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Reflexões sobre o estatuto epistemológico das CSH: uma

revisão das categorias verdade, sujeito e subjetividade


PAMELLA ROCHELLE OLIVEIRA*
MARCUS CAMARGO ZUBEM**

Resumo: O presente ensaio teórico tem como objetivo discutir o conceito de verdade
com ênfase nas obras de Friedrich Nietzsche e Michel Foucault, percebendo a
temática como um dos conceitos chaves para se pensar o estatuto epistemológico das
Ciências Sociais e Humanas (CSH) na atualidade, já que o mesmo se faz
intrinsecamente ligado às condições de possibilidades dadas, incidindo por sua vez na
questão da produção de subjetividades, bem como do próprio sujeito, na medida em
que estes são produzidos a partir e numa teia de relações invisíveis pautada em jogos
de verdades e relações de poder. Para tanto, optamos num primeiro momento por
realizar uma breve discussão acerca dos principais conflitos epistemológicos no
campo das CSH, entre eles a antiga dualidade entre individuo x social, bem como a
questão de causa e feito.
Palavras-chave: Epistemologia; Verdade; Subjetividade; Sujeitos.
Abstract: This theoretical essay aims to discuss the concept of truth emphasizing the
works of Friedrich Nietzsche and Michel Foucault, realizing the issue as one of the
key concepts to think about the epistemological status of the Social Sciences and
Humanities (CSH) today, as the same is intrinsically linked to conditions of total
possibilities, in turn focusing on the issue of subjectivity production as well as the
subject itself, insofar as these are produced from a web and relations of invisible
guided by truths games and power relations. Therefore, we chose at first to conduct a
brief discussion of the main epistemological conflicts in the field of CSH, including
the old duality between individual x social as well as the question of cause and effect.
Key words: Epistemology; Truth; Subjectivity; Subject.

*
PAMELLA ROCHELLE OLIVEIRA é Mestranda pelo Programa Interdisciplinar em
Ciências Sociais e Humanas da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade do Estado do
Rio Grande do Norte.

**
MARCUS CAMARGO ZUBEM é coordenador e professor do Programa de Pós-Graduação
Interdisciplinar em Ciências Sociais e Humanas da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte,
PPGICSH/UERN.

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Sobre os conflitos epistemológicos nas práticas que constituem a ciência na
Ciências Sociais e Humanas na contemporaneidade, de forma a deixá-la
contemporaneidade mais clara e compreensiva, para tornar o
O termo epistemologia vem do grego, conhecimento científico entrelaçado à
surgiu com Platão e pode ser entendido “sabedoria prática” passando a ser dessa
de forma simples como o estudo forma comumente utilizado no dia a dia
científico que se preocupa com em sociedade.
problemas relacionados ao O recurso à hermenêutica assume
conhecimento, à crença e sua natureza. papel central, pois é ele que permite
Também pode ser percebido como a amenizar a incomunicabilidade da
filosofia da ciência, ou seja, o que nos ciência com outras formas de
permite refletir a ciência por meio da discurso consideradas menos
herméticas, como é o caso do
filosofia. Para Almeida (2007, p.11), “a
discurso religioso, estético e do
epistemologia moderna passou a senso comum (SANTOS, 1989, p.
consistir numa reflexão sistemática 12. apud ROLT, 2011).
sobre as condições e as implicações do
trabalho científico, sobre as suas formas Para Santos, a questão central numa
e os seus momentos”. Sobre os atuais reflexão epistemológica deve ser a
conflitos epistemológicos, Santos “dimensão social do conhecimento
(1989) afirma que a possível crise do científico e sua efetiva compreensão”, já
paradigma da ciência moderna se dá que o autor considera que o legado da
concomitante a uma crise ciência moderna tem sido
epistemológica. Dessa forma, o autor unidimensional, na medida em que
explica ser necessária uma revisão das acredita que ela vem enfrentando os

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diversos fenômenos sociais com Por um lado, seus trabalhos (no que
métodos muito abreviadores e tangem as questões supracitadas)
limitados. Para ele, o que deve realizam as importantes tarefas de
acontecer é que o discurso científico definir o objeto da Sociologia e
separá-la do senso comum, da
seja repensado, de modo que o mesmo
política, das filosofias especulativas
possa encontrar lugar nas práticas e das outras ciências. Por outro
sociais e vice-versa. lado, entretanto, tanto a ideia
durkheimiana quanto a ideia
weberiana sobre a relação da
Outro problema bastante comum e Sociologia (e da Ciência em geral)
discutido na área das Ciências Sociais e com a vida social possuem
Humanas é como pensar a estrutura das limitações, apesar de terem afastado
relações sociais sem tomar como ponto grande parte das ideias errôneas
sobre essa relação que eram
de partida a antiga questão dualista de
vigentes nos contextos em que
causa e efeito, bem como a esses dois sociólogos estavam
problemática o indivíduo x o social, e inseridos (OLIVEIRA, 2012,
vice-versa. Esse pensamento pode ser p.312).
observado nas obras clássicas de
Durkheim e Weber, na medida em que o Ainda hoje, essa questão de causa e
primeiro defendia que o ponto de efeito é bastante discutida e recebe
partida para se pensar a sociologia era o fortes críticas na área das Ciências
fato social, sendo este percebido como Sociais e Humanas, sobretudo quando o
unidade básica de análise, possuidor de foco é pensar como se dão as relações
duas características fundamentais: sociais e como é constituída a estrutura
“primeiro, ele tem um poder coercitivo, da sociedade e o próprio sujeito, nessa
e, segundo, ele é superior ao nível medida, pode-se dizer que as ideias de
individual, existindo para além das Durkheim e Weber já estejam de certo
consciências individuais” (OLIVEIRA, modo defasadas e por isso recebam
2012, p. 296). Já para Weber, o foco diversas críticas, sendo este um dos
estaria centrado na ação social, isto é, o principais problemas epistemológicos
sentido que os indivíduos dão para as da atualidade. Com efeito, é cada vez
ações que realizam, o que resultou na mais comum no cenário contemporâneo
criação da sua principal ferramenta, “o tentar ir além da questão da causalidade
tipo ideal, ou seja, a formação de para buscar novas formas de se pensar o
projeções ideal-típicas, visando social e como este se produz, trocando a
possibilitar a comparação entre as ações ideia de causa pela de relações, partindo
sociais...” (OLIVEIRA, 2012, p. 299). assim de uma percepção da estrutura
Dessa forma, pode-se dizer que a teoria social como uma rede dinâmica de
de Durkheim estaria ligada a questão de interdependências, o que pode ser
se pensar a realidade a partir da observado no pensamento de autores
coletividade, enquanto para Weber seria como Elias (1994) e Foucault (2008),
pensar a realidade a partir do indivíduo, ambos com visões próprias, mas que
o que coloca em cena não só o dialogam entre si nesse sentido.
antagonismo de pensamentos, mas,
sobretudo, a questão causal na qual se Elias (ibid.) percebe a trama social a
pensa a sociedade a partir de um único partir de uma malha de relações que vão
ponto de partida. Sobre ambos, Oliveira se configurando por meio de um
(Ibid) afirma que, processo dinâmico e de práticas de

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interdependência, que estariam subjetividades, estando todos os pontos
conectadas por meio de uma rede. relacionados e conectados.

Nessa rede, muitos fios isolados O objeto não espera nos limbos a
ligam-se uns aos outros. No ordem que vai libertá-lo e permitir-
entanto, nem a totalidade da rede lhe que se encarne em uma visível e
nem a forma assumida por cada um loquaz objetividade, ele não
de seus fios podem ser preexiste a si mesmo, retido por
compreendidas em termos de um algum obstáculo aos primeiros
único fio, ou mesmo de todos eles, contornos da luz, mas existe sob as
isoladamente considerados; a rede condições positivas de um feixe
só é compreensível em termos da complexo de relações
maneira como eles se ligam, de sua (FOUCAULT, 2008, p. 51).
relação recíproca. Essa ligação
Esse objeto considerado por Foucault
origina um sistema de tensões para
(Ibid.), trazendo para o nosso contexto,
o qual cada fio isolado concorre,
cada um de maneira um pouco pode ser tanto o social quanto os
diferente, conforme seu lugar e próprios sujeitos, já que ambos se
função na totalidade da rede. A constituem e se modificam à medida
forma do fio individual modifica que operam lado a lado nessa teia onde
quando se alteram a tensão e a estão estrategicamente posicionados,
estrutura da rede inteira. No entanto por meio das práticas discursivas por
essa rede nada é além de uma eles adotadas.
ligação de fios individuais; e no
interior do todo, cada fio continua a Partindo do mesmo raciocínio que Elias
constituir uma unidade em si; tem (1994) e Foucault (2008), mas desta vez
uma posição e uma forma com foco nas práticas culturais, ou de
singulares dentro dele (ELIAS, forma mais concreta nas noções de
1994, p. 35). habitus e campo, Bourdieu (1992;
1996) defende que é olhando para as
Assim como Elias (Ibid.), Foucault particularidades culturais que se poderá
(2008) também partilha a ideia de rede, perceber como se dão os processos de
compreendendo que os indivíduos e a produção do social, assim como de
sociedade estão de tal forma conectados subjetivação, além disso, o autor
que na medida em que um se também vê as práticas como
movimenta dentro dessa teia de relações mecanismos de controle.
o outro também acabará por se mover, o
que segundo ele resultaria numa espécie Os autores até aqui citados são alguns
de jogo de posições estratégicas. dos que possuem grande influência no
Foucault (Ibid) identifica a estrutura e pensamento contemporâneo da área das
as relações sociais com foco nas Ciências Sociais e Humanas, já que
práticas discursivas, considerando a buscaram pensar e problematizar
tríade poder/saber/sujeito. Para ele, o questões bastante delicadas e ainda hoje
poder é visto como produtor de saberes relevantes e atuais para se compreender
e, por sua vez, o saber como agenciador o sujeito e toda a trama social na qual
destes poderes, acreditando que ambos, este está inserido. Partindo da mesma
por meio de discursos lógica e desejo é que a partir de agora
institucionalizados, acabam por daremos ênfase a questão da verdade,
constituir certas verdades que são percebendo-a enquanto problema
apropriadas pelo social/indivíduo e epistemológico, que por sua vez
influenciam na produção de incidiria diretamente na produção de

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subjetividades e sujeitos. Consonante a consigo, porém, algo que parece ser
estas questões, compreendemos que a o primeiro passo rumo à obtenção
identidade desses indivíduos é daquele misterioso impulso à
produzida numa teia de relações verdade. Agora, fixa-se aquilo que,
invisíveis pautada num jogo de doravante, deve ser “verdade”, quer
dizer, descobre-se uma designação
verdades e relações de poder.
uniformemente válida e impositiva
A verdade como um problema das coisas, sendo que a legislação
epistemológico da linguagem fornece também as
primeiras leis da verdade: pois
A concepção de verdade baseada nas aparece, aqui, pela primeira vez, o
questões de causa-efeito, pré-existência contraste entre verdade e mentira, o
natural e absoluta e como um sistema mentiroso serve-se das designações
linear e universal, estão amplamente válidas, as palavras para fazer o
imaginário surgir como efetivo...
ligadas ao pensamento tradicional
(NIETZSCHE, 2007, p. 29).
iluminista, que por si só não é mais
capaz de dar conta de toda a
complexidade que envolve o tema e, por Em outras palavras, o autor afirma que a
isso, vai de encontro ao pensamento criação e o uso da linguagem para
contemporâneo das Ciências Sociais, o designar às coisas e seus significados,
qual leva os pesquisadores e pensadores que poderia ser considerada como o
da área a perceberem novas questões primeiro impulso à verdade, consiste
epistemológicas, entre elas as que já em um jogo arbitrário, de modo que o
vêm sendo aqui abordadas. primeiro contraste entre verdade e
mentira se faz presente, já que a
A vida humana, como bem existe em “mentira” poderá fazer uso da
suas estruturas e organizações sociais é linguagem que é criada para designar as
constituída tendo como base a coisas como as coisas são, ou seja, o
“verdade”, ou “inverdades” que ajudam que se entende por verdade. Ao falar
os sujeitos a bem viver, sendo, dessa sobre a verdade, Nietzsche (Ibid) afirma
forma, como Nietzsche (2007) explica que a mesma está associada ao devir e
em sua obra, necessárias para a ao movimento contínuo, podendo ser
sobrevivência no campo social, sendo a considerada como uma metáfora do
própria ideia acerca da verdade, como “real”.
única e absoluta, uma suposta mentira
que nos ajuda a enfrentar os desafios
cotidianos de nossa existência e muitas Assim sendo, a tentativa de se
buscar uma verdade entendida
vezes dar sentido a vida. Assim,
como a busca de conceitos
Nietzsche (ibid) questiona de onde vem universais, eternos, pré-existentes
o impulso pela verdade, já que para ele na natureza, para ele era uma
a mentira, o engano e o mascaramento falácia, pois a verdade, afirmava,
seriam comuns à natureza humana, incorporava, trazia em si a tragédia,
o engano, "... a sabedoria do corpo,
[...] mas, porque o homem quer, ao
o valor do erro e da ilusão, a
mesmo tempo, existir socialmente e
afirmação segundo a perspectiva de
em rebanho por necessidade e
cada um, o sujeito deixando-se
tédio, ele necessita de um acordo de
rolar pelo tempo guiado pelo
paz e empenha-se então para que o
pragmatismo dos instintos..."
mais cruel bellum omniun contra
(NIETZSCHE, 2000, p. 77 apud
omnes ao menos desapareça de seu
OLIVEIRA, 2007, p. 2).
mundo. Esse acordo de paz traz

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Foucault em suas diversas obras, com o som sob a forma de figura de
destaque aqui para a Arqueologia do areia, assim se destaca o enigmático
Saber (2008), As palavras e as Coisas “x” da coisa em si, uma vez como
(1992) e a tríade da História da estímulo nervoso, em seguida como
Sexualidade (1985; 1998; 1999), aborda imagem, e, por fim, como som. De
qualquer modo, o surgimento da
questões essenciais para se pensar a
linguagem não procede, pois,
verdade e os sujeitos; assim como o logicamente, sendo que o inteiro
campo da ciência como uma instituição material no qual e com o qual o
que outorga verdades; percebendo-os homem da verdade, o pesquisador,
dentro de tramas históricas estratégicas o filósofo, mais tarde trabalha e
e colocando-os sempre em relações edifica, tem sua origem, senão em
discursivas nas quais se evidencia a alguma nebulosa cucolândia, em
forte conexão entre o saber/poder como todo caso não na essência das
produtores e agenciadores de verdade. coisas (NIETZSCHE, 2007, p. 33-
Pode-se dizer que para o autor a 35).
verdade estaria mais para uma produção De forma resumida e simplificada, o
social de sentidos que surge em que o autor quer dizer é que as verdades
determinado tempo e espaço. Assim, as são ilusões das quais os sujeitos
verdades que conhecemos hoje podem esquecem que assim o são, ou seja, a
nem sempre terem existido e possuído linguagem e mesmo as práticas
esse status. É possível afirmar que o discursivas operam de modo a nos fazer
cerne do seu pensamento sobre o tema esquecer que nossa verdade é
se dá na questão das práticas socialmente e simbolicamente
discursivas, entendendo-as como construída. Somente quando
produtoras e mantenedoras dos esquecemos que ela é um construto
discursos instituídos como verdades, ou social que a mesma torna-se de fato o
melhor, desses “jogos de verdade”, que é. Assim sendo, ainda é possível
aliados a questão histórica e temporal, e afirmar que os sujeitos só vivem
é nesse pensamento que o presente tranquilamente enquanto acreditam ser
ensaio se ancora. detentores da verdade, o que se dá por
esquecerem ou não possuírem
Desse modo, é possível afirmar que
consciência da existência de um mundo
Nietzsche dialoga diretamente com a
metafórico, no qual as coisas que estes
questão das práticas discursivas
pensam conhecer na verdade são
abordadas por Foucault, por exemplo,
metáforas do que realmente são e não
quando trata da questão da linguagem
sua totalidade. No entanto, vale
como uma metáfora das coisas e do
questionar como estas metáforas
mundo, nos fazendo crer que possuímos
ganham papel de veracidade e passam a
domínio sobre as coisas pelo simples
serem aceitas como tais? E de que
fato de sabermos nomeá-las. Ou seja,
forma a linguagem e as práticas
ambos dialogam um com o outro nesse
discursivas se instituem como verdade?
sentido.
No decorrer das diversas obras de
Acreditamos saber algo acerca das
Foucault, há a busca em responder a
próprias coisas, quando falamos de
árvores, cores, neves e flores, mas estes questionamentos utilizando
com isso, nada possuímos senão diferentes exemplos, como a questão do
metáforas das coisas, que não louco, do delinquente e mesmo da
correspondem, em absoluto, às sexualidade, sempre tentando ir além
essencialidades originais. Tal como das noções já pré-estabelecidas acerca

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dos objetos, para procurar e pensar o divulgado ao longo do tempo, chegando
ponto no qual o tema passa a ser até mesmo a consolidar-se como
instituído como tal, quando de fato cânone.
torna-se objeto, para dessa forma o
desnaturalizar. Utilizando a loucura Diante da leitura e apreensão desses
como exemplo, Foucault (1994) destaca dois teóricos percebe-se que o grande
que ela não existe enquanto objeto dilema epistemológico acerca da
natural, mas apenas num determinado verdade está mais para como esta se
contexto social, a partir de uma constitui enquanto tal do que
determinada época e dentro de uma propriamente uma busca por sua
ordem discursiva. definição. Percebe-se também que a
verdade, do modo como é encarnada
Fizeram-me dizer que a loucura não pelos sujeitos, se dá na medida em que
existia, enquanto o problema era estes acreditam ter domínio sobre o
absolutamente inverso: tratava-se mundo e as coisas pelo simples fato de
de saber como a loucura, sob as saber nomeá-los, além da
diferentes definições que podemos
institucionalização e divulgação de
lhe dar num momento dado, pôde
ser integrada num campo certos discursos oficiais já pré-
institucional que a constituía como estabelecidos ao longo do tempo, e
doença mental, adquirindo um mesmo pela legitimação da ciência, que
determinado lugar ao lado de outras na contemporaneidade adquire status de
doenças (FOUCAULT, 1994, p.726 verdade.
apud CANDIOTTO, 2007, p. 211).
Relações de verdade e poder como
Com base nas proposições do autor, produtoras de sujeitos e
pode-se afirmar que a loucura passa a subjetividades
existir a partir do momento em que por
meio dos discursos médicos e Se a verdade, como foi visto
psiquiátricos que desenvolvem papeis anteriormente, torna-se o que é por
legitimadores na sociedade, a doença meio da legitimação de certos discursos
mental se constitui enquanto verdade. e da concepção de correspondência
Tendo por base o exemplo da loucura, o entre o dizer do sujeito e a “realidade”
que Foucault também aplica à questão das coisas, melhor dizendo, o uso da
da sexualidade e da delinquência, linguagem, fatos estes que se dão por
podemos afirmar que as verdades se meio de relações histórico-temporais de
constituem enquanto tais na medida em poder que se estabelecem, pode-se dizer
que os discursos sobre as mesmas que a verdade é produzida nas e pelas
passam a ser divulgados e aceitos por relações de poder/saber. Da mesma
determinadas instituições sociais que forma, seria possível afirmar que os
detém papeis legitimadoras e poder de sujeitos constroem para si suas
outorgar o que é válido, o que também identidades e subjetividades através da
pode se dar devido à repetição de apropriação dessas “verdades” e
determinado discurso ao longo do práticas discursivas para elaborarem
tempo. É o saber produzindo relações assim seu self, o que vai variar de
de poder por meio de jogos históricos e acordo com a época e o momento
temporais de verdade, corroborando histórico no qual estão inseridos.
com o que Nietzsche afirma ao dizer
que muitas vezes algo se constitui como A contemporaneidade, considerada por
verdadeiro quando passa a ser repetido e alguns pensadores como pós-

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modernidade 1 ou modernidade liquida; produzidos de acordo com as verdades
segundo Bauman (2007) é um momento nas quais acreditam e possuem como
assinalado por um mal estar que advém corretas, além de estarem submersos em
da liquidez e do caráter contraditório e determinadas tramas sócio-histórico-
provisório que a marca, já que nesse culturais, tendo em vista que essa tríade
momento as diferenças passam por aliada às relações de saber/poder seriam
constantes mutações e por isso são as responsáveis, ou melhor, o pano de
sempre múltiplas e provisórias, o que fundo para a produção dos sujeitos,
pode ser percebido na própria produção estando todos os pontos conectados
dos sujeitos e de suas identidades. Sobre entre si, o que nos leva mais uma vez a
essa questão dos sujeitos pós-modernos noção de rede, nos permitindo
Hall (2011, p. 71) afirma que as considerar os sujeitos como pontos
identidades estão “profundamente estratégicos espalhados na grande rede
envolvidas no processo de que é a trama social.
representação”. Assim, “a moldagem e
remoldagem de relações espaço-tempo No texto “O sujeito e o Poder”,
no interior de diferentes sistemas de Foucault (2010) discute como os
representações têm efeitos profundos indivíduos tornam-se de fato sujeitos,
sobre a forma como as identidades são percebendo os diferentes modos pelos
localizadas e representadas” (Ibid.), quais isto vem acontecendo nas
sendo elas, para o autor, sociedades ocidentais, com ênfase a três
modos de objetivação que segundo ele
Construídas dentro e não fora do
transformam os seres humanos em
discurso, nós precisamos
compreendê-las como produzidas sujeitos. O primeiro seria o modo de
em locais históricos e institucionais investigação, que objetiva o discurso e
específicos, no interior de as ações do sujeito tentando atingir o
formações e práticas discursivas estatuto de ciência. O segundo foi
específicas, por estratégias e classificado como práticas provisórias,
iniciativas específicas (HALL, que objetivam o sujeito a partir de seu
2003, p. 109). lugar social e suas relações com os
A partir desta concepção, é possível outros. E por fim, o terceiro seria o do
afirmar que a produção de domínio da sexualidade, com ênfase em
subjetividades e mesmo dos sujeitos como os homens aprenderam a se
está atrelada a própria noção de reconhecer como sujeitos de
construção e produção de verdades sexualidade.
discutida por Foucault. Ambas se dão
Sobre a própria concepção que se tem
por meio e dentro de práticas
discursivas e, porque não também dizer do termo sujeito, o autor vai explicar
que a palavra possui dois significados
em meio a relações de poder e
básicos, ambos relacionados à questão
micropoderes?. Destarte, assim como a
da sujeição, o primeiro seria de rendição
verdade é produzida por meio de
a alguém pelo controle e dependência e,
relações de poder e saber, bem como
o segundo, preso a sua própria
utilizando a linguagem enquanto
identidade por meio de uma consciência
metáfora do real, os sujeitos são
e autoconhecimento. Os dois
1 significados remetem a uma relação de
É importante ressaltar que a noção de pós-
modernidade discutida aqui ainda recebe
poder que subjuga e torna o ser sujeito a
inúmeras críticas e por isso não é totalmente algo. Sobre isto, salienta o autor:
aceita na área das Ciências Sociais. “pareceu-me que, enquanto o sujeito

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humano é colocado em relações de Na obra tardia de Michel Foucault, na
produção e de significação, é tríade História da sexualidade, além do
igualmente colocado em relações de autor pensar na lógica entre prazer e
poder muito complexas” (FOUCAULT, poder ele também se propõe a perceber
2010, p. 232). Frente a estas questões, e analisar as formas pela quais os
pode-se afirmar que os sujeitos se indivíduos se reconhecem enquanto
constituem enquanto tais inseridos sujeitos de uma sexualidade que se
numa teia de relações de poder, o que articula num sistema de regras e
nos leva a questionar o próprio poder, coerções, e que por meio dessa
para assim compreendermos melhor o sexualidade acabam por se deparar com
sujeito, sendo necessário perceber o que uma experiência de si. O livro O uso
de fato é o poder e como este se dos prazeres, por exemplo, sintetiza um
estabelece. campo de escolhas morais e modos de
O exercício do poder não é subjetivação dados por modos de
simplesmente uma relação entre sujeição a substâncias éticas e
"parceiros" individuais ou históricas, nos quais podemos perceber
coletivos; é um modo de ação de a questão da experiência de si para
alguns sobre outros. O que quer consigo mesmo (FOUCAULT, 1985;
dizer, certamente, que não há algo 1984).
como o “poder” ou “do poder” que
existiria globalmente, maciçamente Meu propósito não era o de
ou em estado difuso, concentrado reconstruir uma história das
ou distribuído: só há poder exercido condutas e das práticas sexuais de
por “uns” sobre os “outros"; o acordo com suas formas sucessivas.
poder só existe em ato, mesmo que, Também não era minha intenção
é claro, se inscreva num campo de analisar as ideias (científicas,
possibilidade esparso que se apoia religiosas ou filosóficas) através
sobre estruturas permanentes das quais foram representados esses
(FOUCAULT, 2010, p. 242). comportamentos (...). Tratava-se de
ver de que maneira, nas sociedades
Conforme o autor, o poder deve ser ocidentais modernas, constituiu-se
considerado uma “ação sobre ações”, uma "experiência" tal, que os
estabelecendo-se enquanto uma relação indivíduos são levados a
e não como algo palpável. Uma relação reconhecer-se como sujeitos de
de poder é um modo de ação que age uma "sexualidade" (...). O projeto
sobre sua própria ação, o que o distancia era, portanto, o de uma história da
de relações de violência, na medida em sexualidade enquanto experiência -
que segundo Foucault (2010), para que se entendemos por experiência a
exista uma relação de poder é preciso correlação, numa cultura, entre
que aquele sobre quem se exerça o campos de saber, tipos de
normatividade e formas de
poder seja reconhecido como sujeito da
subjetividade (FOUCAULT, 1985,
ação, fazendo parte livremente da p. 9-10).
relação de poder ali estabelecida, “que o
outro" (aquele sobre o qual ela se A obra citada tem como foco a
exerce) seja inteiramente reconhecido e problematização das práticas sexuais
mantido até o fim como o sujeito de enquanto produtoras de sujeitos,
ação; e que se abra, diante da relação de trazendo em sua estrutura os jogos de
poder, todo um campo de respostas, verdade aliados às regras de conduta
reações, efeitos, invenções possíveis” para assim evidenciar de que forma,
(Ibid, 2010, p. 242). nesse contexto, se dá a constituição do

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“eu”. Sobre a experiência de si e a esse repertório possibilita, na medida
constituição do eu, Larrosa (1994) em que não partimos da ideia de causa e
ressalta que, efeito, entender toda a trama social que
envolve os sujeitos contemporâneos
[...] mas que a própria experiência como uma rede de relações, na qual
de si não é senão o resultado de um esses sujeitos podem resistir ao
complexo processo histórico de
discursos dominantes, já que segundo
fabricação no qual se entrecruzam
os discursos que definem a verdade Foucault (2008), onde há poder há
do sujeito, as práticas que regulam resistência.
seu comportamento e as formas de Sendo assim, se chegamos à
subjetividade nas quais se constitui
compreensão de que a verdade é uma
sua própria interioridade. É a
própria experiência de si que se construção social e um signo
constitui historicamente como metafórico, que se dá por meio da
aquilo que pode e deve ser pensado. apropriação da linguagem como
A experiência de si, historicamente correspondência entre o dizer do sujeito
constituída, é aquilo a respeito do e a realidade das coisas, bem como pela
qual o sujeito se oferece seu próprio disseminação e aceitação de práticas
ser quando se observa, se decifra, discursivas em determinado espaço e
se interpreta, se descreve, se julga, tempo, pode-se seguir afirmando que as
se narra, se domina, quando faz identidades, ou melhor, os sujeitos, por
determinadas coisas consigo sua vez também são constituídos com
mesmo, etc. E esse ser próprio
base nesses jogos de verdade, ou seja,
sempre se produz com relação a
certas problematizações e no no que se tem estabelecido como
interior de certas práticas. Ao verdadeiro. Logo, esses sujeitos serão
analisar a experiência de si, o constituídos em meio a práticas
objetivo é “... analisar, não os discursivas permeadas por relações de
comportamentos, nem as ideias, poder.
não as sociedades, nem suas
"ideologias", mas as Considerações finais
problematizações através das quais O presente ensaio teórico procurou
o ser se dá como podendo e abordar alguns dos principais problemas
devendo ser pensado, e as práticas a
que são levantados na
partir das quais essas
problematizações se formam” contemporaneidade no campo
(LAROSSA, 1994, p. 8). epistemológico das Ciências Sociais e
Humanas (CSH), problematizando
Essa experiência de si pensada por inicialmente o antigo dilema em torno
Larrosa (Ibid.) com base nos estudos em da questão de causa x efeito,
Foucault, pode ser considerada tanto evidenciado por meio dos teóricos aqui
uma constituição histórica como abordados, os quais destacam que cada
cultural, dentro das singularidades de vez mais se faz comum tentar ir além da
determinada sociedade e época, que se questão de causalidade para buscar
desenvolvem permeadas pelas relações novas formas de se pensar o social e
de poder e jogos de verdade. Cada como este se produz, trocando esta ideia
sociedade e época possibilitam o pela de relações, para partir de uma
surgimento de um determinado percepção da estrutura social como uma
repertório que pode ser utilizado para a rede dinâmica de interdependências.
constituição dos sujeitos e da Num segundo momento, nos detemos
experiência de si, valendo ressaltar que na questão da verdade, que

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compreendemos também ser um Tradução Salma Tannus Muchail. — 8ª ed. —
problema epistemológico São Paulo : Martins Fontes, 1999.
contemporâneo, inclusive bastante ________________. História da sexualidade
complexo. Sobre a questão, chegamos à I: a vontade de saber. Tradução de Maria
Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon
conclusão que o grande dilema em
Albuquerque. Rio de Janeiro, Edições Graal,
torno da temática está mais para como a 1988, 13. Ed.
verdade se constitui enquanto tal, do
________________. História da sexualidade
que propriamente uma busca por sua II: O uso dos prazeres. Tradução de Maria
definição. Com efeito, estas discussões Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon
nos levam a pensar na produção dos Albuquerque. Rio de Janeiro, Edições Graal,
sujeitos e de suas subjetividades, 1985.
partindo de uma ideia de jogos de ________________. O sujeito e o poder. In:
verdade que se constituem por meio de DREYFUS, Hubert L. e RABINOW, Paul.
práticas discursivas, nos detendo em Michel Foucault. Uma trajetória filosófica. 2
como estes jogos dialogam com as ed., rev. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2010, p. 273-295.
relações de poder/saber, sendo ambos
agenciadores no processo de HALL, Stuart. Da diáspora, Identidades e
mediações culturais. Belo Horizonte: Editora
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________________. As palavras e as coisas:
uma arqueologia das ciências humanas. Recebido em 2015-07-22
Publicado em 2016-02-14

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