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resumo: O trabalho visa ao desenvolvimento da noção de Alleinsein que, segundo procuraremos mostrar, é usada para
designar o contexto fenomenal da ocorrência ôntica da solidão, presente no §26 de Sein und Zeit. Para isso, será
necessário desenvolver algumas determinações fundamentais do ser-aí e delimitar metodologicamente a análise. Após
trabalhadas algumas noções, nos encontraremos em condições de expor a noção de Alleinsein, aqui chamada de solidão
cotidiana.
1.
Um bom modo de introduzir a questão referida no título do presente trabalho é, primeiro,
situar os termos na analítica existencial heideggeriana1 presente na primeira seção da primeira parte
de Sein und Zeit. Em seguida, falar brevemente sobre a caráter da analítica existencial e em que
medida ela poderá responder nossa indagação.
Por analítica existencial está sendo entendido o esforço fenomenológico-hermenêutico de
extrair, a partir da análise de como nos movemos de início e na maioria das vezes, existenciais, i.e.,
estruturas ontológicas fundamentais do ente que possui o modo de ser da existência. Creio que com
essas palavras só tenhamos multiplicado as dificuldades. Prossigamos. A tarefa, possuindo
enquanto conceito de método o fenomenológico, busca falar de tal modo que o falado seja extraído
a partir daquilo sobre que fala, mostrando e deixando ver o ser do ente tal como se mostra em si
mesmo e a partir de si mesmo; é, além disso, hermenêutico na medida em que não somente haure
estruturas de ser, mas interpreta-lhes o sentido (SuZ §7). Daí também, num certo sentido, falarmos
em esforço, pois nada mais comum do que determinações estranhas ao tipo de abordagem
querendo ter lugar dentro de uma análise de tal caráter.2
Porém, ainda poderia surgir a dúvida sobre o ponto de partida da analítica, presente na
seguinte pergunta: onde iremos buscar o contexto fenomenal sobre o qual irá se deter analítica?
Como foi dito, o existente num modo não tão peculiar quanto a possibilidade de ser no modo do
conhecimento, i.e., na abordagem considerativa3, mas o ser-aí na lida ocupacional sempre executada
1
De início será bom notar que iremos manter afastado a preocupação da analítica existencial com a pergunta do ser em
geral, não porque isso não seja importante, mas, sim, pela intenção e economia exigidas pelo trabalho.
2
O que lembra um pouco Descartes e seu contínuo e intenso esforço de manter afastadas os preconceitos e preservar os
resultados das meditações.
3
Aqui é necessário chamar atenção que não se está querendo dizer que o ser-aí engajado na abordagem considerativa,
científica, a saber, no modo do demorar-se junto a… que busca visualizar a configuração do ente, não está de algum
modo imbuído numa certa lida ocupacional em virtude de um empreendimento de si; as, sim, queremos dizer que não
é o modo como o ser-aí se ocupa de início e na maioria das vezes com os entes.
em virtude de um empreendimento de si4 consciente ou não. Assim, é lá que a analítica existencial
irá buscar as estruturas fundamentais do ente que existe, estruturas que não são acidentais, mas sim
existenciais que se mantêm constante em cada modo de ser do existente enquanto determinações
do seu ser. 5
2.
Situamos nosso trabalho na analítica existencial, acenamos para o modo da abordagem,
indicamos onde iremos buscar o contexto fenomenal e o que a analítica procura com isso. Agora a
tarefa é falar de algumas das características fundamentais de ser do ente que nos parágrafos
anteriores foi dito sendo no modo de ser da existência, o ser-aí (Dasein). Para a caracterização deste,
usaremos alguns enunciados presentes em SuZ. Dessa maneira, partiremos do segundo parágrafo
gramatical do §4 de SuZ:
“Das Dasein ist ein Seiendes, das nicht nur unter anderem Seienden vorkommt. Es ist
vielmehr dadurch ontisch ausgezeichnet, daß es diesem Seiendem in seinem Sein um dieses
Sein selbst geht. Zu dieser Seinsverfassung des Daseins gehört aber dann, daß es in seinem
Sein zu diesem Sein ein Seinsverhältnis hat. Und dies wiederum besagt: Dasein versteht
sich in irgendeiner Weise und Ausdrücklichkeit in seinem Sein. Diesem Seienden eignet,
daß mit und durch sein Sein dieses ihm selbst erschlossen ist. Seinsverständnis ist selbst eine
Seinsbestimmtheit des Daseins. Die ontische Auszeichnung des Daseins liegt darin, daß es
ontologisch ist.”
Como ponto de partida para caracterização deste ente, podemos dizer que o Dasein não é
um ente entre outros (plantas, animais, números, coisas naturais), i.e., ele se distingue dos demais
entes. Essa distinção consiste em ter de ser o seu ser ao modo de uma tarefa,i.e., ter o seu ser
4
“Empreendimento de si” está querendo designar a estrutura projetiva da compreensão, i.e.,o em virtude de…
horizonte de toda significância aberto pela estrutura básica da compreensão (Cf. §31). Prefiro falar de empreendimento
de si na medida em que vejo que transmite uma ideia de transitividade, processo, estar a caminho, esboço remodelável;
o que não acontece na palavra projeto, que dá uma ideia de plano pré-concebido, traçado, pensado, refletido e
completo.
5
Talvez essa breve introdução para situar a questão se deixe reconduzir às poucas palavras de Heidegger na seguinte
passagem: “Die Zugangs- und Auslegungsart muß vielmehr dergestalt gewählt sein, daß dieses Seiende sich an ihm
selbst von ihm selbst her zeigen kann. Und zwar soll sie das Seiende in dem zeigen, wie es zunächst und zumeist ist, in
seiner durchschnittlichen Alltäglichkeit. An dieser sollen nicht beliebige und zufällige, sondern wesenhaft Strukturen
herausgestellt werden, die in jeder Seinsart des faktischen Daseins sich als seinsbestimmende durchhalten. Im Hinblick
auf die GrundVerfassung der Alltäglichkeit des Daseins erwächst dann die vorbereitende Hebung des Seins dieses
Seienden”. Cf SuZ p 16-17.
marcado pelo caráter de estar em jogo.6 Pode-se, portanto, dizer que o Dasein é de tal modo que,
sendo, seu ser não lhe é indiferente, mas sim “algo” em virtude do qual ele se ocupa, traz um
cuidado (Sorge). Além disso, como um complemento desse primeiro caráter positivo do ser do
Dasein, i.e., ter o ser como tarefa, pertence ao ser do Dasein ser uma relação de ser com seu próprio
ser. Em outras palavras: o ser-aí não é um algo que ademais teria uma relação com seu ser, mas ele
mesmo é essa relação de ser com seu próprio ser.
Com isso, temos duas caracterizações positivas do ser do Dasein: 1. ter o seu ser em jogo e 2.
ter esse ser ao modo de uma relação de ser com seu próprio ser. Como resultante dessas duas
caracterizações, podemos concluir daí que, na medida em que o ser-aí tem o seu ser como tarefa e
essa tarefa é realizada ao modo de uma relação de ser com seu próprio ser, esse ser por meio do qual
o ser-aí se perfaz está de certa forma já sempre sendo pré-compreendido ou melhor: aberto
(erschlossen) — ainda que de modo não temático e muito menos enquanto alvo de uma abordagem
conceitual, embora seja a condição de possibilidade desta.
Assim, chegamos ao caráter de abertura do Dasein. Heidegger não diz, neste parágrafo, que
o ser do Dasein está aberto pura e simplesmente, mas, sim: “Diesem Seienden eignet, daß mit und
durch sein Sein dieses ihm selbst erschlossen ist.”(SuZ, 12. Grifo meu) Ou seja, o ser do Dasein está,
com (mit) e através (durch) do seu próprio ser, aberto. Com isso entendemos que Heidegger está
fazendo alusão ao caráter de p rojeto-lançado que caracteriza o ser do D
asein.
Assim, por um lado, quando se diz que o ser-aí está aberto com seu ser, se está querendo
dizer que o caráter de ter de ser o ser que se é é algo com o qual não podemos nos desfazer, não
podemos abdicar disso, comporta um elemento de passividade: o ser-aí está lançado como ente que
tem o seu ser ao modo de uma tarefa. Por outro, temos uma uma dimensão ativa, o ser-aí está
através do seu ser aberto. Desse modo, podemos dizer que, lançado, o ser-aí, por meio do seu ser,
abre essas possibilidades e as realiza. Assim, na medida em que o ser-aí é lançado na abertura do seu
próprio ser, ele pode — e já sempre o fez — se relacionar com seu próprio ser perfazendo e abrindo
as possibilidades de realização do seu próprio ser, dando uma resposta a tarefa de ser que lhe foi
entregue. Portanto, a partir do que foi exposto podemos dizer junto com Heidegger que “a
compreensão de ser é ela mesma uma determinação de ser do Dasein” (SuZ 12). E esse ser com o
6
Com esse caráter de tarefa não se está tentando exprimir outra coisa que não o seguinte enunciado: “dass es diesem
Seiendem in seinem Sein um dieses Sein selbst geht” S uZ p 12. Sobre o caráter de tarefa traduzido por essa expressão cf.
von HERRMANN, F.-W., Hermeneutische Phänomenologie des Daseins: Eine Erläuterung von “Sein und Zeit”,
Band 1: “Einleitung: Die Exposition der Frage nach dem Sinn von Sein”, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann,
1987. p 104
qual o ser-aí sempre pode se relacionar dessa ou daquela maneira e sempre já se relacionou de
alguma maneira é o que se designa por existência (Existenz). O ente que é chamado de ser-aí tem o
seu aberto com o seu ser lançado e através do ser projetado. Na abertura lançada do seu ser está em
jogo, ao modo de uma abertura projetiva, a abertura do seu próprio ser.
Um aspecto último dessa caracterização prévia do Dasein será o ser-em-um-mundo
(Sein-in-einer-Welt) que faz parte de sua constituição existencial fundamental. Esse “em”, no
entanto, não significa ser dentro de outro ente, como se mundo fosse um ente. Aqui está a
diferença entre “sein in” e “in-sein”, sendo o primeiro utilizado para denotar a relação de dois entes
intramundanos destituídos do modo de ser do ente existente e, o segundo, para falar da relação que
o ser-aí tem com seu mundo. Ser-no-mundo é um caráter de ser do próprio Dasein. A estrutura
ontológica da mundanidade do mundo, pertencente ao próprio Dasein, pode ser descrita como
uma totalidade referencial, significância (Bedeutsamkeit) (SuZ §18). Brevemente, essa significância,
por sua vez, pode ser entendida como uma totalidade referencial aberta pelo horizonte resultante da
estrutura projetiva da compreensão, i.e., aquilo que vem ao encontro do Dasein é previamente
compreendido enquanto empregável7 num para quê específico que, por sua vez e em última
análise, remonta a um em virtude de (Worumwillen), uma possibilidade de seu próprio ser
enquanto desformalização do poder-ser que lhe foi entregue com e através da abertura de seu
próprio ser. Assim, pode-se dizer que a estrutura da mundanidade do mundo e, consequentemente,
o ser dos entes intramundanos que é compreendido através dela, está intrinsecamente relacionada
com a compreensão que o ser-aí tem de seu próprio ser.8
3.
Mas como é o ser-aí na lida ocupacional cotidiana? Ou ainda, o que se está querendo dizer
com lida ocupacional? Comecemos por esta última questão. O ser-aí na sua lida ocupacional é
aquele ente existente que, cuidando de um empreendimento de si – de maneira explícita ou não –,
tem na ocupação cotidiana o meio de o realizar por meio do emprego, empenho ocupacional com
entes intramundanos(SuZ 56,57). O ser desses entes que nos vêm ao encontro, nesse empenho
cotidiano do ser-aí, possui o modo de ser do utensílio (Zeug), i.e., é um ente para um para quê
específico que se apresenta numa determinada conjuntura (Bewandtnis) específica.
7
No caso de utensílios, como iremos ver.
8
“Kein Existenz-Verständnis ohne Welt-Verständnis und umgekehrt”, Cf. cf. von HERRMANN, F.-W.,
Hermeneutische Phänomenologie des Daseins: Eine Erläuterung von “Sein und Zeit”, Band 1: “Einleitung: Die
Exposition der Frage nach dem Sinn von Sein”, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1987. p 130
É importante ressaltar que, embora nos parágrafos que irão ser tratados na análise do
ser-sozinho cotidiano (alltägliches Alleinsein), a cotidianidade apareça como associada a
impropriedade, aqui irá se manter afastada a identificação necessária entre cotidianidade e
impropriedade. Em outras palavras, ao se dizer cotidiano se está mais delimitando
metodologicamente, ou melhor, assegurando a sua não distorção para uma possível análise
existencial. Assim, vemos o substantivo abstrato “Alltäglichkeit” sendo 1. usado em §5 (parágrafo
gramatical 6) para assegurar o modo de acesso ao ser do ser-aí contra qualquer ideia de ser que não
seja extraída do próprio ente, mas projetada.9 E Heidegger identificará esse Dasein cotidiano como
um modo de lida ocupacional, de caráter ateorético.
4.
Assim, temos um ponto de partida para identificar a tematização do “outro como eu” que,
como iremos ver, já estava sempre pressuposto10 como resultado do dar-se do mundo: 1. A partir
do modo mais próximo de ser do ser-aí, a cotidianidade; e 2. a partir da constituição fundamental
do ser-no-mundo. Além disso, a análise do outro irá concentrar-se no §26.
Aqui (§26, parágrafo gramatical 1) é mostrado que esse momento estrutural do mundo, do
ser-com, já foi anteriormente (§15, parágrafo gramatical 12) evidenciado na análise da
mundanidade do mundo. No entanto, falta esclarecer como o ser-com é constitutivo do ser do
ser-aí enquanto ser-no-mundo e, além disso, como esse co-ser-aí nos vem ao encontro na
cotidianidade mediana.
É curioso observar também, que já no §15 os outros não nos vem ao encontro de maneira
temática, muito menos enquanto percepção de corpos, mas, sim, de modo não temático, implícito,
a partir da não surpresa da circunvisão. Além disso, esse outro não vem ao encontro no modo de ser
da manualidade ou perantidade11 (Vorhandenheit); como acontece, no primeiro caso, com a
ocupação subordinada a uma circunvisão aberta numa malha referencial de uma conjuntura
própria e, no segundo, quando essa referência se acha perturbada, mas ainda na circunvisão. Não,
9
“Und zwar soll sie das Seienden in dem zeigen, wie es z unächst und zumeist ist, in seiner
durchschnittlichen Alltäglichkeit” S uZ, 16
10
Aqui Heidegger mostra que, primeiro, o outro já apareceu nas análises dos parágrafos anteriores de SuZ e, segundo,
que a sua resposta também já se encontra “de uma certa maneira preparada”: “”Wenn wir mit Recht sagten, durch die
vorstehende Explikation der Welt seien auch schon die übrigen Strukturmomente des In-der-Welt-seins in den Blick
gekommen, dann muss durch sie auch die Beantwortung der Wer-frage in gewisser Weise vorbereitet sein.” 117
11
"O que está aí perante mim", termo utilizado par se aproximar mais do sentido do termo alemão Vorhandenheit.
os outros nos vêm ao encontro em sua lida ocupacional com esses utensílios, que possuem seu
significado fundado na lida ocupacional que os descobre enquanto ser-para. Este ser-para (um zu)...
que remete sempre a um para quê (wozu), não é somente no meu aí enquanto meu mundo, os
utensílios também são para os outros e esses outros são descobertos justamente nesse caráter
compartilhado do mundo. Vemos isso no exemplo que Heidegger dá no §15 (parágrafo gramatical
12):
“Das hergestellte Werk verweist nicht nur auf das Wozu seiner Verwendbarkeit und das
Woraus seines Bestehens, in einfachen handwerklichen Zuständen liegt in ihm zugleich
die Verweisung auf den Träger und Benutzer. Das Werk wird ihm auf den Leib
zugeschnitten, er ‘ist’ im Entstehen des Werkes mit dabei”
Assim, o mesmo mundo que está disponível para mim e é condição de possibilidade da
compreensibilidade do ente intramundano enquanto tal, também está disponível para os outros. O
outro é co-ser-aí, ele também é no aí que também é o meu. É na mesmidade (Gleichheit) do ser do
utensílio para o outro que o mundo se mostra enquanto mundo compartilhado (Mitwelt).
Esclarecendo um pouco mais, utilizando o §26 (parágrafo gramatical 12), podemos
perguntar: em que sentido os outros são com- e também-aí? Com a preposição “com” (Mit) não se
está a falar, diz Heidegger, de um “Mit-Vorhandenseins”, i.e., de um categorial, estrutura de ser
própria de entes que não possuem o modo de ser do Dasein (“Nichtdaseinmässig”); o Mit, aqui,
denota muito mais uma característica de ser do ente que possui o modo de ser do Dasein
(“Daseinmässig”) de tal forma que o “Mit” aponta para o “Da” — que é sempre “Mitdasein” — já
é sempre compartilhado: meu aí é o aí que está constitutivamente marcado pela referência a outros
que também compartilham do modo de ser da existência, de ter que ser o aí. Dessa maneira, o
“Auch” aponta justamente para essa mesmidade do ser de ter o aí, de existir enquanto
ser-no-mundo ocupado em uma circunvisão. Assim, os outros enquanto entes intramundanos que
possuem também o ser ao modo da existência são M
itdasein, co-ser-aí, copresentes.
5.
Com o que foi dito até agora, talvez estejamos preparados para responder a pergunta: como
é que o ser-só (Alleinsein) se instaura no ser-aí cotidiano? Primeiramente, é necessário notar que,
sendo o Mitsein constitutivo do Dasein e condição de possibilidade para que o outro se apresente
como outro, i.e., um a priori que possibilita o “enquanto outro como eu”, como Mitdasein, toda
noção de solidão terá que se entender a partir caráter de Mitdasein do Dasein. Desse modo, pode-se
dizer que a solidão é muito mais algo que acontece ao Dasein ou até mesmo uma própria escolha do
Dasein e não algo que deve ser encarado como ponto de partida superficial de um sujeito isolado
que, posteriormente, tece relações com outros.
Agora, a partir de então, a tarefa será analisar o que está envolvido na solidão do Dasein.
Para tal empresa, iremos nos basear nos enunciados contidos no seguinte trecho do §26 de S uZ:
“Das Mitsein bestimmt existenzial das Dasein auch dann, wenn ein Anderer faktisch
nicht vorhanden und wahrgenommen ist. Auch das Alleinsein des Daseins ist Mitsein in
der Welt. Fehlen kann der Andere nur in einem und für ein Mitsein. Das Alleinsein ist
ein defizienter Modus des Mitseins, seine Möglichkeit ist der Beweis für dieses. Das
faktische Alleinsein wird andererseits nicht dadurch behoben, dass ein zweites Exemplar
Mensch ‘neben’ mir vorkommt oder vielleicht zehn solcher. Auch wenn diese und noch
mehr vorhanden sind, kann das Dasein allein sein. Das Mitsein und die Faktizität des
Miteinanderseins gründet daher nicht in einem Zusammenvorkommen von mehreren
‘Subjekten’. Das Alleinsein ‘unter’ Vielen besagt jedoch bezüglich des Seins der Vielen
auch wiederum nicht, dass sie dabei lediglich vorhanden sind. Auch im Sein ‘unter
ihnen’ sind sie mit da; ihr Mitdasein begegnet im Modus der Gleichgultigkeit und
Fremdheit. Das Fehlen und ‘Fortsein sind Modi des Mitdaseins und nur möglich, weil
Dasein als Mitsein das Dasein Anderer in seiner Welt begegnen lässt”
Através desses enunciados identificamos dois tipos de solidão: 1. estar-só perceptivo — que
traduz o “nicht vorhanden und wahrgenommen” — e 2. a estar-só existencial (Alleinsein). Por
motivos metodológicos começaremos pela primeira, pois nos fará ver que o estar-só reclama uma
abordagem existencial, permitindo que só seja falado em solidão se analisada existencialmente.
Podemos chamá-la também de solidão ôntica — ou até mesmo solidão superficial — em
contraposição ao que seria a solidão ontológica, singularização existencial (existenziale
Vereinzelung), que não será tematizada nesse trabalho.12
Desse modo, visto que o estar-só se pode dizer de dois modos, tratemos do primeiro para
ver que ele de modo nenhum se confunde com o segundo. O estar-só perceptivo, ou solidão
perceptiva, se deixa mostrar a partir de um contexto fenomenal muito habitual e, na verdade, é
como de início e na maioria das vezes alguém nos diz que “está só”. Vejamos um contexto
12
Em que medida uma não tematização da singularização para consideração da solidão considerada
aqui como ôntica é legítima?
fenomenal para que acentuemos seu contorno: “Eu, ocupado num empreendimento de mim,
estou na faculdade, acabaram as aulas por hoje, vou para casa, passo duas horas em transportes
públicos, logo em seguida chego em casa. Ao chegar em casa, cansado, sem reparar muito, sento e
vou assistir algo. Passado algum tempo, recebo a ligação de um colega, perguntando se pode vir a
minha casa e, para não incomodar, pergunta se há alguém comigo e eu lhe respondo: “Pode vir,
estou só”.”
Ora, em que sentido eu falo que estou só? Qual o componente que, na presença dele, faz-me
estar numa situação de não-solidão e, na sua ausência, na situação de solidão neste caso?
6.
O nome que especifica o tipo de solidão já nos fornece o caminho. Eu, ao me deparar, ao
visualizar perceptivamente (olfato, tato, visão, audição e etc), emito o enunciado de que estou só,
i.e., não se dão outras pessoas aí, perante mim e ao meu redor e, portanto, “estou só”. Mas, pelo que
foi exposto da estrutura do Mitsein não é um estar-só absoluto. Esse estar-só é muito mais
possibilitado pelo condicionante do Mitsein, como o próprio Heidegger diz “Auch das Alleinsein
des Daseins ist ein Mitsein in der Welt” (SuZ, 1 20).
Assim, temos que esse componente que nos faz dizer “estou só” é não a ausência de um
outro qualquer, mas de um outro “como nós”. Pois, neste caso, diante da presença perceptiva de
outros “como nós”, não diríamos “estou só” se quiséssemos reproduzir o mesmo contexto
fenomenal. E esse vir ao encontro dos outros no modo da ausência tem por plano de fundo, não
tematizado, uma comunidade já instituída: é o Mitsein possibilitando uma comunidade própria, a
comunidade de casa, familiar em que os outros normalmente estão lá, só que dessa vez não e, sendo
eles também outros como nós, não é estranho que eles não estejam em casa, pois também tem o
mundo compartilhado (Mitwelt) como um em causa para si, onde eles têm que executar seu ser
que lhe foi entregue e isso exige, para alguns mais e para outros menos, mas sempre em alguma
medida, ausentar-se de casa.
No entanto, se formos atentarmos bem aos enunciados de Heidegger, não parece que com
a expressão “Alleinsein” ele tem em mira esse se encontrar só perceptivo. O que nos autoriza a falar
isso é quando ele diz:
“Auch das Alleinsein des Daseins ist Mitsein in der Welt. Fehlen kann der Andere nur in
einem und für ein Mitsein. Das Alleinsein ist ein defizienter Modus des Mitseins, seine
Möglichkeit ist der Beweis für dieses.”
Assim, nos detenhamos neste último período. “O estar-só (Alleinsein) é um modo
deficiente do Mitsein”. Mas, vendo a solidão que dissemos perceptiva e seu correspondente
contexto fenomenal, conclui-se que não houvenenhuma fratura do Mitsein, i.e., um modo
deficiente (ein defizienter Modus), pois a ausência perceptiva ou o simplesmente não dar-se dos
outros, que são ocorrências ônticas, não podem alterar em nada o Mitsein, pois este é justamente a
condição de possibilidade para o aparecimento enquanto não serem percebidos e não serem
simplesmente dados. Além disso, vimos no contexto fenomenal que “esse vir ao encontro dos
outros no modo da ausência tem por plano de fundo, não tematizado, uma comunidade já
instituída”; no caso do exemplo, a comunidade familiar, doméstica — marcada pela não surpresa da
cotidianidade. Assim, já que o Alleinsein que está sendo descrito na situação não é o da mera
ausência perceptiva, ainda que digamos “estou só” quando isso se dá, qual o contexto fenomenal
para que Heidegger está apontando quando ele fala de um Alleinsein como modo deficiente do
Mitsein?
Assim, só em parte pode-se dizer que a solidão perceptiva é de fato uma solidão. Na verdade,
o contexto fenomenal do dito “estou só” poderia se referir a um outro cenário que a dita solidão
perceptiva em nada seria determinante. Vejamos.
“É sábado, não há aulas universidade. Saio para passear um pouco, pensar e como meus
amigos estão ocupados, saio sozinho, vou até o Marco Zero, Recife Antigo. Chegando lá, sento-me
num banco e ponho-me a observar com a circunvisão espraiada e solta. Vejo pessoas que se
entretêm em conversas, casais jovens apaixonados olhando para o belíssimo horizonte ornado pela
desconcertante estrutura de Brennand. Em suma, estou cercado de pessoas que estão absorvidas em
seu círculo social. No entanto, digo: “estou me sentindo tão só”.” Mas há, perceptivamente pessoas
ao meu redor, diferentemente da primeira situação e, porém, mais só que nunca. O que surpreende
nessa situação é que essas saídas se repetem e nem sempre me sinto só, muito embora sempre
quando não tem aula costumo passear no Antigo, não acompanhado. O que mudou para que,
dessa vez, me sinta só?13
Ainda que as expressões sejam confundidas e pronunciadas muitas vezes sem nenhuma
distinção, dizemos na maioria das vezes “estou só” quando estamos perceptivamente só; já o dito
13
Uma objeção possível que simplificaria a questão e domesticaria o mistério seria a de que me sinto só somente porque
não estabeleci nenhum tipo de relação com as pessoas ao meu redor. Aceitaria de bom grado tal objeção, no entanto,
ficaria ainda questionável o poder do estabelecimento de relações para mitigar a referida solidão, pois nada mais comum
que nos sentimos só mediante a melhor confraternização com nossos colegas de longas datas.
“estou me sentindo tão só”, normalmente é proferido em situações que independem da presença
perceptiva ou não de pessoas, de seu aparecimento, como foi descrito neste último contexto
fenomenal. Assim, nessa situação que traduz mais adequadamente o que aqui entendemos por
solidão ôntica, o componente que faz passar da não-solidão à solidão e vice-versa não é o
aparecimento, a presença perceptiva fática dos outros, mas um outro elemento. E parece ser para isso
que Heidegger aponta ao dizer:
“Das faktische Alleinsein wird andererseits nicht dadurch behoben, dass ein zweites
Exemplar Mensch ‘neben’ mir vorkommt oder vielleicht zehn solcher. Auch wenn diese
und noch mehr vorhanden sind, kann das Dasein allein sein.”
Ainda que Heidegger não diga explicitamente o que está em jogo no Alleinsein ele nos
fornece indicações que nos permitem desenvolver a questão. 1. O Alleinsein se dá numa referência
ao Mitsein, i.e., num modo deficiente deste, 2. o aparecimento do outro sob a estrutura “enquanto
outro” é possibilitado pela condição que é o Mitsein e 3. o Mitsein, em última análise, é
constitutivo do ser do ser-aí, caracterizado por ser seu ser em jogo e, por isso, como dissemos, está
ocupado num empreendimento de si, num cuidado de si, num em virtude de (Worumwillen), que
condiciona o aparecimento de tudo que nos vem ao encontro. Assim, o Alleinsein deve ser
abordado mais uma vez tendo presente esses tópicos resultados das análises anteriores, i.e., deve ser
abordado de maneira existencial.
Assim, temos que o Alleinsein é um fenômeno possibilitado pelo Mitsein e se dá em
referência a ele. Além disso, também vimos que o Mitsein é algo que permite que encontremos o
outro enquanto Mitdasein e isso é possível porque o Da, aberto como o em virtude do qual eu sou,
é também o em que os outros se apresentam como também compartilhando do mesmo mundo ao
modo de um em virtude de… Assim, analisando bem, a convivência (Miteinandersein), a
comunidade é possibilitada pelo Mitsein; e o Alleinsein, por sua vez, se dá com referência ao
Mitsein e, mais especificamente, numa fratura dele. Malgrado o Alleinsein seja uma perturbação do
Mitsein, não é aquela perturbação, insignificância total (Unbedeutsamkeit) trazida pela
singularização (Vereinzelung) que atinge o mundo aquilo que proporciona a familiaridade tanto
com os entes intramundanos do qual nos ocupamos, do qual nos preocupamos e de nós mesmos.
Essa fratura do Mitsein é menos abrangente. Ela não põe em jogo o mundo enquanto horizonte de
sentido do aí, mas muito mais faz com que o outro me venha ao encontro enquanto Mitdasein, ele
estando presente perceptivamente ou não, no modo da falta. No entanto, o que possibilita essa
deficiência do Mitsein ? Heidegger não nos deixa com respostas, apenas diz que, nesse caráter
deficiente do M
itsein o outro se apresenta como estranho.
Apêndice
Solidão cotidiana
resumo: O objetivo deste trabalho é analisar existencialmente o contexto fenomenal contido na
expressão habitual e cotidiana “estou só”, ou “estou me sentindo só”. Para isso, procurarei primeiro
afastar uma noção vulgar de solidão, a solidão perceptiva, para, a partir desta, tentar nos aproximar
existencialmente do que compreendo aqui como solidão cotidiana.
Para analisar existencialmente14, i.e., analisar objetivando extrair as estruturas ontológicas
do ser-aí sozinho na cotidianidade, faz-se necessário um contexto fenomenal privilegiado. Para
selecionar este, me guiarei pela compreensibilidade elaborada numa interpretação desse contexto
fenomenal que traga a expressão, comunicada ou não, mas formulada “estou só” ou estou “estou
me sentindo só”. Por mais que considere a última formulação mais acurada para exprimir o que
está sendo analisado, por vezes também a primeira é usada para traduzir a mesma situação. Desse
modo, vou elaborar uma situação cotidiana que dá fundamento a essas formulações para que
analisemos os existenciais que estão em jogo. Ei-la:
“Segunda-feira chuvosa, estou na universidade, chego na sala de aula, sento-me. Confiro o
relógio, vejo que cheguei cedo na aula e não há ninguém ainda, nem o professor, só deixaram a
porta aberta. Estou só na sala de aula. Não demora muito, começam a chegar os estudantes, alguns
me cumprimentam e vejo que o professor apenas tinha ido buscar algo que esqueceu em sua sala. A
sala já se encontra preenchida, estou rodeado por uma dezena de estudantes e, em meio às conversas
paralelas dos estudantes, simplesmente olho para o quadro e me sinto só. A partir de então, é como
se estes estudantes, colegas meus, fossem pessoas que, não obstante conhecidos, não me
oferecessem uma familiaridade total e completa; muito pelo contrário, eles me vem ao encontro
enquanto conhecidos, mas como na não-familiaridade, como se o que nos unia fosse atingido por
14
Claramente se fala na analítica existencial tal como desenvolvida por M. Heidegger em SuZ, mas, para clareza e
fluidez do empreendimento que está sendo pedido, faz-se necessário abandonar a rigidez conceitual e deixar a análise
correr livremente, sem entraves. Isso se faz necessário para que o contexto fenomenal seja visto a partir de si mesmo,
antes que construído artificialmente seguindo um roteiro de existenciais presentes em SuZ; e, assim, posteriormente,
reclame naturalmente em seu auxílio os indicativos formais heideggerianos. Em outras palavras, não invertamos a
ordem: compreensão existencial pressupõe necessariamente compreensão existenciária, mas a compreensão
existenciária, não pressupõe uma compreensão existencial elaborada em conceitos e etc… A compreensão existencial
segue a extensão aberta pela compreensão existenciária, i.e., vai ao seu encalço procurando existenciais e não o
contrário.
algo que não sei explicar. Em síntese, de repente, é como se eu visse a nossa própria relação, mas
como algo estranho. A aula, então, começa e me concentro no seu conteúdo e começo a anotar.
Logo aquela sensação se esvai e restabeleço a comunhão com os homens.”
Neste breve relato de uma segunda-feira em meio a universidade, houve duas situações que
foram interpretadas de modo a possibilitar o “estar só”. Há uma ambiguidade proposital. Pela
análise da ambiguidade vou colocar em relevo o contraste que permitirá descobrir o que se está
querendo dizer propriamente com “solidão cotidiana”. Delimitando terminologicamente,
designaremos a primeira situação em que isso acontece por solidão perceptiva e, a segunda, somente
solidão.
Primeiro, temos que caracterizar este ente que está na universidade, que experiencia
faticamente essa situação, a compreende e elabora a compreensão numa interpretação de tal modo
que seja possível esse relato. Pode-se dizer que esse ente, eu, tem o seu ser como tarefa, i.e., eu tenho
o meu ser em jogo, pois, diante de várias possibilidades nas quais o passado me legou, eu me
projetei, abrindo a possibilidade de ser estudante numa universidade.15 Assim, eu tenho o meu ser
ao modo de um poder-ser em meio a possibilidades legadas pela tradição e a liberdade de abri-las e
realizá-las de tal modo que, aquilo que me vem ao encontro, é compreendido em virtude desse
poder-ser que foi desformalizado no ser-estudante-de-uma-universidade, em virtude até mesmo de
um poder-ser ulterior que, por ora, não tematizo. De certa forma, eu já me compreendo, ainda que
não conceitualmente, em algum grau, com alguma clareza; i.e., eu vou para universidade não
inseguro quanto a quem sou, mas seguro, realizando minhas possibilidades num mundo
caracterizado pela familiaridade.
Assim, com meu ser compreendido explicitamente e de alguma maneira ao modo de uma
relação de ser com meu próprio ser, eu o estou sempre realizando ao modo de um poder-ser. Nisso,
não me realizo através de possibilidades lançadas no ar, mas, como foi dito, num mundo, aberto
pelo meu projeto numa dada possibilidade, que libera os entes intramundanos em seu ser ao modo
da familiaridade. Além disso, esses entes intramundanos não são indistintos quanto a seu modo de
ser, há dentre eles diferenças fundamentais. O assento na sala de aula já me aparece previamente
compreendido, liberado em seu ser como aquilo em que vou me acomodar confortavelmente para
15
É claro que não é tão simples assim. Nem todos têm o acesso à universidade, por mais que queiram. Mas, no caso
referido, há essa possibilidade que se me apresenta como possível, tanto que é nela que me engajo e a partir dela que me
compreendo.
tirar máximo proveito da aula, i.e., já compreendido a partir de um todo conjuntural: universidade,
sala de aula, etc...
Os outros estudantes, por sua vez, que entram na sala, fazem parte da comunidade
acadêmica em que vivo, não me aparecem como utensílios para algo. Eles me vêm ao encontro
muito mais como “outros como eu”. Eles têm esse mundo ao modo de um projeto, o mundo de tal
forma aberto, liberado por um em virtude de um poder ser que é o deles. Assim, tal como para
mim, o mundo, em sua estrutura enquanto significância familiar em que me movo, também é para
os outros como eu; e isso tanto é assim que os outros também utilizam assentos da mesma forma
que eu, também estudam numa universidade, a sala lhes vem ao encontro também para assistir uma
aula e eles também esperam o professor começar falar. De tal forma que esse mundo me aparece
muito mais como um mundo compartilhado em que se dão outros como eu. Além disso, não é
nenhuma surpresa que, a partir de tal momento, eles comecem a entrar na sala de aula em que eu
estou; eles, de certa forma, já estavam presente, ainda que de modo não temático, pois, na primeira
formulação, ao dizer que eu estava só, eles já me vieram ao encontro, mas na ausência ao não os
perceber. E é assim que digo que estou só, i.e., ao olhar ao meu redor na sala de aula.
Em seguida, essa solidão perceptiva logo desaparece, os estudantes entram na sala, está na
hora da aula. No entanto, em meio a cumprimentos, conversas, parece que outra coisa tem lugar,
outro fenômeno; e tanto é assim que dou-me conta de que eu, na situação anterior, não estava só. A
sala é preenchida, como foi dito, e, ainda sim, há algo que compreendo e interpreto, algo que é
aberto e me faz sentir só. Então, o que é isso que não se deixa mitigar apesar da presença de outros
como eu, tanto perceptivamente como ao modo de um ter uma relação com eles? Qual é o
elemento a mais que, em meio a presença fatual de outros ao meu redor pode fazer, na sua presença,
eu não me sentir só e, na sua ausência, eu me sentir só? É como se a referência à estrutura que
possibilita que o outro me venha ao encontro como um” outro como eu” e, mais ainda, enquanto
um outro familiar que faz parte do meu convívio, fosse fraturada; as pessoas tão familiares ao meu
redor perdem essa não surpresa e se apresentam numa falta de familiaridade tão radical que
nenhum desconhecido seria capaz de suscitar, pois ainda sim, seria um desconhecido, algo habitual
e cotidiano que não me causa estranheza alguma.
Malgrado esse sentir-se só, como foi dito no relato do contexto fenomenal, ao me engajar na
ocupação, a não familiaridade logo é esquecida, posta em segundo plano e, na verdade, não é que
algo que tenha mudado, mas aquilo só não mais está em relevo no âmbito da minha preocupação
(Fürsorge). Por isso digo: “Logo aquela sensação se esvai e restabeleço a comunhão com os
homens”.
Acaso não é o meu empreendimento de mim, a desformalização do meu poder-ser que, em
sua estrutura projetiva, libera o horizonte a partir do qual os outros podem me vir ao encontro
segundo suas possibilidades? E, neste caso do “outro como eu”, nas possibilidades de convivência?
De fato, talvez exista alguma verdade nisso e também no “sentir” do “sentir-se só”, pois só assim,
por meio de uma disposição posso colocar-me diante de mim mesmo e tematizar o poder-ser que eu
sou e os outros sairem da sua não surpresa no modo da estranheza. Assim, poderia falar que a
fratura do Mitsein aponta muito mais para o si-mesmo que o ser-aí tem de ser. Mas com isso não
acredito ter alcançado a questão. O instante seguinte que faz com que essa solidão se dissipe, tal
como foi descrito, é muito mais um esquecimento e entrega aos afazeres que uma espécie de
solidão, ela vai voltar...
Com isso, terminamos o fim da análise existencial do contexto fenomenal trazido por mim,
haurido de um dia na UFPE. Porém, antes de terminar, gostaria de fazer uma síntese do saldo dessa
análise.
Primeiro, foi, a partir da análise, possível dar alguns traços essenciais do ser desse ente que
existe e que vai a Universidade. Segundo, a partir desses traços gerais, foi visto de que modo ele tem
ao mundo, ao modo de uma significância com que nos relacionamos ao modo de uma
familiaridade e aberta por uma resposta a tarefa de ser de um ente que tem de ser o ser que se é de tal
modo que seu ser, na medida em que ele é, não lhe é indiferente. Em seguida, nesse mundo, foi
visto que há entes intramundanos que não são irredutíveis, quanto ao seu modo de ser, uns aos
outros. Há utensílios, coisas das quais não faço nenhum uso e também há entes intramundanos
que são tal como o ente que vivenciou a situação. E, este último modo de ente, aparece muito mais
a partir de uma convivência, como entes com que o mundo é compartilhado. Por último, que foi o
que estava sendo buscado, foi analisado este ente numa situação peculiar, a que caracterizamos
como uma solidão cotidiana e que, como vimos, pode ser entendida a partir de uma fratura,
perturbação, deficiência daquela estrutura que permite a este ente a comunhão, a convivência com
os outros em geral e, mais particularmente, com outros específicos, seus colegas da universidade.
No entanto, o que falta responder é, o que é que se deu para que essa estrutura se apresente
perturbada em seu apresentar os outros numa familiaridade que não salta aos olhos? Isso ainda não
sabemos.
Bibliografia
P. A. LIMA, Heidegger e a fenomenologia da solidão humana (Tese de Doutoramento apresentada
à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa), vol. I, Lisboa, 2012.
P. A. LIMA, Heidegger e a fenomenologia da solidão humana (Tese de Doutoramento apresentada
à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa), vol. II, Lisboa, 2012.
von HERRMANN, F.-W., Hermeneutische Phänomenologie des Daseins: Eine Erläuterung von
“Sein und Zeit”, Band 1: “Einleitung: Die Exposition der Frage nach dem Sinn von Sein”, Frankfurt
am Main, Vittorio Klostermann, 1987.
von HERRMANN, F.-W., Hermeneutische Phänomenologie des Daseins: Ein Kommentar zu “Sein
und Zeit”, Band 2: “Erster Abschnitt: Die vorbereitende Fundamentalanalyse des Daseins” (§9-§27),
Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 2005.
HEIDEGGER, M., Sein und Zeit. Tübingen, Max Niemeyer, 1927, 18. Auflage, unveränderter
Nachdruck der 15. durchgesehenen Auflage mit Randbemerkungen aus dem Handexemplar des
Autors im Anhang 2001.