Resumo
O presente trabalho propõe uma discussão sobre a noção de intersubjetividade e o conceito de
pulsão, ambos fundamentais para pensar o desenvolvimento e o processo de emergência psíqui-
ca do recém-nascido. Embora oriundos de perspectivas teórico-metodológicas distintas, a psico-
logia do desenvolvimento e a psicanálise, algumas articulações podem ser tecidas entre os mes-
mos, ensejando avanços no estudo sobre a construção do laço entre o bebê e seus cuidadores.
Como releitura da noção de apoio sugerida por Freud (1905), sustenta-se a tese de que a capaci-
dade intersubjetiva inata do bebê, experimentada no enlaçamento com seus cuidadores, serve
como plataforma de lançamento da pulsão, permitindo que esta se constitua como circuito (La-
znik, 2004, 2006, 2007).
Palavras-chave
Pulsão, Intersubjetividade, Psicanálise, Desenvolvimento.
A ideia de base é que a consciência jeto, que é também um outro sujeito, e que é
humana se constrói e se mantém graças também animado por uma vida pulsional de
às transformações da relação intersubjeti- onde uma parte é inconsciente”* (ROUSSI-
va entre o “eu e o outro” (STERN, 2005). LLON, 2004b, p.735). O conceito de pul-
Este processo de construção da intersub- são foi definido por Freud como
jetividade depende então da dupla adap-
tação entre os pais e a criança. “um conceito limite entre o somático e o
Segundo Golse (2004), o processo de psíquico, como o representante psíquico
acesso à intersubjetivdade pode ser com- dos estímulos oriundos do interior do cor-
preendido como um movimento de dife- po e que atingem a alma, como uma
renciação que vai permitir à criança ex- medida do trabalho imposto à psique por
perimentar, sentir e integrar que o eu não sua ligação com o corpo” (FREUD,
é o mesmo que o outro. 2010, p.57).
Sem querermos negar que a noção de
intersubjetividade representa um avanço Utilizando o conceito de pulsão de
nos estudos sobre o desenvolvimento do Freud, podemos melhor compreender a
bebê e que contribui para o trabalho clí- ideia de que o recém-nascido é mobiliza-
nico, parece-nos que seu estudo não leva do pela busca da relação. Quer dizer que
suficientemente em conta a existência do é em apoio e para além da satisfação das
inconsciente. É com este intuito que se necessidades biológicas imediatas que o bebê
pretende uma discussão desse conceito a procura entrar em contato com os outros
partir de um ponto de vista psicanalítico. (1905). De fato, as pulsões – diferente-
mente das necessidades – não são satisfei-
Inexorabilidade do inconsciente tas sempre do mesmo modo. Segundo
para a psicanálise Freud, já que a pulsão “não ataca de fora,
Para discutir a noção de intersubjeti- mas do interior do corpo, nenhuma fuga pode
vidade partindo da psicanálise é necessá- servir contra ela” (FREUD, 2010, p.54).
rio destacar a dimensão inconsciente da Aqui se situa uma diferença fundamental
subjetividade. Marcelli propõe que na in- da contribuição psicanalítica com relação
tersubjetividade “não se trata somente do às anteriormente citadas: não se conside-
fato de que dois sujeitos se interessem um pelo ra haver um processo de desenvolvimen-
outro. Pois se fosse assim, a intersubjetivida- to com etapas potenciais previamente de-
de se resumiria a uma troca consciente e se- finidas para o investimento pulsional; ou-
ria definida simplesmente como uma relação trossim, seu impacto sobre o humano de-
interpessoal”* (MARCELLI, 2004, p.55). corre justamente de um inacabamento e
Além disto, segundo Freud, torna-se de uma imperfeição quanto à satisfação,
difícil concordar com o postulado que es- condição fundamental de desamparo que
tipula a existência da diferenciação inata impõe uma construção constante do que
completa entre o eu e o outro, sendo ne- não está dado a priori. Todo o investimen-
cessário admitir que “uma unidade compa- to pulsional que ocorre ao longo da vida
rável ao Eu não existe desde o começo no in- guarda as marcas da especificidade da
divíduo; o Eu tem que ser desenvolvido” construção sempre imperfeita que engen-
(FREUD, 2010, p.18), para o que se re- drou a subjetividade.
quer uma nova ação psíquica (1914). Lacan propõe pensar a pulsão como
Assim, seguindo nesta forma de pen- algo que “não tem dia nem noite, não tem
sar a intersubjetividade, temos “o encon- primavera nem outono, que ela não tem su-
tro de um sujeito, animado de pulsões e de bida nem descida. É uma força constante”
uma vida psíquica inconsciente, com um ob- (LACAN, 1985b, p.157). Ou seja, segun-
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do Lacan, em função das pulsões, a vida Segundo Laznik (2007), a pulsão cum-
psíquica é de um outro registro que aque- pre sua meta de satisfação por meio do
le segundo a satisfação das necessidades estabelecimento de um circuito de três
(LACAN, 2001). tempos, ideia fundamental para entender
o processo de constituição subjetiva, quer
“A pulsão apreendendo seu objeto, apren- dizer, a forma como abandonamos o esta-
de de algum modo que não é justamente tuto de ser de necessidade para tornarmo-
por aí que ela se satisfaz. Pois se se dis- nos seres de desejo. No primeiro tempo o
tingue, no começo da dialética da pul- bebê vai em direção ao objeto oral para se
são, o Not e o Bedürfnis, a necessidade e satisfazer. Freud chamou este tempo de a
a exigência pulsional – é justamente por- busca ativa da parte do bebê (LAZNIK,
que nenhum objeto de nenhum Not, ne- 2006).
cessidade, pode satisfazer a pulsão.(...) O segundo tempo é reflexivo ou au-
essa boca que se abre no registro da pul- toerótico. É o que Freud descreveu como
são – não é pelo alimento que ela se sa- o retorno da pulsão sobre uma parte do
tisfaz...” (LACAN, 1985b, p.159). corpo próprio. É o tempo da capacidade
de se acalmar chupando o dedo, a mão...
Então, mais do que necessidades, é No terceiro tempo, o bebê se faz, ele mes-
preciso que o bebê tenha também deman- mo, objeto de um outro, colocando seu
das: que ele saia do registro da necessida- dedo na boca da mãe, que aproveita e,
de e possa entrar no campo do desejo. gozando, faz de conta que o está comen-
Pode-se dizer que mais do que fome, é pre- do. Porém, ao contrário de Freud que qua-
ciso que o bebê tenha apetite. Como diz lifica este terceiro tempo como passivo,
Lacan, “o desejo, função central em toda ex- Laznik o pensa como uma passividade ati-
periência humana, é desejo de nada que pos- va. “Com efeito, é muito ativamente que ele
sa ser nomeado” (LACAN, 1985a, p.281). vai se fazer comer por este outro, para o qual
Este aspecto radical do funcionamen- ele se faz, ele mesmo, objeto” (LAZNIK,
to psíquico humano “que entende as neces- 2004, p.28).
sidades como demandas que desejam ser sa-
tisfeitas faz com que o bebê, desde que ele “O bebê não é passivo na situação, cla-
entre em contato com o outro, deixe de ser ramente ele a procura. É ele que vai pro-
um ser de necessidade para se tornar um ser curar se fazer olhar, se fazer ouvir ou
do desejo”* (CRESPIN, 2007, p.22). bem, ao nível oral, se fazer ‘comer o pe-
zinho’. Este aspecto eminentemente ati-
Circuito pulsional: vo do terceiro tempo do circuito pulsio-
instalação de uma disjunção nal havia sido evidenciado por Lacan que
intersubjetiva o chamava o tempo do ‘se fazer’”*. (LA-
O trabalho de Laznik (2004, 2006, ZNIK, 2000, p.73).
2007) permite-nos estabelecer uma arti-
culação entre a concepção lacaniana das É somente depois do terceiro tempo
pulsões e a noção de intersubjetividade de que se pode falar em satisfação pulsional
Trevarthen. Retomando o conceito de (LAZNIK, 2000). Lacan coloca que é “no
pulsão proposto por Freud (1915) e revi- momento em que o fecho se fechou, quando é
sitado por Lacan no seu seminário “Os de um polo ao outro que houve reversão,
quatro conceitos fundamentais da psica- quando o outro entrou em jogo, que o sujeito
nálise”, Laznik nos convida a refletir so- tomou-se por termo terminal da pulsão” (LA-
bre o papel do circuito pulsional na emer- CAN, 1985b, p.173). E é aí que vemos que
gência psíquica do recém-nascido. o bebê procura o gozo do outro.
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Discussão da noção de intersubjetividade à luz de contribuições da psicanálise
“A pulsão se satisfaz pelo fato de que este tendo acedido à intersubjetividade, o infans
circuito gira e de que cada um dos tem- torna-se então capaz de se oferecer ele mes-
pos tornará a passar um infinito número mo como objeto da pulsão do outro”* (GOL-
de vezes. Nós só podemos estar certos do SE, 2004, p.449).
caráter verdadeiramente pulsional dos Quer dizer que o momento de fecha-
dois primeiros tempos na medida em que mento do circuito pulsional pode ser en-
tivermos constatado o terceiro” (LAZ- tão entendido como o momento de troca
NIK, 2004, p.29). intersubjetiva se esta é pensada de um
ponto de vista psicanalítico, ou seja, ori-
Falando de um outro modo, significa entada pelo desejo como decorrente da
que este ciclo se desenvolve diversas ve- construção do circuito pulsional.
zes na relação mãe-bebê, mas é somente
após a instauração do terceiro tempo que “Assim, quando a mãe coloca docemen-
os outros dois adquirem sentido. Como te os olhos sobre os olhos do seu bebê,
disse Lacan (1985b), este sujeito que existe este mantém seu olhar no de sua mãe e
graças ao outro, aparece quando o circui- parece literalmente animado de um so-
to da pulsão pode se fechar. É somente com pro de vida partilhado. (...) Rapidamen-
a dimensão do Outro que a função da pul- te, ele procura, por seu lado, fisgar o
são pode existir. olhar da sua mãe. (...) O olhar do outro
Assim, os movimentos do bebê de pro- se torna um atrativo potente, a partilha
cura do seio e de chupar o dedo para se do olhar um estabilizador comportamen-
acalmar podem enfim ser considerados tal que mantém esta propensão”*
como eróticos. Porque só podemos falar (MARCELLI, p. 61, 2004).
em registro pulsional no momento em que
o gozo do Outro está colocado em ques- Esta ilustração de Marcelli pode ca-
tão. É este momento de enganchamento ao racterizar o momento de troca intersubje-
desejo do outro que permite ao infans ace- tiva e pode ser utilizada da mesma forma
der ao status de sujeito. É neste sentido para descrever o circuito pulsional. Trata-
que Lacan afirma que o “desejo do homem se de destacar a dimensão desejante na
encontra seu sentido no desejo do outro, não articulação do conceito de pulsão com a
porque o outro tenha as chaves do objeto de- noção de intersubjetividade, reconhecen-
sejado, mas porque o seu primeiro objetivo é do, assim, o lugar do circuito pulsional nas
ser reconhecido pelo outro” (LACAN, 1998, comunicações humanas e nas trocas in-
p.132). tersubjetivas (ROUSSILLON, 2004b).
Como se vê, o estabelecimento do cir- A psicanálise permite que se destaque
cuito pulsional instaura o desejo do Ou- um aspecto importante na noção de in-
tro como meta da operação subjetiva de- tersubjetividade. Se os estudos de Trevar-
sejante, isto é, inconsciente. O destino de then e colaboradores evidenciaram a ocor-
tal estabelecimento não está dado previa- rência de uma sintonia rítmica multimo-
mente no desenvolvimento, necessitando dal (por envolver voz, movimentos de
da participação e do acionamento recípro- olhos e membros) que ocorre entre bebê e
co das operações psíquicas das funções cuidadores desde o nascimento, chamada
materna e paterna, tanto da parte do bebê por tais autores de simpatia, a psicanálise
como de seus pais ou cuidadores. introduz uma dimensão disjuntiva funda-
Golse, apoiando-se na revisão da te- mental na noção de intersubjetividade:
oria lacaniana feita por Laznik, diz que o ainda que haja mecanismos de desenvol-
terceiro tempo do circuito pulsional pode vimento responsáveis pelo engajamento
ser caracterizado como “o momento em que, recíproco coordenado entre bebê e seus
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