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Biblioteca Dr.

ª Beatriz Vasconcellos de Assumpção


Cópia parcial autorizada
Autor(a ): _____ ����L.W�::::..!..W.J

© Copyright 2004 by Editora Custom


Páginas:_�.J._..:-�
Título original: Die Christologie des Ne11e11 Testaments

O Texto en inglês recebeu o primeiro prêmio de 1955 da Christian Researclz


Fo1111d atio11 de Nova York.

Supervisão editorial: 3. JESUS O "VERDADEIRO PROFETA", NA CONCEPÇÃO


Daniel Costa
JUDAICO-CRISTÃ TARDIA
Layout e artefinal:
Comp System - (11) 3106-3866 Na história da solução do problema cristológico - e fora esta
parte do povo que considerava Jesus como João regressado à vida,
Diagramação:
Pr. Regino da Silva Nogueira como Elias ressuscitado - só uma facção cristã viu verdadeira­
mente em Jesus o profeta por excelência: foi a do judeu-cristianis­
Capa: mo. Sua desaparição assinala a extinção desta antiga concepção
James Cabral Valdana
cristológica. Encontramo-la primeiro no Evangelho dos Hebreus,
em uso - segundo sabemos - entre os judeu-cristãos. Infelizmen­
te, não possuímos deste documento mais do que alguns fragmen­
Cullmann, Oscar
tos. 84 A passagem conservada no Comentário de Isaías de São
Die Christologie des Neuen Testaments Jerônimo (extraída do fim do relato do batismo de Jesus) 85 mostra
l ª ed. 1957
que neste evangelho apócrifo a concepção cristológica fundamen­
(Cristologia do Novo Testamento) tal era a de profeta. O Espírito diz aqui a Jesus: "Eu te esperei em
Editora Custam Ltda - São Paulo - 2004
todos os profetas, a fim de que tu viesses e que eu pousasse em ti".
Tradução: Daniel de Oliveira e Daniel Costa Sem dúvida, as palavras, dirigidas pelo Espírito a Jesus, se esten­
ISNB: 85-89818-03-9 diam ainda mais neste evangelho.
No entanto, a lacuna que nosso conhecimento deste evange­
lho apresenta é preenchida por um antigo documento judeu-cris­
Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer forma ou meio eletrônico tão, os Kerygmata Petrou, que nos foi conservado no romance
e mecânico, inclusive através de processos xerográficos, sem permissão expressa da pseudoclementino. 86 Neste texto Jesus leva, primeiramente, o título
editora (Lei nº 9.610 de 19.2.1998).

s; Reunidos por E. KLOSTERMANN, Apoc1)'pha 11 (Kl. Texto nº 8, 3' ed., 1929), p. 5 s.


85 Cf. acima, p. 35, nota 17.
Todos os direitos reservados à 86 Cf. a tradução alemã de H. WAITZ (H. V EIL), em HENNECKE, Neutestamentliche
Apokryphen, 2' éd., 1924, p. 153 ss. e 215 ss. - a qual não pôde ainda tomar por base
uma edição crítica do texto. (Porém, 3ª ed. em prep.) Existe uma elas Homilias, na
coleção dos Griech. Christl. Schrzftsteller: Die Pse11dokleme11ti11e11. l. Homilien,
ed. por B. REHM, 1953. Para os estudos relativos aos escritos pseudoclementinos,
cf. H. WAITZ, Die PseudoK!ementinen, Homilien und Rekog11itio12e11, 1904:
O. CULLMANN, Le probleme litéraire et lzistoriq11e d11 roman pse11doclé111e11ti11,
64 Oscar Cullmann

Segundo esta curiosa teoria judaico-cristã, uma segunda próprio Batista. O quarto Evangelho combatia somente a quem
linha se desenvolve paralelamente, ao longo de toda a história, a do tinha João Batista por Cristo ou por "profeta"; não combatia a
falso profeta. Considera-se assim o bem e o mal sob o ângulo da pessoa de João; porém, desmentia em troca, pelas próprias pala­
verdadeira e da falsa profecia. Vemos aqui até que ponto toda a vras do Batista, a idéia errônea que alguns faziam dele. Assim, no
soteriologia está subordinada à noção profética. A história inteira se curso da polêmica contra os discípulos do Batista, o juízo acerca
desenvolve sob o signo de uma espécie de dualismo, simbolizado da pessoa de João Batista sofre um desenvolvimento: nos sinópticos
por pares antagônicos (auÇuyím), cujo primeiro membro, chama­ ele é ainda considerado como o profeta; no quarto Evangelho, este
do também esquerda, representa a falsa profecia, enquanto que o título lhe é negado. Nos escritos pseudoclementinos ele aparece
segundo, chamado também direita, representa a verdadeira. Esta finalmente como o falso profeta. Estes mesmos escritos conside­
oposição é dirigida, em particular, contra a seita dos discípulos de ram a Elias, sem dúvida identificado com João Batista, como o
João Batista, também combatida implicitamente no Evangelho de representante da falsa profecia. 92
João. Esta comunidade, antes de sua fusão com os mandeus,91 deve
ter representado, no fim do primeiro e começos do segundo século, Notar-se-á também que esta teoria judaico-cristã dos syzygies permite
uma concorrência particularmente perigosa para o cristianismo pri­ combater o argumento cronológico segundo o qual o Batista seria superior a
mitivo, e muito especialmente para o judeu-cristianismo. Jesus por ser de maior idade. Encontramos marcas desta discussão já no Evan­
Recordemos que os discípulos de João viam em seu mestre o gelho de João (cf. acima, p. 49 s.). Porém, enquanto este responde afirmando a
preexistência de Jesus (daí sua prioridade absoluta), os autores dos Kerygmata
profeta definitivo dos últimos tempos. Nas exposições da doutrina Petrou procedem de outro modo. Reconhecem sem mais a prioridade de João
pseudoclementina, não se tem prestado suficiente atenção ao fato de sobre Jesus, porém, reconhecem nesta mesma prioridade a prova de que se
que todo o sistema destes pares antagônicos é concebido em oposição trata de um falso profeta: é que, a partir da segunda syzygie, sempre o primeiro
a esta doutrina. Segundo as especulações judaico-cristãs, reaparecem membro do par representa a falsa profecia. Caim vem antes de Abel, Ismael
sem cessar na história humana tais "syzygies"; nestes pares cada um antes de Isaque, Esaú antes de Jacó, Aarão antes de Moisés, João Batista antes
dos membros encarna, por assim dizer, em estado puro, a verdadeira e do Filho do Homem; Paulo, o apóstolo entre os pagãos, antes de Pedro; o
a falsa profecia. A teoria gnóstica dos syzygies, que opõe os princí­ Anticristo antes do Cristo da parusia.93
pios do bem e do mal, é posta assim inteiramente a serviço da espe­
culação acerca do "profeta". É assim que, no primeiro par, Adão, pri­ Esta doutrina judaico-cristã está, pois, inteiramente domina­
meiro representante da verdadeira profecia, se opõe a Eva, princípio da pela idéia de "profeta", tanto em seu aspecto positivo como em
da falsa profecia; a Isaque, o verdadeiro profeta, se opõe Ismael, o seu aspecto polêmico. O caráter escatológico inerente a esta idéia
falso profeta; ao verdadeiro profeta Jacó se opõe o falso profeta Esaú. no judaísmo, como também no Novo Testamento, passa, é verda­
Igualmente, Moisés aparece como o verdadeiro profeta frente a Aarão. de, a segundo plano. No entanto, lidamos aqui com a única cristo­
Tudo isto para poder, finalmente, opor Jesus, o verdadeiro profeta por logia um pouco desenvolvida que descansa nesta antiga crença de
excelência, a João Batista, o falso profeta por excelência.
Vemos como neste escrito herético judaico-cristão a polêmi­ n Hom. II, 17, 1. Ele é, assim, posto no mesmo nível que os profetas cujos livros são
ca contra os discípulos do Batista degenera em polêmica contra o conservados pelo Antigo Testamento, e que são igualmente rejeitados como os fal­
sos profetas pelos Ke,)'gmata Petro11.
93 Hom. II, 16-17; Rec. III, 61. Sobre a reconstituição da lista, cf. O. CULLMANN, Le
91
Cf. acima, p. 47 s. prob/eme historiq11e e/ litéraire du roma11 pseudo-c/é111e11tin, 1930, p. 89.
66 Oscar Cullmann CRISTOLOGIA DO Novo TESTAMENTO 67

um retorno do profeta. É também, sem dúvida alguma, uma das que na época de Jesus,. ao menos
,.i:e1·to ,
é1-- .
nos meios dirigentes· do
mais antigas que podemos encontrar. '
vo, se esperava que o Messias realizasse um programa politico:
O porvir, no entanto, não pertence a esta cristologia, mas, às :�uta e a vitória contra os inimigos de Israel, a restauração de
outras explicações da pessoa e da obra de Cristo. A solução "profe­ Jerusalém como capital de um reino puramente tempor�l etc.; o
tológica" dos Kerygmata Petrou desapareceu junto com o judeu­ g,_ue contradiz abertamente o papel que Jesus se auto-assmalava.
' '
cristianismo. Ela não exerceu quase nenhuma influência no desen­ A função do profeta escatol ogico consiste · acima
· de tudo,
volvimento dogmático do cristianismo. Por outro lado, exerceu segundo os textos judaicos, e � preparary or sua pregaç�o o P_?V�
uma poderosa influência sobre outra religião: o Islã, na qual o pro­ de Israel e o mundo para a vmda do Remo de Deus; e isto nao a
feta ocupa também uma posição central. 94 maneira dos profetas do Antigo Testamento, mas de um modo muito
Veremos, ademais, que mesmo fazendo abstração das espe­ mais direto: como precursor imediato do advento deste Reino. Ele
culações gnósticas judaico-cristãs, a idéia de profeta escatológico vem armado de uma autoridade escatológica que lhe é privativa.
é demasiado estreita para abarcar, em toda a sua riqueza, a pessoa Seu chamado ao arrependimento é absoluto e exige uma decisão
e a obra de Cristo, e isto nos leva a nossa última questão. definitiva, o que dá à sua pregação um caráter final, absoluto, que
nem mesmo a palavra dos antigos profetas possuía no mesmo grau.
4. "JESUS O PROFETA" COMO SOLUÇÃO DO PROBLE­ Segundo a forma em que se reage frente a este profeta, já se é
MA CRISTOLÓGICO DO NOVO TESTAMENTO julgado, segundo diz o Evangelho de João (3.18). Temos visto que
este evangelho dá muita importância à cristologia do "profeta";
Que vantagens e que inconveniências apresenta a crença que quando o lpx;óµE.voç, o profeta que há de vir, toma a palavra, tra­
acabamos de estudar quando se trata de estudar o caráter original e ta-se de uma palavra final, da última oportunidade de salvação
único da pessoa de Jesus, tal como ele nos aparece segundo o tes­ oferecida aos homens. Pois só sua palavra indica já a iminente
temunho da fé primitiva? chegada do Reino. Esta função corresponde plenamente à maneira
As vantagens são incontestáveis. Por um lado, ela explica o em que Jesus compreendeu e viveu efetivamente sua missão terrena.
caráter único da pessoa e da obra de Jesus, já que em sua pessoa
A autoridade, a ll;oucría., com a qual Jesus anuncia Seu evange­
trata-se, se não da aparição final do próprio Senhor, ao menos da
lho, não é a de um profeta qualquer, mas a do profeta por excelên­
aparição decisiva do profeta escatológico. Por outro lado, ela dá
cia: "Mas eu vos digo" (lyoo ÕE ÀÉyro uµtv). O conteúdo de sua
conta do caráter humano de Jesus: é um homem que os judeus
pregação correspondia, aliás, a esta autoridade escatológica: "Arre­
esperavam como o profeta dos últimos tempos.
pendei-vos porque o Reino dos Céus se aproxima". Tal é o ponto
Se consideramos agora a missão deste profeta, será necessá­
rio convir que ela corresponde perfeitamente a todo um aspecto da de partida de sua pregação: quer preparar os homens para a entra­
obra de Jesus, e, em todo caso, que não contém nada que se opo­ da no Reino que vem. O caráter escatológico de sua pregação é
nha à essência e à finalidade desta obra, tal qual nô-la representam incontestável.
os evangelhos. Deste ponto de vista, a noção de profeta apresenta A noção de "profeta" explica, pois, perfeitamente a atividade
de Jesus como pregador, assim como também a autoridade com a
certas vantagens em comparação com a de Messias. Veremos, com
qual atua e fala.
Temos que assinalar ainda que ela se associa muito facilmen­
94 Cf. abaixo, p. 74 s. te a outras noções cristológicas essenciais: à de Messias, no senti-
68 Oscar Cullmann CRISTOLOGIA DO Novo TESTAMENTO

do que este também deve aparecer no fim dos tempos para prepa­ fazer milagres, deve restabelecer as tribos de Israel, vencer as potên­
rar a vinda do Reino de Deus; à idéia joanina do Logos, que une a cias deste mundo e lutar contra o Anticristo. 96 No entanto, não se
obra do profeta e sua pessoa identificando-os, por assim dizer: o trata aí da missão específica do profeta, mas antes, de elementos
próprio Jesus sendo o Verbo. Pode-se recordar a este respeito o vindos de outra parte- talvez da noção de Messias - e transferidos
começo da Epístola aos Hebreus, onde se expressa um pensamen­ ao profeta dos últimos tempos. Ora, a obra terrena de Jesus Cristo,
to análogo (embora o assunto não seja exatamente o mesmo que o tal qual a compreenderam os primeiros cristãos, não se limita à
do prólogo de João): "Depois de haver em outros tempos, de muitas pregação escatológica; ela não encontra sua consumação senão
maneiras e em diversas ocasiões, falado a nossos pais pelos profe­ na remissão dos pecados e, antes de tudo, no ato que coroa esta
tas, Deus, nestes últimos tempos, nos tem falado pelo seu Filho". obra redentora: sua morte expiatória. É assim que, segundo o tes­
Aqui a idéia de profeta está ligada à de Filho de Deus. Já ternos temunho dos evangelhos, o próprio Jesus entendeu sua obra, e nes­
visto também que existe um elo direto entre a noção de profeta e a ta perspectiva também a igreja nascente compreendeu Sua pre­
de servo, do Ebed lahweh, sofredor, já que o sofrimento é parte gação.
integrante da missão do profeta escatológico. É verdade que temos constatado um elo entre a pessoa do
Enfim, não podemos esquecer um fato sobre o qual já temos profeta e a do Servo de Deus. No entanto, o sofrimento e a morte,
chamado a atenção: 95 de todos os títulos atribuídos a Jesus pelo cris­ no sentido de uma substituição consciente e voluntária, não são
tianismo primitivo, o de profeta dos últimos tempos é o único que especificamente parte da função do profeta escatológico. Para o
permite, ao menos em princípio, falar de urna dupla vinda de Jesus profeta, o sofrimento não é mais do que uma conseqüência inevi­
sobre a ten-a, que autoriza, portanto, a que se aspire o seu retorno. tável de sua pregação; ele não é, propriamente falando, sua niis­
Estas vantagens são incontestáveis. Há, no entanto, graves são, como o é no caso do Servo Sofredor. O profeta não é, em
inconvenientes em reduzir a explicação da pessoa e obra de Jesus suma, mais do que o pregador que se levanta no fim dos tempos
àquela de profeta do fim dos tempos. Pode-se classificá-las em para chamar os homens ao arrependimento. Tudo o que concerne,
quatro grupos: 1) do ponto de vista da vida terrena, passada de ademais, à sua pessoa e obra desaparece frente a esta função
Jesus; 2) do ponto de vista do Cristo presente, elevado à destra de essencial. Ora, na vida de Jesus é justamente o contrário: sua pre­
Deus; 3) do ponto de vista do Cristo por vir, o Cristo da parusia e gação e seu ensinamento decorrem inteiramente do fato dele ter
4) do ponto de vista do Cristo preexistente. consciência de que lhe é necessário sofrer e morrer por seu povo.
Acabamos de ver que a idéia de profeta permite, em muitos Por isso, não é tanto a noção de profeta mas a de Ebed Jahweh que
sentidos, compreender perfeitamente a vida terrena de Jesus, e caracteriza essencialmente a vida terrena de Cristo, e isto - volta­
que nisto reside justamente sua vantagem. No entanto, mesmo deste remos a tocar nessa questão - aos olhos do próprio Jesus. Não é
ponto de vista, é insuficiente quando, com efeito, insiste demasia­ senão vinculando estreitamente a noção de profeta à de Ebed
do vigorosamente sobre um só aspecto desta vida: sobre a ativida­ lahweh que aquela pode, a rigor, explicar a vida terrena de Cristo.
de de Jesus como pregador escatológico, desequilibrando o papel De outro modo, ele não seria só insuficiente, mas ainda daria uma
que os evangelhos dão ao Cristo terreno. É certo que os textos falsa imagem da pessoa e da obra de Jesus tal qual a descreve o
judaicos nos falam de outras atividades do profeta: deve também Novo Testamento.

95 Cf. acima, p. 35 e 59 s. 96 Cf. acima, p. 43.


70 Oscar Cullmann CRISTOLOGIA DO Novo TESTAMENTO 71

Porém, a insuficiência de uma cristologia centrada inteira­ A discussão sobre a "escatologia conseqüente" deveria, pois, tratar
mente sobre a noção de profeta se torna mais patente se tentamos do verdadeiro lugar do "adiamento da parusia"; deve ele ser considerado
explicar a obra presente e futura de Cristo. Não há lugar algum como um motivo teológico com alcance decisivo para o cristianismo pri­
mitivo97 - (é o que pensam A. Schweitzer e seus discípulos, corno tam­
para uma função presente do profeta, pois a idéia de profeta não
bém mais recentemente, R. B ultmann98 ) - ou não marca ele, antes, preci­
prevê um intervalo temporal entre sua atividade terrena, já escato­ samente a fronteira que separa o judaísmo do evangelho de Jesus?
lógica, e seu retorno. Temos constatado, é verdade, que o profeta A escatologia de Jesus não é nem "realizada" (Dodd) nem "somente
esperado pelos judeus da época de Jesus era considerado como futura" (A. Schweitzer). A tensão existe já no ensinamento do próprio
já tendo vivido antes sobre a terra. Esta doutrina pode, pois, ter Jesus. O adiamento da parusia na igreja nascente tem, quando muito, por
preparado os espíritos para a idéia de uma dupla vinda de Jesus. conseqüência uma insistência maior sobre o "já realizado".99 As pala­
vras já mencionadas dos evangelhos sinópticos provam que o próprio
Porém, há uma diferença: segundo a crença judaica, a primeira
Jesus admitiu um tempo de realização já cumprido durante sua vida, sem
vinda do profeta não tinha um caráter escatológico, enquanto que deixar de esperar com intensidade a consumação final, muito próxima;
para a fé da igreja primitiva tratava-se, em ambos os casos, de porém, que chegaria somente depois de sua morte.100
uma aparição escatológica de Jesus. Segundo a esperança judaica,
o Reino de Deus se estabeleceria com poder a partir do momento A posição central que o Cristo presente e glorificado ocupa
em que o profeta retornado à terra completasse seu chamado ao na fé da igreja nascente basta para mostrar que o título de profeta
arrependimento. Não se prevê que ele deva seguir exercendo sua não contribui para uma solução satisfatória do problema cristoló­
função posteriormente. Por esta razão, a noção de profeta não pode gico. Para o judaísmo tardio, o profeta esperado já viveu uma vez
aplicar-se à obra do Cristo glorificado, do Kyrios que a igreja con­ sobre a terra; porém, a consumação de sua missão escatológica,
fessa. Ou seja, uma das funções escatológicas mais importantes quando voltar, marcará o termo definitivo de sua ação. Não há,
para o Novo Testamento é estranha ao conceito de profeta. pois, lugar nesta concepção para uma atividade prolongada até o
Colocando-se no ponto de vista escatológico judaico de presente. Seu papel é exclusivamente preparatório, o que torna,
então pode-se e deve-se falar, a propósito do cristianismo, de um de início, impossível uma prolongação de sua missão.
"adiamento da parusia". Há, com efeito, um verdadeiro adiamento
da realização esperada; porém, sobre a base de uma fé em um 97 Não contestamos, no entanto, que a Igreja nascente tenha constatado um adiamento
cumprimento antecipado neste mundo que não está ainda liberto posterior da parusia. Porém, afirmamos que o esquema cronológico da história
do pecado e da morte. A convicção de que "o Reino de Deus já da salvação não provém desta postergação: existia desde o princípio. A Entescha­
tolo gisienmg consiste em diminuição da tensão entre o presente e o futuro.
veio até vós" (Mt 12.28), que "Satã caiu do céu como um raio" (Lc E. GRASSER, Das Problem der Pamsieverzogemng i11 den synoptischen Evan.gelien
10.18), e que "os cegos vêem, os aleijados andam, os leprosos são 1111d der Apostelgeschichte (B ZN W, 22), 1957, tenta juntar todos os textos à sua tese
purificados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, e a boa nova segundo a qual a igreja nascente não só teria crido em uma presença então atual do
é anunciada aos pobres" (Mt 11.5), é um elemento novo no evan­ porvir escatológico pelo fato da parusia não se ter produzido. Já refutamos esta tese
em nosso artigo "Parusieverzõgung und Urchristentum" (ThLZ, 83, 1958, col. I ss).
gelho que o distingue do judaísmo e até das formas mais elevadas 98 Cf. seu artigo em NTS, 1, 1954, p. 5 ss.
99 Cf. a este respeito nossa discussão com F. BURI no artigo: "Das wahre durch die
do profetismo judaico. Desde que se considere o tempo presente
nesta perspectiva, o processo escatológico admitido nesta época ausgebliebene Parusie gestellte neutestamentliche Problem" (ThZ, 3, 194 7, p. 177
ss. e 422 ss.).
pelo judaísmo deve, necessariamente, ser modificado, porque aí se ' Ver a este respeito: W. G. KÜMMEL, Verheissung und E1fiil/1111g, 2 edição, 1953.
00 ª

insere, então, uma época - por certo breve - de realização parcial. Cf. igualmente abaixo, p. 303 s.
72 Oscar Cullmann CRISTOLOGIA DO Novo TESTAMENTO 73

Também, não se pode, a partir da noção de profeta, entender a que não abrange a ação pós-pascal do Cristo "vivo". Ora, esta
tampouco a terceira fase, o período futuro e escatológico da obra de ação - voltaremos a isso - representa para a comunidade primiti­
Jesus. Segundo a crença judaica, o papel do profeta acaba quando va O acontecimento cristológico por excelência, o qual deu um
começa o Reino de Deus. A vinda do profeta é, por certo, objeto de impulso decisivo a toda a cristologia do Novo Testamento.
esperança e ele é, inclusive, uma figura puramente escatoló­ Enfim, não se pode relacionar diretamente à noção de profeta
gica. Porém, ele é esperado como precursor e não como executor da a preexistência do Cristo, da qual falam diferentes passagens do
consumação, pois esta, por definição, não entra no âmbito de sua Novo Testamento. Quando muito, se poderia sustentar que o pro­
missão. Aqui aparece uma vez mais a dificuldade que se experi­ feta já aparecera sobre a terra sob formas diferentes, e que isto
menta ao querer reduzir a este título a cristologia dos primeiros cris­ pressupõe a existência de uma espécie de "protótipo" do profeta e,
tãos. Só os que esperavam o advento do Reino de Deus durante a portanto, uma certa forma de preexistência. Porém, esta é profun­
vida de Jesus é que não tinham necessidade de considerar uma pro­ damente diferente da que, no Novo Testamento, atribui-se a Jesus,
longação de sua missão, e podiam contentar-se em ver nele o profe­ onde se trata de uma existência eterna junto a Deus. Somente admi­
ta dos últimos tempos. Por outro lado, a fé cristã primitiva, tal qual tindo-se uma relação entre o Logos joanino, o "Verbo que no prin­
está atestada por todos os escritos do Novo Testamento, parte da cípio estava com Deus", e o profeta - o qual é essencialmente a
morte e ressuneição de Jesus e se dirige ao Cristo presente e àquele personificação do Verbo Divino - se poderia, rigorosamente, con­
que há de voltar. Pode-se, ademais, demonstrar que o próprio Jesus templar, com base nesta relação, a possibilidade de uma certa iden­
contou com uma prolongação - muito breve sem dúvida - de sua tificação entre o profeta e Jesus.
obra de mediador antes de vir o fim dos tempos. 1 º 1 Para concluir diremos, pois, que a noção de profeta dos últi­
Se o título de "profeta do fim dos tempos" não pôde impor-se mos tempos é demasiado estreita para dar conta da fé primitiva em
para explicar a pessoa e a obra de Jesus, deve-se isto, sem dúvida, Jesus Cristo. Esta noção não alcança plenamente mais que um
aspecto da vida terrena de Jesus; necessita ser completada por
101
ALBERT SCHWEITZER emitiu, como se sabe, a opinião de que Jesus havia crido, outras noções mais centrais, como a de Servo de Deus. Por outro
antes de tudo, que o Reino de Deus viria durante sua vida e que só mais tarde lado, ela não pode concordar com os títulos cristológicos que se
pensou que o advento do Reino coincidiria com sua morte. É esta uma hipótese relacionam ao Senhor presente, pois exclui a idéia de um intervalo
que deve ser levada em consideração e que tem exercido uma influência fecun­
da sobre os estudos neotestamentários. Porém, não é mais que uma hipótese e entre a ressurreição e a parusia. É, por conseguinte, incompatível
A. SCHWEITZER é um sábio demasiado sério para não ter-se dado conta disso. com a perspectiva a partir da qual o Novo Testamento inteiro con­
Em todo caso, hoje já nenhum especialista do Novo Testamento a defende sob a sidera o evento da salvação, isto é, a vinda, morte e ressurreição
forma que ele lha deu; e ela foi pelo menos seriamente enfraquecida, em particular
por W. G. KÜMMEL, Verheissung wul e,füllung, 2ª ed., 1953. Porém, isto não de Jesus como o ponto central, divisor do tempo. A teologia do
impede os discípulos de Berna e de Basiléa de A. SCHWEITZER, os representantes "profeta" não pode acomodar-se a esta perspectiva, já que por sua
da escatologia chamada "conseqüente" (entre os quais não se encontra nenhum própria natureza o profeta não pode desempenhar senão um papel
especialista do Novo Testamento) de aderir a ela com singular dogmatismo, acusan­
do de improbidade científica ("recurso a escapatórias") ou de tendências católicas preparatório. Se Jesus é só o profeta, então o evento decisivo da
àqueles que não admitem esta hipótese e admitem que Jesus tenha pensado que o história ainda não se produziu; neste caso não há lugar para uma fé
Reino de Deus não viria senão depois de sua morte, mesmo se ele tivesse crido que o no Cristo-Kyrios atualmente presente. Pois, para o Novo Testa­
intervalo não fosse de longa duração. Cf. a este respeito F. BURI, ''Das Problem der
ausgebliebene Parusie" (Schweiz. Theol. Umschau, 1946, p. 97 ss.) e nossos artigos
mento, a fé no Cristo atualmente presente, como a fé em seu retor­
da ThZ e da ThLZ citados mais acima, p. 45 cf. Também abaixo, p. 270 s. e 303 s. no, pressupõe a certeza de que a decisão soteriológica foi incluída
74 Oscar Cullmann.

na pessoa do Jesus encarnado, mesmo quando a manifestação des-


ta decisão seja ainda algo esperado. . . .
Não é, pois, surpreendente que na cristologia �o JUdeu-cn�tia­
nismo, regida pela idéia de profeta, a morte de Cnsto - ou seja, o
acontecimento central da história da salvação - careça de grande
importância teológica.

***
Temos visto que nem Jesus nem seus discípulos imediatos
aplicaram a noção de profeta a Sua pessoa e a Sua obra. Tr�t�-se
antes de uma opinião popular sobre Jesus. Os elementos vahdos
que ela encerra foram retomados pelo Evangelho de João e pela
Epístola aos Hebreus, para serem incorporados a outras concep­
ções cristológicas. O único sistema cristológico inteiramente fun­
dado sobre a crença no "profeta" é o dos judeu-cristãos, tal como
o encontramos nos Kerygmata Petrou - portanto, em um ramo
herético do cristianismo antigo. O futuro pertencia a outras solu­
çõe�. No entanto, se reservava a esta cristologia o desempenhar,
mais tarde, um papel histórico não já no cristianismo, mas, no Islã. 1 º2
Sabemos hoje que a religião muçulmana se constituiu sob a
influência do judeu-cristianismo difundida nos países sírios. A figu­
ra do "profeta" revive aí sob uma forma nova. Há ainda, no enta�­
to, muitas investigações por fazer a propósito dos elos intermedi-
ários que unem a religião do Islã ao judeu-cristiani�1:1º·
.
Na dogmática posterior, não encontramos vest1g1os da cristo­
logia do "profeta", a não ser na idéia demunus propheticwn Christi.
E ainda assim, sob uma forma bem diferente.

102
Cf. W. RUDOLPH, Die Abhéingigkeit des Korans von Judentum lllzd Christe11tw11,
1922· A. J. W ENSINCK, "Muhammed und die Prophetie" (Acta orienta/ia II, 1924);
TOR,ANDRAE, "Der Ursprung des lslams und das Christentum" (Kyrkohistorisk
Arsskrift, 1923-25); J. HOROVITZ, Qoranische Untersuch11n�e'.1, 1926; W.
.
HIRSCHBERG, Jiiclische und christliche Lehre11 un vorn11d fruhisla 1111schen
Arabie11, 1939; H. J. SCHOEPS, Theologie wzd Geschichte des Judenschristentums,
1949, p. 334 ss.

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