica explícito que a preocu-
pação com autorizações para gravação ou mesmo com
Luís Carlos: Já. Eu já fui num encontro em Nova
a remuneração do autor pela venda de CDs de Folia de
Veneza, quando aquela Sete dores de Maria estava
Reis em que suas obras fossem incluídas é inexistente;
em sucesso. Aí um grupo de folia tinha os palhaços ou pelo menos inexistia até pouco tempo. O mesmo é
que foram saudar um presépio e saudou com aquela válido para os LPs, CDs e vídeos produzidos por foliões
Sete dores de Maria. ou por grupos de Folia de Reis a que tivemos acesso.
Sebastião: Falando? Na maioria deles, não há menção à autoria ou autori-
zação expressa de sua utilização. A situação é diferente
Luís Carlos: Falando! E lá em Taquaral, um dia, eu quando se trata de inclusão de cantos de Reis em LPs
não estava na folia cantando, estava só assistindo. e CDs de música caipira. Neste caso, como os produto-
Aí cheguei no presépio. E tem um palhaço lá que foi res, compositores, cantores estão envolvidos na lógica
saudar e saudou falando aquela Anunciação que a do mercado fonográfico, normalmente há indicação da
gente fez aquele trabalho de gravação. Depois que autoria ou de que se trata de obra de domínio público.
ele fez [a saudação] e tal – você sabe que sempre
tem os tititi – aí um folião falou assim: “o dono da- No momento, tanto a legislação vigente como
queles versos está aí". Aí ele me procurou e nós fo- a prática de gravadoras e editoras entende as mani-
mos conversar. Eu até parabenizei ele e tal. Então, festações consideradas folclóricas, automaticamen-
já aconteceu muito. E isso pra gente é uma grande te, como sendo de domínio público. Esta categoria,
satisfação. Que é exatamente isso que eu quero: é entretanto, deveria ser aplicada apenas aos casos de
evangelizar. E que o povo aprenda e espalhe pelo autoria desconhecida ou de autor falecido há mais de
mundo todo (Luís Carlos, dezembro de 2013). setenta anos. Assim, há um vácuo tanto na legislação
como na prática para aqueles casos em que as obras,
Luís Carlos: Um dia alguém me procurou o que que embora inseridas na tradição da Folia de Reis, têm au-
eu achava dos pirateiros; que é um assunto muito toria conhecida.
164
Este tema foi o foco central do seminário Criação em Preservação do Patrimônio Cultural do IPHAN) e
individual em manifestações culturais coletivas e di- Letícia Vianna (consultora do IPHAN) e o Diretor de
fusas: direito autoral, propriedade intelectual e patri- Direitos Intelectuais do Ministério da Cultura, Mar-
mônio cultural, organizado pelo projeto de extensão cos Alves de Souza. As discussões e problemas levan-
PROEXT Uso comercial de expressões culturais tradi- tados no seminário foram, em parte, retomadas neste
cionais. Desenvolvido na linha do diálogo e encontro capítulo.
entre os saberes populares e acadêmicos, o seminá-
rio teve como palestrantes os embaixadores da Cia de A gravação da Anunciação de Luís Carlos, a que ele
Santos Reis de Inhumas – Goiás, Luís Carlos Gomes se refere no trecho citado da entrevista, é um exem-
Frazão e Lourenço Francisco Ferreira, as pesquisa- plo interessante para trazer alguns aspectos relativos
doras Carla Belas (docente do Mestrado Profissional à criação individual em manifestações coletivas e di-
fusas. Em 2005, eu, Sebastião Rios, coordenava um
Marcos Alves de Souza projeto de registro em áudio do Encontro de Folia de
Reis do DF, que resultou no CD duplo “Folia de Reis:
tradição e fé”. Luís Carlos, que eu já conhecia de vista,
de ouvi-lo no cantorio de Reis e de trocar os cordiais
bom dia ou boa noite, desde 2003, veio cantar uma
folia para gravação, indicado pelos coordenadores da
Folia de Reis goiana de Itaguari. Naquele momento,
eu imaginava que estava gravando um canto de autor
desconhecido, como de resto achava que seria todo
e qualquer canto de folia. Assim, na ficha técnica da
faixa consta o nome do canto (Anunciação), o grupo
(Folia de Reis de Itaguari e Inhumas), a letra e os in-
tegrantes daquela formação, com as respectivas vo-
zes e instrumentos. E não há, portanto, referência à
autoria. Nos créditos do CD, lê-se: todas as músicas
do CD fazem parte da tradição da Folia de Reis. Coe-
rentemente, na geração dos códigos do ISRC, todas as
faixas foram indistintamente caracterizadas como de
domínio público.
Apenas muito tempo depois de passar a conviver
mais proximamente com Luís Carlos, vim a saber que
165
Luís Carlos

166
aquela Anunciação que havíamos gravado em 2005 No caso específico dessa gravação, tem-se, por
não era de autor desconhecido. A letra é dele e a toada um lado, uma mistura de ingenuidade, inocência,
é do João Baianinho. desconhecimento e inconsequência da parte de
quem gravou – foliões e produtores. Mesmo sem in-
Importante ressaltar que, há dez anos, a identifica-
teresse de prejudicar ninguém, a obra acabou sendo
ção da autoria era inconcebível para uns e irrelevante
considerada como de domínio público, que implica
para outros agentes envolvidos no processo. A equipe
uma autoria desconhecida ou o decurso de setenta
do projeto não atinou para o fato de que aqueles cantos
anos da morte do autor, o que não é o caso. De outro,
poderiam ter uma autoria determinada ou determi-
consta que a família do autor também não se impor-
nável. Luís Carlos, por sua vez, já conhecia na época a
tava. Alguns foliões consideram que ficaram mesmo
viúva do compositor da toada, dona Luzia, e seu filho,
satisfeitos porque, ainda que a gravação – que ficou
Valdeci, mas tampouco lhe ocorreu que deveria pedir
excepcionalmente boa – tenha sido divulgada até no
a autorização deles para incluí-la numa gravação. Ali-
exterior sem a referência dos autores, em Inhumas,
ás, sequer lhe ocorreu se apresentar para quem estava
gravando como o compositor da letra. Em janeiro de onde as pessoas mais próximas da folia reconhecem
2005, predominava entre nós aquela concepção se- a toada do João Baianinho, o nome do autor foi mui-
gundo a qual atribui-se automaticamente a categoria to comentado.
de autoria desconhecida para obras relacionadas às José Olavo Nogueira, folião e divulgador da mani-
manifestações entendidas como folclóricas. E, conse- festação, que participou da referida gravação e estava
guintemente, a identificação da autoria não fazia parte presente no seminário, avalia ainda que, de forma in-
das preocupações dos foliões, dos pesquisadores ou direta, no espaço da Folia de Reis, a divulgação já era
dos produtores fonográficos. E ainda hoje essa é uma feita nas casas que o grupo chega, quando o embai-
questão que apenas começa a ser considerada 37. xador anuncia para o sanfoneiro a toada em que irá
Hoje, depois de registrar 40 toadas de Reis diferentes cantar: João Baianinho.
em Inhumas e região, identificando a autoria de dezes- Outro aspecto relativo aos direitos autorais des-
seis delas, temos um entendimento diferente da questão pertado pelo caso da gravação dessa Anunciação é que
e percebemos que a omissão dos nomes dos autores da a criação dos versos por Luís Carlos a partir do texto
toada e da letra caracteriza violação do direito moral que bíblico é absolutamente normal e legal. É legal criar a
o autor tem de se ver reconhecido como criador daquela partir de uma obra preexistente, independente de ela
obra; que é chamado de direito de paternidade. estar protegida ou caída em domínio público. O que
37. Até onde é do nosso conhecimento, um dos trabalhos pioneiros em levantar a está em discussão na esfera jurídica atualmente – e
questão da autoria individual em manifestações culturais coletivas e difusas é o
ensaio de Siba “Cultura popular x criação artística?”, publicado no livro Tocadores
que é um tema complexo – é a reutilização de partes
(MARCHI, SAENGER e CORRÊA, 2002). de gravações, como sampler e remix.
167
Embora o tema da Anunciação esteja todo dado rimas e na métrica dos versos para encaixá-la na toada
no Evangelho de Lucas (I, 26 - 38), seria impossível de Santos Reis; trabalho que justamente caracteriza sua
cantar uma Folia de Reis com os versos exatamente da autoria.
forma que se encontram na passagem da Bíblia.
Numa cidade da Galileia / por nome de Nazaré /
existia uma virgem / bonita e de muita fé Cidade
Anunciação do nascimento de Jesus de Nazaré / é aonde ela vivia / sua beleza vinha
de dentro / e o seu nome era Maria Já era o sexto
26 No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por mês / da gravidez de Isabel / Maria foi visitada /
Deus a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré, pelo anjo Gabriel O anjo então saudou Maria /
27 a uma virgem desposada com um homem que com gesto doce e amigo / salve, óh cheia de graça /
se chamava José, da casa de Davi e o nome da vir- que o Senhor está contigo Maria não entendeu /
gem era Maria. 28 Entrando, o anjo disse-lhe: “Ave, aquela nobre saudação / e perguntou São Gabriel
cheia de graça, o Senhor é contigo”. 29 Perturbou-se / e ele deu a explicação Sou enviado do Senhor /
ela com essas palavras e pôs-se a pensar no que sig- pra anunciar o destino seu / tu és bendita entre as
nificaria semelhante saudação. mulheres / pra ser a mãe do filho de Deus Maria se
assustou / por ser virgem e prometida / e perguntou
30 O anjo disse-lhe: “Não temas, Maria, pois encon- São Gabriel / como ia ser concebida O anjo então
traste graça diante de Deus. 31 Eis que conceberás respondeu / vai ser a mãe do Salvador / com o Di-
e darás à luz um filho, e lhe porás o nome de Jesus. vino Espírito Santo / o Senhor te preparou Ainda
(…) 34 Maria perguntou ao anjo: “Como se fará avisou Maria / da sua prima Isabel / que falavam
isso, pois não conheço homem?” 35 Respondeu-lhe que era estéril / mas recebeu graças do céu Maria
o anjo: “O Espírito Santo descerá sobre ti, e a força então respondeu / eis a escrava do Senhor / faça-se
do Altíssimo te envolverá com a sua sombra. Por em mim a tua palavra / e o anjo se arretirou Re-
isso, o ente santo que nascer de ti será chamado fi- pleta do Espírito Santo / que Deus confiou em vós /
lho de Deus. 36 Também Isabel, tua parente, até ela o verbo então se fez carne / para habitar entre nós.
concebeu um filho na sua velhice; e já está no sexto
mês aquela que é tida por estéril, 37 porque a Deus Os últimos dois versos reproduzem, com muita
nenhuma coisa é impossível”. 38 Então disse Maria: proximidade, o primeiro período do versículo 14 do
“Eis aqui a serva do senhor. Faça-se em mim segun- capitulo I do Evangelho de João. E isso nos leva para
do a tua palavra”. E o anjo afastou-se dela. um outro aspecto também digno de consideração. A
inspiração no texto bíblico é recorrente no cantorio
Mantendo o mesmo sentido do texto bíblico, a le- da Folia de Reis, inclusive da parte dos embaixadores
tra composta pelo embaixador Luís Carlos apresenta mais ligados à oralidade. E não tem nada mais enqua-
um trabalho artístico e intelectual na elaboração das drado como de domínio público do que a Bíblia. Afi-
168
nal, um dos quesitos que caracterizam o domínio público tividade e originalidade passível de proteção autoral.
é o esgotamento do prazo de proteção da obra. E isso sem O critério da originalidade se faz presente ainda que
contar a própria questão da autoria do texto, uma vez que baseado em obra preexistente, cujo texto foi transpos-
os estudiosos ainda hoje apenas podem supor quem fo- to para versos e em forma de canção.
ram os autores de cada um dos capítulos do antigo ou
mesmo do novo testamento. O citado Evangelho de João, Isso é uma situação diferente de uma adaptação.
por exemplo, possivelmente foi escrito por algum segui- Esta se caracteriza, por exemplo, quando se transforma
dor décadas ou séculos depois da morte de João Evange- uma obra literária em outra linguagem artística: uma
lista, a partir de uma tradição oral. obra audiovisual, uma peça teatral etc. Neste caso, é
necessário uma autorização expressa do autor ou seus
Uma tradução recente da Bíblia, vinda de outra herdeiros, porque trata-se de um direito patrimonial
língua moderna ou diretamente dos originais hebrai- do autor, que pode autorizar ou não a adaptação.
co, aramaico ou grego, entretanto, está protegida como
obra intelectual, caso os tradutores estejam vivos ou Além do esgotamento do prazo de proteção legal
tenham morrido há menos de setenta anos. Este é, por de setenta anos a partir da morte do autor 38, está em
coincidência, o caso da tradução usada para mostrar domínio público a obra de autor desconhecido. Ora,
a fonte da letra composta por Luís Carlos. Trata-se de como as obras consideradas folclóricas são entendidas
uma tradução do Centro Bíblico de São Paulo, de 1959, como aquelas carreadas pela tradição, cuja referência
que verteu para o português uma versão francesa dos aos autores perderam-se em tempos imemoriais, essa
originais hebraico, aramaico e grego, feita por monges concepção de folclore tende a associar, automaticamen-
de Maredsous, religiosos beneditinos da Bélgica. te, todas as obras presentes numa manifestação cultural
tradicional, coletiva e difusa com a autoria desconhe-
Embora a referida tradução, em tese, esteja prote-
cida, o que vem a caracterizar o domínio público. E se
gida pela lei de direitos autorais, a forma de criação da
está em domínio público, está isenta de autorização e
letra por parte do embaixador Luís Carlos – inspirada
de qualquer remuneração pelo seu uso. Qualquer pes-
e composta com base no Evangelho de Lucas – carac-
soa pode usá-la da forma que bem entender.
teriza, como dissemos, a criação a partir de uma obra
já existente. E não sofre, portanto, qualquer tipo de Os direitos das gravadoras e dos intérpretes e
restrição legal, tendo em vista tratar-se, claramente, executantes, entretanto, estão protegidos mesmo que
de uma obra nova, que preenche os critérios de cria- se trate de gravações e interpretações ou execuções
de obras caídas em domínio público ou de obras que
38. A obra cai em domínio público imediatamente quando o autor morre sem dei-
xar herdeiro. A lei autoral brasileira considera, porém, a contagem do prazo de se caracterizem como expressões culturais tradicio-
setenta anos de formas distintas dependendo do tipo de obra. Assim, uma obra nais - ou expressões do folclore, nos termos da lei de
audiovisual ou uma obra fotográfica, por exemplo, contam o prazo de proteção dos
direitos patrimoniais a partir de sua divulgação. direitos autorais.

169
Em Inhumas e região, entretanto, como vimos, te- ções artísticas e culturais em manifestações coletivas,
mos várias toadas de Reis de autoria conhecida e iden- tradicionais e difusas é complexo por uma série de
tificável. Essas obras deveriam estar sob proteção legal motivos; sendo a intenção religiosa, presente no caso
e não ser consideradas de domínio público, porque, das Folias de Reis, mais um complicador. Antes, en-
se não há, da parte dos foliões, restrição para seu uso tretanto, de abordarmos as questões referentes aos
nos giros da Folia de Reis, o mesmo não se dá para o direitos patrimoniais e a eventual cessão de direitos
caso de gravações ou outros usos fora da comunidade ou a autorização de uso – ou licenciamento – a tercei-
de devotos. Nesses casos, o uso dessas obras precisaria ros pelo autor, cumpre apresentar algumas definições
passar pela expressa autorização dos autores. preliminares sobre direito autoral e arrematar algu-
mas questões relativas aos direitos morais do autor.
Neste ponto, temos uma situação esdrúxula advin-
da do fato de muitas vezes se considerar automatica- Sob o rótulo de direitos autorais, temos dois gru-
mente como de domínio público obras pertencentes pos de direitos: os direitos morais e os direitos pa-
a uma manifestação coletiva e difusa e/ou folclórica. trimoniais. Direitos morais são aqueles que unem o
Uma toada de Reis cuja autoria é conhecida em sua autor a sua criação intelectual. Eles são intransferí-
comunidade pode vir a ser gravada por algum artista veis, irrenunciáveis e inalienáveis. Direito moral não
externo como sendo de domínio público por ignorân- é de ordem pecuniária, que relaciona a dinheiro. Di-
cia de sua autoria pelo intérprete e pelo produtor fo- nheiro vem do direito patrimonial, que são os direi-
nográfico ou mesmo por má fé. Incluída na categoria tos de exploração econômica da obra. Estes podem
de domínio público, aquele artista poderia gravá-la ser transferidos. Um autor de uma toada ou de uma
sem a necessidade de autorização do autor, a quem
letra, por exemplo, pode ceder os direitos dele para
tampouco caberia qualquer remuneração pelo uso de
outros, por um contrato. O direito moral, não. Só o
sua obra. E os direitos conexos relativos àquela grava-
autor fica com esse direito. E para sempre, uma vez
ção seriam de usufruto daquele artista.
que, além de inalienáveis e irrenunciáveis, a maior
O exemplo acima caracterizaria um uso perverso parte da doutrina entende que os direitos morais são
da legislação vigente, derivado da atribuição equi- também imprescritíveis.
vocada da categoria de domínio público. No caso de
uma gravação de uma toada tradicional pelo próprio São exemplos de direitos morais: a) direito de
grupo de Folia de Reis que a preserva, a situação é paternidade; b) direito de integridade; c) direito de
bem diferente e o gozo dos direitos conexos teria efei- conservar a obra inédita; d) direito de divulgação; e)
to benéfico para o grupo e para a comunidade. direito de arrependimento. Direito de paternidade é
o direito que o autor tem de se ver reconhecido como
Como é perceptível, o usufruto de vantagens eco- criador daquela obra. Direito de integridade é o direi-
nômicas advindas da exploração comercial das cria- to moral de o autor se opor a qualquer modificação ou
170
alteração que ele entenda que possa prejudicar a sua letra ou da toada antes ou depois de uma execução
obra ou atingir a sua reputação. O autor tem o direito nas funções da folia.
de, ainda no campo moral, conservar a obra inédita
ou, ao contrário, divulgá-la. Por fim, tem o direito de No caso da venda do CD pirata, que remete ao uso
arrependimento, ou seja, de modificar a obra sempre externo, há efetivamente um prejuízo financeiro ao
que quiser ou de retirá-la de circulação 39. autor, ao produtor fonográfico e aos intérpretes e exe-
cutantes. Esse prejuízo, como vimos, foi desculpado
A partir dessas definições preliminares a respeito e/ou minimizado por Luís Carlos em razão de seu ob-
dos aspectos morais e patrimoniais do direito auto- jetivo maior de evangelização, que é até ampliado pela
ral, convém matizar e contextualizar as afirmações de ação dos pirateiros. No CD “As sete dores de Maria”
Luís Carlos a respeito da divulgação não autorizada – obra individual de Luís Carlos, gravado em 2007 –,
de sua obra autoral. A primeira observação a fazer é a inclusão das toadas foi devidamente autorizada pe-
que ele – no mesmo diapasão dos demais foliões en- los autores. No encarte, consta referência aos autores
trevistados – separa claramente o que é de uso inter- das músicas e das letras. E, desde que o encarte não
no da folia – que envolve, além dos giros, também os seja alterado, a vinculação do autor com a obra é uma
encontros de folia – do que é de uso externo – como parte que não fica prejudicada pela ação do pirateiro.
é o caso da gravação. Os palhaços recitando o texto
da Anunciação ou da Sete dores de Maria, no giro em Até aqui tratamos de gravações incluídas em CDs
Taquaral e no encontro de Nova Veneza, respectiva- e de suas implicações para os direitos morais dos au-
mente, agem na lógica interna da Folia de Reis. Essa tores. Cumpre, entretanto, salientar que a perspectiva
lógica considera as contribuições individuais como de participar de uma gravação – que coloca o ingre-
pecúlio comum da comunidade dos devotos, incor- diente da difusão do cantorio de Reis para fora do cír-
porando-as à tradição e inserindo-as na corrente de culo habitual dos foliões – já traz em si as questões
transmissão que atravessa gerações. Esse uso interno relacionadas à vinculação do autor com sua obra.
na Folia de Reis não caracteriza o desrespeito ao di- Talita: Thiago, você tinha falado da importância da
reito moral de paternidade, ou seja, de vincular a obra autoria pra você, que gostaria de ser reconhecido
ao seu autor, até porque não há uma obrigação legal por isso. E como seria pra você encontrar outro em-
de anunciar a autoria de obras em interpretações ao baixador cantando os versos que você criou? Seja ao
vivo. E seria mesmo muito estranho um palhaço ou vivo ou num CD.
um embaixador anunciar o nome do compositor da
Thiago: Nossa, é uma alegria imensa, porque é si-
39. O direito de arrependimento foi exercido, por exemplo, por Roberto Carlos, nal que o esforço que a gente teve tá sendo reconhe-
que renegou as obras da Jovem Guarda e as tirou de circulação. Ele não permite cido. Muita gente escutou e tá gostando. Porque se
que se lance de novo. É um direito dele que se enquadra na esfera dos direitos
morais do autor. tá repetindo é porque gostou.
171
Sebastião: Quer dizer, é uma alegria imensa se ele Sebastião: Agora, se isso acontecer aqui dentro de
cantar o que você fez e disser que foi você que fez. Inhumas, num determinado giro. Alguém escuta
o CD e gosta. Chega numa ocasião, por exemplo,
Thiago: Exatamente. numa entrega de folia com uma festa bonita, cheia
Na conversa que tivemos com os foliões que gra- de gente, aí ele vai e canta. Ninguém pergunta
varam com o capitão Thiago, uma vez mais foi confir- (quem era o autor) e ele não tem oportunidade de
mada a diferenciação entre os usos internos e externos falar. Tá tudo certo?
do cantorio de Reis. Indagados explicitamente sobre
João Guará: Não tem problema. O problema é gra-
uma eventual regravação de uma letra sem a devida
var ela de novo. Aí que dá o pega.
autorização da parte do compositor e sem menção da
autoria ou, o que é ainda mais grave, com a atribuição Fernando: As músicas que o Thiago produziu têm
da autoria a outrem, nesse caso a rejeição é imediata. um sentido religioso. E o sentido religioso é trans-
mitir uma mensagem de um ser transcendente,
João Guará: Eu acho que uma pessoa pra gravar
um ser espiritual. Uma mensagem de paz. Ela tem
uma letra tem que ter a autorização do autor. Por-
que chegar ao devoto – ao devoto católico cristão
que é o seguinte: o autor faz uma coisa, ele tá pen-
– e transmitir uma paz e ficar algo na pessoa. Ou
sando é no nome dele ser expandido. O meu caso
seja, ela tem que evangelizar. E, pra evangelizar,
também é esse. Eu não penso nunca na vida ser ar-
ela tem que ser repetida. Ela tem que ser propa-
tista. Mas, se uma música minha sair na voz de ou-
gada. Ou seja, alguém que ouviu tem que passar
tra pessoa, eu quero ser reconhecido como compo-
para outro. E, se é através de música, tem que ser
sitor daquela letra. Bobagem eu pensar que eu não
cantada. Então, eu acho que tem que ser reconhe-
vou querer ter um entusiasmo pela minha letra ser
cida (a autoria)? Tem! Mas também não temos
regravada por outra pessoa. (Mas) sem meu nome
apenas que preocupar só com isso. Porque tem o
tá junto, aí é bobagem. O meu serviço ficou perdido,
sentido de evangelizar. E só evangeliza se é conhe-
sem reconhecimento.
cido, quando todos passam a ter conhecimento da-
Thiago: Mas igual a gente já tá gravando agora. Já quela música.
tá registrando. Todo mundo já sabe que tá registra-
do, que é nosso. João Guará: Ninguém vai impedir e ninguém
aqui quer impedir outra pessoa de cantar o que
João Guará: Mas é que ele tá dizendo o seguinte: a gente fez. É honra pra nós. Pode chegar no fim
vai regravar a sua (letra) lá. Você não autorizou. do mundo. Tem problema não. A questão é de
Ela sai lá com o nome de outro. O seu ficou pra direitos autorais, como se diz. O compositor tem
trás. Quer dizer, ele primeiro tem que chegar até o direito de ser reconhecido em todas as compo-
você e pedir a sua autorização para ser regravado. sições que ele faz.
172
As diferentes concepções de autoria no propriedade intelectual – do qual os direitos autorais fa-
Barroco e no Romantismo zem parte – e o consequente estabelecimento de paten-
tes foi formulado para garantir precipuamente direitos
O direito autoral é um dos ramos do direito cha- individuais. Isso é especialmente válido para o caso do
mado propriedade intelectual. Embora relacionados, droit de auteur, que caracteriza o sistema continental
o direito autoral tem uma história um pouco mais europeu, do qual fazemos parte. No sistema copyright,
antiga do que a das patentes. O primeiro marco legal do qual o Estatuto da Rainha Ana deriva, a intenção era
de proteção do direito autoral, surgido na Inglaterra e proteger os editores com um direito exclusivo de cópia
chamado Estatuto da Rainha Ana, data de 1710. Já as
(copyright) por um período de tempo (quatorze anos
convenções internacionais que protegem as patentes
no caso do referido estatuto).
– Convenção de Paris – e os direitos autorais – Con-
venção de Berna – são praticamente contemporâneas, O objetivo da proteção da propriedade intelectual
datando do final do século XIX. O texto da Conven- e do direito autoral é permitir que o criador tenha a
ção de Berna em vigor é de 1979, uma vez que o texto exclusividade sobre os direitos da sua criação, por um
inicial, de 1886, passou por várias revisões ao longo determinado período de tempo que se considere razoá-
dos anos. vel, premiando o uso do intelecto do autor de uma obra
ou inventor de um produto ou de um processo. São,
Essas datas já são em si bastante reveladoras. Elas
portanto, direitos exclusivos e monopolísticos, cujo be-
marcam a íntima relação do aparecimento dos direi-
nefício depende da identificação precisa de um autor
tos autorais com a emergência da ideia de sujeito no
(ou de um grupo específico de indivíduos que compar-
iluminismo e sua evolução durante o século XIX, im-
tilhem uma autoria ou invenção). Por outro lado, essa
pregnada das concepções do liberalismo e do indivi-
legislação também prevê a conciliação dos direitos e
dualismo da sociedade burguesa que passa, então, a
ser predominante. Um dos requisitos para a conces- interesses particulares do criador com a função social
são de uma patente é a novidade, notadamente a no- da propriedade intelectual e do direito autoral. Deste
vidade tecnológica com potencial de aproveitamento modo, depois de determinado tempo as obras e pa-
pela indústria. Ela implica a privatização do conheci- tentes caem em domínio público, de modo que o con-
mento, a serviço em grande medida da iniciativa e da junto da sociedade possa desfrutar dessas benesses 40.
propriedade privadas. No caso dos direitos do autor, como vimos, uma obra
protegida só cai em domínio público após setenta anos
Importante salientar que, para a efetivação des- da morte do autor, se tiver herdeiro. Isso se aplica aos
se predomínio das concepções burguesas, foi preciso
derrocar as concepções mais comunitaristas e coletivas 40. Além disso, há as limitações e exceções aos direitos autorais, isto é, os usos livres
ou permitidos, ainda que a obra não tenha caído em domínio público. O caso de
que vinham da situação feudal e persistiam em grande utilizar uma obra preexistente para criar uma nova obra é um caso de limitação ao
medida no Antigo Regime. Destarte, o atual sistema de direito autoral, prevista em lei.

173
direitos materiais já que os direitos morais são irrenun- criação é feita dentro dos limites da tradição e condi-
ciáveis, inalienáveis e imprescritíveis. cionada à aceitação da parte do conjunto dos devotos, o
que não permite um grande grau de liberdade do autor
Os direitos autorais surgiram para proteger a cria- na criação ou na inovação; c) as toadas tradicionais, em
ção e incentivar o criador, numa política de Estado sua maioria, têm origem difusa e são compartilhadas
voltada para estimular o aumento da produção inte- por várias comunidades de devotos e grupos de folia,
lectual e cultural. Entretanto, na percepção cada vez não se sabendo ao certo qual delas deteria a autoria e
maior de todos aqueles envolvidos com a questão, eles tampouco a extensão da difusão de cada toada; d) a pri-
servem, hoje em dia, muito mais para proteger um in- vatização das obras por meio de gravações muitas vezes
vestimento econômico, beneficiando, assim, mais as contraria o sistema de valores dessas comunidades, que
empresas do que as pessoas. tem como base o compartilhamento dos cantos e sua
Além desse alerta – de validade geral – é preciso cha- transmissão ao longo de gerações (um CD, um DVD,
mar a atenção para algumas inadequações do atual siste- este livro podem ter um dono, mas “Santos Reis é para
ma da propriedade intelectual e do direito autoral quan- todos”); e) como repartir eventuais benefícios econô-
do voltados para a proteção das expressões culturais e dos micos no caso de veiculação de toadas e letras tradicio-
conhecimentos tradicionais, coletivos e difusos. Carla nais? Quem deve receber os recursos? A comunidade?
Belas (2004; seminário, agosto de 2014) discutiu as ques- E, nesse caso, qual delas? E quem seria seu interlocutor
tões relativas à propriedade intelectual no âmbito dos di- autorizado? Um fundo governamental ou um fundo
reitos difusos. Embora ela trate especificamente do caso Carla Belas
de Conhecimentos Tradicionais – que se refere a comu-
nidades indígenas, quilombolas, extrativistas –, algumas
de suas observações também são pertinentes para o caso
da cultura popular tradicional – um grupo de Congado,
de Folia de Reis que, com alguma orientação, teriam con-
dições de se movimentar nas regras vigentes.
Adaptando as observações da autora para o caso
que nos diz respeito, temos as seguintes questões: a) o
estabelecimento da autoria foi formulado tendo como
base a garantia de direitos individuais e, no caso da Fo-
lia de Reis, a maior parte das toadas e das letras tor-
nou-se um pecúlio comum das comunidades que as
preservam – que é diferente de domínio público; b) um
dos requisitos da autoria é a novidade, mas, na folia, a
174
não governamental?; f) a inserção de dinheiro advindo ora fizemos essas ressalvas para introduzir a comple-
do uso comercial dessa produção cultural traria mais xidade da questão com relação ao gozo dos direitos
benefícios ou prejuízos no que diz respeito à manuten- patrimoniais.
ção da cultura dos grupos?
A viabilidade do reconhecimento da autoria de le-
São muitas questões e poucas respostas. A viabi- tras e toadas, dos direitos morais do autor, entretanto,
lidade de uma repartição justa das benesses econô- nos parece líquida e certa. Mas a atribuição de autoria
micas advindas da exploração dos direitos autorais segundo os preceitos da estética romântica – o estilo
e conexos na situação da Folia de Reis é, pois, uma artístico do liberalismo – esbarra igualmente em al-
questão em aberto. Se, por um lado, temos todas es- gumas dificuldades. Por isso tomamos emprestado o
sas dificuldades elencadas, por outro, se os grupos conceito de engenho barroco para atribuição da au-
tradicionais não entrarem na seara autoral, eles terão toria na Folia de Reis. A este assunto retornaremos
seus direitos gozados por terceiros. No caso de uma após uma breve apresentação do sistema vigente de
execução pública de uma gravação de Folia de Reis proteção dos direitos autorais no que diz respeito à
por rádios, por exemplo, não importa que os autores, sua parte material e patrimonial.
intérpretes ou executantes estejam ou não filiados a O direito autoral está previsto no art. 5º, XXVII
uma das associações integrantes do Escritório Cen- e XXVIII, da Constituição Federal. É cláusula pétrea
tral de Arrecadação e Distribuição – ECAD. Num ou e, portanto, só pode ser alterada por meio de uma
noutro caso, o ECAD vai cobrar pelas músicas execu-
Assembleia Constituinte Originária. Este dispositivo
tadas. No entanto, distribuirá a parte arrecadada cor-
constitucional é regulado pela Lei de Direito Autoral
respondente somente para os associados. Da mesma
(Lei nº 9.610/98). Além disso, têm vigência no país
forma, na venda de CDs e DVDs nos parâmetros do
tratados internacionais como a referida Convenção
mercado – que nem sempre é o caso das gravações de
de Berna – que trata dos direitos do autor – e a Con-
folia –, os produtores fonográficos ficarão com tudo,
venção de Roma, de 1961 – que trata dos direitos co-
se autores, intérpretes e executantes não lutarem por
nexos aos direitos autorais. A Convenção de Roma,
seus direitos. Mesmo que se trate de um montante re-
atualmente, é administrada pela UNESCO – órgão da
lativamente baixo, se os foliões não receberem, esse
Organização das Nações Unidas para a Educação, a
dinheiro irá parar nas mãos de outros.
Ciência e a Cultura –, pela Organização Mundial de
Os mecanismos de operacionalização do usufru- Propriedade Intelectual – OMPI e pela Organização
to das benesses advindas da exploração dos direitos Internacional do Trabalho – OIT. No ordenamento
autorais e conexos relativos ao uso comercial de gra- jurídico brasileiro, a Convenção de Roma foi recep-
vações de Folia de Reis e de sua execução em rádio cionada pelo Decreto Legislativo nº 26/1964 e pro-
serão discutidos pormenorizadamente abaixo. Por mulgada pelo Decreto nº 57. 125/1965.
175
O direito de autor é o direito que o criador da obra tado com mais detalhes abaixo. Como exemplo de
artística ou intelectual tem de gozar dos produtos re- adaptação criativa, temos a faixa 10 do CD 1 Encontro
sultantes da reprodução, execução e representação da com a festeira, em que o embaixador Luís Carlos le-
sua obra. Os direitos conexos, como o próprio nome vanta as últimas notas da melodia do segundo verso
diz, estão relacionados à obra por outra via que não da toada São Sebastião. Como estamos considerando
a criação. São os direitos: a) dos artistas intérpretes e essa gravação uma variante da toada composta por
executantes; b) dos organismos de radiodifusão (rá- Seu Lourenço, a este caberiam os direitos de autor e
dio e TV) sobre suas transmissões; e c) do produtor a Luís Carlos, os direitos conexos de interpretação e
do fonograma, sobre o fonograma, que é a música ou execução.
outros sons gravados. Quanto ao fonograma, seu titu-
lar é uma gravadora ou, nos termos da lei, o produtor Os direitos autorais são direitos exclusivos. O que
do fonograma. Essa cadeia deixa claro que esse ramo significa que é necessário a autorização prévia e ex-
do direito, que surge para proteger pessoas criadoras pressa do autor ou do titular do direito para qualquer
individuais, com a Convenção de Roma passa a prote- utilização da obra. Os direitos patrimoniais, como vi-
ger investimento também. mos, são os direitos de exploração econômica da obra,
ou seja, os que geram recursos econômicos pela sua
Os direitos conexos de interpretação e execução exploração. Ao contrário dos direitos morais, que não
têm interesse para a discussão de um dos aspectos re- são de ordem pecuniária e são intransferíveis e inalie-
lacionados à composição de toadas. Vários embaixa- náveis, os direitos patrimoniais podem ser transferi-
dores enfatizaram o fato de que nenhum deles canta dos. Por meio de um contrato, o direito patrimonial
cada toada de forma exatamente idêntica a outro. E sobre uma obra pode ser licenciado a uma gravadora
alguns foliões lembraram que a criação de toadas se ou cedido a uma editora. Com isso, a gravadora ou a
deve, em certa medida, ao processo de distanciamen- editora passam a ser, respectivamente, o licenciado ou
to de uma variante em relação à toada que lhe deu ori- o titular daquele direito, ou seja, quem atua em nome
gem. Interessante notar que um tema na Folia de Reis do direito ou goza do direito.
é muitas vezes tratado por uma “rama”: Anunciação,
Nascimento. Da mesma forma, a criação de algumas Autoria é, portanto, diferente de titularidade. O
toadas novas são tratadas como um processo de “tirar titular do direito sobre determinada obra pode ser o
um galho” (de um tronco preexistente). autor, mas pode não ser ele. Zé Mulato e Cassiano, por
exemplo, quiseram fazer um CD comemorativo dos
O limite entre o que seria uma variante e o que vinte e cinco anos de carreira a partir de fonogramas
seria uma nova toada não se deixa colocar de forma gravados entre 1978 e 2003, mantendo a originalida-
clara e inquestionável. O processo de derivação de de das respectivas gravações. Os fonogramas, porém,
algumas toadas de outras preexistentes será apresen- eram de titularidade das gravadoras e estas não au-
176
torizaram sua utilização. Assim, os autores selecio- pendendo da natureza da veiculação. No caso de
naram as canções desse repertório, mas tiveram que direito de reprodução, tem os editores literários ou
fazer novos arranjos, com novos músicos, para o CD musicais. Na distribuição, tem os produtores. E os di-
comemorativo. reitos de comunicação ao público são intermediados
pelas entidades de gestão coletiva de direitos autorais.
Para o autor é, pois, quase sempre melhor licen-
São esses elos no meio da corrente que, normalmente,
ciar a obra do que assinar um contrato de cessão 41.
se apropriam da maior parte dos lucros auferidos no
A licença é permitir que alguém use. E o autor pode
negócio. Geralmente, são empresas e todo o processo
cobrar por isso. Ela é temporária. O autor não per-
é regulado por relações contratuais.
de os direitos sobre a obra. No caso deste projeto, os
autores das toadas e das letras, os executantes e intér- No caso das gravações de Folia de Reis, é bem pro-
pretes do cantorio de Reis e ainda os foliões e devo- vável que predomine no meio a informalidade na cir-
tos que foram fotografados deram uma licença para culação de CDs e DVDs. Para produzir, formalmente,
a Universidade Federal de Goiás publicar o livro com um CD ou DVD dentro das regras do direito autoral
os CDs. E receberam a íntegra do registro em áudio e alguns passos precisam ser seguidos. Primeiro, o au-
fotográfico, sem restrição de uso. tor precisa buscar a parceria de um produtor fono-
Os direitos patrimoniais se dividem em três gru- gráfico. Este produtor fonográfico deverá estar filiado
pos: a) direitos de reprodução; b) direitos de distribui- a umas das nove associações de autores que existem
ção; c) direitos de comunicação ao público. Reprodu- no país e que estão congregadas no Escritório Central
ção, no direito autoral, significa copiar. Não é tocar, de Arrecadação e Distribuição – ECAD, entidade de
apertar a tecla play. Os direitos de distribuição são gestão coletiva de direitos autorais no campo da exe-
aqueles relativos à venda de CD ou DVD, locação, ou cução pública de obras musicais e fonogramas.
qualquer outra forma de transferência do exemplar da
Para trazer um exemplo concreto, vejamos o caso
obra. E o direito de comunicação ao público é o di-
deste livro e CDs da Cia de Santos Reis de Inhumas.
reito de fazer uma execução pública musical, ou uma
Sebastião Rios é o produtor fonográfico, associado
exibição pública audiovisual, ou uma representação
à Associação Brasileira de Música e Artes – ABRA-
pública teatral, por exemplo.
MUS. Os foliões concederam a licença para a Univer-
No mercado formalizado, do momento de sua sidade Federal de Goiás publicar o livro com os CDs,
criação até chegar ao público consumidor, a obra por meio de um projeto coordenado pelo professor
sempre passa por algum tipo de intermediário, de- Sebastião Rios. Este dispõe de um programa de com-
putação disponibilizado pela ABRAMUS em que são
41. Alguns autores e compositores têm dificuldade de dizer não ou de cobrar de
amigos pelo uso de suas obras e, por isso, preferem ceder os direitos para que uma
inseridos, para cada faixa, o nome e documento dos
editora resolva essa parte que consideram melindrosa. autores, cantores / intérpretes e músicos / executantes
177
com os respectivos instrumentos. Assim, para cada toração (no caso do DVD). Acrescenta-se a parte do
faixa é gerado um código do ISRC, que é posterior- lojista (ainda que virtual). Então, do valor de venda
mente criptografado no CD, na masterização. de cada exemplar, apenas uma parte é para pagar o
direito autoral. Mas o CD é um conjunto de fonogra-
Esse código do ISRC permite identificar a execu- mas, cujo dono é o produtor do fonograma. A música
ção das faixas nas rádios ou nos toca-CDs, particu- (obra) é do autor, mas a música gravada não é dele. É
lares ou em espaço público. No caso das rádios e das do produtor do fonograma, que fica com maior parte
execuções em espaço público, a informação é repassa- do bolo. Ou seja, a gravadora possui os direitos fono-
da ao ECAD, que cobra por essa execução. O ECAD, gráficos sobre os fonogramas (gravações). Nos rendi-
por sua vez, remunera – por meio das associações – o mentos dos fonogramas, uma parte é devida ao autor
produtor fonográfico, os autores, intérpretes e execu- pelos chamados direitos fonomecânicos, que incidem
tantes pelo uso, respectivamente, do fonograma, da somente nas vendas de CDs e DVDs (formais). Exis-
música e das interpretações e execuções deles. tem ainda os chamados direitos artísticos de intér-
A venda de CDs e DVDs formais em lojas envolve pretes e executantes que são devidos pela gravadora
outros direitos autorais como a reprodução e a distri- pelas vendas. Ao fim e ao cabo, a parte do autor e dos
buição, que não estão sujeitos ao controle do ECAD. intérpretes e executantes é algo em torno de 9% do
A venda de CDs como negócio, porém, teve sua lu- valor de capa. Então, para os autores, a venda de CD –
cratividade atingida pela ascensão da Internet. Nos chamada de fonomecânico na terminologia do direito
meios em que esta predomina, há um crescente au- autoral – representa uma porcentagem muito baixa
mento da utilização de serviços digitais que oferecem nos rendimentos. A maior parte do lucro no mercado
download e, principalmente, streaming legais de mú- fonográfico, como foi dito, fica com os agentes inter-
sicas, com o consequente declínio da venda de CDs e mediários: editores musicais e produtores.
DVDs. Perante as dificuldades de tentar impedir a cir-
O cálculo acima diz respeito a um CD de músi-
culação não autorizada na Internet e tendo em vista o
ca popular, com relativo apelo comercial. Este não
aumento crescente de oferta legal de música na rede,
alguns artistas, se adaptando aos novos tempos, inclu- costuma ser o caso das manifestações da cultura po-
sive utilizam a veiculação gratuita na Internet como pular tradicional que, geralmente, não se sustentam
estratégia de marketing. no mercado e dependem do fomento estatal para se
viabilizarem. Este é, por exemplo, o caso deste livro e
Outra consideração importante relativa à lucrati- CDs da Cia de Santos Reis de Inhumas, que não tem
vidade da venda formal de CDs e DVDs é a compo- a motivação do lucro em sua realização. A produção
sição do seu preço. Se é formal, uma parte fica com do fonograma, que costuma ser a parte mais rentável
os impostos. Outra paga o processo industrial de fa- da produção voltada para o mercado, sequer é remu-
bricação – incluindo masterização, arte gráfica, e au- nerada. E a Cia de Santos Reis recebe a metade da ti-
178
ragem inicial, o que seria correspondente à 50% do como Luís Carlos, Olavo e Lindomar conseguem al-
preço de capa. gum retorno vendendo seus CDs e DVDs nos giros e
nos encontros de Folia de Reis. O que é um efeito co-
Outra especificidade a ser considerada é que o re- lateral, uma vez que a motivação principal é a difusão
sultado da venda de CDs – formais ou informais – é do trabalho e seu intuito de evangelização.
diferente onde o ambiente da Internet não é predomi-
nante, como ainda é o caso da maior parte dos devo- Adiante retomaremos a discussão da viabilidade
tos de Santos Reis em Inhumas. Deste modo, foliões da entrada dos foliões no mercado fonográfico for-

Cantorio diante do Presépio

179
mal, com sua consequente sujeição às regras vigentes A toada do Lourenço foi derivada da Congada. E, por
do direito autoral. Antes disso, cumpre detalhar a no- acaso, coincide com uma toada tradicional de Perdões
ção de engenho barroco e sua melhor operacionalida- - MG. A toada lenta, também da lavra de Seu Lourenço
de para a atribuição da autoria das toadas e letras da é clara e assumidamente inspirada na toada de Trinda-
Folia de Reis. de. Por sua vez, a toada do Ronaldo – com estrofe de
quatro versos – tem o primeiro verso idêntico a uma
O conceito romântico de autoria pressupõe inova- toada de meio verso gravada por Irídio e Irineu, na
ção, invenção, criação de algo diferente, ainda inexis- década de 1970. Apresentado à toada de Irídio e Iri-
tente; ruptura individual com a tradição. O engenho neu por Sebastião Rios e Talita Viana, na fase de revisão
barroco, ao contrário caracteriza uma arte combina- do texto com a colaboração dos foliões, Ronaldo con-
tória que lida criativamente com os elementos dados firmou, entretanto, que a desconhecia quando de sua
pela tradição na qual o autor se insere. composição e que, em verdade, havia se inspirado na
Na folia, a criação é feita dentro dos limites da tra- toada de Trindade, combinada com a resposta de uma
dição, que não permite grande liberdade de experi- toada de Formiga – MG, para criar a sua.
mentação. Nessas obras, é patente a subordinação da Na perspectiva do conceito romântico de autoria,
imaginação do criador às convenções estéticas das toa- tais semelhanças seriam motivo de desvalorização des-
das de Reis e às expectativas das comunidades de de- sas composições. No enquadramento da estética barro-
votos. Por fim, essas obras não se caracterizam como ca, sobressai, pelo contrário, o engenho na combinação
música que tenha plena autonomia estética. Pelo con- de elementos da tradição, que gera uma obra original,
trário, elas estão a serviço de uma função religiosa cujas referências – explícitas ou implícitas – a obras
conduzida por um tipo muito específico e peculiar de preexistentes aumentam o prestígio do autor, uma vez
música, em cuja criação e composição estão envolvi- que denotam seu conhecimento e capacidade de lidar
dos aspecto tradicionais e religiosos, que são fortes criativamente com a tradição na qual está inserido.
elementos restritivos à liberdade individual.
Com o intuito de clarear essa questão, que está
Em praticamente todas as toadas cuja autoria foi longe de ser evidente, me permito uma pequena di-
possível identificar encontramos reminiscência e ecos gressão em torno da comparação de um soneto de
de toadas preexistentes; o mesmo valendo para a rela- Gregório de Matos com outro, anterior, de Francisco
ção de algumas letras com o texto bíblico. Rodrigues Lobo, que claramente lhe serviu de modelo 42.
O primeiro verso da toada do grupo do Divino da
Veinha guarda muita semelhança com o da toada Vila 42. Cabe lembrar ainda do uso das primeiras estrofes do poema de Gregório de
Matos por Caetano Veloso na faixa Triste Bahia, do disco “Transa”, de 1972. Ali,
Nova. Depois, na continuação da estrofe de quatro a crítica de Caetano é à situação da Bahia em razão da ditadura militar. Mais um
versos, aquela se diferencia desta, que é de meio verso. uso de obra preexistente e, neste caso, caída em domínio público.

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À Bahia Fermoso Tejo meu

Gregório de Matos Francisco Rodrigues Lobo


último quartel do século XVII

Triste Bahia! ó quão dessemelhante Fermoso Tejo meu, quão diferente


Estás e estou do nosso antigo estado! Te vejo e vi; me vês agora e viste:
Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado, Turvo te vejo a ti; tu a mim triste
Rica te vi eu já, tu a mi abundante. Claro te vi eu já, tu a mim contente.

A ti trocou-te a máquina mercante, A ti foi-te trocando a grossa enchente


que em tua larga barra tem entrado, A quem teu largo campo não resiste:
A mim foi-me trocando e tem trocado A mim trocou-me a vista em que consiste
Tanto negócio e tanto negociante. O meu viver contente ou descontente.

Deste em dar tanto açúcar excelente Já que somos no mal participantes,


Pelas drogas inúteis, que abelhuda Sejamo-Io no bem. Oh! quem me dera
Simples aceitas do sagaz Brichote. Que fôramos em tudo semelhantes!

Oh se quisera Deus que de repente Mas lá virá a fresca primavera:


Um dia amanheceras tão sisuda Tu tornarás a ser quem eras de antes,
Que fôra de algodão o teu capote! Eu não sei se serei quem de antes era.

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A semelhança estilística entre os dois sonetos salta Francisco Rodrigues Lobo, alterando, porém, sua fun-
aos olhos a tal ponto que, na recepção romântica, isso ção. A evocação do Rio Tejo, neste, é marcada por um
caracterizaria um plágio. Cabe lembrar, porém, que sentimento de união, ao passo que em Gregório há
não há liberalismo no século XVII ibérico e que a no- uma separação do poeta de sua cidade, pela censura
ção burguesa de indivíduo como autonomia abstrata ao seu mal comportamento e pela invocação do casti-
está ausente da concepção neo-escolástica da Repú- go divino. Ao contrário do soneto Fermoso Tejo Meu,
blica como “corpo místico” 43. que tem sua ênfase – típica da poesia lírica -na exalta-
ção do estado de alma do poeta, no soneto À Bahia, as
A invenção do poeta barroco é, antes, uma arte flechas do poeta se voltam contra a mercancia, numa
combinatória de tópicas retóricas coletivizadas que investigação do contexto social e histórico, que cos-
propriamente uma expressão individual “original”, tuma ser mais típica do romance – notadamente do
entendida enquanto representação naturalista do con- Romantismo e do Realismo.
texto, ruptura estética com a tradição etc (HANSEN,
1989). Originalidade, nos dois significados principais Há no soneto de Gregório de Matos dois movi-
do termo, autoria e novidade, é critério duplamente mentos de sentido oposto. No primeiro – presente nos
exterior à poesia barroca. Além disso, a referência quartetos – o eu lírico entra em simpatia com o tu, a
intertextual ao soneto de Francisco Rodrigues Lobo, cidade da Bahia, animada e personalizada. No segun-
ao invés de diminuir o valor do poema de Gregório do – nos dois tercetos – o eu lírico, a persona satírica,
de Matos é um procedimento ilustre que nobilita sua se aparta do tu e assume um papel de juiz, invocando
dicção e mostra sua erudição e seu conhecimento da para a Bahia um castigo divino. A Bahia é referida no
tradição literária (BOSI, 1992). soneto como espaço em que vive o poeta, espaço im-
pregnado de suas paixões. O nome Bahia recebe um
Importa salientar, no soneto satírico de Gregório adjetivo: triste. Este adjetivo é ambíguo. Por um lado,
de Matos, a originalidade do discurso engenhoso, que ele denota um estado de alma depressivo e melancó-
mantém as formas léxicas e gramaticais do soneto de lico e, por outro, conota a ideia de infelicidade pro-
43. Esta concepção do corpo místico da República – o que equivale, atualmente, veniente de uma sombra de culpa ligada ao próprio
a dizer da sociedade – associa cada estamento com uma parte do corpo humano, mau comportamento da cidade, ou seja, triste como
numa colaboração orgânica. Por isso, a poesia lírica amorosa – cultista e idealizan-
te – de Gregório de Matos refina e sublima os impulsos eróticos, descrevendo, com quem não pode isentar-se da responsabilidade dos
metáforas naturais e minerais ao estilo de Petrarca, o rosto – olhos / estrela; cabelo atos que a levaram a viver agora pior que no antigo
/ ouro; dentes / marfim / lábios / rubi – da mulher branca, fidalga e católica. E,
no sentido inverso, sua sátira burlesca desqualifica as negras e mulatas – tratadas estado. Nesse sentido, quão dessemelhante implica a
como putas – pela descrição escatológica de partes anais e genitais. diferença entre o passado e o presente, implica a per-
Importante não confundir com a expressão corpus mysticum, comumente usada da do antigo estado em que a Bahia se encontrava rica
pela literatura sobre direito autoral para caracterizar a parte imaterial de uma
obra, diferenciando-a do suporte (livro em papel, fonograma, partitura etc) que a
e o poeta abundante. Esta mudança arrastou consigo
carrega, que é o corpus mecanicum. a Bahia e Gregório, o tu e o eu, como mostra a identi-
182
ficação profunda de sujeito e objeto nos quartetos. As traje – signo visível de modéstia ou de vaidade –, o ca-
contradições da história social ganham expressão na pote de algodão em oposição às drogas inúteis como
voz do indivíduo (BOSI, 1992). sedas e veludos, etc (BOSI, 1992).
No segundo quarteto, há a denúncia do agente Abstraindo um pouco do nível textual, é possível
responsável pelo desastre comum: a máquina mer- contextualizar melhor o lugar social de onde Gregório
cante, os navios de comércio britânicos, franceses e de Matos lança seus dardos. Esta operação nos permite
holandeses trazendo as mercadorias de luxo da Índia visualizar melhor os objetivos políticos da sátira bar-
e da Europa. No contexto de tal movimento de entra e roca (HANSEN, 1989), ampliando, num movimento
sai de mercadorias, larga barra adquire, além do sen- posterior de regresso ao texto, nosso entendimento
tido físico das dimensões do porto, o sentido moral do mesmo. O antigo estado a que se refere o poema
da liberalidade com que o porto se rendia aos comer- corresponde à primeira metade do século XVII, que
ciantes estrangeiros. E tudo isto está sintetizado no é também a época da infância de Gregório. Nela, as-
verbo trocar. A sequência trocou-te, foi-me trocando sistimos o crescimento dos engenhos e a consequente
e tem trocado configura uma ação passada que conti- consolidação de uma pequena nobreza luso-brasilei-
nua ao longo do tempo e cujos efeitos são ainda ativos ra, que encontra franco amparo nas leis metropolita-
no presente. Assim como o adjetivo triste, o verbo tro- nas, que chega mesmo a sustar a execução de dívidas
car tem também um sentido duplo: ele significa tanto dos senhores de engenho. Após a Restauração, em
operação de barganha – colonialmente lesiva – como 1640, ocorre a abertura efetiva da barra de Salvador à
mudar, alterar. A máquina mercante transformou a máquina mercante, depois de mais de meio século em
cidade da Bahia e seus moradores; a Bahia e o poeta, que os navios portugueses gozavam exclusivamente
de prósperos que eram, acabaram endividados. desta regalia. A política anticastelhana de D. João IV
termina por transformar a economia portuguesa num
A partir do primeiro terceto é quebrada a solida- satélite da economia inglesa, o que se consuma com o
riedade do poeta e da cidade. Nele, o olho moralista Tratado de Methuen, em 1703. Além disso, a partir da
aparece para dizer à colônia, remissa e descuidada, metade do século, a concorrência antilhana provoca
que ela fora simplória no lidar com o sagaz Brichote uma grande crise no preço do açúcar em Portugal.
(provavelmente uma corruptela de British, que conota
além dos ingleses os comerciantes estrangeiros de um A família de Gregório de Matos, pertencendo à
modo geral), como se depreende da troca desastrosa antiga nobreza de Portugal e proprietária de um en-
do açúcar excelente pelas drogas inúteis. Finalmente, genho mediano, é diretamente atingida com a virada,
no último terceto, a Bahia, de vítima, passa a ré. O que coincide com a perda da proteção oficial. A nova
castigo que lhe é infligido é o de passar de abelhuda situação beneficia basicamente três grupos econômi-
a sisuda, de pródiga a austera. O que é conotado no cos: as companhias estrangeiras; os grandes latifun-
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diários que puderam sobreviver à crise (a dita nobre- lucro, e o afasta do grupo social que exerce atividades
za caramuru); e, em menor escala, os comerciantes manuais ou no comércio, atividades ambas despreza-
reinóis da Bahia e do Recife que se beneficiavam do das pelo fidalgo seiscentista. O que dá pois sentido ao
monopólio do comércio colonial. Com a depressão soneto é a oposição estrutural – que assume a forma
da economia agromercantil, a saída honrosa para o de uma disputa acirrada pelo poder político – entre
herdeiro letrado seria buscada necessariamente na a nobreza decadente e burguesia mercantilista ascen-
burocracia ou na esfera do clero, firmemente atado à dente e não uma consciência nacionalista ou baiana
Coroa pelo regime do padroado. irritada. A irritação do poeta é com a pretensão do
vendeiro, afinal realizada, de ocupar os postos de ca-
O conhecimento histórico do ponto de vista do ráter honoríficos secularmente reservados aos homens
escritor nos ajuda a evitar interpretações arbitrárias: bons, com o fato do dinheiro alcançar tudo, acabando
“O filho d’algo em apuros não tolera o comerciante fo- com as diferenças de berço.
râneo nem o desenvolto cristão novo” (BOSI, 1992,
p. 101). Gregório, de origem nobre e com título de A interpretação histórica do poema exige não só
doutor em direito canônico, em Coimbra, foi vigá- o conhecimento da visão do mundo do escritor, mas
rio-geral da Sé da Bahia e seu tesoureiro-mor a partir também das regras discursivas de seu tempo. A poesia
de 1681. Veio, no entanto, a perder os dois cargos em barroca do século XVII configura um estilo no senti-
função de sua musa praguejadora, passando a viver do forte do termo: linguagem estereotipada, ou seja,
então como advogado. O berço fidalgo e o exercício fortemente regrada por convenções da produção e da
de profissão liberal não o afastam completamente do recepção – o que não deve ser entendido como algo
tipo do intelectual eclesiástico tradicional, “que resiste pejorativo relativo ao desgaste pelo uso e pela redun-
cultural e passionalmente, aos valores do mercantilis- dância –, linguagem de lugares-comuns retórico-po-
mo e da impessoalidade funcional, apegando-se aos éticos anônimos e repartidos em gêneros e subestilos.
velhos direitos do sangue e do nomes e às honras e Ela não é propriamente inventiva, mas sim engenhosa,
aos privilégios de ordens estamentais fechadas como a aguda e maravilhosa, no sentido das convenções so-
Nobreza, a Igreja, os Tribunais, as Armas, a Inquisição ciais seiscentistas da discrição cortesã, do gosto vulgar
e a Universidade” (BOSI, 1992, p. 100). e da fantasia poética (HANSEN, 1989).
A auto identificação com o nobre, o fidalgo, o dis- Retomando nossa discussão sobre a criação indi-
creto (o dito homem bom colonial) gera uma repulsa vidual em manifestações tradicionais, coletivas e di-
ao vil cotidiano do mundo do trabalho, cujas necessi- fusas, vemos que sua palavra chave é a reelaboração
dades e interesses são descritos com o mais cru natu- de elementos dados pela tradição; que é equivalente
ralismo e depreciação. Esta posição subtrai o intelec- à arte combinatória colocada em ação pelo engenho
tual da esfera da produção, isto é, da guerra suja do barroco. Nesse contexto, o desejo de inovação pela
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contribuição individual almeja, sobretudo, fazer avan- rais a questão é relativamente simples. Há, efetiva-
çar a tradição coletiva. Assim, o capitão Thiago busca mente, uma criação individual de toadas e letras, re-
renovar seu repertório recuperando algumas toadas conhecidas em grande medida nas comunidades dos
em desuso: Congada, Vila Nova, Franésio. devotos e que pode e deve ser reconhecida para além
desse círculo. Digo relativamente simples, porque isso
O desejo de inovar para manter a tradição compa-
questiona a noção de autoria desconhecida, predo-
rece ainda na avaliação que Fernando fez da escolha
minante ainda nos estudos e eventos pautados pelo
do repertório – letras e músicas – por Thiago.
conceito de folclore. Descartando a aplicação automá-
Folia de Reis é uma tradição muito antiga, conhe- tica da categoria de autor desconhecido, recusa-se, no
cida mais pelos mais velhos que têm aquela concep- mesmo ato, a atribuição de domínio público para toda
ção dos versos tradicionais. E, como diz o Thiago, e qualquer obra presente em manifestações culturais
esse modo mais avançado, com toadas mais novas tradicionais, coletivas e difusas. No caso de a autoria
– mas valorizando também as toadas antigas – eu ser conhecida, a categoria de domínio público não se
acho que vai ajudar principalmente os novos foliões aplica, a não ser que tenha decorrido o prazo de pro-
que estão adentrando na Folia de Reis a aprender teção aos direitos patrimoniais.
um ritmo diferente, versos diferentes, colunas dife-
rentes. Nós estamos acostumados a ouvir CDs de Na verdade, a imposição do status de domínio pú-
folia com Anunciação, Nascimento e Viagem. O blico é questionável mesmo para as obras geradas ou
Thiago tentou colocar (novos temas): um Encontro preservadas coletivamente no seio de tradições cultu-
de bandeira, uma Entrega de promessa, Sete mi- rais. Porque o autor é desconhecido está em domínio
lagres de Jesus, Exemplos de Santos Reis. Porque, público? Então qualquer artista pode pegar, gravar,
ainda que muitos foliões, por mais de trinta, qua- apresentar em shows, transferir a terceiros sem ne-
renta, cinquenta anos girem na Folia de Reis, pou- cessidade de referência à comunidade onde escutou
cos sabem dos exemplos que os Reis deixam para ou aprendeu aquele canto? Isso é justo? O trabalho de
nós como cristãos católicos. Então, penso eu que preservação por várias gerações realizado por aquela
esse pensamento de inovar essas colunas vai contri- comunidade não vale nada?
buir para com muitos (Fernando, maio de 2014).
Em alguns trabalhos (livros, CDs e DVDs) publi-
Uma vez estabelecida a concepção de autoria na cados, pesquisadores mais sensíveis e comprometidos
Folia de Reis nos modos da arte combinatória do en- com a valorização dessas pessoas e de suas comunida-
genho barroco, podemos avaliar melhor se a proteção des e tradições têm explicitado que as músicas perten-
dos direitos do autor – formulada de acordo com o cem à tradição – ou são de domínio – do grupo. Em
conceito de autoria do romantismo – seria viável no termos legais, entretanto, o máximo que se consegue
contexto da Folia de Reis. Da parte dos direitos mo- é reservar a condição de adaptadores dos cantos
185
– encontrados com ligeiras variações em outros tistas ou produtores externos à comunidade, ou ainda
grupos e comunidades. Ou seja, ao fim e ao cabo, pela apropriação privada deles por membros da pró-
cai na categoria legal de domínio público, sendo pria comunidade é outra questão candente. Embora
passíveis de proteção apenas os direitos conexos de essa remuneração seja, em princípio, justa, aqui es-
executante e intérprete. barramos em algumas dificuldades práticas. Para qual
dos grupos ou das várias comunidades que preservam
A repartição de eventuais lucros advindos da ex- esses cantos dever-se-ia pagar? Em que proporção se-
ploração comercial desses cantos tradicionais por ar- ria justo fazer a repartição? E quem receberia e geriria

Robson de Oliveira, Mangelo e Eurides Alves

186
os recursos? Alguma associação da comunidade, um Comecemos por uma questão de princípio re-
fundo governamental, um fundo não governamental? lacionada ao risco da mercantilização de obras in-
seridas numa manifestação tradicional. Se o folião
A constituição de associações de foliões pode ser toma a decisão de entrar no mercado fonográfico
um caminho para a salvaguarda da festa. Por meio formalizado, isso tem consequências. A entrega
delas, os próprios grupos e comunidades poderiam da folia realizada pela Cia de Santos Reis no salão
participar de editais, receber dinheiro diretamente, paroquial, por exemplo, poderia ser considerada
investir em instrumentos, sede física para os grupos uma apresentação pública. Os autores das toadas e
etc. Isso não resolve, todavia a questão da repartição das letras executadas poderiam querer receber pela
de recursos advindos da exploração de cantos tradi- execução de suas obras. Para receber, entretanto,
cionais. Muito dificilmente qualquer associação desse primeiro os realizadores da entrega da folia preci-
tipo teria plena legitimidade em alguma comunidade. sariam pagar para o ECAD. E o ECAD vai cobrar
Basta lembrar a tradição de rivalidade entre os gru- de quem? De quem organizou aquela execução, ou
pos, que num passado relativamente recente ainda seja, da Associação dos Devotos de Santos Reis,
predominava no meio. Essa rivalidade era expressa que é a entidade jurídica da própria Cia de Santos
pela demarcação de territórios e, notadamente, nas Reis. Então, vale a pena mexer com isso? Ou seria
disputas quando de um encontro de bandeiras em trocar seis por meia dúzia?
áreas limítrofes. Embora bastante mitigadas hoje na
Outras dificuldades na repartição das vanta-
Folia de Reis, as rivalidades entre grupos não desapa-
gens econômicas são de ordem operacional. To-
receram de todo. No congado, por exemplo, ela per-
memos o exemplo da toada Xique-Xique, incluída
manece em grande medida.
em nosso CD. Tratando-se de um CD formal, uma
Por fim, a repartição das vantagens econômicas eventual execução na rádio geraria algum pouco
por meio de associações de foliões favoreceria os gru- recurso para os autores, intérpretes, executantes e
pos e comunidades mais articuladas e politizadas em para o produtor fonográfico. Para simplificar, fi-
detrimento de outros, talvez mais necessitados e mais quemos com o caso dos autores. Uma parte desses
arraigados à tradição. direitos seria pago para o Nenzinho. A outra teria
de ser repartida entre a viúva do Dé e filhos; com
Além do que foi tratado acima, a participação na contratos, recibos etc. E, provavelmente, o trabalho
renda advinda da venda de produtos culturais – livros, para receber e distribuir esse dinheiro seria des-
CDs, DVDs – reserva algumas complicações nas ma- proporcionalmente grande em relação ao pequeno
nifestações culturais coletivas, tradicionais e difusas, montante a ser pago. Vale a pena? Por outro lado,
mesmo no caso da autoria individual perfeitamente se os autores e herdeiros não receberem, alguém
caracterizada. receberá. É justo?

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Consideremos agora o conjunto do livro com os prejuízo do reconhecimento da autoria. E não seria
dois CDs. Os autores das toadas e das letras, os in- de admirar se as dificuldades de transitar entre a es-
térpretes e executantes, os autores dos textos do li- fera formal e o costume venha a apresentar algumas
vro; todos fariam jus à remuneração pelos direitos de pedras no caminho.
suas respectivas obras. Mas como se daria a reparti-
ção dos 10% do preço de capa entre todos os envol- Uma gravação dessas toadas que têm autoria
vidos? Avaliando essa situação, a melhor alternativa conhecida, respeitando as regras do mercado fono-
para valorizar a produção dos foliões nos parece ser gráfico formalizado, obrigaria o folião que desejasse
a da proposta do projeto: a entrega de 50% da tira- fazê-la a abrir uma negociação com os respectivos
gem para a Cia de Santos Reis de Inhumas, com o autores e/ou herdeiros. Ele precisaria também se ins-
compromisso desta fazer uma redistribuição justa crever em uma das nove associações de autores do
com os demais grupos convidados para participar país e apresentar a licença dos autores de letra ou
do projeto. Além de ser uma retribuição maior do toada incluída em seu trabalho. Alternativamente,
que a prática estabelecida no mercado e amparada poderia articular isso com algum produtor fonográ-
na lei de direito autoral, isso não impede quem quer fico, ficando como uma espécie de procurador dos
que seja de disputar os direitos autorais e conexos no colegas. Mas isso implica justamente a mercantiliza-
mercado fonográfico formalizado, caso entenda que ção de uma relação entre devotos, cujos riscos para a
isso seja proveitoso. manutenção da manifestação precisam ser avaliados
com muito cuidado. A privatização de um bem cul-
Uma última observação a esse respeito. Alguns tural dessa natureza muitas vezes contraria o sistema
foliões reúnem condições, no momento, para dar de valores dessas comunidades, que têm como base
um passo em direção ao mercado fonográfico for- o compartilhamento das obras, do saber e de sua
malizado. Esse mercado, entretanto, não admite o transmissão ao longo de gerações (BELAS, 2004).
meio do caminho. Ou a pessoa está dentro, com to-
das as suas consequências, ou está fora. Entrando no Assim, a reivindicação de autoria no que diz res-
mercado formalizado, o folião teria de lidar com o peito aos seus aspectos morais, garantindo a vincu-
descompasso entre a situação legal e as regras con- lação do nome dos autores a suas obras, nos pare-
suetudinárias vigentes no grupo. Toadas como São ce algo bem vindo e que pode ser imediatamente
Sebastião, Xique-Xique, do Ronaldo, do João Ma- implementado. Manda o princípio da precaução,
riano – na verdade, do Bariani Ortencio –, Violinha entretanto, primeiro tentar remover os óbices à rei-
têm autoria conhecida e estão protegidas pelo direito vindicação dos direitos patrimoniais, para que isso
autoral; precisam, portanto, de autorização para se- efetivamente venha a trazer mais benefícios do que
rem gravadas. Por outro lado, na Folia de Reis, elas problemas para os grupos e para os autores individu-
são consideradas pecúlio comum dos grupos, sem ais que deles participam.
188
Possibilidades e limites do inven- dinâmica da mudança, da criatividade, da liberdade
tário de bens culturais que os detentores do patrimônio cultural imaterial
têm é muito importante no conceito de salvaguarda
do patrimônio imaterial.
Outra possibilidade para registrar os saberes e
criatividade dos mestres da cultura popular seria a No caso do patrimônio imaterial, quem decide
realização, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e se muda ou se não muda algo na manifestação são,
Artístico Nacional – IPHAN, do Inventário Nacional em primeiro lugar, os detentores dos bens; são os
de Referências Culturais – INRC da Folia de Reis e mestres, as pessoas que fazem parte dela; na Folia
seu eventual registro como Bem Cultural Brasileiro de de Reis, os próprios foliões e a comunidade de devo-
natureza imaterial. tos. E esse patrimônio é chamado de imaterial por-
que ele não está na manifestação em si. Óbvio que
Em um inventário, haveria espaço para a identifi- a música tem a materialidade do som. A festa tem
cação das autorias individuais no contexto da mani- a materialidade das fitas e das cores, dos arcos, dos
festação coletiva e difusa. E o registro da manifestação instrumentos etc. O patrimônio imaterial, entretan-
como Bem Cultural Brasileiro valeria como uma forma to, passa pelo cantorio da folia, pelas cores das fitas,
de proteção indireta – defensiva –, distinta da proteção mas seu lugar precípuo está na pessoa, em quem faz,
pelos mecanismos do direito autoral e sem implicações em quem pensa, em quem cria, em quem produz, em
diretas para a geração de benefícios econômicos. quem reproduz, em quem ensina.
A partir do registro de um bem como patrimô- Então, o objeto da política do patrimônio imate-
nio imaterial, o IPHAN passa a ter obrigações de rial não seria propriamente a Folia de Reis. Não basta
salvaguarda desse bem. Salvaguarda é um termo que dar as condições para uma apresentação pontual: um
implica um esforço de manutenção da manifestação, almoço, o transporte, alguns instrumentos. A políti-
mas que é diferente dos termos habituais como pre- ca correta do patrimônio imaterial é situar esse folião
servação, conservação. Preservação e conservação dentro do seu contexto, ver as suas necessidades e
pressupõem uma não-mudança, uma permanência suas motivações. Por que ele segue fazendo a folia? O
daquela expressão. A concepção do patrimônio ima- que precisa para mantê-la?
terial, ao contrário, admite a dinâmica própria dos
bens registrados. Eles estão sempre mudando. As Neste sentido, o reconhecimento das criações in-
formas de composição podem mudar (Letícia Vian- dividuais – letras e toadas – mostra a vitalidade da
na, seminário, agosto de 2014). A tradição é respei- cultura popular. Os foliões estão criando, recriando,
tada a partir das inovações, como é o caso das letras interpretando, reinterpretando a Bíblia. Essas compo-
do Thiago, das novas toadas, da composição do Luís sições mostram que o potencial de criatividade per-
Carlos a partir do texto bíblico. Essa dimensão da manece, que a motivação para fazer a cultura popular
189
nas suas diversas expressões e com pensamento crí- dica que seus detentores teriam o auxílio do IPHAN
tico permanece. E isso é digno de ser salvaguardado. no caso de alguma disputa com terceiros que ten-
tassem usar essas obras sem autorização. Num caso
Resta esclarecer, entretanto, que o IPHAN não é assim, as informações sobre o bem constantes do in-
um instituto de propriedade intelectual ou de regis- ventário poderiam ser usadas como prova de autoria.
tro de obra pelo autor. O fato de alguma manifestação Isso, possivelmente, teria mais valor numa eventual
cultural ser reconhecida como patrimônio apenas in- disputa jurídica do que a simples alegação do autor,

Matosalém Macêdo, Manuel, João Camargo e Seu Antônio

190
uma vez que este teria fatos, algo codificado para pode agir como um interlocutor junto aos órgãos
apresentar em caso de necessidade 44. responsáveis – como o ministério ou as secretarias
estaduais e municipais de saúde, a prefeitura – ,
Por outro lado, o inventário não é controlado
visando viabilizar melhores condições de produ-
por quem produziu os bens que estão sendo regis-
ção, criação e reprodução das culturas populares.
trados nele. Daí o cuidado que tem que se ter com
Por isso, a política do patrimônio imaterial não
quem controla o inventário. Quem vai dar as auto-
preserva a folia em si. Ela visa, antes, preservar as
rizações para acessar e para usar essas obras ou in-
formações? Com quais critérios? E se cair nas mãos condições de produção, criação e reprodução da
erradas? Um dos objetivos em se fazer o inventário Folia de Reis pelas pessoas que fazem a folia.
de bens culturais, na política de patrimônio ima- Os desafios da área são imensos, porque a cul-
terial, é ter um banco de dados, mas isso, até hoje, tura brasileira ainda é uma cultura elitista. Os bens
não foi implementado porque a questão do acesso materiais tombados pelo IPHAN são bens da elite.
não está resolvida. No caso do conhecimento tradi- O instituto do registro do patrimônio imaterial,
cional associado à diversidade, como lembra Carla notadamente das manifestações da cultura popu-
Belas (seminário, agosto de 2014), dependendo de lar tradicional, inverte essa lógica. Deste modo, a
quem vai gerir e de como o inventário vai ser usa- política do patrimônio imaterial combate a desi-
do, aquilo que foi criado para proteger pode aca-
gualdade que se expressa nas diferenças de classe,
bar facilitando as apropriações indevidas. Ao invés
de raça e cor, de religião. Caminhando no mesmo
de ir na comunidade levantar a informação, uma
sentido, o simples estabelecimento da autoria de
pessoa mal intencionada levanta mais facilmente
uma toada questiona a afirmação costumeira de
as informações no banco de dados.
que a cultura popular seria uma arte anônima e
Assim, ainda que inventarie e registre um bem espontânea, com elaboração intelectual mínima,
e cuide de quem pode ter acesso às informações le- transmitida sempre praticamente da mesma ma-
vantadas, a política de salvaguarda de um bem cul- neira. Na mesma direção ainda, aponta a ação do
tural tem que incidir nas pessoas que mantêm esse INCTI, abrindo as portas da universidade pública
bem cultural. Ver como elas vivem, se estão bem. brasileira para os mestres da cultura popular. Ação
Se estão conseguindo satisfazer suas expectativas que teve eco no seminário Criação individual em
na vida, se estão com dificuldade financeira ou de manifestações culturais coletivas e difusas: direito
saúde. Não que o IPHAN vá solucionar isso. Mas autoral, propriedade intelectual e patrimônio cultu-
ral, promovido pelo mesmo projeto que originou
44. Importante ressalvar, todavia, que a legislação brasileira sobre o direito au- este livro e que recebeu os mestres da Folia de Reis
toral admite o princípio da não formalidade, ou seja, para gozar do direito não é
necessário ter o registro da obra. de Inhumas na Universidade Federal de Goiás.
191
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194
As gravações das toadas mínima na organização espacial do grupo 46. Neste
tipo de gravação não se consegue trabalhar indivi-
Talita Viana dualmente a captação de cada instrumento e voz. A
Sebastião Rios mixagem é feita diretamente na captação de áudio,
posicionando os instrumentos de menor projeção de
som e de menor volume mais próximos do microfone.
O processo de gravação Assim, um dos microfones, colocado na frente, fazia
a captação, principalmente, do embaixador e das vo-
Era um domingo. Acordamos na casa de Luís Car- zes da resposta. O outro, posicionado um pouco mais
los e Maria Divina com seu costumeiro (e momento atrás, captava as vozes da requinta. O caixeiro e o san-
quase ritual) rádio ligado em uma estação de música foneiro foram posicionados ligeiramente afastados
caipira. Maria Divina, anfitriã das mais cuidadosas, dos microfones (na lateral e atrás do grupo), devido
preparara um café e nos esperava com um bolo recém à sua maior projeção. O pandeiro esteve mais para
saído do forno. frente nesta primeira gravação porque estava com um
folião que fazia uma das vozes da requinta.
Por volta das oito horas, já estávamos na casa de
um folião, ajudando a buscar as pessoas que grava- Antes de começarmos a gravação – na verdade, an-
riam naquele dia. O destino – ou local da gravação tes de começarmos os testes que sempre precedem às
– era a chácara do Cará e da d’Arc, há aproximada- gravações -, Sebastião pediu a bandeira a Luís Carlos,
mente cinco quilômetros de Inhumas. Lugar tranqui- que a tinha em suas mãos. Então conclamou ao em-
lo, sem interferências de ruídos da cidade e de carros. baixador e foliões ali presentes que, embora se tratasse
Os únicos ruídos que precisamos contornar de vez de uma gravação – e não de um cantorio em um giro
em quando eram dos gansos e das galinhas d’angola! ou na casa de um devoto –, tivessem em mente que
Ali chegamos e, enquanto montávamos o equipamen- aqueles cantos também poderiam levar mensagens de
fé, de devoção, de cura e de canalização das bênçãos
to de gravação 45, chegava o embaixador, juntamente
de Santos Reis às pessoas que, posteriormente, vies-
com os demais foliões por ele convidados para gravar.
sem a escutar o CD em suas casas. Assim, foi solicita-
Posicionamos os dois microfones de forma a ga- do aos foliões que se concentrassem no sentido da Fo-
rantir o melhor resultado musical com interferência lia de Reis. Corroborando essa exortação, Luís Carlos
conduziu, então, uma oração, pedindo luz e bênçãos
45. O equipamento usado foi um gravador Tascam HD P2, de dois canais, e mi- para o trabalho das gravações que ali se iniciava e que
crofones Schoeps MK6, captando simultaneamente todos os instrumentos no modo
omni. Estes equipamentos compõem o Estúdio móvel para captação de áudio de
continuaria pelas semanas seguintes. Com a bandeira
manifestações de patrimônio imaterial (UFG / UnB), adquiridos, respectivamente,
com financiamento da FAPEG Chamada 001/2008 e do Edital Pró-Equipamentos 46. Este conceito de gravação ao vivo de manifestações tradicionais foi desenvolvi-
CAPES 01/2007. do por Juliana Saenger e Roberto Corrêa.

195
de Santos Reis devidamente colocada na mesa onde ferência de ruído nas gravações – um delicioso arroz
estava o gravador, demos início às gravações. com suã ou salgados, a depender do horário; sempre
enviados ainda quentinhos à chácara.
A passagem acima aconteceu, com algumas varia-
ções, em todos os dias de gravação. Foram, ao todo, Releva destacar que alguns cantorios foram grava-
oito momentos de registro de cantos e toadas dos dos durante giros das folias. Esses cantos, no entanto,
embaixadores – Thiago, Divino do Juca, João Cigano, foram usados apenas no trabalho de identificação das
Divino da Veinha, Cleomar, Luís Carlos, Seu Louren- diferentes toadas. Embora envoltos pela atmosfera do
ço, Pedrinho e Lindomar. Sempre nos fins de semana, giro real, que configuraria um ganho, a maioria desses
para não coincidir com compromissos de trabalho áudios contém algum grau de ruído de conversa de
dos foliões, a chácara de d’Arc e Cará esteve à nos- pessoas acompanhando o giro ou dos donos das ca-
sa disposição para as gravações por quase três meses. sas, de carros passando nas ruas próximas à casa onde
Contamos, ainda, com o talento culinário de d’Arc estava a companhia, de cachorro latindo e de outros
que preparava – em sua casa, para não haver inter- elementos da vida cotidiana.

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As gravações realizadas durante os giros foram cen- As datas para as gravações controladas, como de-
trais no processo da pesquisa e de investigação da auto- nominamos estas gravações fora do giro, foram com-
ria das toadas. A companhia entrava na casa. A gente, binadas com os embaixadores, que se responsabiliza-
com o gravador ligado, acompanhava. E, na saída da ram por convidar e reunir a turma de foliões que o iria
casa ou durante a pausa de um café, lá íamos nós, per- ajudar. Cada embaixador pôde gravar quantos cantos
guntar ao embaixador que toada era aquela, quem era quisesse, inclusive reunindo material destinado futu-
o autor, como e quando a conheceu. A partir daí, pu- ramente à edição de um trabalho individual para o
demos ir mapeando a diversidade de toadas existentes qual receberam a íntegra de sua gravação.
em Inhumas e listando-as para que nenhuma ficasse
sem ser gravada. Esse trabalho de campo, concentrado Houve, igualmente, a liberdade de escolha de
nesse período relativamente curto, foi catalisado pelo quais toadas gravar. À medida que as gravações iam
longo tempo de convivência e frequentação das folias avançando, contudo, começamos a sugerir a grava-
em Inhumas e região, somado, ainda, ao processo de ção de toadas que não tivessem sido registradas até
aprendizado de cantar e bater caixa durante os giros. então. Quando o embaixador não tinha interesse em

197
gravar a toada sugerida para o repertório de seu CD, permaneceu ignorada. As diferenças entre o tempo da
procedíamos à gravação de apenas algumas estrofes folia e o tempo do CD foram vivenciadas de formas
para compor a mostra da diversidade delas. E, dada a distintas pelos embaixadores; assim como a criação
enorme variedade de toadas nas companhias de Reis dos versos que seriam gravados. Ressaltamos, ainda,
em Inhumas e região, às vezes aconteciam confusões que caso alguém errasse alguma coisa, ou tivéssemos
até entre embaixadores e foliões. Alguém sugeria uma qualquer contratempo – como uma tosse ou pigarro
toada e quando o sanfoneiro ia começar: “Não é essa! incontrolável – o embaixador não precisava parar o
Essa é outra!”, dizia o embaixador. E querendo lem- canto; bastava repetir aquele verso. E na edição corta-
brar a melodia para o grupo, começava a cantarolar. ríamos a parte com erro.
Só que também acabava puxando uma terceira. Até
que alguém se lembrava, finalmente, “como é mesmo O tempo da folia e o tempo do
aquela toada do fulano”.
CD
Pedrinho, por exemplo, explicou, no dia de sua
gravação, que ele deve saber aproximadamente vinte Thiago foi o primeiro embaixador a gravar. Che-
toadas distintas. E que, num giro, se os foliões tam- gou à chácara com os cantos impressos em folhas A4.
bém as souberem ou pegarem (ou seja, aprenderem Tinham título e especificavam a toada corresponden-
durante o giro / execução), o provável é que muitas te. Algumas letras eram de sua autoria. Outras eram
delas sejam cantadas. Para ele é importante manter de João Guará. Um ou dois dias antes havíamos passa-
essa diversidade no giro da companhia e por isso a do em sua casa e acompanhado brevemente o proces-
gravação de sua turma fluiu rapidamente, sem ter que so de criação das letras, em sua maioria inspiradas no
fazer muitas retomadas. texto bíblico. Na gravação, Thiago ia lendo os versos
escritos e, caso houvesse algum erro e precisássemos
As orientações para os embaixadores, além da des-
repetir alguma parte, bastava reler aquele trecho.
crita na narrativa que abre este capítulo, consistia em
explicar como funciona a gravação de um CD (cap- Luís Carlos, um dos derradeiros embaixadores a
tação, no caso com dois canais apenas; seleção e tra- gravar, também chegou com as letras escritas. Ele, que
tamento das faixas; prensagem do CD) e o tempo de já tem CD de folia gravado, optou por registrar ape-
duração que um CD comporta – e, por conseguinte, o nas dois cantos: A visita do anjo (letra de Luís Carlos,
quanto aproximadamente uma faixa deve durar. Esta toada do Ronaldo); e Encontro com a festeira (letra de
informação, que acaba tendo impacto sobre a quan- Luís Carlos e Di Mariano, variante da toada São Se-
tidade de versos (ou estrofes) a serem gravados, era bastião). Além destas faixas, gravou algumas estrofes
de conhecimento de alguns foliões. Para outros, por de toadas que ainda não haviam sido registradas para
outro lado, consistia em novidade e, em alguns casos, integrar o CD da mostra da diversidade. Neste caso,
198
a elaboração dos versos se deu na hora da gravação. das mangueiras e desceram todos os foliões, um deles
Divino do Juca e Lindomar, o último embaixador a pegou a bandeira e se posicionou segurando-a mais
gravar, trouxeram igualmente letras prontas para a ou menos na altura dos ombros, para iniciar um ri-
gravação. Além dos versos escritos por Tavares, Lin- tual de abertura e pedido de proteção. Um a um, os
domar também improvisou um cantorio. foliões iam passando por baixo da bandeira, deixando
que esta tocasse suavemente suas cabeças; alguns se
Pedrinho, que mora em Itauçu, mas atua com fre- detinham um pouco mais: seguravam a imagem de
quência em Inhumas, gravou com sua turma de foli- Santos Reis e faziam uma oração. Depois a beijavam
ões de Itauçu. Assim que pararam os carros embaixo e passavam para o outro lado. Então o grupo pôde se
Talita, Ademir e Pedrinho

199
encaminhar para o local onde faríamos as gravações. de Anunciação. Depois, ao cantar o Nascimento, aca-
Pedrinho não levou nada escrito – assim como não bou emendando, na mesma toada, a Viagem dos Reis
o fizeram Divino da Veinha, Cleomar, João Cigano e e a Adoração do Menino na lapinha. Concentrado
Seu Lourenço. Foi criando os versos a partir de um nos sentidos da folia, o embaixador criou seus versos
tema ou de uma função da folia, como um canto para não como se estivesse em uma gravação, mas execu-
festeiro, um pedido de oferta, uma saída de almoço. tando de fato uma Folia de Reis como ela deve ser.
Deste modo, ele fez sua gravação como se estivesse
O cantorio gravado por João Cigano, da mesma cantando em um presépio. E tudo nos mínimos de-
forma, foi criado ali, no momento da gravação. Os talhes. A duração de cada cantorio excedeu bastante
versos eram criados tão no fluxo do cantorio que o limite estabelecido para uma faixa do CD, em tor-
quando acontecia algum percalço e se fazia necessário no de oito minutos – e que já é bem mais extensa do
repetir o verso, ele não conseguia fazê-lo sem parar- que o usual para um CD de música popular. Mas a
mos tudo, voltar a gravação à parte com problemas e preocupação principal de Seu Lourenço não era essa.
colocar para ele ouvir. Aí sim ele se lembrava do que Na concepção da equipe do projeto, estávamos gra-
tinha cantado e podia repetir o verso. Sem isso, João vando uma folia. Seu Lourenço, no entanto, estava
Cigano simplesmente não sabia – não se lembrava – tirando uma Folia de Reis. E a combinação dos es-
do que havia cantado. Embora mais lenta e com essas forços – diferentes, porém integrados – nos parece
paradas, a gravação caminhou bem. Além disso, em ter funcionado bem. Mas essa avaliação compete a
muitos cantos demos o sinal de que já tínhamos ver- nossos leitores e ouvintes.
sos suficientes para uma faixa e que, se João Cigano
quisesse, o cantorio poderia ser encerrado. Essa gravação, da forma como aconteceu, encon-
tra ressonância no pequeno diálogo que tivemos antes
Neste dia, também aproveitamos para fazer um de Seu Lourenço começar o primeiro canto. Respon-
canto de agradecimento a Cará e d’Arc pela gentileza sáveis por anotar a toada e o tema do cantorio que
de haverem cedido o espaço da chácara para a grava- seria gravado em cada tomada, geralmente perguntá-
ção; e à d’Arc, ainda, pelo preparo das refeições nas vamos ao embaixador o que ele iria cantar. Assim, eu,
oito gravações. Então, a folia saiu da posição de gra- Talita Viana, me dirigi a Seu Lourenço:
vação e se colocou na formação costumeira para agra-
decer a mesa. E foi um belo cantorio. Mais inspirado, Talita: Seu Lourenço, o que que o senhor vai fazer
como diria João Cigano, em função da criação dos agora?
versos na relação com os devotos segurando a ban- Seu Lourenço: O que que eu vou fazer?
deira, ponto que será retomado adiante.
Talita: É.
Seu Lourenço também criou os versos no anda-
mento da gravação. Primeiramente, ele fez um canto Seu Lourenço: Uai, folia!
200
Óbvio! Que pergunta a minha! Não importava se Durante uma conversa, em dezembro de 2013, João
iríamos gravar ou não. O que Seu Lourenço fez foi Cigano nos explicou que, na Folia de Reis, o embaixa-
cantar uma folia. Não que outros embaixadores não dor tem que
estivessem cantando versos e sentidos da folia, mas
talvez estivessem, antes, gravando cantos da Folia de cantar conforme o que acontece. Não tem como pla-
Reis, mais atentos, portanto, às dinâmicas e necessida- nejar uns versos, [porque], ao chegar lá, [pode] ser
des de uma gravação. Adentrar nas explicações dadas diferente. Às vezes acontece da gente fazer um verso
pelos próprios embaixadores ajuda-nos a compreen- num determinado momento ali e depois nem a gente
der essas nuances, assim como ilumina as concepções sabe ele mais. Esqueceu, passou e foi na inspiração
de Folia de Reis e dos fenômenos de criação dos ver- mesmo! (João Cigano, dezembro de 2013).
sos, em circulação em Inhumas e região. É como se a folia detivesse um arsenal de versos

201
diferenciados para as inúmeras situações que ocor- falar muito na cantoria que tá chorando e tal, mas
rem durante um giro. O conjunto desse acervo con- aí vem verso nessa situação. Outros não choram,
figura uma potencialidade. Cada embaixador acessa mas a gente vê que tá feliz, que tá achando bom.
uma parte, que é atualizada – e transformada – nos Então inspira os versos na gente e é de coração, por-
cantorios específicos. No caso de um canto num pre- que realmente, quando a gente tá cantando ali, a
sépio, por exemplo, “acontece de na hora a gente tirar gente deseja que Santos Reis abençoa a pessoa e que
um de idéia dentro da linha e fazer”, como afirmou dê tudo certo. Às vezes uma prioridade que a pes-
João Cigano (dezembro de 2013). soa tem, às vezes até um problema de saúde, que tá
Esse acesso, no entanto, depende do que ele chama Izabel de Paula Leal
de inspiração. E esta, por sua vez, passa pela relação
horizontal do embaixador e do grupo de foliões com
os devotos e pela relação vertical do conjunto de foli-
ões e devotos com Deus e as santidades:
João Cigano: Assim, eu até agradeço a Deus, por-
que eu acho que é uma inspiração que dá pra gente.
Igual, a folia, tem gente que fala que uma folia é
“fora do tempo”. Eu acho que não. Que todo tempo
é tempo da gente lembrar de Jesus! Mas, na verda-
de, a folia quando está vesprando o Natal, uns dias
depois do Natal e até nos dias de Reis, ela é mais
inspirada. Tem até mais verso na cachola da gente!
Talita: Quando você fala que o verso vem da ca-
chola, como que você explica isso? Assim, como que
você explica a inspiração, você acha que o verso vem
de onde?
João Cigano: Eu acho assim, manda muito até a fé
da gente e, realmente, eu acho que quando uma pes-
soa pega numa bandeira, aí a própria pessoa ins-
pira. A gente sente o jeito que ele sente: se tá feliz,
se tá achando bom, se tá com fé. Então vai criando
verso. Muito melhor cantar pra uma pessoa que a
gente até vê que a pessoa emociona. Eu não sou de
202
pedindo a Deus pra ser curado naquele momento. que já faleceu. Agora vamos cantar o presépio, va-
Então a gente canta com fé mesmo (João Cigano, mos cantar na mesa, vamos cantar despedindo. En-
dezembro de 2013). tão tem essas diferenças de verso pra cada momento
(João Cigano, dezembro de 2013).
Podemos pensar, então, numa criação relacional
dos versos num giro de Reis: a forma como a pessoa Releva destacar, por fim, que embora se possa plane-
pega na bandeira inspira o embaixador – “A gente jar os versos, imaginando a situação, a gravação de João
sente o jeito que ele sente: se tá feliz, se tá achando Cigano foi bastante reveladora da invenção dos versos
bom, se tá com fé. Então vai criando verso.” – desen- dentro do fluxo do cantorio, da inspiração. Como já foi
cadeando e alimentando o processo de criação do colocado, ao haver qualquer problema durante o re-
cantorio. Ou seja, para João Cigano, a criação é no- gistro de um canto, era necessário voltar a gravação à
tadamente relacional; seja entre embaixador e Deus parte a ser corrigida e passar o fone de ouvidos para o
apenas; ou incluindo na relação o devoto para quem embaixador se lembrar do que havia cantado.
a companhia está cantando. Na gravação do CD, em-
bora houvéssemos ressaltado, no início da função, Da mesma forma aconteceu no domingo em que
sobre a possibilidade dos cantos ali gravados alcança- gravamos Seu Lourenço. A ordem (e dimensão) dos
rem as pessoas em suas casas, os embaixadores tive- cantos que ele gravou obedeceu não a uma necessidade
ram que fazer quase que um exercício de imaginação (e dinâmicas) da gravação, mas os sentidos dos canto-
e memória para criarem os versos no repente. Talvez rios de Reis: o embaixador cantou a Anunciação, de-
tenha sido esse o principal ponto diferenciador dos pois o Nascimento, a Viagem e a Adoração do Menino
momentos de gravação do cantorio perante os micro- pelos Três Reis do Oriente. Não planejara os versos an-
fones para o momento do cantorio do agradecimento teriormente e tampouco se preocupou em encaixá-los
de mesa à d’Arc e ao Cará. Agradecimento extensivo nas dimensões das faixas de um CD. Durante um mes-
a toda a gentileza que tiveram com os vários grupos mo cantorio e mantendo a mesma toada, passou de um
e que foi entoado em sua disposição espacial típica e tema a outro, constituindo o sentido da Folia de Reis.
sem a interferência do equipamento de gravação.
O fato de Pedrinho ter realizado o ritual completo
com a bandeira antes de o grupo se encaminhar para
A ausência dos devotos, no entanto, não consiste
o local da gravação também indica que o embaixa-
um empecilho para a criação. Para a gravação do CD,
dor concebia aquela situação de forma orgânica com
por exemplo, João Cigano explica que se pode plane-
a Folia de Reis. Embora se tratasse de uma gravação, o
jar os versos.
grupo reunido estava imbuído dos valores e sentidos
Já que é pra gravar a gente mesmo cria aquela situ- presentes nos giros e, pelo mesmo motivo, submetido
ação. Por exemplo, vamos saudar uma criança que aos perigos nele circundantes. Para que tudo se en-
tá pegando na bandeira, vamos saudar uma pessoa caminhasse bem, era preciso benzer sua companhia
203
Agradecimento a d’Arc e Cará

204
com a guia e protetora do grupo. Contudo, vale ressal- João Guará ressaltou ainda outras implicações
tar, isto não significa que Pedrinho desconhecesse as deste tempo restrito do canto em um CD. Segundo
dinâmicas de uma gravação. Pelo contrário, ele, assim ele, “tem que ter muito cuidado com as palavras pra
como outros embaixadores, estava interessado em não dar aqueles ‘trupicão’. Pra que uma palavra não
gravar, mais que os cantos para este trabalho, material vire outra palavra”. Durante um giro, se isso acontece,
suficiente para que, em momento posterior, realizem o embaixador tem tempo para consertar esses erros
seus CDs individualmente. ou confusões nos versos seguintes. No caso de uma
faixa de um CD, dentro daquele espaço de tempo, a
Para Thiago, o embaixador mais jovem que parti- mensagem deve ser veiculada claramente:
cipou dos registros, existe uma distinção central en-
tre uma gravação e um giro de folia com relação ao E na questão das letras, fazer as letras, nisso tem
tempo – que possibilita, no primeiro caso, a criação que ter um cuidado danado. Porque a gente tira da
prévia, revisão e correção das letras; e exige, no segun- Bíblia. Palavras verdadeiras que tão na própria Es-
do, uma habilidade específica do embaixador de criar critura. Então, a gente tem que ter o cuidado para
versos no repente: que não atropele as palavras que estão lá (João
Guará, maio de 2014).
Tem muita diferença, por causa do tempo. Porque,
cantando, tem que ser mais no repente. Tem que ser Fernando acompanha a folia desde que era crian-
muito repentista. E pra poder gravar, a gente tem ça. Cursou teologia e foi seminarista, formação que
tempo. Pode pensar. Pode revisar. Pode fazer um integra suas concepções e dinâmicas no contexto da
rascunho, esse tipo de coisa (Thiago, maio de 2014). folia. Ao mesmo tempo em que circula no univer-
so mais tradicional da Folia de Reis (de saberes não
Os cantos que Thiago gravou foram escritos por formais e de expressões do catolicismo popular, não
ele e por João Guará. Fernando, completando o argu- oficial), também dialoga com o universo da educa-
mento de Thiago, traduziu a duração da faixa para a ção formal e da Igreja Católica institucionalizada – o
quantidade de versos cabíveis: que não acontece livre de conflitos. João Guará, por
Na letra pra uma música, a gente fica determina- sua vez, é palhaço de folia e, portanto, poeta, além de
do a uma quantidade de tempo. Ou seja, ela vai compositor de letras de canções religiosas.
de, mais ou menos, uns três a quatro minutos. En- Discutindo a questão da autoria dos versos e toadas
tão, uma coluna não pode passar de oito versos. E de Reis, João Guará, Fernando e Thiago explicaram
quando você tá cantando na casa de alguém, num que o processo de elaboração dos cantos que seriam
almoço, num pouso, você não tem um tempo de- gravados passou por uma adaptação da interpretação
terminado. Você pode cantar o que for necessário da Bíblia, numa espécie de tradução para os versos
(Fernando, maio de 2014). com a métrica e rimas adequadas:
205
A gente faz a adaptação da interpretação. Ou seja, jovem para a Folia de Reis:
tem várias formas de interpretar a Bíblia de um
modo correto, usando palavras diferenciadas, mas Eu sou um embaixador que tô vindo dessa nova
que o sentido seja único. A interpretação da Bíblia geração da Folia de Reis, comparado aos que têm
é uma só, mas há várias palavras semelhantes com o mais idade e experiência. A gente tenta trazer pra
mesmo sentido. Ou seja, tendo nascido Jesus no tem- Folia de Reis o atual, de hoje. Tenta mudar. Não
po do Rei Herodes, né!? Ou: Herodes era contempo- mexer na essência da folia, mas melhorar, evoluir,
râneo ao nascimento de Jesus. O sentido é o mesmo, pra ver se traz mais jovem pra cá. Na Folia de Reis,
só mudou a ordem das palavras (Fernando, maio de em si, só tá ficando as pessoas mais velhas, pelo me-
2014). nos em Inhumas. Aí eu optei por trazer coisa nova.
Por isso que eu pedi ajuda ao Fernando e ao João
E acrescenta João Guará: pra ajudar nas letras e adaptar nas músicas que já
é essência da folia. Optamos também por músicas
Pra rimar o verso, a gente busca as palavras que mais antigas (Thiago, maio de 2014).
dão concordância, com o mesmo sentido. Mas a
gente tem que ter esse cuidado pra não deixar mu- Percebemos, na fala de Thiago, a preocupação por
dar o sentido. (...) Aí a busca da rima, pra dar o trazer novidade ao mesmo tempo em que valoriza as
verso, a gente coloca palavras com o mesmo senti- toadas consideradas mais antigas. Dentre essas, ele
do, com aquele tom que dá a rima. Então, é muito privilegiou três músicas “bem antigas, que ninguém
melindroso fazer letra religiosa. Não é só vai fazen- nunca tinha cantado em gravação”: as toadas do Man-
do, escrevendo, não! A gente faz um monte, escrevo gelo; a do Franésio; e a Congada.
quase duas páginas. Depois eu vou tirando. Eu vou A gravação de cantos preparados previamente e
resumindo, até dar certo aquilo que eu quero (João com as dimensões definidas para um CD dispensa
Guará, maio de 2014). cortes durante sua edição. Já aquelas gravadas sem
Assim, os versos cantados por Thiago foram cria- esta preocupação precisam sofrer algumas reduções
dos a partir de uma leitura e interpretação da Bíblia, no intuito de atingirem um tamanho razoável para
trazendo outros temas além dos tradicionais das fo- o CD sem, contudo, ter seu sentido alterado. Thiago,
lias: Os cinco profetas; Mistério do Amor; Os sete mi- Divino do Juca, João Cigano, Divino da Veinha e Pe-
lagres de Jesus; Santos Reis na Bíblia; Os ensinamentos drinho, gravaram, para além das faixas que integram
de Santos Reis são alguns dos cantos registrados. Thia- este trabalho, material voltado à edição futura de um
go argumenta que a escolha por tais temas – e não os CD individual. Seu Lourenço, embora não tenha gra-
versos mais recorrentes nos giros – deu-se em função vado já imbuído desta motivação, tem material sufi-
de seu desejo de inovar e, com isso, atrair mais gente ciente para isso. Lindomar, que tem um CD próprio
(“Lindomar Evangelista cantando para Deus”), gra-
206
vou algumas faixas para que fosse selecionada uma que começou (Luís Carlos, dezembro de 2013).
para este trabalho. Luís Carlos, que também tem um
trabalho individual desde 2007 (“As sete dores de Ma- O canto Anunciação, gravado no CD “Folia de
ria”) optou por registrar apenas dois cantos, ambos Reis: tradição e fé”, foi composto por Luís Carlos
com versos preparados previamente. segundo passagens da Bíblia. A maioria das mú-
sicas que integram seu trabalho “As sete dores de
Estes versos foram escritos igualmente com base Maria” foi da mesma forma composta tendo como
no texto bíblico. Desde que era jovem, Luís Carlos base o Evangelho.
tem o hábito de ler a Bíblia, recorrendo a ela em mui-
tos momentos para conferir alguma passagem da vida Luís Carlos, no entanto, diferencia os cantos com-
de Jesus. O depoimento sobre o processo através do postos a partir da Bíblia – e estudados e decorados
qual Luís Carlos foi se tornando um embaixador re- –, daqueles que são criados no repente, segundo as
vela a importância que atribui à leitura do Evangelho, situações no giro:
assim como ao incentivo e ensinamentos recebidos Pra cantar é exatamente um repertório assim, de
do embaixador Revalino, a quem Luís Carlos acom- repente. Tem que ter o repente na hora. Porque mui-
panhou na juventude: tas vezes você chega nas casas e não sabe nem o que
Embaixador foi depois que eu fui ficando adoles- vai acontecer nem o que vai ver na hora, né!? Aí
cente. Aí eu fui participando nas comunidades, a ler você tem que inventar. Essa palavra inventar é uma
a Bíblia e fui reparando os versos que os embaixa- forma de dizer, mas a realidade não é bem inven-
dores cantavam. E fui interessando na coisa, porque tar. Vem lá uma, parece que até uma mensagem que
músico parece que eu já nasci músico. E toda vida vem de cima. E não é bem inventar. É completar o
eu gostei de música e fui gostando da cantoria de que você está sentindo naquele momento. Dizer o
Reis. E aí eu comecei a fazer verso. Comecei a ler que você sente daquilo que você está vendo naquele
o Evangelho, a ler aquelas passagens. E comecei a momento. E agora tem uns versos que a gente faz,
fazer verso e cantar na folia e aí, sem mais e sem estuda e decora. Mas é pra chegar num presépio,
menos… numa coisa que você já sabe o que vai acontecer lá
na frente. Lá naquela casa tem um presépio: então
Nesse comecinho meu, quando eu era mais jovem, lá naquela casa eu vou cantar sabendo. Agora, as
tinha um embaixador com nome de Revalino. Ele casas que você chega e encontra tudo de surpresa, aí
me deu muita força. E nas casas que ele estava mui- você tem que fazer, inventar na hora. Aí é o repente
to cansado, ele punha eu pra cantar versos e ficava (Luís Carlos, dezembro de 2013).
perto de mim e ficava me ensinando alguns versos.
E aí eu, também interessado, fui fazendo verso por Essas diferenças apontadas por Luís Carlos fazem
minha conta também. E hoje eu embaixo. Foi assim parte do complexo universo da Folia de Reis em Inhu-

207
mas e região. Luís Carlos, assim como outros embai-
xadores, transita muito bem entre o mundo das gra-
vações de CDs e DVDs, apresentações e encontros de
folia, e os giros das companhias. Estes embaixadores
compreendem a lógica das gravações e o tempo de
palco, sem olvidar, no entanto, os saberes e sentidos
dos cantos e rituais dentro de um giro da companhia.
Outros embaixadores, por outro lado, dominam me-
nos os códigos das gravações e apresentações.
As gravações constituíram espaços privilegiados
para observarmos estas diferenças. Não que possam
ser pensadas isoladas dos giros e outras dimensões
da folia, mas dá para pensar em formas diferentes de
estar na folia. Essas diferenças, entretanto, não permi-
tem estabelecer blocos rígidos separando o universo
da oralidade do da escrita, da modernidade do da tra-
dição. As pessoas são mais complexas que isso. Co-
tejando essas complexidades, podemos perceber que
alguns embaixadores parecem vivenciar, em algumas
esferas, mais uma tradição oral, enquanto que outros
já transitam mais pela escrita – o que se relaciona com
as formas de conhecer, aprender, transmitir e conce-
ber os cantos, versos e saberes da folia.
A maneira como cada embaixador realizou sua
gravação acaba refletindo suas concepções de folia; o
que implica, em alguma medida, uma visão autoral
da manifestação. Extrapolando as inferências feitas
a partir das gravações para o que temos observado
e vivenciado durante os giros, podemos indicar que
os embaixadores que gravaram sem a escrita prévia
das colunas também são muito ciosos em manter o
cuidado para que a bandeira não cruze um trajeto já
Cantorio no presépio
208
percorrido. Também costumam realizar alguns ritu- espaços tradicionais e lidando com muita seletividade
ais considerados necessários com a bandeira para a com os eventos externos como apresentações cultu-
obtenção das proteções e para a afastar o mal. rais, encontros de Folias de Reis, gravações.
Para estes embaixadores, a criação dos versos dos As diferentes concepções de Folia de Reis perce-
cantorios ocorre dentro do fluxo das funções – sem bidas no trabalho de campo e, notadamente, nas gra-
prejuízo da leitura e incorporação de passagens da vações podem, grosso modo, ser classificadas em três
Bíblia – mesmo numa situação de gravação ou apre- pares de oposição: oralidade versus maior incorpora-
sentação. Por sua vez, os embaixadores que prepara- ção de elementos da escrita; apego à manutenção das
ram previamente os cantos – e alguns explicitamente formas estabelecidas do ritual ou maior abertura para
com base no texto bíblico – parecem ter posturas inovações; e tradição versus modernidade. Há que se
mais racionais nos giros. E essa racionalização apa- ter, entretanto, o cuidado de não tentar fazer uma se-
rece no processo de criação escrita de versos tendo paração rígida e estanque dos foliões nessas catego-
em mente o número preciso de palavras e de sílabas rias, uma vez que, dependendo do quesito em consi-
nos versos, com as respectivas rimas. Não que este deração, eles podem cambiar de polo.
processo seja ausente nos embaixadores mais ligados
à oralidade, mas ele ocorre de maneira mais intuitiva
e menos refletida.
A gravação das vozes para a
transcrição musical
Onde a escrita não é a regra, a palavra materializa a
memória social, dando diretrizes de comportamentos, Além das gravações do cantorio, realizamos
normas e valores que precisam ser transmitidos oral- ainda a gravação das vozes separadas para a trans-
mente às gerações mais novas para garantir a identidade crição musical das toadas. Para isso, posicionamos
do grupo. E as formas de transmissão de conhecimento cada voz da resposta e o embaixador separadamen-
costumam ser tanto orais – em fórmulas decoradas e te e com uma distância de uns três metros um do
repetidas em situações rituais – como coletivas; sendo
outro, de forma que cada um dos foliões pudesse se
a leitura, ao contrário, um ato mais individual.
ver, mas o microfone, no modo direcional, captasse
Assim, a oralidade e suas formas de transmissão com mais clareza apenas uma voz de cada vez. As-
de conhecimento não se resume à incorporação res- sim, trabalhando com dois microfones direcionais,
trita de elementos escritos, extravasando normalmen- na primeira estrofe, gravamos a voz do embaixador
te para um maior apego à manutenção das formas e a do ajudante, quando havia. Na segunda estrofe,
estabelecidas da tradição. Isso geralmente tem por a primeira e a segunda vozes. E, na continuação
consequência uma menor abertura às inovações nos da estrofe (no caso da toada de meio verso) ou na
giros da folia, mantendo-a preferencialmente em seus estrofe seguinte, gravamos a terceira voz.
209
O processo desta gravação revelou aspectos in- interdependência se mostrou igualmente na necessi-
teressantes sobre o cantorio, como a interdepen- dade de cada um dos integrantes da resposta se ver
dência entre as vozes da resposta e a necessidade para poder saber a hora exata de entrar no cantorio.
muitas vezes presente de se olhar para a boca do Assim, ainda que em canais separados, a gravação
embaixador para saber o que ele está cantando – tinha que ser de todos juntos, embora mais distantes
podendo, assim, cantar a resposta corretamente. A um do outro do que costumeiramente. Essa distância
Toninho (de costas), Manuel e João Cigano

210
dificultou em vários momentos a afinação por parte vir de referência. Tendo em vista que nem sempre
dos foliões, uma vez que interferiu na referência de as melodias da embaixada e da resposta executa-
cada voz para o encaixe das demais; referência que das em uma gravação – ou mesmo em uma estro-
se dá, especialmente, das mais graves para as mais fe de uma gravação – eram idênticas a de outra,
agudas. Essa referência tem tal importância na for- para selecionar os trechos dos áudios de referên-
mação espacial do grupo que sua ausência dificulta cia, usei minha experiência como folião da respos-
ou mesmo impossibilita a alguns foliões exemplificar ta, tentando apresentar aqueles que me pareceram
isoladamente a altura de sua melodia. mais próximos de um “padrão” costumeiro. E, na
revisão da transcrição, contamos também com o
A transcrição destas vozes revelou, da mesma conhecimento e a experiência do violeiro e pes-
forma, a importância do aqui e agora (BENJA- quisador Roberto Corrêa para tentar aproximar a
MIN, 1994) em um cantorio da folia. É algo bas- escritura musical dessa referência; que não chega
tante sabido no meio que a continuidade de uma propriamente a constituir um padrão, como vimos.
mesma formação na resposta vai ajudando o enla- Mesmo com esse cuidado, ao fixarmos em um su-
ce e o casamento das vozes. Assim, é muito difícil porte material algo próprio da imaterialidade e
que formações diferentes respondam exatamente da circunstancialidade, há sempre algum risco de
da mesma maneira e com as linhas melódicas pre- apresentar como referência da toada e de sua res-
cisamente iguais. Destarte, alguma variação já era posta uma variação ou até mesmo uma exceção ao
esperada na escritura das partes. E a comparação que é costumeiro e mais frequente.
dos registros de um folião com os de outro can-
tando a mesma voz da mesma toada em gravações
diferentes confirmou essa suspeita. Ao fazer e re-
visar as transcrições, entretanto, João Fernandes,
Keit Guimarães e Roberto Corrêa se deram conta
de que, de uma estrofe para outra, surgiam peque-
nas variações nas alturas das notas executadas pelo
mesmo folião.
Para a transcrição musical, usamos um arquivo
dividido em duas partes para cada toada. Primeiro
apresentamos as vozes gravadas separadamente e,
na sequência, uma gravação do conjunto para ser-

211
212
213
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Direção de Wesley Zaremaré. Coordenação, pesquisa viannaleticia@hotmail.com
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Folia de Reis Família Santos. Capitão Tostão. Ro- carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão
maria – MG. 63 min. Uberlândia: Vira Vídeo; Águia Governamental do Ministério do Planejamento, Or-
Music. Direção de áudio e vídeo de Tonhão. Direção çamento e Gestão. Atua na área de direitos autorais do
artística de Nando Lopes. Ministério da Cultura desde 2004 e vem chefiando o
A marcha dos Três Reis. 48 min. Brasília: Clube do setor desde 2005. É, atualmente, o Diretor de Direitos
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musical de Domingos David e Sebastião Rios. 2011.
O mistério de Santos Reis. 43 min. Direção de Fábio Rannier Venâncio é graduando em Ciências Sociais
Rodrigues. Roteiro de Maurício Cardoso. Kinema. pela Universidade Federal de Goiás - UFG. Bolsista
2010. PROBEC / UFG do projeto “Uso comercial de expres-
sões culturais tradicionais”.
ranier_v.a.s@hotmail.com
Autores do livro
Sebastião Rios é professor da Faculdade de Ciências
Evelyse Castro é graduanda em Direito pela Univer- Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Perfor-
sidade Federal de Goiás – UFG. Bolsista PROBEC / mances Culturais da Universidade Federal de Goiás.
UFG e ProExt (Programa de Extensão Universitária - Doutor em Sociologia e pesquisador nas áreas de Pa-
MEC/SESu) do projeto “Uso comercial de expressões trimônio Imaterial, Sociedade e Cultura Brasileira.
culturais tradicionais”. Líder do Grupo de Pesquisa - CNPq - “Música e So-
lyseacx@gmail.com ciedade”. Pesquisador do Centro de Memória Digital

219
da UnB e do Laboratório Transdisciplinar de Estudos 02 Saída da Bandeira / Vanderlei
Sobre a Performance – TRANSE. Fundo musical: Romaria, de Walter José
sebastiaorios@gmail.com Pai Eterno soberano, Pai de Jesus amado, me dê voz
para falar esses versos abençoados. Nossa Senhora
Talita Viana é doutoranda em Antropologia Social nos dá a benção, na hora que nós começa. Os foliões
pela Universidade de Brasília. Mestre em Antropo- estão reunidos pra cumprir uma promessa. Pelo sinal
logia Social pela UnB. Bacharel em Ciências Sociais da santa Cruz, Pai e Filho, o reverendo, os Santos Reis,
pela Universidade Federal de Goiás. Pesquisa na área lá do céu, já vem descendo. Os Três Reis com a estrela
das culturas populares com foco nas Folias de Reis e guia vem guiar os foliões, pra sair com essa folia. Reuniu
Congados. os foliões, nas horas de Deus amém, pra girar com os
talitaviana@gmail.com Santos Reis lá pro lado de Belém. Chegou a hora da
partida, Santos Reis vai viajar e pedir a sua oferta pro
Cantorio de Santos Reis CD 1 seu dia festejar. Os Três Reis vai sair com devoção.
Para todos os seus devotos, vai levar santa benção.
01 Retirada da bandeira / Pedrinho Vamos com os anjos, vamos juntos pra Belém, os Três
Toada São João Reis em nossa guia, nas horas de Deus, amém! Meus
Pai, Filho e Espírito Santo / nas horas de Deus amém devotos folião, vamos todos ajoelhar junto com os
/ começar esta viagem / dos Três Reis para Belém Pra Santos Reis, pra ele nos abençoar. Meu senhor nobre
sair com essa bandeira / reunimos os folião / percorrer alferes, benzei-nos com essa bandeira, porque ela que
a vizinhança / Santos Reis deixa a benção Vou pedir nos leva por uma estrada verdadeira
Nossa Senhora / que abençoa a companhia / abençoa
o dono da casa / com toda a sua família Os meus no- 03 Visita a moradora / João Cigano
bres meus festeiros / satisfeito deve estar / pra cumprir Toada do Ronaldo
sua promessa / Santos Reis vai viajar Vamos, vamos, Segurando esta bandeira / a senhora e sua filhinha /
Rei Belchior / vamos pr’ essa estrada afora / procurar Santos Reis te traz as benção / todos os dias de
Jesus Menino / filho da Nossa Senhora Vamos, vamos, tardinha Santos Reis que lhe abençoa / e lhe dê muita
Baltazar / percorrer a vizinhança / lembrar aquele virtude / vou pedir a Deus do céu / que lhe dê vida e
tempo / que Jesus era criança Vamos, vamos rei saúde Também te peço uma oferta / da senhora e a
Gaspar / na estrada viajar / procurando seus devotos menina / Santos Reis manda uma estrela / que as suas
/ pra poder abençoar Vou pedir nossos festeiros / vidas ilumina Leve a bandeira lá dentro / e vai benzer
Sao José mandou falar / pra seguir nossa viagem / tira sua moradia / todo lugar fica bento / onde passa nossa
a bandeira do altar Vamos dar a meia volta / aqui guia Santo Reis já vai s’ embora / e vós se despede da
dentro do salão / pra completar a companhia / vou bandeira / ele deixa as santas bênçãos / pra sua família
chamar os dois bastião inteira
220
04 Anunciação / Lindomar 06 Encontro com Herodes / Eurípedes
Toada Ai meu Deus Fundo musical: toada Violinha
Era uma Virgem Maria / prometida a José / vivia na Os Reis tiveram um sonho / e ficaram muito conten-
Galileia / na cidade Nazaré Aquele casal fiel / de humilde tes / no terreiro, olhou pro céu / viram uma estrela di-
coração / descendente do Rei Davi / da terra da pro- ferente Como ficaram satisfeitos / de atender aquela
missão Maria estava rezando / com a grande devoção mensagem / arrearam seus camelos / e deram início na
/ veio o anjo Gabriel / fazendo a anunciação Maria viagem Prosseguiram sua viagem / com prazer e ale-
que viu o anjo / com seu lindo resplendor / com grande gria / com destino para Belém / viajaram noite e dia /
satisfação / em seus pés ajoelhou Quando o anjo foi Os Reis foi avisado / que morava os três vizinho / sem
descendo / estendeu a mão sobre ela / e entregou santa saberem uns dos outros / encontraram no caminho
mensagem / do Divino Pai Eterno Disse o anjo pra Reuniu todos os três / fizeram a combinação / vamos
Maria / que ela estava concebida / pra ser mãe do Rei nós para Belém / é tempo de adoração E quando es-
do Mundo / que por Deus foi escolhida Na hora da tava bem distante / um homem eles encontrou / sem
anunciação / depois o anjo retirou / o verbo de Deus saber que aquele / era o homem traidor Ele era o rei
fez carne / e em Maria encarnou A vinte e cinco de Herodes / mas ninguém não percebeu / pra fazer uma
março / que Maria concebeu / vinte e cinco de dezembro pergunta / um banquete ofereceu Através daquele
/ que Jesus Cristo nasceu banquete / que Herodes ofertou / pra saber de alguma
coisa / pros Três Reis ele perguntou Rei Herodes
05 Nascimento / Divino da Veinha perguntou / pra onde vai, de onde vem / respondeu
Toada (do) João Baianinho o Rei Belchior / o senhor pergunta muito bem Nós
Vinte e cinco de dezembro / o mundo enfloresceu / envém do nosso país / com destino pra Belém / pra
cantou o galo anunciando / que o Menino Deus nasceu adorar Menino Deus / que nasceu pro nosso bem Ele
São José e Nossa Senhora / tiveram grande alegria / disse pro Rei Belchior / que na volta do passado / você
os pastor e os seus rebanhos / nessa hora reunia Na me dê notícia / do Menino anunciado Quando vocês
cidade de Belém / no tempo determinado / de fato vier de volta / por favor passa por cá / eu quero saber
nasceu o Menino / que há tempo era esperado Nasceu do Menino / eu também quero adorar Terminou a
nosso salvador / para todo o nosso bem / pois foi interrogação / os Reis ali seguiu / fazendo suas ora-
numa manjedoura / lá na gruta de Belém Sofrendo ções / uma estrela reluziu Os Reis seguiu viagem /
o rigor do frio / bem pertinho da mãe ternal / pois foi com prazer e alegria / acompanhando aquela estrela/
numa manjedoura / bafejado de animal A estrela do para ver onde ela ia Lá no alto de Belém / aonde
Oriente / fugiu sempre dos judeus / pra avisar os Três os Três Reis Magos parou / assuntando aquela estrela
Reis Santos / que o Menino Deus nasceu / para ver onde ela abaixou A estrela abaixou / lá
na porta da lapinha / onde estava o Rei dos Reis /nos

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braços da Rainha Na chegada da estrela / São José Senhora balança Santos Reis que dá benção / pr’ essa
se assuntou / olhando para a frente / os Três Reis ele sagrada família / agora peço a vossa oferta / mas não
avistou Quem é aqueles três cavaleiros / que nos ca- exijo a quantia Vou saudar sua família / que presente
melos vem montado? / É os Reis do Oriente / que pela não está / os Três Reis não tem distância / pra poder
estrela foi anunciado Veio chegando o Rei Belchior abençoar Atendi o seu pedido / o pedido que vós fez
/ Rei Gaspar, Rei Baltazar / que trazia mirra, incenso / sua família abençoada / do divino Santos Reis A
e ouro / para o menino adorar Ao chegar na lapinha bandeira foi lá dentro / foi benzer sua morada / todo
/ todos os três ajoelhou / todos os três ajoelhou / com canto fica bento / essa bandeira é sagrada A bandeira
grande satisfação Entregaram seus presentes / nas entrou lá dentro / já benzeu a moradia / ela já está de
horas de Deus, amém! / todos os três foi coroado / na volta / na frente da companhia Vós despede da ban-
lapinha de Belém Todos os três foi coroado / tiveram deira / adeus, até outra hora / vai deixar vida e saúde /
a grande alegria / o anjo São Gabriel / naquela hora pra quem nessa casa mora Pode passar a bandeira /
descia Na chegada daquele anjo / num esplendor tão pro alferes da folia / vão dizendo adeus, adeus / adeus,
bonito / avisando que fugisse / com o Menino para o até outro dia
Egito E na cidade de Belém / começaram a alarmar /
criança de dois anos abaixo / Herodes mandou matar 08 Canto para falecido / João Cigano
Ouvindo aquelas palavras / fugiu com o Menino / Toada paulista para falecido
São José foi por uma estrada / e os Reis foi por outro Relembrando vosso pai / que deste mundo Deus levou
destino Em Belém é meia-noite / meia-noite em Está junto com Jesus / lá na glória do Senhor Que
Belém / Pai, Filho e Espírito Santo / nas horas de até o dia de juízo / Deus a tenha em um bom lugar
Deus, amém! Em intenção da alma dele / com os Três Reis vamos
rezar Esta oferta que oferece / não podemos aceitar
07 Visita / Pedrinho Com ela vós compra uma vela / vós põe ela pra
Toada Xique-Xique queimar
Santos Reis envém girando / trazendo a estrela na
guia / vem trazer santa benção / pro casal e a família 09 Encontro de bandeiras / Thiago
Recebeu nossa bandeira / entrou dentro do salão / Toada Ei, ai
glorioso Santos Reis / que lhe dá santa benção Senhore Veja que momento belo / que por Deus foi conce-
dono da casa / que bonito que vós fez / reuniu sua dido / encontramos outra bandeira / com os foliões
família / na presença dos Três Reis Vou saudar este nossos amigos Vou saudar sua bandeira / e os fo-
casal / e também a criancinha / São José lhe batizou / liões que ela segue / que durante a jornada / Santos
Nossa Senhora é madrinha Santos Reis que abençoa Reis quem lhes protege Nos caminhos que andarem
/ o casal e a criança / São José lhe põe no berço / Nossa / não encontrem contratempo / que suas vozes sejam

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firmes / e os instrumentos sejam bentos Como os está escrito na profecia Nascimento de Jesus / já foi
Reis foram guiados / pela estrela até o Menino / que marcado o dia
possa guiar vocês / até seu santo destino Para o al-
feres da folia / queremos dar a oferta / pra chegada 12 Agradecimento de mesa / Lourenço
de vocês / realizar uma bela festa Já ouviram essas Agradecimento lento
palavras / que nessa hora eu disse aqui / vocês vão Jesus Cristo perguntou / quem tratou dos folião /
em boa paz / que com Deus vamos seguir respondeu Nossa Senhora / foi o filho da benção Li-
cença, dono da casa / o senhor e a família / para lou-
10 Encontro com a festeira / Luís var esta mesa / nosso pão de cada dia Deus vos pague
Carlos a bela janta / que vós deu muito contente / há de ser
(Letra em parceria com Di Mariano) recompensado / dos Três Reis do Oriente Senhore
Toada São Sebastião (variante adaptada por Luís Carlos) dono da casa / a despesa que vós fez / há de ser
Já foi visto e aprovado / o que a Escritura marca Do recompensado / dos gloriosos Santos Reis Senho-
lado do Oriente / são chegada dos Três Monarca Nesta ra dona da casa / Deus vos pague os seus trabalhos /
hora tão solene / de prazer e alegria Os Três Reis quando vós subir ao céu / Deus lhe dê bom agasalho
evém chegando / junto com a companhia Os Três Os Três Reis do Oriente / retratado na bandeira / que
Reis evém girando / procurando a festeira Com vos pague o seu trabalho / da senhora e as cozinheira
certeza está contente / esperando a bandeira Deus Lá do céu desceu um anjo / no descer abriu as asas /
vos salve nossa festeira / também o arco de flor E vem dizendo viva, viva / viva o dono dessa casa Lá
também os Três Reis Santos / com carinho e muito do céu desceu dois anjos / com seu livrinho de defesa
amor Senhora nobre festeira / filha da santa benção / vem dizendo viva, viva / viva esta bela mesa Lá do
Vem beijar nossa bandeira / e receber seus folião céu desceu três anjos / com seu livrinho na mão / vem
Abençoada Virgem Maria / lá na lapinha em Belém dizendo viva, viva / viva nossa união Bendito louvado
Pai, Filho e Espírito Santo / glória para sempre, amém! seja / filho de Nossa Senhora / nós cantamos aqui na
Terra / os anjos rezam na glória Bendito louvado
11 Profecia / Divino do Juca seja / o meu senhor Jesus Cristo / Pai, Filho e Espírito
Toada do Lourenço Santo / seja louvado bendito Ofereço este bendito /
Morava na Galileia / no círculo de três vizinhos pro Senhor daquela cruz / em intenção das cinco chagas
Escolheram a Maria / para ser nossa Rainha Para / no coração de Jesus
ser nossa Rainha / ser a mãe do Redentor Veio o anjo
glorioso / a Maria abençoou Deus te salve, óh, Maria!
/ do mistério mais profundo Para ser a mãe de Deus
/ nosso Salvador do Mundo Foi tudo profetizado /

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Ficha técnica Cleomar Vieira dos Santos: sanfona
Cueca (João Ribeiro de Castro): pandeiro
Divino da Veinha
Divino da Veinha (Valdivino Vieira dos Santos): João Cigano
João Cigano (João do Carmo Barbosa): embaixador; viola
embaixador; violão
Toninho (Antonio Candido Machado Filho): ajudante
Lazinho (Lázaro Belmiro dos Reis): ajudante do em-
baixador; 1ª voz; viola do embaixador; 1ª voz
Caneta (Valdelino Luís Batista): 2ª voz; violão Caneta (Valdelino Luís Batista): 2ª voz; violão
Lourenço Francisco Ferreira: 1ª voz; viola Tião Paraíba (Sebastião Pereira Lima): 2ª voz; violão
Vicente Francisco Rodrigues: 3ª voz; violão Manuel Pereira Lima: 1ª voz
João Moreira Camargo: 3ª voz
Antonio Rodrigues Cunha Filho: 4ª voz; violão
Pedrinho (Pedro Batista da Silva): 4ª e 2ª voz; viola
Orlando Valentim: 5ª voz; cavaquinho
Sebastião Rios: 4ª voz; viola
Cleomar Vieira dos Santos: 6ª voz; sanfona; embaixada
João Batista Ferreira: 5ª voz; violão
Wakman Pereira dos Santos Filho: caixa
Tico (Osvaldo Bernardo de Oliveira): 5ª voz
Zé Chapa (José Diogo da Silveira): pandeiro
Moralício Tertuliano da Silva: 6ª voz; sanfona
Divino do Juca Chicão (José Francisco da Costa): sanfona
Divino do Juca (Divino Carlos da Silva): embaixador Thiago Divino de Oliveira: sanfona
Maurinho Paulo de Oliveira: 2ª voz; violão; pandeiro Tiziu (Valdivino Manoel da Silva): caixa
Zezé (José Alexandre Vieira da Fonseca): 2ª voz Fia (Maria Divina Dias Gouvea): pandeiro
Sebastião Rios: 2ª voz; viola Luís Carlos: violão solo
Antônio Rodrigues Cunha Filho: 1ª voz; violão Wilson Bispo Santana: viola
Lazinho (Lázaro Belmiro dos Reis): 1ª e 2ª voz; violão; Lindomar Evangelista
pandeiro
Lindomar Evangelista de Lima: embaixador; 2ª voz;
Vicente Francisco Rodrigues: 3ª voz; violão
cavaquinho
Caneta (Valdelino Luís Batista): 4ª voz; violão
Selvo Tavares: ajudante do embaixador; 1ª e 2ª voz; violão
Geny Lopes da Cruz: 5ª voz
Vicente Francisco Rodrigues: 3ª voz; violão
Fia (Maria Divina Dias Gouvea): 6ª voz
José Paulo da Rocha: 4ª e 1ª voz
Zezinho (José Rodrigues de Azevedo): 6ª voz; caixa Sebastião Rios: 4ª voz
Thiago Divino de Oliveira: sanfona Maria Rodrigues Dutra: 5ª voz
Luís Carlos: violão João Augusto de Oliveira: 6ª voz
Eurípides Eurivan Lúcio de Araújo: sanfona
Eurípides Inácio da Silva: declamação Cambão (Osmar Teodoro Lima): caixa; 2ª voz
Agnelo Bernardo de Jesus: caixa
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Lourenço Sebastião Vieira Soares: ajudante do embaixador; viola
Lourenço Francisco Ferreira: embaixador; viola Sebastião Pereira Lima: 2ª e 1ª voz; violão
Lazinho (Lázaro Belmiro dos Reis): ajudante do em- Manuel Pereira Lima: 1ª voz; ajudante do embaixador
baixador; 1ª voz; violão João Moreira Camargo: 3ª voz
Caneta (Valdelino Luís Batista): 2ª voz; violão Valter (Valdoir Tomaz da Silva): 4ª voz
João Guará (João Bosco dos Santos): 1ª e 4ª voz Tico (Osvaldo Bernardo de Oliveira): 5ª voz
Vicente Francisco Rodrigues: 3ª voz; violão Moralício Tertuliano da Silva: 6ª voz; sanfona
Antônio Rodrigues Cunha Filho: 4ª e 1ª voz; violão Zéli (José Lopes Filho): violão; 6ª voz
Orlando Valentim: 5ª voz; cavaquinho Luizinho (Luiz Carlos de Souza): sanfona; 2ª voz
Fia (Maria Divina Dias Gouvea): 6ª voz Tiziu (Valdivino Manuel da Silva): caixa
Eurivan Lúcio de Araújo: sanfona Divina (Eva Lopes Machado): pandeiro; 5ª voz
Abacate (Iraídes Pereira Mendanha): caixa Pelé (Ademir Felicíssimo): violão solo
Adelino Rodrigues dos Santos: pandeiro
João Fernandes: violão solo Thiago
Sebastião Rios: viola Thiago Divino de Oliveira: embaixador; violão
João Guará (João Bosco dos Santos): 2ª voz
Luís Carlos Paulo Roberto Oliveira: 1ª voz
Luís Carlos: embaixador; violão Eurípedes Devair de Paulo Bueno Fernandes: 3ª voz
Caneta (Valdelino Luís Batista): 2ª voz; violão Barrerito (Sebastião David Barbosa): 4ª voz
Sebastião Rios: 2ª voz; viola Lourenço Francisco Ferreira: 5ª voz; viola
Pedro Beijão (Pedro Ribeiro de Castro): 2ª voz; violão Zezinho (José Rodrigues de Azevedo): 6ª voz
Lazinho (Lázaro Belmiro dos Reis): 1ª voz; violão Eurivan Lúcio de Araújo: sanfona
Vicente Francisco Rodrigues: 3ª voz; violão Welton Rodrigues de Azevedo: caixa
Antônio Rodrigues Cunha Filho: 4ª e 1ª voz; violão Fernando Belarmino da Silva: pandeiro
Orlando Valentim: 5ª voz; cavaquinho Luís Carlos: violão
Fia (Maria Divina Dias Gouvea): 6ª voz
Eurivan Lúcio de Araújo: sanfona Vanderlei
Abacate (Iraídes Pereira Mendanha): caixa Vanderlei Pereira Maciel: declamação
Adelino Rodrigues dos Santos: pandeiro Luís Carlos: violão
José Olavo Nogueira: violão solo Wilson Bispo Santana: viola
Talita Viana: caixa
Pedrinho Fia (Maria Divina Dias Gouvea): pandeiro
Benedito Pereira Alves: alferes
Pedrinho (Pedro Batista da Silva): embaixador; viola

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Mostra de toadas CD 2
01 (de) André e Andrade / Pedrinho
02 Cerradinho / Thiago
03 Cigana / João Cigano
04 Córrego Rico / Lindomar
05 Damolândia / Luís Carlos
06 Dobrada / João Cigano
07 Dobrada (do Geneci) / João Cigano
08 (dos) Elias / Divino da Veinha
09 Goiana / Luís Carlos
10 Goianira / Luís Carlos
11 (do) João Mariano - Bariani Ortencio / Pedrinho
12 Lenta / Lourenço
13 Mangelo / Divino do Juca
14 Mineira / Divino da Veinha
15 N. Sra. do Rosário / Luís Carlos
16 Paulista (pedido e agradecimento) / João Cigano
17 Petrolina / Lourenço
18 Santa Fé / Thiago
19 Santa Rosa / Divino do Juca
20 Vila Nova / Thiago
21 Violinha / Thiago

Agradecimento de mesa

22 (Goiana) Antiga / João Cigano


23 (do grupo do) Divino da Veinha / Divino da Veinha
24 Galopeira / Luís Carlos
25 (do) Moreno e Moreninho / Pedrinho
26 Valseado / João Cigano

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