Você está na página 1de 5

“A CERVEJA DELE NINGUÉM PEDIRÁ”: UMA BREVE REFLEXÃO

SOBRE A PRODUÇÃO DE CERVEJA NA MESOPOTÂMIA

ANITA FATTORI
Universidade de São Paulo; Mestranda; FAPESP (processo no2016/07059-9)
anitafattori2@gmail.com

Em 1958, Albrecht Götze publicou na revista iraquiana Sumer cinquenta cartas


administrativas exumadas na década de 1940 do sítio arqueológico de Tell Harmal. Essas
cartas foram escritas em língua acadiana sob suporte de argila, os tabletes, valendo-se do
sistema de escrita cuneiforme.
O sítio arqueológico de Tell Harmal, localizado no vale do Diyala, mais
especificamente na periferia da moderna Bagdá, capital do Iraque moderno, corresponde à
antiga Šaduppûm. Esse conjunto epistolar foi produzido na primeira metade do período
paleobabilônico, durante o tempo em que Šaduppûm foi parte do reino de Ešnunna, reino
centrado na capital de mesmo nome. Ešnunna exerceu grande influência na região durante os
séculos XIX e XVIII AEC e foi durante a campanha de expansão do rei Ipiq-Adad II que
Šaduppûm tornou-se parte do reino, posição em que permaneceria até a chegada de
Hamurabi. Essas cartas foram produzida durante o reinado de Ibal-piel II (1779-1765 AEC),
último rei antes do saque (1766) e conquista (1761) de Ešnunna por Hammurabi (BAQIR,
1959, p.2; FRAYNE, 1990, p.562-572; GÖTZE, 1958, p. 5; p.101; p.305; SAPORETTI,
2002, p.90; VAN DE MIEROOP, 2007, p.85).
Durante o período paleobabilônico (2000-1600 AEC) a prática epistolar ganha
destaque, tornando a comunicação local e de longa distância mais eficiente. Estima-se o
acesso à publicação de cerca de sete mil cartas desse período que foram exumadas de
aproximadamente trinta sítios arqueológicos da região do atual Iraque. Destacamos que essa
tipologia de documento, quase em sua totalidade, abarca assuntos da administração ou do
comércio individual. (BÉRANGER, 2016).
Nessa caso específico, como destacado anteriormente, tratam-se de cartas
administrativas com destaque para aspectos da organização administrativa de Šaduppûm,
principalmente o lidar com as questões agrícolas.
Através da análise de uma carta desse conjunto, a carta IM 51321, apresentaremos a
transliteração e tradução nossa do documento, o seu contexto de produção e uma
possibilidade de interpretação.
O assunto principal dessa carta é a distribuição de cevada para a produção de cerveja.
Não temos aqui o objetivo de abordar exaustivamente o universo da cerveja na Mesopotâmia.
Por meio de alguns documentos e análises publicados por diversos autores, questões sobre os
processos de produção e os termos empregados para esses processos serão brevemente
discutidos com o intuito de compreender melhor o processo do qual nossa carta fala.
Designada pelo logograma sumério KAŠ e pela palavra acadiana šikarum, a cerveja
produzida na Mesopotâmia foi uma bebida altamente nutritiva que desempenhou um
importante papel social. Era consumida largamente por homens e mulheres de diferentes
classes sociais em cerimônias religiosas, em banquetes reais ou simplesmente no dia a dia.
Por meio de vestígios arqueológicos e documentos que sobreviveram desde o terceiro
milênio AEC, assiriólogos como A. Leo Oppeinheim (1950), Miguel Civil (1964), Peter
Damerow (2012) e Marteen Stol (1995) se concentraram em compreender diversas questões
sobre a produção e o consumo da cerveja. Entre uma vastidão de documentos, escolhemos
alguns para exemplificar: os provérbios sumérios 1.105 e 2.123 (GORDON, 1959); listas
léxicas, mais especificamente o documento 23 da série hubullum (OPPENHEIM e
HARTMAN, 1950; RAINER, 1974); código de leis, com destaque para a lei 41 do Código de
Leis de Ešnunna e as leis 108 e 111 do Código de Hammurabi (ROTH, 1995); ‘A Lamentação
sobre a destruição de Sumer e Ur’ (MICHALOWSKI, 1989) e o texto mítico conhecido como
o Hino para Ninkasi (CIVIL, 1964).
O documento que mais nos interessa nesse contexto é o ‘Hino para Ninkasi’, um texto
composto por doze estrofes dedicado à deusa suméria da cerveja, Ninkasi. Nesse documento
temos a descrição de etapas importantes para o processo de produção da cerveja, além do
emprego de termos e descrição de objetos específicos utilizados nessa situação.
Tendo em vista todas essas questões, podemos afirmar que a base da produção de
cerveja na Mesopotâmia consistia basicamente na produção do malte (grão germinado) e na
fermentação (grão morto). Após compreender o processo, apresentaremos a nossa escolha de
transliteração, tradução e interpretação da carta IM 51321.
Com relação ao estilo, as cartas produzidas no período apresentam regras implícitas
para a sua composição, a principal delas é observada em todo conjunto epistolar de Tell
Harmal: a fórmula do cabeçalho. Nas três primeiras linhas do documento o cabeçalho nos
permite identificar o remetente e o destinatário. No documento em questão Imgur-Sîn é o
remetente e Sīsī é a destinatária: “Para Sīsī dize, assim (fala) Imgur-Sîn”.
O remetente, Imgur-Sîn, é nome conhecido em nossa documentação, ele é um dos
administradores da cidade de Šaduppûm. Sua função envolve o cuidado com os campos,
gozando de certa autonomia no controle de fluxos, principalmente em relação à produção
agrícola. No caso dessa documentação podemos observar que controla o fluxo de grão em
diferentes estágios de cultivo utilizados na produção de cerveja, demandando ações entre a
destinatária da carta, Sīsī, e um terceiro sujeito, Imbi-Ištar. Optamos por essa interpretação
levando em conta o emprego dos verbos no imperativo pelo remetente.
A destinatária, Sīsī, aparece uma única vez nesse conjunto epistolar. É também a única
mulher na figura de interlocutora nas cinquenta cartas. Sabemos que se trata de uma mulher
pelo emprego do pronome feminino da segunda pessoa do singular na linha oito do
documento. Textos e documentos iconográficos mostram que a mulher desempenhava
diversas atividades na sociedade Mesopotâmia. Em destaque o trabalho nos setores de
processamento de alimentos, como, por exemplo, o ato de debulhar e triturar grão que
pertenciam ao templo. No século III selos cilíndricos na cidade de Uruk demostram mulheres
envolvidas na produção de cerveja (BRENIQUET, 2016, p.16; p.21). Nessa carta Sīsī parece
estar diretamente envolvida com os primeiros passos para a produção de cerveja, enviando um
tipo específico de cevada e malte para Imbi-Ištar. Podemos questionar se ela não estava em
uma posição de controle e distribuição de algum armazém.
Já Imbi-Ištar, participa dos envio e recebimento das demandas descritas na carta.
Observando o contexto, nos parece ser o encarregado pela produção da cerveja, talvez o
mestre cervejeiro.
Tendo em vista o contexto geral desse documento, temos três termos que parecem
fazer parte do processo de produção da cerveja. São eles: ŠE.PI, ŠE uplētim, ŠE+MUNU4 e
KAŠ.ḪI.A.
Os termos ŠE+MUNU4 e KASH.ḪI.A são bem conhecidos e acordados entre os
assiriólogos. Significam, respectivamente, malte e cevada.
Os dois primeiros termos ŠE.PI e ŠE uplētim são objeto de discussão. Observando a
construção desses dois termos e tentando compreender a trajetória da produção da cerveja,
será proposto uma interpretação para ambos dentro do texto dessa carta.
Por fim, uma proposta de tradução completa do documento será apresentada.

BIBLIOGRAFIA

Dicionários e Gramáticas
AHw = VON SODEN, W. Akkadisches Handwörterbuch (v.I, 1985; Zweite Auflage, v. II, 1972;
v.III, 1981). Wiesbaden: Otto Harrassowitz.
CAD = The Assyrian Dictionary of the Oriental Institute of the University of Chicago,
comumente mencionado como Chicago Assyrian Dictionary (1956-2010). 21 volumes.

CDA = BLACK, J.; GEORGE, A.; POSTGATE, N. A Concise Dictionary of Akkadian. Wiesbaden:
Harrassowitz Verlag, 2000.

ePSD = The Pennsylvania Sumerian Dictionary Project. http://psd.museum.upenn.edu/epsd/

HUEHNERGARD, J. A Grammar of Akkadian. Indiana: Eisenbrauns,1997.

LABAT, R. Manuel D’épigraphie Akkadienne: signes, syllabaire, idéogrammes. Paris: Librairie


Orientaliste Paul Geuthner S.A., 1995.

MZL = BORGER, R. Mesopotamisches Zeichenlexikon. Munster: Alter Orient und Altes Testament
305, 2004.
Bibliografia Teórico Metodológica

BAQIR, T. Tell Harmal. Bagdá: Republic of Iraq, Directorate of Antiquities, 1959.

BÉRANGER, M. "La difficulté d'écrire une lettre en Mésopotamie: étude à partir d'une base de
données relationnelle et du logiciel TXM". Annales de Janua, n°4, 18 de abril de 2016. Disponível
em: http://09.edel.univ-poitiers.fr/annalesdejanua/index.php?id=1343#tocto2n6. Acessado em: 10 de
novembro de 2017.

BERNIQUER, C. “Weaving, Potting, Churning: Women at work during the Uruk Period. In: LION,
B.; MICHEL, C. The Role of Woman in Work and Society in The Ancient Near East.
Boston/Berlim: De Gruyter, 2016, p.8-28.

CIVIL, M. “A Hymn to the Beer Goddess and a Drinking Song”. In: Studies Presented to A. Leo
Oppenheim. The Oriental Institute of the University of Chicago, Chicago: The Chicago University
Press, 1964, p.67-89.

DAMEROW, P. “Sumerian Beer: The Origins of Brewing Technology in Ancient Mesopotamia”.


Cuneiform Digital Library Journal, 2012, v.2 p.1-20.

FRAYNE, D. Old Babylonian Period (2003-1595 BC). RIME 4. Toronto/Buffalo, Londres:


University of Toronto Press, 1990.

GORDON, E. I. Sumerian Proverbs. Glimpses of Everyday Life in Ancient Mesopotamia.


Philadelphia, Museum Monographs, 1959.

GÖTZE, A. “Fifty Old Babylonian Letters from Harmal”. Sumer, n. 14, p. 3-79, 1958.

HARTMAN, L.; OPPENHEIM, L. “On Beer and Brewing Techniques in Ancient Mesopotamia
According to the XXIIIrd Tablet of the Series HAR.ra = hubullu .” JAOS, suplemento 10, Baltimore:
American Oriental Society, 1950.

MICHALOWSKI, M. The Lamentation Over the Destruction of Sumer and Ur. Winona Lake, IN,
1989.

ROTH, M. Law Collections from Mesopotâmia and Asia Minor. WAW, v.6, Scholars Press:
Atlanta, 1995.
SAPORETTI, C. La Rivali di Babilonia. Storia di Eshnunna a tempi di Hammurapi. Roma: Newton
Compton, 2002.

STOL, M. “Private life in ancient Mesopotamia”. In: SASSON, J. (Ed.) Civilisations of the
ancient Near East, Vol. 1, Nova Iorque: Simon & Schuster, 1995., p.485-502

VAN DE MIEROOP, M. A History of the Ancient Near East, ca. 3000-323 B.C. Blackwell, 2007.

Você também pode gostar