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Quem é o ser-aí sozinho no modo da lida ocupacional cotidiana?

 
 
resumo:  ​O  trabalho  visa ao desenvolvimento da noção de ​Alleinsein que, segundo procuraremos mostrar, é usada para 
designar  o  contexto  fenomenal  da  ocorrência  ôntica  da  solidão,  presente  no  §26  de  ​Sein  und  Zeit​.  Para  isso,  será 
necessário  desenvolver  algumas  determinações  fundamentais  do  ser-aí  e  delimitar  metodologicamente  a  análise.  Após 
trabalhadas  algumas  noções, nos encontraremos em condições de expor a noção de Alleinsein, aqui chamada de solidão 
cotidiana. 
 
1.  
 
Um  bom  modo  de  introduzir  a  questão referida no título do presente trabalho é, primeiro, 
situar  os  termos  na  analítica  existencial  heideggeriana1  presente na primeira seção da primeira parte 
de  ​Sein  und  Zeit​.  Em  seguida,  falar  brevemente  sobre  a  caráter  da  analítica  existencial  e  em  que 
medida ela poderá responder nossa indagação.  
Por  analítica  existencial  está  sendo  entendido  o  esforço  ​fenomenológico-hermenêutico  de 
extrair,  a  partir  da  análise  de  como  nos  movemos  de  ​início  e  na  maioria  das  vezes, existenciais​, i.e., 
estruturas  ontológicas  fundamentais do ente que possui o ​modo de ser da ​existência​. Creio que com 
essas  palavras  só  tenhamos  multiplicado  as  dificuldades.  Prossigamos.  A  tarefa,  possuindo 
enquanto  conceito de método o fenomenológico, busca falar de tal modo que o falado seja extraído 
a  partir  daquilo  sobre  que  fala,  mostrando  e  deixando  ver  o  ser  do  ente  tal  como  se  mostra  em  si 
mesmo  e  a  partir  de  si  mesmo;  é,  além  disso,  hermenêutico  na  medida  em  que  não  somente haure 
estruturas  de  ser,  mas  ​interpreta-lhes  ​o  sentido (​SuZ §7). Daí também, num certo sentido, falarmos 
em  esforço,  pois  nada  mais  comum  do  que  determinações  estranhas  ao  tipo  de  abordagem 
querendo ter lugar dentro de uma análise de tal caráter.2 
Porém,  ainda  poderia  surgir  a  dúvida  sobre  o  ponto  de  partida  da  analítica,  presente  na 
seguinte  pergunta:  onde  iremos  buscar  o  contexto  fenomenal  sobre  o  qual  irá  se  deter  analítica? 
Como  foi  dito,  o  existente  num  modo  não  tão  peculiar  quanto  a  possibilidade  de  ser no modo do 
conhecimento, i.e., na abordagem considerativa3, mas o ser-aí na lida ocupacional sempre executada 

1
De início será bom notar que iremos manter afastado a preocupação da analítica existencial com a pergunta do ser em 
geral, não porque isso não seja importante, mas, sim, pela intenção e economia exigidas pelo trabalho. 
2
O que lembra um pouco Descartes e seu contínuo e intenso esforço de manter afastadas os preconceitos e preservar os 
resultados das meditações.  
3
  Aqui  é  necessário  chamar  atenção  que  ​não  ​se  está  querendo  dizer  que  o  ser-aí engajado na abordagem considerativa, 
científica,  a  saber,  no  modo  do  demorar-se  junto  a…  que  busca  visualizar  a  configuração  do  ente,  não  está  de  algum 
modo  imbuído  numa  certa  lida  ocupacional  em virtude de um empreendimento de si; as, sim, queremos dizer que não 
é o modo como o ser-aí se ocupa de início e na maioria das vezes com os entes.  
em  virtude  de  um  empreendimento  de  si4  consciente  ou  não.  Assim,  é lá que a analítica existencial 
irá  buscar  as  estruturas  fundamentais do ente que existe, estruturas que não são acidentais, mas sim 
existenciais  que  se  mantêm  constante  em  cada  modo  de  ser  do  existente  enquanto  determinações 
do seu ser. 5 
 
2. 
 
Situamos  nosso  trabalho  na  analítica  existencial,  acenamos  para  o  modo  da  abordagem, 
indicamos  onde  iremos  buscar  o  contexto  fenomenal  e  o  que a analítica procura com isso. Agora a 
tarefa  é  falar  de  algumas  das  características  fundamentais  de  ser  do  ente  que  nos  parágrafos 
anteriores  foi  dito  sendo no modo de ser da existência, o ser-aí (​Dasein​). Para a caracterização deste, 
usaremos  alguns  enunciados  presentes  em  ​SuZ​.  Dessa  maneira,  partiremos  do  segundo  parágrafo 
gramatical do §4 de ​SuZ​: 
“Das  Dasein  ist  ein  Seiendes,  das  nicht  nur  unter  anderem  Seienden  vorkommt.  Es  ist 
vielmehr  dadurch  ontisch ausgezeichnet, daß es diesem Seiendem in seinem Sein ​um ​dieses 
Sein  selbst  geht.  Zu  dieser  Seinsverfassung  des  Daseins  gehört aber dann, daß es in seinem 
Sein  zu  diesem  Sein  ein  Seinsverhältnis  hat.  Und  dies  wiederum  besagt:  Dasein  versteht 
sich  in  irgendeiner  Weise  und  Ausdrücklichkeit  in  seinem  Sein.  Diesem  Seienden  eignet, 
daß  mit und durch sein Sein dieses ihm selbst erschlossen ist. ​Seinsverständnis ist selbst eine 
Seinsbestimmtheit  des  Daseins​.  Die  ontische  Auszeichnung  des  Daseins  liegt  darin, daß es 
ontologisch ​ist.​” 
 
Como  ponto  de  partida  para  caracterização  deste  ente,  podemos  dizer  que  o  ​Dasein  ​não é 
um  ente  entre  outros  (plantas,  animais,  números,  coisas  naturais),  i.e.,  ele  se  distingue  dos  demais 
entes.  Essa  distinção  consiste  em  ter  de  ser  o  seu  ser  ao  modo  de  uma  tarefa,i.e.,  ter  o  seu  ser 

4
  “Empreendimento  de  si”  está  querendo  designar  a  estrutura  projetiva  da  compreensão,  i.e.,o  em  virtude  de… 
horizonte  de toda significância aberto pela estrutura básica da compreensão (Cf. §31). Prefiro falar de empreendimento 
de  si  na  medida  em  que  vejo  que  transmite uma ideia de transitividade, processo, estar a caminho, esboço remodelável; 
o  que  não  acontece  na  palavra  projeto,  que  dá  uma  ideia  de  plano  pré-concebido,  traçado,  pensado,  refletido  e 
completo. 
5
  Talvez  essa  breve  introdução  para  situar  a  questão  se  deixe  reconduzir  às  poucas  palavras  de  Heidegger  na  seguinte 
passagem:  “Die  Zugangs-  und  Auslegungsart  muß  vielmehr  dergestalt  gewählt  sein,  daß  dieses  Seiende  sich  an  ihm 
selbst  von  ihm  selbst  her  zeigen  kann.  Und  zwar  soll  sie  das  Seiende  in  dem zeigen, wie es ​zunächst und zumeist ​ist, in 
seiner  durchschnittlichen  ​Alltäglichkeit​.  An  dieser  sollen  nicht  beliebige  und  zufällige, sondern wesenhaft Strukturen 
herausgestellt  werden,  die  in  jeder  Seinsart des faktischen Daseins sich als seinsbestimmende durchhalten. Im Hinblick 
auf  die  GrundVerfassung  der  Alltäglichkeit  des  Daseins  erwächst  dann  die  vorbereitende  Hebung  des  Seins  dieses 
Seienden”. Cf ​SuZ p ​ 16-17. 
marcado  pelo  caráter  de  estar  em  jogo.6  Pode-se,  portanto,  dizer  que  o  ​Dasein  ​é  de  tal  modo  que, 
sendo,  ​seu  ​ser  não  lhe  é  indiferente,  mas  sim  “algo”  em  virtude  do  qual  ele  se  ocupa,  traz  um 
cuidado  (​Sorge​).  Além  disso,  como  um  complemento  desse  primeiro  caráter  positivo  do  ser  do 
Dasein​,  i.e.,  ter  o  ser  como  tarefa, pertence ao ser do ​Dasein ser uma ​relação de ser com seu próprio 
ser.  Em  outras  palavras:  o  ser-aí  não  é  um  algo  que  ​ademais  teria  uma  relação  com seu ser, mas ele 
mesmo é essa relação de ser com seu próprio ser.  
Com isso, temos duas caracterizações positivas do ser do ​Dasein​: 1. ter o seu ser em jogo e 2. 
ter  esse  ser  ao  modo  de  uma  relação  de  ser  com  seu  próprio  ser.  Como  resultante  dessas  duas 
caracterizações,  podemos  concluir  daí  que,  na  medida  em  que  o  ser-aí  tem  o  seu  ser  como  tarefa  e 
essa  tarefa  é  realizada  ao  modo  de uma relação de ser com seu próprio ser, esse ser por meio do qual 
o  ser-aí  se  perfaz  está  de  certa  forma  já  sempre  sendo  pré-compreendido  ou  melhor:  aberto 
(​erschlossen​)  ​—  ainda  que  de  modo  não temático e muito menos enquanto alvo de uma abordagem 
conceitual, embora seja a condição de possibilidade desta. 
Assim,  chegamos  ao  caráter de abertura do ​Dasein​. Heidegger não diz, neste parágrafo, que 
o  ser  do  ​Dasein  ​está  aberto  pura  e  simplesmente,  mas,  sim:  “Diesem  Seienden eignet, daß ​mit ​und 
durch  ​sein Sein dieses ihm selbst erschlossen ist.”(​SuZ, 12​. Grifo meu) Ou seja, o ser do ​Dasein está, 
com  ​(​mit​)  e  ​através  (​durch​)  do  seu  próprio  ser,  aberto.  Com  isso  entendemos  que  Heidegger  está 
fazendo alusão ao caráter de p​ rojeto-lançado​ que caracteriza o ser do D
​ asein​.  
Assim,  por  um  lado,  quando  se  diz  que  o  ser-aí  está  aberto  ​com  ​seu  ser,  se  está  querendo 
dizer  que  o  caráter  de  ter  de  ser  o  ser  que  se  é  é  algo  com  o  qual  não  podemos  nos  desfazer,  não 
podemos  abdicar  disso,  comporta  um elemento de passividade: o ser-aí está lançado como ente que 
tem  o  seu  ser  ao  modo  de  uma  tarefa.  Por  outro,  temos  uma  uma  dimensão  ativa,  o  ser-aí  está 
através  do  seu  ser  aberto.  Desse  modo,  podemos  dizer  que,  lançado,  o  ser-aí,  ​por  meio  do  ​seu  ser, 
abre  essas  possibilidades  e  as  realiza.  Assim,  na medida em que o ser-aí é lançado na abertura do seu 
próprio  ser,  ele  pode  ​—  e  já  sempre  o  fez ​— ​se relacionar com seu próprio ser perfazendo e abrindo 
as  possibilidades  de  realização  do  seu  próprio  ser,  dando  uma  resposta  a  tarefa  de  ser  que  lhe  foi 
entregue.  Portanto,  a  partir  do  que  foi  exposto  podemos  dizer  junto  com  Heidegger  que  “a 
compreensão  de  ser  é  ela  mesma  uma  determinação  de  ser  do  ​Dasein​”  (​SuZ  ​12).  E  esse  ser  com  o 

6
Com esse caráter de tarefa não se está tentando exprimir outra coisa que não o seguinte enunciado: “dass es diesem 
Seiendem in seinem Sein ​um ​dieses Sein selbst geht” S​ uZ ​p 12. Sobre o caráter de tarefa traduzido por essa expressão cf. 
von HERRMANN, F.-W., Hermeneutische Phänomenologie des Daseins: Eine Erläuterung von “Sein und Zeit”, 
Band 1: “Einleitung: Die Exposition der Frage nach dem Sinn von Sein”, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 
1987. p 104 
qual  o  ser-aí  sempre  pode  se  relacionar  dessa  ou  daquela  maneira  e  sempre  já  se  relacionou  de 
alguma  maneira  é  o  que  se  designa  por  ​existência  ​(​Existenz​).  O  ente  que é chamado de ser-aí tem o 
seu  ​aberto  ​com  ​o  seu  ser  lançado  e  ​através  ​do  ser  projetado.  Na  abertura lançada do seu ser está em 
jogo, ao modo de uma abertura projetiva, a abertura do seu próprio ser.  
Um  aspecto  último  dessa  caracterização  prévia  do  ​Dasein  será  o  ser-em-um-mundo 
(​Sein-in-einer-Welt​)  que  faz  parte  de  sua  constituição  existencial  fundamental.  Esse  “em”,  no 
entanto,  não  significa  ser  dentro  de  outro  ente,  como  se  mundo  fosse  um  ente.  Aqui  está  a 
diferença  entre  “sein  in”  e  “in-sein”, sendo o primeiro utilizado para denotar a relação de dois entes 
intramundanos  destituídos  do  modo  de ser do ente existente e, o segundo, para falar da relação que 
o  ser-aí  tem  com  seu  mundo.  Ser-no-mundo  é  um  caráter  de  ser  do  próprio  ​Dasein​.  A  estrutura 
ontológica  da  mundanidade  do  mundo,  pertencente  ao  próprio  ​Dasein​,  pode  ser  descrita  como 
uma totalidade referencial, significância ​(​Bedeutsamkeit​) (​SuZ ​§18). Brevemente, essa significância, 
por sua vez, pode ser entendida como uma totalidade referencial aberta pelo horizonte resultante da 
estrutura  projetiva  da  compreensão,  i.e.,  aquilo  que  vem  ao  encontro  do  ​Dasein  é  previamente 
compreendido  enquanto  empregável7  num  para  quê  específico  que,  por  sua  vez  e  em  última 
análise,  remonta  a  um  ​em  virtude  de  (​Worumwillen​),  uma  possibilidade  de  seu  próprio  ser 
enquanto  desformalização  do  poder-ser  que  lhe  foi  entregue  com  e  através  da  abertura  de  seu 
próprio ser. Assim, pode-se dizer que a estrutura da mundanidade do mundo e, consequentemente, 
o  ser  dos  entes  intramundanos  que  é  compreendido  através  dela,  está  intrinsecamente  relacionada 
com a compreensão que o ser-aí tem de seu próprio ser.8  
 
3. 
Mas  como  é  o  ser-aí  na  lida  ocupacional  cotidiana?  Ou  ainda, o que se está querendo dizer 
com  lida  ocupacional?  Comecemos  por  esta  última  questão.  O  ser-aí  na  sua  lida  ocupacional  é 
aquele  ente  existente  que,  cuidando  de  um  empreendimento  de si ​– de maneira explícita ou não –, 
tem  na  ocupação  cotidiana  o  meio  de  o  realizar  por  meio  do emprego, empenho ocupacional com 
entes  intramundanos(​SuZ  56,57).  O  ser  desses  entes  que  nos  vêm  ao  encontro,  nesse  empenho 
cotidiano  do  ser-aí,  possui  o  modo  de  ser  do  utensílio  (​Zeug​),  i.e.,  é  um  ente  ​para  um  ​para  quê 
específico que se apresenta numa determinada conjuntura (​Bewandtnis​) específica.  

7
No caso de utensílios, como iremos ver. 
8
  “Kein  Existenz-Verständnis  ohne  Welt-Verständnis  und  umgekehrt”,  Cf.  cf.  von  HERRMANN,  F.-W., 
Hermeneutische  Phänomenologie  des  Daseins:  Eine  Erläuterung  von  “Sein  und  Zeit”,  Band  1:  “Einleitung:  Die 
Exposition der Frage nach dem Sinn von Sein”, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1987. p 130 
É  importante  ressaltar  que,  embora  nos  parágrafos  que  irão  ser  tratados  na  análise  do 
ser-sozinho  cotidiano  (​alltägliches  Alleinsein​),  a  cotidianidade  apareça  como  associada  a 
impropriedade,  aqui  irá  se  manter  afastada  a  identificação  ​necessária  entre  cotidianidade  e 
impropriedade.  Em  outras  palavras,  ao  se  dizer  cotidiano  se  está  mais  delimitando 
metodologicamente,  ou  melhor,  assegurando  a  sua  não  distorção  para  uma  possível  análise 
existencial.  Assim,  vemos  o  substantivo  abstrato  “Alltäglichkeit”  sendo  1.  usado  em  §5  (parágrafo 
gramatical  6)  para  assegurar  o  modo  de  acesso  ao  ser  do  ser-aí contra qualquer ideia de ser que não 
seja  extraída  do  próprio  ente,  mas  projetada.9  E  Heidegger identificará esse ​Dasein ​cotidiano como 
um modo de lida ocupacional, de caráter ateorético. 
 
4.  
 
Assim,  temos  um  ponto  de  partida  para identificar a tematização do “outro como eu” que, 
como  iremos  ver,  já  estava  sempre  pressuposto10  como  resultado  do  dar-se  do  mundo:  1.  A  partir 
do  modo  mais  próximo  de  ser  do  ser-aí,  a  cotidianidade;  e  2.  a  partir  da  constituição fundamental 
do ser-no-mundo. Além disso, a análise do outro irá concentrar-se no §26. 
Aqui  (§26,  parágrafo  gramatical  1) é mostrado que esse momento estrutural do mundo, do 
ser-com,  já  foi  anteriormente  (§15,  parágrafo  gramatical  12)  evidenciado  na  análise  da 
mundanidade  do  mundo.  No  entanto,  falta  esclarecer  como  o  ser-com  é  constitutivo  do  ser  do 
ser-aí  enquanto  ser-no-mundo  e,  além  disso,  como  esse  co-ser-aí  nos  vem  ao  encontro  na 
cotidianidade mediana. 
É  curioso  observar  também,  que  já  no  §15  os  outros  não  nos  vem  ao  encontro de maneira 
temática,  muito  menos  enquanto percepção de corpos, mas, sim, de modo não temático, implícito, 
a partir da não surpresa da circunvisão. Além disso, esse outro não vem ao encontro no modo de ser 
da  ​manualidade  ​ou  ​perantidade11  (​Vorhandenheit​);  como  acontece,  no  primeiro  caso,  com  a 
ocupação  subordinada  a  uma  circunvisão  aberta  numa  malha  referencial  de  uma  conjuntura 
própria  e,  no  segundo,  quando  essa  referência  se  acha  perturbada,  mas  ainda  na  circunvisão. Não, 

9
​ “Und zwar soll sie das Seienden in dem zeigen, wie es z​ unächst und zumeist ​ist, in seiner 
durchschnittlichen ​Alltäglichkeit​” S​ uZ, 16
10
  ​Aqui  Heidegger  mostra  que,  primeiro,  o  outro  já  apareceu  nas  análises dos parágrafos anteriores de SuZ e, segundo, 
que  a  sua  resposta  também  já  se  encontra  “de  uma certa maneira preparada”: “”Wenn wir mit Recht sagten, durch die 
vorstehende  Explikation  der  Welt  seien  auch  schon  die  übrigen  Strukturmomente  des  In-der-Welt-seins  in  den  Blick 
gekommen, dann muss durch sie auch die Beantwortung der Wer-frage in gewisser Weise vorbereitet sein.” 117 
11
"O que está aí perante mim", termo utilizado par se aproximar mais do sentido do termo alemão Vorhandenheit. 
os  outros  nos  vêm  ao  encontro  em  sua  lida  ocupacional  com  esses  utensílios,  que  possuem  seu 
significado fundado na lida ocupacional que os descobre enquanto ser-para. Este ser-para (​um zu​)... 
que  remete  sempre  a  um  ​para  quê  (​wozu​),  não  é  somente  ​no  meu  aí  enquanto  ​meu  mundo​,  os 
utensílios  também  são  para  os  outros  e  esses  outros  são  descobertos  justamente  nesse  caráter 
compartilhado  do  mundo.  Vemos  isso  no  exemplo  que Heidegger dá no §15 (parágrafo gramatical 
12): 
“Das  hergestellte  Werk  verweist  nicht  nur  auf  das  Wozu  seiner Verwendbarkeit und das 
Woraus  seines  Bestehens,  in  einfachen  handwerklichen  Zuständen  liegt  in  ihm  zugleich 
die  Verweisung  auf  den  Träger  und  Benutzer.  Das  Werk  wird  ihm  auf  den  Leib 
zugeschnitten, er ‘ist’ im Entstehen des Werkes mit dabei” 
Assim,  o  mesmo  mundo  que  está  disponível  para  mim  e  é  condição  de  possibilidade  da 
compreensibilidade  do  ente  intramundano enquanto tal, também está disponível para os outros. O 
outro  é  co-ser-aí,  ele  também  ​é  ​no  aí  que  também  é  o  meu.  É  na  mesmidade (​Gleichheit​) do ser do 
utensílio para o outro que o mundo se mostra enquanto mundo compartilhado (​Mitwelt​).  
Esclarecendo  um  pouco  mais,  utilizando  o  §26  (parágrafo  gramatical  12),  podemos 
perguntar:  em  que  sentido  os outros são com- e também-aí? Com a preposição “com” (​Mit​) não se 
está  a  falar,  diz  Heidegger,  de  um  “Mit-Vorhandenseins”,  i.e.,  de  um  categorial,  estrutura  de  ser 
própria  de  entes  que  não  possuem  o  modo  de  ser  do  ​Dasein  ​(“​Nichtdaseinmässig​”);  o  Mit,  aqui, 
denota  muito  mais  uma  característica  de  ser  do  ente  que  possui  o  modo  de  ser  do  ​Dasein 
(“​Daseinmässig​”)  de  tal  forma  que  o “​Mit​” ​aponta para o “​Da​” ​— ​que é sempre “​Mitdasein​” ​— já 
é  sempre  compartilhado:  meu  aí  é  o aí que está constitutivamente marcado pela referência a outros 
que  também  compartilham  do  modo  de  ser  da  existência,  de  ter  que  ser  o  aí.  Dessa  maneira,  o 
“​Auch​”  aponta  justamente  para  essa  mesmidade  do  ser  de  ter  o  aí,  de  existir  enquanto 
ser-no-mundo  ocupado  em  uma  circunvisão. Assim, os outros enquanto entes intramundanos que 
possuem também o ser ao modo da existência são M
​ itdasein​, co-ser-aí, copresentes. 
 
5. 
 
Com  o  que foi dito até agora, talvez estejamos preparados para responder a pergunta: como 
é  que  o  ser-só  (​Alleinsein​)  se  instaura  no  ser-aí  cotidiano?  Primeiramente,  é  necessário  notar  que, 
sendo  o  ​Mitsein  ​constitutivo  do  ​Dasein  ​e  condição  de  possibilidade  para  que  o outro se apresente 
como  outro,  i.e.,  um  ​a  priori  que  possibilita  o  “enquanto  outro  como  eu”,  como ​Mitdasein, toda 
noção de solidão terá que se entender a partir caráter de ​Mitdasein ​do ​Dasein​. Desse modo, pode-se 
dizer que a solidão é muito mais algo que acontece ao ​Dasein ou até mesmo uma própria escolha do 
Dasein  e  não  algo  que  deve  ser  encarado  como  ponto  de  partida  superficial  de  um  sujeito  isolado 
que, ​posteriormente​, tece relações com outros. 
Agora,  a  partir  de  então,  a  tarefa  será  analisar  o  que  está  envolvido  na  solidão  do  ​Dasein​. 
Para tal empresa, iremos nos basear nos enunciados contidos no seguinte trecho do §26 de S​ uZ​:  
 
“Das  Mitsein  bestimmt  existenzial  das  Dasein  auch  dann,  wenn  ein  Anderer  faktisch 
nicht  vorhanden  und  wahrgenommen  ist.  Auch das Alleinsein des Daseins ist Mitsein in 
der  Welt.  ​Fehlen  ​kann  der  Andere  nur  ​in  ​einem  und  ​für  ​ein  Mitsein.  Das  Alleinsein  ist 
ein  defizienter  Modus  des  Mitseins,  seine  Möglichkeit  ist  der  Beweis  für  dieses.  Das 
faktische  Alleinsein  wird  andererseits  nicht  dadurch  behoben, dass ein zweites Exemplar 
Mensch  ‘neben’  mir  vorkommt  oder  vielleicht  zehn  solcher. Auch wenn diese und noch 
mehr  vorhanden  sind,  kann  das  Dasein  allein  sein.  Das  Mitsein  und  die  Faktizität  des 
Miteinanderseins  gründet  daher  nicht  in  einem  Zusammenvorkommen  von  mehreren 
‘Subjekten’.  Das  Alleinsein  ‘unter’  Vielen  besagt  jedoch  bezüglich  des  Seins  der  Vielen 
auch  wiederum  nicht,  dass  sie  dabei  lediglich  vorhanden  sind.  Auch  im  Sein  ‘unter 
ihnen’  sind  sie  ​mit  da​;  ihr  Mitdasein  begegnet  im  Modus  der  Gleichgultigkeit  und 
Fremdheit.  Das  Fehlen  und  ‘Fortsein  sind  Modi  des  Mitdaseins  und  nur  möglich,  weil 
Dasein als Mitsein das Dasein Anderer in seiner Welt begegnen lässt” 
 
Através  desses  enunciados  identificamos  dois  tipos  de  solidão:  1.  estar-só  ​perceptivo  ​— ​que 
traduz  o  “nicht  vorhanden  und  wahrgenommen”  ​—    e  2.  a  estar-só  existencial  (​Alleinsein​).  Por 
motivos  metodológicos  começaremos  pela  primeira,  pois  nos  fará  ver  que  o  estar-só  reclama  uma 
abordagem  existencial,  permitindo  que  só  seja  falado  em  solidão  se  analisada  existencialmente. 
Podemos  chamá-la  também  de  solidão  ​ôntica  ​—  ​ou  até  mesmo  solidão  ​superficial  —  ​em 
contraposição  ao  que  seria  a  solidão  ontológica,  singularização  existencial  (​existenziale 
Vereinzelung​), que não será tematizada nesse trabalho.12 
Desse  modo,  visto  que  o  estar-só  se  pode  dizer  de  dois  modos,  tratemos  do  primeiro  para 
ver  que  ele  de  modo  nenhum  se  confunde  com  o  segundo.  O  estar-só  perceptivo,  ou  solidão 
perceptiva,  se  deixa  mostrar  a  partir  de  um  contexto  fenomenal  muito  habitual  e,  na  verdade,  é 
como  de  início  e  na  maioria  das  vezes  alguém  nos  diz  que  “está  só”.  Vejamos  um  contexto 

12
Em que medida uma não tematização da singularização para consideração da solidão considerada
aqui como ôntica é legítima?
fenomenal  para  que  acentuemos  seu  contorno:  “Eu,  ocupado  num  empreendimento  de  mim, 
estou  na  faculdade,  acabaram  as  aulas  por  hoje,  vou  para  casa,  passo  duas  horas  em  transportes 
públicos,  logo  em  seguida  chego  em  casa.  Ao  chegar  em  casa,  cansado,  sem  reparar  muito,  sento e 
vou  assistir  algo.  Passado  algum  tempo,  recebo  a  ligação  de  um  colega,  perguntando  se  pode  vir  a 
minha  casa  e,  para  não  incomodar,  pergunta  se  há  alguém  comigo  e  eu  lhe  respondo:  “Pode  vir, 
estou só”.”  
Ora,  em  que  sentido  eu  falo  que  estou  só?  ​Qual o componente que, na presença dele, faz-me 
estar numa situação de não-solidão e, na sua ausência, na situação de solidão neste caso? 
 
6. 
O  nome  que  especifica  o  tipo  de  solidão  já  nos  fornece  o  caminho.  Eu,  ao  me  ​deparar​, ao 
visualizar  perceptivamente  (olfato,  tato,  visão,  audição  e  etc),  emito  o  enunciado  de  que  estou  só, 
i.e.,  não se dão outras pessoas aí, perante mim e ao meu redor e, portanto, “estou só”. Mas, pelo que 
foi  exposto  da  estrutura  do  ​Mitsein  não  é  um  estar-só  absoluto.  Esse  estar-só  é  muito  mais 
possibilitado  pelo  condicionante  do  ​Mitsein​,  como  o  próprio  Heidegger  diz  “Auch  das Alleinsein 
des Daseins ist ein Mitsein in der Welt” (​SuZ, 1​ 20).  
Assim,  temos  que  esse  componente  que  nos  faz  dizer  “estou  só”  é  não  a  ausência  de  um 
outro  qualquer,  mas  de  um  outro  “como  nós”.  Pois,  neste  caso,  diante  da  presença  perceptiva  de 
outros  “como  nós”,  não  diríamos  “estou  só”  se  quiséssemos  reproduzir  o  mesmo  contexto 
fenomenal.  E  esse  vir  ao  encontro  dos  outros  no  modo  da  ausência  tem  por  plano  de  fundo,  não 
tematizado,  uma  comunidade  já  instituída:  é  o  ​Mitsein  ​possibilitando uma comunidade própria, a 
comunidade  de  casa,  familiar  em que os outros normalmente estão lá, só que dessa vez não e, sendo 
eles  também  outros  como  nós,  não  é  estranho  que  eles  não  estejam  em  casa,  pois  também  tem  o 
mundo  compartilhado  (​Mitwelt​)  como  um  em  causa  para  si,  onde  eles  têm  que  executar  seu  ser 
que  lhe  foi  entregue  e  isso  exige,  para  alguns  mais  e  para  outros  menos,  mas  sempre  em  alguma 
medida, ausentar-se de casa. 
No  entanto,  se  formos  atentarmos  bem  aos  enunciados  de Heidegger, não parece que com 
a  expressão  “​Alleinsein​”  ele  tem  em  mira esse se encontrar só perceptivo. O que nos autoriza a falar 
isso é quando ele diz: 
“Auch  das  Alleinsein  des  Daseins  ist Mitsein in der Welt. ​Fehlen ​kann der Andere nur ​in 
einem  und  ​für  ​ein  Mitsein.  Das  Alleinsein  ist  ein  defizienter  Modus  des  Mitseins,  seine 
Möglichkeit ist der Beweis für dieses.” 
 
Assim,  nos  detenhamos  neste  último  período.  “O  estar-só  (​Alleinsein​)  é  um  modo 
deficiente  do  ​Mitsein​”.  Mas,  vendo  a  solidão  que  dissemos  ​perceptiva  e  seu  correspondente 
contexto  fenomenal,  conclui-se  que  não  houvenenhuma  fratura  do  ​Mitsein​,  i.e.,  um  modo 
deficiente  (​ein  defizienter  Modus​),  pois  a  ausência  perceptiva  ou  o  simplesmente  não  dar-se  dos 
outros,  que  são  ocorrências  ônticas,  não  podem  alterar  em nada o ​Mitsein​, pois este é justamente a 
condição  de  possibilidade  para  o  aparecimento  enquanto  não  serem  percebidos  e  não  serem 
simplesmente  dados.  Além  disso,  vimos  no  contexto  fenomenal  que  “esse  vir  ao  encontro  dos 
outros  no  modo  da  ausência  tem  por  plano  de  fundo,  não  tematizado,  uma  comunidade  já 
instituída”;  no caso do exemplo, a comunidade familiar, doméstica ​— marcada pela não surpresa da 
cotidianidade.  Assim,  já  que  o  ​Alleinsein  ​que  está  sendo  descrito  na  situação  não  é  o  da  mera 
ausência  perceptiva,  ainda  que  digamos  “estou  só”  quando  isso  se  dá,  qual  o  contexto  fenomenal 
para  que  Heidegger  está  apontando  quando  ele  fala  de  um  ​Alleinsein  ​como  modo  deficiente  do 
Mitsein​? 
Assim, só em parte pode-se dizer que a solidão ​perceptiva é de fato uma solidão. Na verdade, 
o  contexto  fenomenal  do  dito  “estou  só”  poderia  se  referir  a  um  outro  cenário  que  a  dita  solidão 
perceptiva em nada seria determinante. Vejamos. 
“É  sábado,  não  há  aulas  universidade.  Saio  para  passear  um  pouco,  pensar  e  como  meus 
amigos  estão  ocupados,  saio  ​sozinho​,  vou  até  o Marco Zero, Recife Antigo. Chegando lá, sento-me 
num  banco  e  ponho-me  a  observar  com  a  circunvisão  espraiada  e  solta.  Vejo  pessoas  que  se 
entretêm  em  conversas,  casais  jovens  apaixonados  olhando  para  o  belíssimo  horizonte ornado pela 
desconcertante  estrutura  de Brennand. Em suma, estou cercado de pessoas que estão absorvidas em 
seu  círculo  social.  No entanto, digo: “estou me sentindo tão só”.” Mas há, perceptivamente pessoas 
ao  meu  redor,  diferentemente da primeira situação e, porém, mais só que nunca. O que surpreende 
nessa  situação  é  que  essas  saídas  se  repetem  e  nem  sempre  me  sinto  só,  muito  embora  sempre 
quando  não  tem  aula  costumo  passear  no  Antigo,  não  acompanhado.  O  que  mudou  para  que, 
dessa vez, me sinta só?13 
Ainda  que  as  expressões  sejam  confundidas  e  pronunciadas  muitas  vezes  sem  nenhuma 
distinção,  dizemos  ​na  maioria  das  vezes  “estou  só”  quando  estamos  ​perceptivamente  ​só;  já  o  dito 

13
  Uma objeção possível que simplificaria a questão e domesticaria o mistério seria a de que me sinto só somente porque 
não  estabeleci  nenhum  tipo  de  relação  com  as  pessoas  ao  meu  redor.  Aceitaria  de  bom  grado  tal objeção, no entanto, 
ficaria ainda questionável o poder do estabelecimento de relações para mitigar a referida solidão, pois nada mais comum 
que nos sentimos só mediante a melhor confraternização com nossos colegas de longas datas. 
“estou  me  sentindo  tão  só”,  normalmente  é  proferido  em  situações  que  independem  da  presença 
perceptiva  ou  não  de  pessoas,  de  seu  aparecimento,  como  foi  descrito  neste  último  contexto 
fenomenal.  Assim,  nessa  situação  que  traduz  mais  adequadamente  o  que  aqui  entendemos  por 
solidão  ôntica,  o  componente  que  faz  passar  da  não-solidão  à  solidão  e  vice-versa  ​não  é  o 
aparecimento,  a  presença  perceptiva  fática  dos  outros,  mas  um  outro  elemento​.  E  parece ser para isso 
que Heidegger aponta ao dizer:  
“Das  faktische  Alleinsein  wird  andererseits  nicht  dadurch  behoben,  dass  ein  zweites 
Exemplar  Mensch  ‘neben’  mir  vorkommt  oder  vielleicht  zehn  solcher. Auch wenn diese 
und noch mehr vorhanden sind, kann das Dasein allein sein.” 
Ainda  que  Heidegger  não  diga  explicitamente  o  que  está  em  jogo  no  ​Alleinsein  ele  nos 
fornece  indicações  que  nos  permitem  desenvolver  a  questão.  1. O ​Alleinsein ​se dá numa referência 
ao  ​Mitsein​,  i.e.,  num  modo deficiente deste, 2. o aparecimento do outro sob a estrutura “enquanto 
outro”  é  possibilitado  pela  condição  que  é  o  ​Mitsein  e  3.  o  ​Mitsein​,  em  última  análise,  é 
constitutivo  do  ser  do  ser-aí,  caracterizado  por  ser  seu  ser  em  jogo  e,  por  isso,  como  dissemos, está 
ocupado  num  empreendimento  de  si,  num cuidado de si, num em virtude de (​Worumwillen​), que 
condiciona  o  aparecimento  de  tudo  que  nos  vem  ao  encontro.  Assim,  o  ​Alleinsein  ​deve  ser 
abordado  mais  uma  vez  tendo  presente  esses  tópicos  resultados das análises anteriores, i.e., deve ser 
abordado de maneira existencial. 
Assim,  temos  que  o  ​Alleinsein  ​é  um  fenômeno  possibilitado  pelo  ​Mitsein  ​e  se  dá  em 
referência  a  ele.  Além  disso,  também  vimos  que  o  ​Mitsein  ​é  algo  que  permite  que  encontremos  o 
outro enquanto ​Mitdasein e isso é possível porque o ​Da​, aberto como o em virtude do qual eu sou, 
é  também  o  em  que  os  outros  se  apresentam como também compartilhando do mesmo mundo ao 
modo  de  um  em  virtude  de…  Assim,  analisando  bem,  a  convivência  (​Miteinandersein​),  a 
comunidade  é  possibilitada  pelo  ​Mitsein​;  ​e  o  ​Alleinsein,  ​por  sua  vez,  ​se  dá  com  referência  ao 
Mitsein e, mais especificamente, numa fratura dele. Malgrado o ​Alleinsein ​seja uma perturbação do 
Mitsein​,  não  é  aquela  perturbação,  insignificância  total  (​Unbedeutsamkeit​)  trazida  pela 
singularização  (​Vereinzelung​)  que  atinge  o  mundo  aquilo  que  proporciona  a  familiaridade  tanto 
com  os  entes  intramundanos  do  qual  nos  ocupamos,  do  qual  nos  preocupamos  e  de  nós mesmos. 
Essa  fratura  do  ​Mitsein  ​é  menos abrangente. Ela não põe em jogo o mundo enquanto horizonte de 
sentido  do  aí,  mas  muito mais faz com que o outro me venha ao encontro enquanto ​Mitdasein​, ele 
estando  presente  perceptivamente  ou  não,  no  modo  da  falta.  No  entanto,  o  que  possibilita  essa 
deficiência  do  ​Mitsein  ?  Heidegger  não  nos  deixa  com  respostas,  apenas  diz  que,  nesse  caráter 
deficiente do M
​ itsein​ o outro se apresenta como estranho. 
   
Apêndice 
 
Solidão cotidiana 
 
resumo:  ​O  objetivo  deste  trabalho  é  analisar  existencialmente  o  contexto  fenomenal  contido  na 
expressão  habitual  e cotidiana “estou só”, ou “estou me sentindo só”. Para isso, procurarei primeiro 
afastar  uma  noção  vulgar  de  solidão,  a  solidão perceptiva, para, a partir desta, tentar nos aproximar 
existencialmente do que compreendo aqui como solidão cotidiana. 
 
Para  analisar  existencialmente14,  i.e.,  analisar  objetivando  extrair  as  estruturas  ontológicas 
do  ser-aí  sozinho  na  cotidianidade,  faz-se  necessário  um  contexto  fenomenal  privilegiado.  Para 
selecionar  este,  me  guiarei  pela  compreensibilidade  elaborada  numa  interpretação  desse  contexto 
fenomenal  que  traga  a  expressão,  comunicada  ou  não,  mas  formulada  “estou  só”  ou  estou “estou 
me  sentindo  só”.  Por  mais  que  considere  a  última  formulação  mais  acurada  para  exprimir  o  que 
está  sendo  analisado,  por  vezes  também  a  primeira  é  usada  para  traduzir  a  mesma  situação.  Desse 
modo,  vou  elaborar  uma  situação  cotidiana  que  dá  fundamento  a  essas  formulações  para  que 
analisemos os existenciais que estão em jogo. Ei-la: 
“Segunda-feira  chuvosa,  estou  na  universidade,  chego  na  sala  de  aula,  sento-me. Confiro o 
relógio,  vejo  que  cheguei  cedo  na  aula  e  não  há  ninguém  ainda,  nem  o  professor,  só  deixaram  a 
porta  aberta.  ​Estou  só  ​na  sala  de  aula.  Não  demora  muito,  começam  a  chegar  os estudantes, alguns 
me  cumprimentam  e vejo que o professor apenas tinha ido buscar algo que esqueceu em sua sala. A 
sala  já se encontra preenchida, estou rodeado por uma dezena de estudantes e, em meio às conversas 
paralelas  dos  estudantes,  simplesmente  olho  para  o  quadro  e  ​me  sinto  só​. A partir de então, é como 
se  estes  estudantes,  colegas  meus,  fossem  pessoas  que,  não  obstante  conhecidos,  não  me 
oferecessem  uma  familiaridade  total  e  completa;  muito  pelo  contrário,  eles  me  vem  ao  encontro 
enquanto  conhecidos,  mas  como  na  não-familiaridade,  como  se  o  que  nos  unia  fosse  atingido por 

14
​Claramente  se  fala  na  analítica  existencial  tal  como  desenvolvida  por  M.  Heidegger  em  ​SuZ​,  mas,  para  clareza  e 
fluidez  do  empreendimento  que  está  sendo  pedido,  faz-se  necessário  abandonar  a  rigidez  conceitual  e  deixar  a  análise 
correr  livremente,  sem  entraves.  Isso  se  faz  necessário  para  que  o  contexto  fenomenal  seja  visto  a  partir  de  si  mesmo, 
antes  que  construído  artificialmente  seguindo  um  roteiro  de  existenciais  presentes  em  ​SuZ​;  e,  assim,  posteriormente, 
reclame  naturalmente  em  seu  auxílio  os  indicativos  formais  heideggerianos.  Em  outras  palavras,  não  invertamos  a 
ordem:  compreensão  existencial  pressupõe  necessariamente  compreensão  existenciária,  mas  a  compreensão 
existenciária,  não  pressupõe  uma  compreensão  existencial  elaborada  em  conceitos  e  etc…  A  compreensão  existencial 
segue  a  extensão  aberta  pela  compreensão  existenciária,  i.e.,  vai  ao  seu  encalço  procurando  existenciais  e  não  o 
contrário. 
algo  que  não  sei  explicar.  Em  síntese,  de  repente,  é  como  se  eu  visse  a  nossa  própria  relação,  mas 
como  algo  estranho.  A  aula,  então,  começa  e  me  concentro  no  seu  conteúdo  e  começo  a  anotar. 
Logo aquela sensação se esvai e restabeleço a comunhão com os homens.” 
Neste  breve  relato  de  uma  segunda-feira  em meio a universidade, houve duas situações que 
foram  interpretadas  de  modo  a  possibilitar  o  “estar  só”.  Há  uma  ambiguidade  proposital.  Pela 
análise  da  ambiguidade  vou  colocar  em  relevo  o  contraste  que  permitirá  descobrir  o  que  se  está 
querendo  dizer  propriamente  com  “solidão  cotidiana”.  Delimitando  terminologicamente, 
designaremos  a  primeira  situação  em  que isso acontece por ​solidão perceptiva ​e, a segunda, somente 
solidão​.  
Primeiro,  temos  que  caracterizar  este  ente  que  está  na  universidade,  que  experiencia 
faticamente  essa  situação,  a  compreende  e  elabora  a  compreensão  numa interpretação de tal modo 
que  seja  possível  esse  relato. Pode-se dizer que esse ente, eu, tem o seu ser como tarefa, i.e., eu tenho 
o  meu  ser  em  jogo,  pois,  diante  de  várias  possibilidades  nas  quais  o  passado  me  legou,  eu  me 
projetei,  abrindo  a  possibilidade  de  ser  estudante  numa  universidade.15  Assim,  eu  tenho  o  meu ser 
ao  modo  de  um  poder-ser  em  meio  a  possibilidades  legadas  pela  tradição  e  a liberdade de abri-las e 
realizá-las  de  tal  modo  que,  aquilo  que  me  vem  ao  encontro,  é  compreendido  em  virtude  desse 
poder-ser  que  foi  desformalizado  no  ser-estudante-de-uma-universidade,  em  virtude  até mesmo de 
um  poder-ser  ulterior  que,  por  ora,  não tematizo. De certa forma, eu já me compreendo, ainda que 
não  conceitualmente,  em  algum  grau,  com  alguma  clareza;  i.e.,  eu  vou  para  universidade  não 
inseguro  quanto  a  quem  sou,  mas  seguro,  realizando  minhas  possibilidades  num  mundo 
caracterizado pela familiaridade.  
Assim,  com  meu  ser  compreendido  explicitamente  e  de  alguma  maneira  ao  modo  de  uma 
relação  de  ser  com  meu  próprio ser, eu o estou sempre realizando ao modo de um poder-ser. Nisso, 
não  me  realizo  através  de  possibilidades  lançadas  no  ar,  mas,  como  foi  dito,  num  mundo,  aberto 
pelo  meu  projeto  numa  dada  possibilidade,  que  libera os entes intramundanos em seu ser ao modo 
da  familiaridade.  Além  disso,  esses  entes  intramundanos  não  são  indistintos quanto a seu modo de 
ser,  há  dentre  eles  diferenças  fundamentais.  O  assento  na  sala  de  aula  já  me  aparece  previamente 
compreendido,  liberado  em  seu  ser  como  aquilo  em  que  vou me acomodar confortavelmente para 

15
É claro que não é tão simples assim. Nem todos têm o acesso à universidade, por mais que queiram. Mas, no caso 
referido, há essa possibilidade que se me apresenta como possível, tanto que é nela que me engajo e a partir dela que me 
compreendo. 
tirar  máximo  proveito  da aula, i.e., já compreendido a partir de um todo conjuntural: universidade, 
sala de aula, etc... 
Os  outros  estudantes,  por  sua  vez,  que  entram  na  sala,  fazem  parte  da  comunidade 
acadêmica  em  que  vivo,  não  me  aparecem  como  utensílios  para  algo.  Eles  me  vêm  ao  encontro 
muito  mais  como  “outros  como eu”. Eles têm esse mundo ao modo de um projeto, o mundo de tal 
forma  aberto,  liberado  por  um  em  virtude  de  um  poder  ser  que  é  o  deles.  Assim,  tal  como  para 
mim,  o  mundo,  em  sua  estrutura  enquanto significância familiar em que me movo, também ​é ​para 
os  outros  como  eu;  e  isso  tanto  é  assim  que  os  outros  também  utilizam  assentos  da  mesma  forma 
que  eu, também estudam numa universidade, a sala lhes vem ao encontro também para assistir uma 
aula  e  eles  também  esperam  o  professor  começar  falar.  De  tal  forma  que  esse  mundo  me  aparece 
muito  mais  como  um  mundo  compartilhado  em  que  se  dão  outros  como  eu.  Além  disso,  não  é 
nenhuma  surpresa  que,  a  partir  de  tal  momento,  eles  comecem  a  entrar  na  sala  de  aula  em  que  eu 
estou;  eles,  de  certa  forma,  já  estavam  presente,  ainda que de modo não temático, pois, na primeira 
formulação,  ao  dizer  que  eu  estava  só,  eles  já  me  vieram  ao  encontro,  mas  na  ausência  ao  não  os 
perceber​. E é assim que digo que estou só, i.e., ao olhar ao meu redor na sala de aula.  
Em  seguida,  essa  solidão  perceptiva  logo  desaparece,  os  estudantes  entram  na  sala,  está  na 
hora  da  aula.  No  entanto,  em  meio  a  cumprimentos,  conversas,  parece  que  outra  coisa  tem  lugar, 
outro fenômeno; e tanto é assim que dou-me conta de que eu, na situação anterior, não estava só. A 
sala  é  preenchida,  como  foi  dito,  e,  ainda  sim,  há  algo  que  compreendo  e  interpreto,  algo  que  é 
aberto  e  me  faz  sentir  só.  Então,  o  que  é  isso  que  não  se deixa mitigar apesar da presença de outros 
como  eu,  tanto  perceptivamente  como  ao  modo  de  um  ter  uma  relação  com  eles?  Qual  é  o 
elemento a mais que, em meio a presença fatual de outros ao meu redor pode fazer, na sua presença, 
eu  não  me  sentir  só  e,  na  sua  ausência,  ​eu  me  sentir  só​?  É  como  se  a  referência  à  estrutura  que 
possibilita  que  o  outro  me  venha  ao  encontro  como  um”  outro  como eu” e, mais ainda, enquanto 
um  outro  familiar  que  faz  parte  do  meu  convívio,  fosse  fraturada;  as pessoas tão familiares ao meu 
redor  perdem  essa  não  surpresa  e  se  apresentam  numa  falta  de  familiaridade  tão  radical  que 
nenhum  desconhecido  seria  capaz  de  suscitar, pois ainda sim, seria um desconhecido, algo habitual 
e cotidiano que não me causa estranheza alguma.  
Malgrado  esse  ​sentir-se  só​,  como foi dito no relato do contexto fenomenal, ao me engajar na 
ocupação,  a  não  familiaridade  logo  é  esquecida,  posta  em  segundo  plano  e,  na  verdade,  não  é  que 
algo  que  tenha  mudado,  mas  aquilo  só  não  mais  está  em  relevo  no  âmbito  da  minha  preocupação 
(​Fürsorge​).  Por  isso  digo:  “Logo  aquela  sensação  se  esvai  e  restabeleço  a  comunhão  com  os 
homens”. 
Acaso  não  é  o  meu  empreendimento  de mim, a desformalização do meu poder-ser que, em 
sua  estrutura  projetiva,  libera  o  horizonte  a  partir  do  qual  os  outros  podem  me  vir  ao  encontro 
segundo  suas  possibilidades?  E,  neste  caso  do  “outro  como  eu”, nas possibilidades de convivência? 
De  fato,  talvez  exista  alguma  ​verdade  nisso  e  também  no  “sentir”  do  “sentir-se  só”,  pois  só  assim, 
por meio de uma disposição posso colocar-me diante de mim mesmo e tematizar o poder-ser que eu 
sou  e  os  outros  sairem  da  sua  não  surpresa  no  modo  da  estranheza.  Assim,  poderia  falar  que  a 
fratura  do  ​Mitsein  ​aponta  muito  mais  para  o  si-mesmo  que  o  ser-aí  tem  de  ser.  Mas  com  isso  não 
acredito  ter  alcançado  a  questão.  O  instante  seguinte  que  faz  com  que  essa  solidão  se  dissipe,  tal 
como  foi  descrito,  é  muito  mais  um  esquecimento  e  entrega  aos  afazeres  que  uma  espécie  de 
solidão, ela vai voltar... 
Com  isso,  terminamos o fim da análise existencial do contexto fenomenal trazido por mim, 
haurido  de  um  dia  na  UFPE. Porém, antes de terminar, gostaria de fazer uma síntese do saldo dessa 
análise.  
Primeiro,  foi,  a  partir  da  análise,  possível  dar  alguns  traços  essenciais  do  ser  desse  ente  que 
existe  e  que  vai  a  Universidade. Segundo, a partir desses traços gerais, foi visto de que modo ele tem 
ao  mundo,  ao  modo  de  uma  significância  com  que  nos  relacionamos  ao  modo  de  uma 
familiaridade e aberta por uma resposta a tarefa de ser de um ente que tem de ser o ser que se é de tal 
modo  que  seu  ser,  na  medida  em  que  ele  é,  não  lhe  é  indiferente.  Em  seguida,  nesse  mundo,  foi 
visto  que  há  entes  intramundanos  que  não  são  irredutíveis,  quanto  ao  seu  modo  de  ser,  uns  aos 
outros.  Há  utensílios,  coisas  das  quais  não  faço  nenhum  uso  e  também  há  entes  intramundanos 
que  são  tal  como  o  ente  que  vivenciou a situação. E, este último modo de ente, aparece muito mais 
a  partir  de  uma  convivência, como entes com que o mundo é compartilhado. Por último, que foi o 
que  estava  sendo  buscado,  foi  analisado  este  ente  numa  situação  peculiar,  a  que  caracterizamos 
como  uma  ​solidão  cotidiana  e  que,  como  vimos,  pode  ser  entendida  a  partir  de  uma  ​fratura, 
perturbação,  deficiência  daquela  estrutura  que  permite  a  este  ente  a  comunhão, a convivência com 
os  outros  em  geral  e,  mais  particularmente,  com  outros  específicos,  seus  colegas  da  universidade. 
No  entanto,  o  que  falta  responder  é,  o  que  é  que  se  deu  para  que  essa  estrutura  se  apresente 
perturbada  em  seu  apresentar  os  outros numa familiaridade que não salta aos olhos? Isso ainda não 
sabemos. 
 
 
 
  
 
 
   
 
 
 
Bibliografia  
 
P.  A.  LIMA,  ​Heidegger e a fenomenologia da solidão humana ​(Tese de Doutoramento apresentada 
à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa), vol. I, Lisboa, 2012. 
P.  A.  LIMA,  ​Heidegger e a fenomenologia da solidão humana (Tese de Doutoramento apresentada 
à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa), vol. II, Lisboa, 2012. 
von  HERRMANN,  F.-W.,  ​Hermeneutische  Phänomenologie  des  Daseins:  Eine  Erläuterung  von 
“Sein  und  Zeit”​,  Band 1: ​“Einleitung: Die Exposition der Frage nach dem Sinn von Sein”​, Frankfurt 
am Main, Vittorio Klostermann, 1987. 
von HERRMANN, F.-W., ​Hermeneutische Phänomenologie des Daseins: Ein Kommentar zu “Sein 
und  Zeit”​,  Band  2: “Erster Abschnitt: Die vorbereitende Fundamentalanalyse des Daseins” (§9-§27)​, 
Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 2005. 
HEIDEGGER,  M.,  ​Sein  und  Zeit​.  Tübingen,  Max  Niemeyer,  1927,  18.  Auflage,  unveränderter 
Nachdruck  der  15.  durchgesehenen  Auflage  mit  Randbemerkungen  aus  dem  Handexemplar  des 
Autors im Anhang 2001. 
 
 

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