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Nota do autor

Human history becomes more and more


a race between education and catastrophe.
H. G. Wells

Diz-se que um livro pertence primordialmente aos seus leitores.


Se isto é verdade para os outros livros – e eu creio firmemente que o
seja – muito mais o é para este. O novo voo de Ícaro é pura e
simplesmente um mosaico de encomendas. Cada um dos seus temas
foi-me proposto por alguém para reflexão. E mais não fiz.

O historiador islamista Ibn Khaldoun1, que viveu no século XIV,


escreveu um dia o seguinte: Para se perceber a natureza da reflexão
temos de saber primeiro que ela faz uso da percepção, que é o acto
pelo qual o ser perceptor toma consciência daquilo que existe fora
dele. Como alguém que, de uma maneira ou doutra, tem vivido nos
últimos trinta anos a tentar perceber e gerir o lado visível da
educação, não me restam grandes dúvidas de que é no real que
acontece a vida. Não me restam também grandes dúvidas que essa
seja a percepção mais difícil. Daí que o trabalho do educador não seja
muito mais do que o de olhar o real e tentar percebê-lo o mais
verdadeiramente que os meios ao seu alcance lhe permitem.

Muitos desses meios têm a ver com a experiência e com a


reflexão alheia. O conhecimento é, de facto, uma construção social e
é também no diálogo silencioso, mas quantas vezes eloquente, com a
palavra escrita, construtora do pensar de outrem, que fortalecemos
os alicerces do nosso conhecimento e que encontramos anúncios de
possibilidades novas de perceber. Daí que tenha grandes reservas
quanto a conceitos como a originalidade. Aliás, quanto mais
aprofundo a minha leitura mais ressonâncias encontro de percepções
que eu julgava serem só minhas, fruto de vivências muito próprias,
geradas em mundos que me pareciam particulares.

Parece-me cada vez mais difícil distinguir, em termos de


conhecimento, o particular do geral, a parte do sistema. Se a
interdependência nos define como seres singulares – no sentido de
únicos – ela também nos percebe como integrados numa teia humana
de realidades e de virtualidades, com dinâmicas e reflexos difíceis de
aflorar. Por isso, estes textos se encontram enriquecidos pelo pensar
e pelas palavras de muitos outros. E se me é possível identificar
aqueles que me tocaram mais recentemente, o mesmo dificilmente
acontece com muitos mais cujos saberes simplesmente interiorizei e

1 Khaldoun, Ibn citado por Ulich, Robert (1954). Three thousand years of
educational wisdom. Cambridge, MA: Harvard University Press, p. 199.

1
fiz meus. Aqueles que aqui vão explicitamente citados exteriorizam
abordagens pertinentes a muitas das questões que me preocupam
como educador. Muitas das suas palavras foram vertidas para o
Português por tradutores abalizados. Quando, todavia, o título da obra
aparecer em língua diferente, a tradução é da minha inteira
responsabilidade. Espero que a tradução-interpretação desses textos
não fuja muito ao pensar que os consubstancia.

De qualquer modo, dificilmente poderemos ler sem interpretar


e cada interpretação é, também, a seu modo, uma recriação. Daí a
força pujante do diálogo como acção criadora e, por natureza,
transformadora da realidade. A palavra une-nos, mesmo no
desacordo, porque nos afirma como seres que pensam
dialogicamente. E é nesta teia de palavras-percepções que o real
acontece e ganha sentido.

O real, todavia, assusta. Quantos não preferem os mundozinhos


que criaram, ou pediram emprestados, para neles se refugiarem e
viverem a contemplação consoladora da futilidade? Muita da
escolaridade que por aí se vende a troco de impostos ou de propinas
não é mais do que isso: a iniciação da juventude nos segredos dos
arcanos conhecidos. Por muito que se pense sobre isso, nunca se
chega a qualquer reflexão. A realidade do hoje fica quase sempre do
lado de fora.

Preocupa-me verdadeiramente este divórcio entre o real da


escola e o real da vida. O constatar contínuo de que na escola se vive
mais do passado que do apelo do futuro levou-me a convidar
insistentemente ouvintes e leitores a debruçarem-se sobre a vida
como a via mais sedutora para uma educação bem conseguida. Aliás,
o avanço estonteante da Física, da Biologia, da Neurofisiologia, das
ciências do Caos e da Complexidade, leva-nos a percepções do real
que nos desafiam. Pena que muita desta ciência não tenha ainda
atingido foros de cidadania nas escolas.

Por outro lado, a gestão das escolas e a figura do gestor escolar


como líder educacional começa a afirmar-se como uma das grandes
preocupações da sociedade portuguesa. As reflexões que aqui se
alargam a um público maior são perspectivadas por alguém que fez
da gestão das escolas e, sobretudo, da gestão dos processos
educacionais, um projecto de vida. É difícil a quem gere alhear-se da
realidade. Se estas reflexões têm algum mérito, não pode ser outro
que o nascerem do meu continuado deslumbramento com a
percepção do real, com a descoberta do sentido, com a incomparável
sedução que existe no construir de um mundo melhor.

Todavia, é fácil a gestores deixarem-se aprisionar pelo


quotidiano. As propostas de reflexão que me foram fazendo,
obrigaram-me a romper as amarras desse quotidiano e a tentar

2
percebê-lo melhor, como algo integrado dinamicamente num todo
muito maior e eminentemente complexo. Estes textos são por isso
exercícios de reflexão cingidos por uma temporalidade limitada. As
percepções e as reflexões de amanhã ainda estão por fazer.

Casa do Freixo
Fevereiro de 1999

3
UMA EDUCAÇÃO PARA O SÉCULO XXI

Wade Davis, já fora lenhador, prospector, guia de caça e guarda


florestal. Após ter completado duas licenciaturas, uma em
antropologia e outra em biologia e um doutoramento em
etnobotânica na Universidade de Harvard, Wade dirigiu-se em Abril de
1982 ao Haiti para investigar dois casos documentados de zumbis --
os chamados mortos vivos -- e penetrou profundamente na sociedade
Haitiana e na mística voudou, ao ponto de ter conseguido a fórmula
da droga usada na transformação de uma pessoa num zumbi. Wade
Davis relata essa maravilhosa experiência num livro enfeitiçante, a
que chamou A Serpente e o Arco-Iris, símbolos na mitologia voudou
da criação do mundo.

A catarata de Saut d'Eau é um lugar de peregrinação para os


Haitianos. É aí que se encontra a mapou, a árvore sagrada voudou, e
naquele dia de Abril, como em tantos outros, quando Wade chegou
por volta da meia noite, já o local se encontrava repleto de gente
banhada numa luz soporífera de velas, suor e magia. Mas deixemos
Wade Davis2 contar a sua história:

Depois de me ter banhado nas quedas de água, dirigi-


me até à árvore mapou, e ali entre as raízes
serpentinas e grossas como contrafortes abriguei-me
do frio e do vento húmido. O rugir da água dominava
todos os outros sons, mas dentro em pouco ele mesmo
diluiu-se, deixando uma almofada benvinda de silêncio,
o tom vazio que imaginamos ser ouvido
continuamente pelos surdos.

Havia duas cobras, avisaram-se, uma verde e uma


negra, que viviam na base da árvore. Se assim era,
deixaram-me em paz. Do horizonte do meu sono
reparador sentia apenas a pele grossa da mapou de
cada lado da minha cara, e por debaixo das minhas
mãos a textura da casca das raízes. Eu conhecia cada
estrutura dentro daquela árvore, cada veio, cada poro
e filamento, a colocação de cada estame, e o fluir de
cada gota de sangue verde. Em estudos botânicos já a
tinha visto ser dissecada em mil e uma partes, até que
cada uma aparecia isolada, um hipotético evento
separado, suficientemente simples para ser explicado
de acordo com as regras do meu treino. Este era o
legado da minha ciência. Cada um de nós lascando

2 Davis, Wade (1985). The Serpent and the rainbow. New York: Simon &
Schuster, p. 172.

4
continuamente o mundo em pedacitos, fazendo a
nossa parte. Mas como definir Loco, o espírito da
vegetação, aquele que dá poderes curativos às folhas?
Esta era a sua casa, e parecia-me que estava ali
estranhamente vivo e subitamente diferente, não uma
série de componentes, mas uma entidade viva e
singular, animado pela fé.

Que fazer de Loco, realmente! Onde é que ele cabe nos nossos
compêndios de ciência? Que fazer da unidade intrínseca do nosso
mundo quando o que sabemos fazer melhor é separar, decompor,
analisar? Como aperceber a teia de relacionamentos que define a
sociedade humana quando persistimos em tratá-la como um arranjo
simétrico de inúmeros fenómenos e actividades separados entre si
por noções de tempo, espaço e função? Que fazer de Loco,
realmente! Preocupamo-nos desmesuradamente sobre o que poderá,
ou deverá ser a educação no século XXI, como se por um acto de
magia o dia 1 de Janeiro de 2001, proporcionasse, um pouco como o
filme 2001-Odisseia no Espaço, o encontro com uma realidade súbito
transformada. Com toda a probabilidade, o dia 1 de Janeiro de 2001
será em tudo parecido aos dias 1 de Janeiro de qualquer ano. É
provável que chova nuns lados, neve noutros e se vá à praia no
hemisfério sul. Porquê, então esta preocupação com o passar do
milénio? O que é que a contagem dos dias em anos, horas e minutos
tem a ver com os processos de desenvolvimento da humanidade, tem
a ver com a educação? Será que em termos de aprendizagem o
amanhã seja mesmo o dia seguinte? Penso bem que não. Mas em
termos de ensino, o amanhã é mesmo o dia que se segue.

Não restam dúvidas sobre a genialidade das ideias dos homens


dos séculos XVII e XVIII. A procura de um melhor mundo, uma
observação mais crítica da realidade envolvente e a sede inventiva de
maiores e melhores meios tecnológicos para combater a escassez
sugeriu maneiras diferentes de vida e de trabalho, e conduziu à
explanação de conceitos tão prenhes de lucidez e evidência que
muitos deles ainda perduram. A centralização da vida humana na
ordem e no equilíbrio; a fundamentalidade da razão no
relacionamento do homem consigo mesmo, com os outros e com as
ideias; a preocupação com a simetria e a medida justa na concepção
estética da vida e das coisas; a fé racionalizada na capacidade
humana de superar as suas próprias insuficiências; a transformação
do conflito num jogo polido de cavalheiros governado por regras
desenhadas para conter excessos e assegurar uma resolução
racional, rápida e segura desse conflito; a identificação de ideais
nobres como a liberdade, a igualdade e a fraternidade como mentores
da vida social e política, mais tarde até, da vida económica dos povos
e dos estados; o estabelecimento da discussão, quiçá mesmo do
diálogo, como o meio preferido de decidir dilemas e de acelerar o
ritmo do progresso; a visão do mundo como uma realidade à espera

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de ser aperfeiçoada pelo homem racional e razoável; tudo isto
transformou por completo a face do planeta e revolucionou para
sempre a vida humana.

E enquanto que a máquina substituía com vantagem o músculo


do homem como força motriz e produtora, acenando pela primeira
vez com a possibilidade duma vida mais livre para o prazer e para a
cultura, a ideia dessa mesma máquina como metáfora e paradigma
da organização social e política ganhou facilmente adeptos e
apologistas. De facto, nada parece mais racional e razoável que uma
máquina, desenhada à medida dos nossos objectivos e capaz de
prover tantas das nossas necessidades com um mínimo de
problemas. Da máquina útil da indústria ao conceito da grande
máquina do mundo foi um passo, um dos maiores passos dado pela
humanidade.

O paradigma mecanicista conduziu a humanidade a uma


redefinição completa de muitas das suas funções vitais:

· Se o mundo é uma máquina, tudo o que nele existe, incluindo o


homem são peças importantes e vitais ao seu bom funcionamento.
Uma peça duma máquina tem, todavia, uma função definida e útil.
A utilidade e daí, talvez até o bem, dessa peça depende da sua
capacidade de funcionar sem grandes ou até nenhumas alterações
de comportamento, de modo a que a grande máquina do mundo
possa atingir níveis cada vez maiores de eficiência e de eficácia.

· A noção de peça obrigou a uma redefinição do fenómeno


educativo. A visão renascentista do homem como centro da vida e
do mundo cedeu lugar a uma concepção desse mesmo homem
como um componente de algo maior e mais complexo que o
abrangia e incluía. A educação como perseguição livre do
conhecimento não parecia a melhor maneira de preparar peças
com funções definidas e passíveis de serem facilmente
substituídas para que a grande máquina não parasse. Criou-se
assim a escola racionalizada destinada mais a formatar que a
formar sucessivas gerações para o bom funcionamento da grande
máquina do mundo. A aprendizagem cede a sua primazia ao
ensino deliberado e organizado de cada vez maiores números de
jovens. Estandardiza-se a arquitectura, o currículo e o
funcionamento da escola. Para que a ordem e a harmonia imperem
é necessário que tudo seja regulamentado e prescrito. O
conhecimento passa a ser mais códice que descoberta, e o aluno,
é considerado pouco mais que um vaso vazio, destinado, a priori, a
ser enchido pelos dados ditados pelo professor; a medida em que
o aluno era capaz de absorver esses dados e reproduzi-los sem
grandes alterações, definia o grau da sua utilidade: a nota.

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· O conhecimento humano foi também condicionado, catalogado,
seriado, estandardizado e compartimentado convenientemente em
áreas distintas e autónomas, a que se chamou disciplinas, e que
raramente entravam em contacto umas com as outras. A visão da
realidade como um todo praticamente perdeu-se. Deu-se primazia
ao estudo aturado de partes desconexas e descontextualizadas
dessa mesma realidade.

· O tempo que até aí geria quantas vezes o trabalho humano,


passou a ser definido como uma mercadoria, com tabelas de
preços e valias diferentes. O homem deixou de olhar o nascer e o
pôr do sol como definidores naturais da sua actividade. O tempo
passou a mero componente da grande máquina do mundo e a
moeda de troca entre trabalho e produção. Tal e qual como ainda
hoje em muito lado. A nossa valia é definida em termos de quanto
custam as horas e os minutos da nossa vida, não tanto em termos
da qualidade daquilo que fazemos e contribuímos.

· A relação homem - peça - tempo - salário produziu a noção de


emprego que ainda hoje conhecemos. Nascemos, vamos para a
escola anos a fio, debitamos dados conhecidos, esperamos, quase
como um direito, que nos dêem um emprego e esperamos poder lá
permanecer pelo espaço maior de tempo possível. Continuamos a
falar das saídas profissionais dos diferentes graus da nossa
escolaridade em termos de empregos, muito raramente em termos
de trabalho. O grande objectivo é ainda a preparação para ganhar
a vida, raramente a preparação para viver a vida.

· A vida em sociedade foi também radicalmente transformada pela


visão mecanicista da realidade. Enquanto que o génio humanista
da renascença apelava, não propriamente para o conceito de
pessoa como hoje o começamos a compreender, mas para
modelos aristocratizados de indivíduo -- o homem comum pouca
valia tinha – o convívio social tendia, no entanto, para a
prossecução da diversidade do saber. A ideologia individualista,
que se lhe segue e um dos grandes fundamentos do liberalismo,
ao fazer do homem – a criança e a mulher ainda contavam pouco –
um ser moral e politicamente autónomo, pressupõe uma vida
social harmonizada pela razão. A eclosão da Revolução Industrial,
quase simultânea à propagação do individualismo, criou, todavia,
condicionalismos que transformaram profundamente essa
ideologia. A máquina como metáfora da harmonia, do progresso e
da paz era irresistível. Acontece, porém, que uma das
características dum sistema mecanizado define-se pela
necessidade de uniformizar processos e de estandardizar produtos.
O indivíduo mecanizado é uma peça tão uniforme quanto possível.
A sociedade, por seu turno, pouco mais pode ser do que uma
organização tão estandardizada quanto necessário. E assim
nascem as Academias do Elogio Mútuo, as associações secretas e

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formatadoras, os clubes masculinos e os clubes femininos, os
agrupamentos políticos definidos mais pela rigidez da aderência
aos programas que pela discussão e acção livres sobre as
conjunturas sociais, os cartéis da produção, os sindicatos da
actividade laboral. Toda esta vida social desenrola-se através de
activismos consumidores de tempo, raramente através de acção
livre no tempo. O homem, e, apesar de tudo, irremediavelmente a
mulher, superprogramados, superocupados e superenquadrados,
perderam muita da sua capacidade de raciocínio crítico, de
pensamento livre, de acção transformadora. Os próprios processos
democráticos que surgem na esteira do liberalismo reforçam esta
conjuntura. Como já em 1926dizia um grande historiador
harvardiano, Arthur Schlesinger3: Em assuntos de religião, a igreja
diz, “Deixa-me pensar por ti.” Em assuntos de conduta pessoal, a
comunidade declara, “Nós pensaremos por ti.” Em assuntos
políticos, os líderes partidários anunciam, “Nós já pensámos por
ti”.

Esta dinâmica ordeira, previsível e estável da actividade social


possibilitou a melhoria rápida das condições de vida e, já nos nossos
dias, a vitória sobre a escassez. A fome que ainda grassa em muitos
continentes já não tem tanto a ver com a nossa capacidade de
produzir alimentos suficientes. Tem, pelo contrário, muito mais a ver
com problemas de desenvolvimento social e político.

Há, todavia, cada vez mais sinais de insatisfação, cada vez mais
instabilidade, cada vez mais confusão, cada vez mais alienação, cada
vez menos esperança, cada vez menos fé no futuro. E, no entanto, a
riqueza rodeia-nos por todos os lados: os hipermercados abarrotam
de mercadorias e de compradores, as estradas estrangulam-se de
tráfico, as praias e os locais de prossecução de prazer nunca tiveram
tanta clientela.

Parece, todavia, que a grande máquina do mundo já não


consegue assegurar a estabilidade acostumada; parece que, afinal,
as peças formatadas já não se ajustam à máquina, se é que ela ainda
existe; parece que, de súbito, o tempo conta-se cada vez menos em
unidades fixas de horas e minutos, pois como contar em horas o
desenvolvimento de um ser humano; parece que, mal-
afortunadamente, a reforma não conduz a uma vida nem mais
saudável nem mais digna; parece, ironia das ironias, que o sistema
falha, pois o financiamento dos sistemas de reforma parece
questionável; parece que, sabe-se lá porquê, as pessoas fogem cada
vez mais de organizações formatadoras, e, havendo desaprendido a
convivência humanizada, virtualizam-na na televisão e na internet;
parece afinal que doze ou vinte anos de escolaridade já não
conduzem necessariamente a um emprego; parece mesmo que

3 Schlesinger, Arthur M. (1972). Nothing stands still. Cambridge: The Belknap


Press, p. 138

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apesar do muito que cada vez mais existe por fazer, menos
capacidade temos de o executar. Parece, portanto, que não falta
trabalho. Parece que o que mesmo falta são empregos.

A escola como preparação para ganhar a vida está em crise


profunda. Vivemos assim um paradoxo que nos angustia e nos faz
enfermar de incapacidade, de impotência, de alienação. Como
resolvê-lo não parece tarefa fácil; que o digam os milhares, milhões
até, de desempregados por esse mundo fora. Mas se parece haver
trabalho, porque não surgem os empregos? Bastará olhar para o
nosso país para constatarmos o muito, o imenso que ainda está por
fazer. Porque será que é cada vez mais difícil para os jovens
acabados de sair das nossas escolas conseguir um emprego? E, se há
trabalho, porque não conseguirão trabalhar? Debrucemo-nos um
pouco sobre este paradoxo e tentemos descortinar algumas das suas
nuanças.

Não há dúvida que a concepção mecanicista do mundo, se bem


que prevaleça em muito do que ainda define o nosso quotidiano já
não serve como matriz da vida tal e qual a percebemos agora. Quer
isto dizer que o século XXI não existe num horizonte temporal de
pouco mais de três anos. O século XXI como símbolo de um tempo
diferente já começou há umas dezenas de anos. Em termos de
desenvolvimento, o século XXI poderá mesmo ser já passado, dado
que a realidade que ele simbolicamente prefigura conhece-se,
constroi-se e vive-se a cada momento. Ora acontece que a realidade
em que vivemos é uma realidade emergente, é uma realidade de
propensões, de tendências, no dizer de Popper4.

Que propensões, que tendências são essas que nos possibilitem


definir um processo educativo mais eficaz? Todos nós temos ouvido
falar sobre muitas delas. Ouve-se falar continuamente em fenómenos
como globalização, complexidade, polivalência, funcionamento em
rede, saber como capital, auto-ajuda, auto-organização. Italo Calvino 5
faz-nos seis propostas: Leveza, Rapidez, Exactidão, Visibilidade,
Multiplicidade e Consistência. Tudo isto é fundamental à concepção
de um ou mais processos educativos que nos permitam uma vida
digna e profícua nos tempos que correm. Tudo isto aponta, também,
para aquilo que pode transformar a escola que prepara para ganhar a
vida na escola que prepara para viver a vida. Este aquilo
transformador é uma mudança essencialmente cultural.

Aliás, as mudanças que terão de ocorrer são quase todas elas


mudanças culturais, mudanças de ideias, mudanças que ocorrem
dentro de nós. Por muito que mudemos as estruturas das nossas

4 Popper, Karl E. (1991). Um mundo de propensões. Lisboa: Editorial


Fragmentos.
5 Calvino, Italo (s/d). Seis propostas para o novo milénio. Lisboa: Editorial
Teorema, Lda.

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escolas, que as enriqueçamos de gadgets electrónicos, que
reformulemos ad nauseam os seus currículos, poucos resultados
poderão ser conseguidos em termos de desenvolvimento. Daí que os
nossos projectos educativos devam ser cada vez menos planos
daquilo que queremos fazer e cada vez mais projectos daquilo em
que nos teremos de transformar. E somos nós, adultos, que
precisamos de projectos educativos transformadores, nunca as
crianças. As crianças nunca precisaram de reformas.

O conceito de escola como lugar onde as crianças são


ensinadas a ganhar a vida, geralmente expresso pela expressão
preparar para a vida, está por demais enraizado nas nossas mentes e
nas nossas instituições. Esta cultura, que aqui chamo de cultura do
emprego, já não serve, está completamente ultrapassada. Importa
que construamos uma cultura nova, a cultura do trabalho. A primeira
já deu os seus frutos. A segunda, possibilita-nos aprender a viver a
vida, que é uma coisa completamente diferente.

1. A cultura do emprego, ou a vida como ocupação

Um emprego parece, pelo menos à primeira vista, um bom


negócio. Trocamos o nosso tempo e capacidade por uma
compensação pecuniária que nos permita viver com o máximo de
desafogo possível. Para alguns desafogo traduz-se em termos
quantitativos: quanto maior o salário melhor, mesmo que isso
implique um pouco de instabilidade. Estão nesta categoria muitos
daqueles que ainda há uns tempos chamávamos de yuppies. Na
situação inversa estão todos aqueles que traduzem desafogo por
estabilidade: o poder deixar de se preocupar com o amanhã.
Encontramos aqui os que procuram as grandes companhias e
sobretudo o Estado como patrão. Para outros ainda, desafogo é
definido como a necessidade de se afirmarem na luta por uma
carreira: para estes salários e estabilidade são vistos como
complementos de uma vida compreendida como a luta pela
afirmação pessoal sobre outros, como a necessidade de vencer, de
superar insuficiências pessoais, reais ou fictícias. Para outros ainda,
desafogo significa combinações diferentes destas variantes.

O emprego, todavia, como todas as estruturas da grande


máquina, caracteriza-se por uma situação de dependência; é
concebido quantas vezes como a inevitável necessidade de se
pertencer a uma organização; é por muitos, senão mesmo por quase
todos, definido pela premissa de que a nossa função como peça é a
de realizar o sonho de outrem, o sonho do dono da máquina, que por
sua vez se engrena numa máquina maior. Temos assim por parte dos
empregados uma visão da vida como dependência, entrega e
abdicação.

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Os responsáveis pela máquina, por seu turno, escolhem
empregados que sejam conhecidos pela sua lealdade, conformismo e
docilidade. As escolas tentam, por seu lado, produzir réplicas tão
exactas quanto possíveis, e sobretudo devidamente catalogadas e
classificadas, das diferentes peças requeridas pelo mercado. É assim
que a grande máquina funciona em ordem e em equilíbrio. A própria
noção de família que nos tem sido inculcada denuncia uma matriz
mecanicista, com funções, deveres e poderes explicitados
rigidamente para o homem, para mulher e para a criança. Bastará
ver a versão anos 50 e 60 da família feita por Hollywood, e a sua
reincarnação recente.

A prossecução duma política de expansão económica baseada


numa visão mecanicista do mundo implicava entre outras coisas que,
para assegurar um índice de emprego cada vez maior, se promovesse
o alargamento, a anexação, e/ou o controle sustentado de fontes de
matéria prima aos melhores preços possíveis e de mercados para
escoamento dos produtos manufacturados. Esta é uma das razões
pelas quais a partir do século XVII as nações industrializadas se
decidiram por uma política imperialista explícita ou implícita. Toda
esta política, que se traduziu nas potências europeias pelo
colonialismo, sobretudo, da África e da Ásia, e na norte-americana
pela doutrina de Monroe, que transformou grande parte das Américas
Central e do Sul no quintal dos Estados Unidos, atingiu o seu apogeu
a partir do último quartel do século XVIII e durou até à Segunda
Guerra Mundial.

A dependência permanecia a matriz do relacionamento


humano, e, mesmo a ideia de liberdade, tão propagada pelo
liberalismo, diluía-se na abstracção dos conceitos e numa aplicação
muito segmentarizada. A definição universal do ser humano como
livre de jure e de facto é uma conquista dos nossos dias, e mesmo
assim, não totalmente generalizada. Toda esta política de exclusão e
discriminação de massas enormes da humanidade fazia sentido e era
até moralmente defensável, quando considerada à luz do paradigma
mecanicista.

A cultura do emprego se bem que tenha servido bem os


objectivos da grande máquina do mundo, nunca foi nem é uma
situação humana natural e, até mesmo, boa. A visão do homem e da
mulher como peças duma máquina qualquer é eminentemente
desumanizante. Que o digam os operários das linhas de montagem
apertando minuto após minuto, mês após mês, ano após ano, o
mesmo parafuso. Que o digam as secretárias sentadas em frente da
máquina de escrever, ou do computador, digitando hipnoticamente
séries intermináveis de dados. Que o digam as massas anónimas de
homens e mulheres que se entregam a tarefas que, possivelmente,
nem os irracionais gostariam de fazer.

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O ser humano, por outro lado, não nasceu para a dependência.
Toda a dependência é uma forma de opressão e portanto
irreconciliável com a liberdade inerente a cada ser humano. Não é na
dependência que nos afirmamos, e vender a nossa liberdade por um
emprego estável não me parece muito compatível com a dignidade
de um homem ou de uma mulher. Toda a dependência como forma
de vida é um modo de servidão. Por isso, se tentou ao longo dos
tempos combater essa situação com a extremação de posições entre
as peças regedoras e as regidas na actividade humana. O
aparecimento de sindicatos, por exemplo, reflecte a tentativa de
suavizar a dependência na condição do emprego. Só que a estrutura
e os objectivos sindicais estão prenhes das mesmas características
que definem as organizações mecanicistas.

Não é também no conformismo que a pessoa humana se


realiza. Nascemos não só para ser, mas sobretudo para nos
tornarmos em algo maior e melhor. A língua inglesa é muito mais
precisa neste ponto: We are in order to become. É no tornar-se, no
becoming, que nos afirmamos como gente, com gente que pensa e
que é livre. Se a dependência é uma forma de servidão, o
conformismo define a pessoa como uma personalidade
desentranhada. O ser humano não se realiza no vazio do querer.
Muito pelo contrário.

A abdicação de nos realizarmos em todo o nosso potencial,


implícita na cultura do emprego, é também altamente
desumanizante. A abdicação conduz necessariamente à alienação,
ao apequenamento da nossa condição humana, até, possivelmente, à
desaculturação. A cultura constrói-se com o fazer consciente e livre,
não com o fazer por fazer, com o deixar ser.

Se a cultura do emprego numa primeira análise nos apresenta


problemas e dilemas tão sérios, porque permanece tão apetecida? O
paradoxo parece-me que é produzido pelo desajustamento que existe
entre a realidade percebida e a realidade a perceber. A realidade que
conhecemos não é, na maioria dos casos, produto da nossa acção e
reflexão sobre o mundo. Ela é geralmente a definição dogmática
duma realidade que se quer transmitida. Os paradigmas de
explicação da realidade precisam de normas, de grelhas de
interpretação, de coordenadas. O paradigma mecanicista que ainda
informa a cultura do emprego, assenta por isso, mais no crescimento
e progresso que no desenvolvimento. Baseia-se numa relação de
causalidade linear entre os seus componentes. Afirma-se na
preocupação excessiva pela manutenção da ordem e do equilíbrio.
Define-se por uma estrutura hierárquica de poder sobre.
Fundamenta-se na possibilidade da certeza como âncora do
conhecimento.

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Sabemos hoje, todavia, sobretudo desde a Lei da Incerteza de
Heisenberg, enunciada em finais dos anos 20, que as coisas não
parecem processar-se desta maneira. Sabemos hoje que a certeza na
ciência não é mais possível. Para isso bastou a constatação dos
dilemas levantados pela mecânica quântica. Deixamo-nos seduzir
pelo simplismo da causalidade linear e é fácil deduzir-se que não faz
qualquer sentido: o mundo e a vida dos homens são por demais
complexos para que para cada facto possa ser identificada uma única
causa. Falamos hoje em causas múltiplas, nas ciências do caos e na
ciência emergente da complexidade.

Sabemos hoje que o ensino como metodologia predominante da


escola perde cada vez mais importância e que a aprendizagem,
sobretudo a capacidade de aprender como aprender, apresenta-se
como a melhor ferramenta que nos permita atravessar com algum
sucesso este período histórico. De facto, a escolaridade baseada no
ensino (já não falo de educação porque aqui não faria qualquer
sentido), limita-se a perpetuar o passado, a transmitir um
conhecimento morto, a condenar alunos a uma experiência de
passividade, de dependência e de conformismo. Grande parte do
ensino especializado, sobretudo aquele que se baseia na transmissão
de competências muito específicas, como a educação profissional ou
vocacional, fracassa terrivelmente se seguir as linhas tradicionais. De
Dewey no princípio do século, a Rosenstock nos nossos dias,
passando por Drucker nos anos 60 muitas foram as vozes que se
insurgiram contra as propostas e supostas panaceias concebidas
para minorar as crises cíclicas de desemprego que afectavam e
afectam de maneira especial as classes desprivilegiadas. Sobre a
educação profissional ou vocacional, Drucker 6 disse em meados deste
século:

As competências que a educação vocacional ensina


são obsoletas. Elas são as competências vocacionais
de ontem. A única coisa predizível é que quando os
alunos saírem da escola para um emprego, a
manutenção de automóveis -- ou mesmo a culinária --
não serão mais feitos da maneira que os ensinamos
nas escolas vocacionais.

E num livro com já 25 anos, Charles Silberman 7 escreve com


enorme presciência, antevendo o que já em 1970 parecia ser a
realidade nos Estados Unidos:

(...) os alunos precisam de aprender muito mais do


que as competências básicas. Para crianças que ainda

6 Drucker, Peter F. (1968). The age of discontinuity. New York: Harper & Row,
Publishers, p. 318.
7 Silberman, Charles E. (1971). Crisis in the classroom. New York: Vintage
Books, pp. 113-114.

13
poderão estar no mercado do trabalho no ano de 2030,
nada poderia ser mais selvaticamente inútil do que
uma educação concebida para os preparar para
vocações específicas, ou profissões ou para facilitar o
seu ajustamento ao mundo tal como existe. Para ser
prática, a educação deveria prepará-los para trabalho
que ainda não existe e cuja natureza não pode sequer
ser imaginada. Isto só pode ser feito se os ensinarmos
a aprender, dando-lhes aquela disciplina intelectual
que os capacitará para aplicar a sabedoria humana
acumulada aos problemas novos que irão surgindo --
aquela sabedoria que lhes possibilitará reconhecer
problemas novos à medida que eles surgem. (...) Mais
importante ainda, a educação deveria preparar as
pessoas não só para conseguir o sustento de uma vida,
mas para viver a vida. Isto significa que as escolas
devem oferecer uma educação liberal e humanizante.
E o propósito de uma educação liberal deve, e na
verdade tem sempre sido, educar educadores --
produzir homens e mulheres capazes de educar as
suas famílias, os seus amigos, as suas comunidades, e
acima de tudo, a si próprios.

Sabemos hoje, como já soubemos há 2000 anos, que todo o


conhecimento humano é integrado, é um todo, e que não faz
sentido, nem tem sequer sentido mantê-lo separado, desconexo,
descontextualizado. Sabemos hoje que não poderemos falar com
precisão de problemas puramente físicos, ou químicos, ou
matemáticos, ou literários, ou musicais. Os problemas científicos
com que nos defrontamos são sempre problemas que têm a ver com
a realidade como um todo, ou como disse Popper 8 o problema do
conhecimento ( é um ) problema de cosmologia.

É lícito perguntar: mas afinal o que tem tudo isso a ver com o
emprego e a sua cultura, com o desemprego? Tem no meu entender,
tudo a ver. Nós construímos a nossa arquitectura social, política e
económica de acordo com a nossa capacidade de perceber o mundo.
Na era da macromecânica o paradigma mecanicista fazia todo o
sentido. Na era da mecânica quântica não faz nenhum. As matrizes
que asseguravam a aparente certeza de muitas premissas diluiu-se;
as coordenadas porque regíamos as nossas deduções científicas de
vida, tempo e lugar emaranharam-se; as grelhas de percepção do
mundo apertaram-se de tal modo que pouco ou nada conseguimos
ver. A mudança certinha e programada, o chamado progresso
evolutivo, a mudança na continuidade, transformou-se súbito na
mudança caótica, complexa, descontínua, incerta.

8 Popper, Karl R. (1991). Um mundo de propensões. Lisboa: Editorial


Fragmentos, p. 55.

14
Que fazer de um mundo em que o alicerce da paz baseada no
equilíbrio das super-potências ruiu e o próprio conceito de super-
potência produz a maior das confusões? Que fazer de um mundo em
que as fronteiras políticas e económicas se diluíram, em que os
produtos e pessoas podem transitar livremente e concorrer uÿns com
os outros praticamente sem restrições? Que vai fazer o pequeno
comerciante ou industrial que tinha um mercado definido, certo e
medível em centenas de quilómetros? Como vai ele competir com
um mercado tornado súbito global e caótico? Como vai o graduado
das escolas tradicionais, desenhadas para preparar peças para um
mercado de emprego mais ou menos previsível competir m outros
jovens vindos de sociedades maiores, mais agressivas, mais
desenvolvidas e com visões diferentes de empresa, produto e
mercado? Como vai o agricultor tradicional alentejano competir com
vantagem com as mais de mil famílias de agricultores holandeses
que escolheram o Alentejo para viver e trabalhar e se estão a dar
muito bem, muito obrigado?

Como sustentar o crescimennto contínuo da sociedade do


emprego quando as políticas colonialistas se desintegraram nos anos
60, o imperialismo como políticeconómica praticamente ruiu com o
boicote do petróleo nos anos 70, e finalmente o controle e o
planeamento económico centralizado e estatizado dos regimes do
leste europeu acabaram por desabar como um baralho de cartas nos
anos 80?

A cultura do emprego que floresceu numa realidade de


sistemas mais ou menos fechados e em relativo equilíbrio -- e
desgaste também -- não possui as ferramentas necessárias para se
adaptar a um mundo definido por sistemas abertos e, pior do que
isso, que tendem para o desequilíbrio como forma de ultrapassar a
entropia9. A minha própria experiência e reflexão como gestor
levou-me a concluir há já alguns anos, que não basta ter sistemas
abertos, é necessário que estes também estejam em desequilíbrio
para que haja desenvolvimento. Costumo dizer que quando uma
escola, ou uma empresa sente que vai muito bem, é quando
realmente vai pior.

A cultura do emprego desgastou-se, como se desgastou o


paradigma mecanicista. Entropiaram

2. A cultura do trabalho ou a vida como contribuição


A incerteza, a descontinuidade, o caos, a complexidade, ou a
ausência de razoabilidade não conduzem necessariamente a uma
situação de vida pior. Acredito que, bem pelo contrário, podem
conduzir-nos a uma vida mais rica, mais livre, mais estimulante. Só
que não poderemos encontrar essa riqueza, essa liberdade e esse

9 Popper, Karl R. (1988). O universo aberto. Lisboa: Publicações Dom Quixote.

15
estímulo continuando a viver pelas regras do passado. Gaston
Bachelard10 já em 1934 dizia o seguinte:
Ora, o espírito científico é essencialmente uma
maneira de rectificar o conhecimento, ua maneira de
alargar o horizonte daquilo que é conhecido. Sentado
em julgamento, ele condena o seu passado histórico.
A sua estrutura é a consciência dos seus erros
históricos. Para a ciência, a verdade não é mais do que
a correcção histórica de um erro persistente, e a
experiência é um correctivo para ilusões comuns e
primárias. (...) A verdadeira essência da reflexão é
compreender aquilo que se não tinha compreendido
antes.

Porque estamos numa escola é mister que falemos de ciência e


de espírito científico, porque só um verdadeiro espírito de ciência nos
poderá ajudar a encontrar o fio que nos guie no meio deste labirinto.
A ciência, ao contrário da doutrina ou da ideologia, que bastas vezes
se confundiram com ela, floresce exactamente nas condições acima
apontadas. A ciência não vive do que se conhece, mas do
desconhecido. No entanto, as nossas aulas de Física têm mais a ver
com a história da Física do que com o trabalho com problemas
físicos. A ciência não se abriga no conforto da certeza, mas vive
para tentar rebater todas as supostas certezas. Por isso, se pode
falar de verdade científica, mas raramente de certeza. A postura do
cientista é sempre uma postura de aprendizagem, de humildade
intelectual, que não se coaduna com a arrogância estulta tão
prevalecente nos modelos tradicionais de ensino.

Citei há pouco Silberman que disse que o papel da escola era


preparar os alunos para trabalhos que ainda não existem. Se nos
anos 70 isso era verdade, nos 90 ainda o é muito mais. Que fazer
então? Como prosseguir? Não vejo melhor saída do que a adopção
de uma atitude científica perante o mundo. Essa atitude científica
-- e não tecnológica -- caracteriza-se pela promoção da curiosidade
tão natural ao ser humano e pelo desenvolvimento de muitas das
suas capacidades: a capacidade de observar os fenómenos naturais
ou sociais; a capacidade de os interpretar; a capacidadee de
investigar com rigor situações novas; a capacidade de analisar e de
sintetizar fenómenos ou situações; a capacidade de recionar
observações, análises ou sínteses diferentes; a capacidade de tirar
conclusões lógicas, racionais e corajosas; sobretudo, e o que é muito
mais importante, a capacidade de observar e pensar fenómenos
globais, aquilo a que hoje se chama pensamento sistémico.

Só quando munidos dessas capacidades poderemos ser


capazes de começar a fazer sentido do mundo que nos rodeia, pelo
menos a poder funcionar com ele. A percepção da realidade como

10 Bachelard, Gaston (1934). The new scientific spirit. Boston: Beacon Press, p. 172.

16
algo em mudança constante, não evolução previsível, mas mudança
descontínua, caótica e complexa é fundamental para que possamos
encontrar um rumo para as nossas vidas como pessoas ou povos.
Não podemos continuar a esperar que os outros resolvam as nossas
carências de ocupação e de modo de vida. Não podemos continuar a
exigir simultaneamente a independência pessoal e a dependência do
emprego. Não podemos querer o melhor de duas visões do mundo,
de dois paradigmas que quase se excluem mutuamente.

Karl Popper11 (1988) faz uma proposta verdadeiramente


atraente. Diz ele que o nosso universo é parcialmente causal,
parcialmente probabilístico e parcialmente aberto ( ou indeterminado
): ( que ) é emergente. Não há muito que possamos fazer acerca do
indeterminismo, senão aprender a viver com ele. A probabilidade,
todavia,ÿ parece ligada à causalidade e esta à vontade humana.
Quer isto dizer que a nossa acção sobre o mundo, num verdadeiro
exercício da liberdade como Freire12 propõe, pode influenciar
propensões, tendências, que por sua vez tornarão a concretização da
nossa vontade ou do nosso sonho muito mais prováveis.
Posto isto, como gerir a probabilidade e a incerteza? Decerto
que nunca através de uma reformulação da cultura do emprego. As
tendências neste ponto são mais que evidentes. O avanço
inexorável da tecnologia, se bem que crie muitas mais oportunidades
de trabalho, está a reduzir consideravelmente o número de
empregos. O número de empregos a tempo integral está também a
decrescer rapidamente. Há estatísticas que apontam para o caso da
Inglaterra, onde só cerca de 50% das pessoas em idade de trabalhar
ainda se encontra empregada em regime de tempo integral 13.
Charles Handy14 diz que dentro de 30 anos poderá ser tão estranho
falar sobre empregados como hoje em dia é difícil falar sobre
criados. Por sua vez, o número daqueles que se auto-emprega
cresce vertiginosamente, como também cresce o número de
profissionais que começa a trabalhar a partir de sua própria casa: a
telecomutação já chegou a todo o lado. Prevê-se que haja em 2017
250 milhões de teletrabalhadores, 115 dos quais nos países da
OCDE15.

Tudo parece indicar que as empresas tendem para a


construção de estruturas centrais tão leves quanto possíveis e para
subcontratar o maior número possível de tarefas. A ser assim, o
número de empregados permanentes tende a diminuir, o que forçará
todos os outros ao auto-emprego, a criar pequenas empresas
11 Popper, Karl R. (1988). O universo aberto. Lisboa: Publicações Dom Quixote, p.
129
12 Freire, Paulo (1970). Pedaogogy of the oppressed. New York: The Seabury
Press.
13 Handy, Charles (1991). Os deuses da gestão. Mem Martins: Edições CETOP
14 Handy, Charles (1991). Os deuses da gestão. Mem Martins: Edições CETOP, p.
229.
15 Nilles, Jack (1997). Entrevista ao Semanário de 27 de Março.

17
destinadas a suprir as necessidades de outras. Mesmo para aqueles
que conseguirem emprego, as condições de trabalho serão
completamente diferentes. Não serão mais caracterizadas pela
ocupação mais ou menos produtiva, mas pela contribuição que cada
empregado, melhor, que cada trabalhador poderá dar. Espera-se do
novo trabalhador que seja capaz de gerir ele próprio não só o seu
próprio trabalho, mas segmentos da actividade da empresa. Espera-
se que ele tenha iniciativa e qualidades de liderança; que se
mantenha a par de toda a evolução do ramos em que está envolvido
e que seja suficientemente generalista para a qualquer momento
poder assumir uma nova posição na empresa, ou mesmo, e o que é
mais importante, gerir a sua área, mantendo presente a visão e os
interesses globais dessa mesma empresa. No fundo, as qualidades
que se começam a exigir de um trabalhador a tempo integral numa
empresa são as mesmas que se exigem de um empresário.

A cultura do trabalho pede, pois, capacidades muito diferentes


das que eram comuns à cultura do emprego. Na cultura do trabalho
exige-se que os trabalhadores assumam completamente as suas
responsabilidades; que demonstrem iniciativa e coragem para gerir
situações novas; que possuam criatividade que baste, dado que é
cada vez mais difícil assegurar qualquer espécie de sucesso através
do uso de modelos pré-estabelecidos; que tenham um elevado grau
de auto-confiança para que possam desempenhar com eficácia e
eficiência as suas funções; que saibam gerir com vantagem as
enormes possibilidades oferecidas pela interdependência, o
relacionamento que neste momento histórico tem mais sentido: a
dependência avilta, a independência não é mais do que uma
quimera; que afirmem a cada momento a solidariedade
imprescindível à sobrevivência e à vivência numa sociedade incerta,
descontínua e interdependente.

A cultura do trabalho requer um trabalhador diferente, e um tal


trabalhador precisa de uma educação reinventada. Aliás, a educação
formal tem de ser assumida por uma perspectiva muito diferente da
que tradicionalmente se atribui à escolaridade tradicional. A
educação hoje é uma proposta para toda a vida. Não podemos
esperar poder permanecer na mesma área profissional toda uma
vida. É mais do que provável que os jovens de hoje tenham de
mudar radicalmente de profissão duas ou três vezes durante a sua
vida produtiva. Na cultura do trabalho, não há empregos, mas pode
haver carreiras.

Já em 1969, esse grande guru da gestão empresarial que é


Peter Drucker16 dizia:

O emprego para toda a vida já não é desejável ( ... ).


Todavia, numa economia baseada no saber, em que a

16 Drucker, Peter F. (1968), op. cit., p. 305

18
competência é baseada no saber, e em que a
tecnologia e a economia deverão sofrer mudanças
rápidas, a única segurança de emprego que faz sentido
é a capacidade de aprender rapidamente. A única
segurança real numa economia e numa sociedade em
fluxo é saber o suficiente para se ser capaz de mudar.

A educação é, de facto, o grande investimento e o grande


negócio dos nossos e dos próximos dias. Mas nem toda a
escolaridade é um bom investimento, só aquela que cria
oportunidades para que seja um laboratório do futuro; aquela onde
os alunos possam adquirir mais sabedoria que conhecimentos e mais
desenvolvimento que treino. Precisamos de escolas que se
preocupem mais com a sabedoria que com o conhecimento. É a
sabedoria que nos possibilita a compreensão dos todos integrados,
raramente, para não dizer nunca, o conhecimento. Parece-me que
foi isso que Wade Davis percebeu deitado entre as raízes da mapou
naquela clareira haitiana. A sabedoria, no entanto, não é coisa que
se ensine, aprenda ou pratique nas escolas. E sem sabedoria, como
perceber o mundo?

A capacidade para gerir a incerteza, a descontinuidade, o caos,


a complexidade que caracterizam a realidade como a percebemos
hoje, fundamenta-se numa maneira nova de encarar a actividade
humana: não mais como seres empregados dependentes, não mais
como seres supostamente independentes, como se julgam aqueles
que se iludem com a hipótese de possuir o poder, mas como seres
interdependentes. A interdependência define hoje, talvez, o mais
elevado grau de desenvolvimento humano. Não poderemos lá
chegar pela via tradicional do ensino. Não poderemos lá chegar
através do conhecimento como via de sentido único. Poderemos lá
chegar através da sublimação da experiência e do conhecimento,
através da sabedoria. Precisamos de escolas que a promovam.

Urge, portanto, reinventar a educação.

3. A cultura do desassossego, ou a vida como educação

Ouve-se falar hoje muito no desassossego da vida, na


superocupação das pessoas, na contínua falta de tempo. Esse
desassossego da vida não tem, todavia, nada a ver com aquilo que
aqui designo por cultura do desassossego. O desassossego da vida é,
de facto, uma das constantes dos nossos dias e deriva em grande
parte da nossa incapacidade de perceber e de gerir a cultura do
desassossego. Vivemos, assim, como terráqueos que súbito se
encontrassem numa nave espacial a caminho das estrelas. O que
quer que fizéssemos, mesmo telecomandados, nunca faria muito
sentido. A actividade não teria nexo. A acção, que pressupõe
pensamento e reflexão, esvair-se-ia em mero movimento. Um

19
astronauta, mesmo que telecomandado, tem noção do que acontece
e, face ao desconhecido, age com sabedoria: nesse momento,
conhecimento e experiência sublimam-se.

A viagem em que nos encontramos não é propriamente a


caminho das estrelas, mas não é, por isso, menos estimulante,
incerta, ou complexa. É também caótica, no sentido científico do
termo, isto é, qualquer desvio não considerado, por insignificante
que seja, pode ter repercussões inimagináveis. Por outras palavras, é
impossível planear a priori uma tal viagem. Há muito poucas
variáveis que possam ser controladas, não há a possibilidade de
medidas exactas, é impossível prever todo o seu desenrolar.

Esta nossa viagem não se planeia, projecta-se, o que é uma


coisa completamente diferente. Esta nossa viagem vai-se fazendo. É
uma realidade que se vai construindo, momento a momento, de
experiência em experiência, de aprendizagem em aprendizagem. E
da mesma maneira que o vazio transfigura a gestão do espaço numa
nave astral, assim a complexidade do real nos mergulha no fervilhar
pluridimensional da vida. Calvino talvez tenha razão ao apontar a
leveza como uma das matrizes do nosso presente-futuro. Diz ele17:

Para um romancista é difícil representar a sua ideia


de leveza, ilustrando-a com exemplos da vida
contemporânea, sem a tornar o objecto inatingível de
uma procura sem fim. Foi o que fez Milan Kundera de
maneira evidente e imediata. O seu romance A
Insustentável Leveza do Ser na realidade é uma amarga
constatação do Inelutável Peso do Viver (…) Mas se a
literatura não basta para me garantir que não ando só a
perseguir sonhos, procuro na ciência alimento para as
minhas visões em que se dissolve todo o peso …
Hoje em dia todos os ramos da ciência parecem
querer demonstrar-nos que o mundo assenta em
entidades delicadíssimas: tal como as mensagens do
AND, os impulsos dos neurónios, os quarks, os neutrinos
vagueando pelo espaço desde o princípio dos tempos …
(…) A segunda revolução industrial não se
apresenta como a primeira com imagens esmagadoras
como prensas de laminadoras ou torrentes de aço, mas
sim como os bits de um fluxo de informação que corre
por circuitos sob a forma de impulsos electrónicos.
Continuam a existir máquinas de ferro, mas obedecem
aos bits sem peso.

A leveza do ser, como contraponto do peso da existência,


demarcam a diferença que existe entre o terráqueo e o astronauta.

17Calvino, Italo (s/d). Seis propostas para o novo milénio. Lisboa: Editorial Teorema,
Lda., p. 22.

20
Um e outro provêm de um mesmo ambiente, mas têm visões
diferentes da vida: o terráqueo encontra-se formatado para gerir o
peso da existência da gravidade unidireccional; o astronauta
encontra-se aberto para aprender a gerir o desassossego do infinito
espacial. Entre os dois há um abismo educacional. Se a formação,
melhor, se a formatação do terráqueo o levou a arquivar montanhas
de conhecimentos fragmentados e sem nexo aparente, a educação
do astronauta levou-o para o mundo das aprendizagens
permanentes. Se um foi ensinado, o outro foi levado a aprender. De
facto, como ensinar o caminho das estrelas?

O viver só se torna num peso inelutável quando não é gerido


pela insustentável leveza do ser. O ensino forma, por natureza e
definição, hordas de seguidores. A educação como aprendizagem
produz gestores da emergência. O ensino insere-se na cosmologia de
um universo planar e estático. A educação como aprendizagem
renova-se na cosmologia de um universo vivo, dinâmico,
transformando e transformador. De facto, como ensinar a gerir a
complexidade da vida?

Se a modernidade viveu presa por definição e opção no


universo dos sistemas fechados, a pós-modernidade abre-se para um
universo de mundos, para uma vida alimentada de
interdependências, simples na sua complexidade ainda inescrutável,
livre na diversidade das suas opções possíveis, concreta como a
afirmação de um futuro melhor. De facto, como ensinar a
interdependência dinâmica do mundo no qual e com o qual vivemos?

Se o futuro, se o século XXI, que no fundo é já o nosso


presente, se define pela cultura aberta e dinâmica do trabalho, pela
cultura insaciável do desassossego, como formar crianças, jovens e
adultos capazes de inventar o seu próprio viver, capazes de gerir a
sua própria educação, compreendida agora como um processo
interminável, capazes de interagir calmamente com o desassossego
de um mundo em contínua transformação? Quais os currículos mais
válidos? As disciplinas imprescindíveis? Quem determinará e
segundo que critérios o que é verdadeiramente importante nos
conteúdos determinados e previstos ontem e, por conseguinte, para
ontem? Como gerir o hoje e o amanhã com o saber de ontem? De
facto, como ensinar o conhecimento?

Debrucemo-nos sobre uma das tendências que me parece de


importância fundamental para a confrontação do que fazemos com
aquilo que já acontece: a finalidade da escola, o projecto educativo
da escola e os agentes do processo educativo. A passagem da
cultura do emprego para a cultura do trabalho mexe com tudo isto.
Parece indubitável que a função da escola não é a de preparar jovens
para ganhar a vida, mas preparar pessoas para viver a vida. Isto só
será possível se a escola reflectir na sua vivência a vida tal como ela

21
já é conhecida, e não o reflexo de mundozinhos feitos à medida das
nossas insuficiências.

Que educação para o século XXI? Não há receitas, mas há


decerto caminhos possíveis. Vejamos, assim, algumas das variáveis
que eu considero importantes.

1. Uma educação para o século XXI tem de centrar-se não só no


aluno, não só no professor, mas na prossecução do
conhecimento. Uma escola não existe só por causa dos alunos,
nem só por causa dos professores, nem só por causa de um
currículo qualquer. Uma escola existe como um espaço de
penetração no desconhecido. Uma escola existe como a
possibilidade de se aprender o que se não conhece. Uma escola
existe como a oportunidade, o direito e o dever que temos de
conhecer o mundo para o transformar. O mundo físico por muito
que exista, só adquire vida porque a pessoa humana existe.
Somos nós que damos nome ao mundo, na expressão feliz de
Paulo Freire18.

Se assim é, a educação centrada no conhecimento é o


ponto de encontro de alunos e de professores e o ponto de
partida para a sua viagem de descoberta. A escola reinventada
difere muito daquela que todos conhecemos e em que, de
algum modo, ainda vivemos. Na escola reinventada a
hierarquia do poder sobre, indispensável a uma estrutura
baseada no ensino formatativo, dissolve-se na noção de que
tanto professores como alunos são aprendedores, só que em
níveis diferentes de desenvolvimento. Professores e alunos
encontram-se empenhados num mesmo projecto educativo, só
que nenhum é o único detentor e dispensador do
conhecimento. O conhecimento não se transmite, conquista-se.
Daí que caiba aos professores da escola reinventada uma
função muito mais complexa do que aquela a que estavam
habituados na escola tradicional: de transmissores do
conhecimento, os professores são hoje chamados a
coordenadores das aprendizagens dos alunos e, de um certo
modo, de si próprios.

Se tanto professores como alunos são aprendedores e,


portanto, ambos sujeitos dos seus próprios processos de
aprendizagem, o produto duma escola não pode ser o aluno. O
produto duma escola tem de ser a proposta de trabalho que se
faz ao aluno. É esta proposta de trabalho, de mudança e de
transformação que deve definir grande parte do projecto
educativo.

18 Freire, Paulo (1970), Pedaogogy of the oppressed. New York: The Seabury Press,
p. 76.

22
2. Uma educação para o século XXI tem de considerar a família
como parte integrante não só da sua estrutura humana, mas
também do seu processo curricular. O sucesso escolar dos
alunos depende em grande medida do ambiente familiar e
este, não haja dúvida, pode ser grandemente influenciado pela
escola. É preciso não esquecer que os pais, formatados que
foram na escola tradicional, guardam-na como a referência
única com que avaliam e compreendem a escolaridade dos
filhos. Por outro lado, muitos dos pais têm as mesmas
dificuldades que nós sentimos em encontrar o sentido deste
mundo novo. É mister, por conseguinte, que a escola
desenvolva esforços para não só integrar os pais na vida
escolar dos filhos, mas também para orientar os pais nos seus
próprios projectos educativos.

3. A gestão do possível talvez seja o desafio maior que se nos é


proposto. A gestão do possível não pode, por definição, partir
de horizontes definidos, de planos bem delineados, de
expectativas previsíveis. O possível mede-se em projectos,
nunca em planos. O possível define-se pela nossa capacidade
de gerir o futuro em toda a sua complexidade, isto é, pela
nossa capacidade de perceber a realidade que nos inscreve e
circunscreve, de conceber cenários-projecções das tendências
percebidas, de aceitar o indeterminado que sabemos integrar
toda e qualquer acção ou desígnio humano. Em termos
práticos, tudo isto significa que a educação deixou de ser uma
variável controlada, para passar a ser um problema
fundamental da própria vida. Daí que a escola, tal como a
conhecemos, não faça já muito sentido. Temos uma escola que
transmite o passado. Precisamos de uma escola que anuncie o
futuro. A anunciação do futuro não parte de futurologia barata,
mas do desenvolvimento de determinadas competências, como
sejam a do pensamento sistémico, a de consensualizar uma
visão do presente-futuro, a de traduzir essa visão em processos
operacionais. Tudo isto define uma maneira diferente de nos
relacionarmos uns com os outros e com o mundo que nos
rodeia. O conhecimento tem de deixar de ser algo que pode ser
transmitido. O conhecimento tem de passar a ser algo que só
pode ser conquistado pela acção conjunta de alunos e
professores, todos conscientes da sua condição de
aprendedores. Tudo isto pode parecer muito vago, mas no
fundo é tão vago como a condição do cientista-investigador. Só
se pode aprender aquilo que se não conhece. Só se pode ser
aquilo que conseguirmos sonhar e visualizar. É essa a definição
do possível.

4. Uma escola-projecto-emergente tem de se definir por um


imperativo ético. Não basta saber identificar as tendências
predominantes, é preciso também saber escolher, desenvolver

23
e subordinar todas essas tendências em tendências a
imperativos éticos. Alicerçar um processo de aprendizagem, e
por conseguinte de mudança, na moral consensual e, portanto,
relativa, seria condenar o nosso futuro a uma cadeia
interminável de equívocos percebidos como dogmas, e a uma
concepção situacionista duma vida sem horizontes e, por
consequência, sem futuro. Proponho como horizontes éticos da
educação e da escola os valores absolutos da democracia, da
justiça e da liberdade.

Uma educação para o século XXI, o que é dizer uma educação


para o dia de hoje, tem de ser concebida de uma maneira
completamente diferente daquela como concebemos a escola que
todos conhecemos. Reformas não são mais que remendos. Só a
reinvenção da escola como espaço de aprendizagem nos pode ajudar
a compreender o desafio que temos pela frente.

É evidente que essa viagem não pode acontecer sem que haja
um roteiro. Esse roteiro deve ser o projecto educativo duma escola.
Parece indubitável que o projecto educativo não pode ser um plano
de estudos, previsto, certo, determinado, mas um projecto de
transformação de todos os seus intervenientes. Ora, enquanto que
um plano vive de um futuro fechado, prescrito e medido, o projecto
vive da tensão que existe entre o hoje e o amanhã, entre o ser e o
tornar-se, entre a visão e a realidade. O projecto educativo tem de
saber antecipar não só conteúdos importantes, mas processos de
aprendizagem e horizontes de desenvolvimento. E isso só será
possível quando abdicarmos da nossa condição de professores
detentores do conhecimento e nos elevarmos à condição de
aprendedores, isto é, quando conseguirmos passar da condição de
professores è condição de scholars, quando deixarmos de ser
técnicos educacionais e passarmos a ser cientistas, quando
deixarmos de ver o mundo, a realidade, como fragmentos
desconexos, mas como um todo integrado, dinâmico, vivo, e como
Wade Davis disse, animados pela fé.

24
o espaço educativo da escola

Há uns séculos atrás, quando tinha dezoito anos, e mercê de


uma reforma educacional de última hora (como vêem a moda já vem
de longe) que me estragava os bem delineados planos que havia
estabelecido, resolvi prosseguir os meus estudos fora de Portugal,
mais precisamente na Alemanha. Acontece que cheguei a Neuß, uma
cidade industrial situada entre Düsseldorf e Colónia, já fora dos
prazos de matrícula numa universidade e pior que tudo sem saber
falar Alemão. Através de contactos familiares lá arranjei trabalho
numa fábrica de produtos alimentícios, que se especializava em café,
maionese e mostarda. Para manter de pé a fama do azar dos Cabrais
fui parar à secção mais violenta: a do fabrico de mostarda. O plano
modificara-se radicalmente: em vez de paulatinamente seguir duma
escola secundária para uma universidade, como muito boa gente faz,
o meu percurso seria agora o de entre os gazes, por vezes asfixiantes
e quase lacrimogéneos, libertados pelos enormes barris de mostarda
em fermentação eu iria aprender alemão para, assim que o
conseguisse, matricular-me numa universidade. O plano resultou.
Felizmente, os gazes de mostarda a que me havia exposto não eram
tão daninhos como os que fizeram escândalo na Primeira Grande
Guerra, e as lágrimas libertadas forçosamente por acção dos barris de
mostarda picante sempre permitiam uma conversazinha com os meus
colegas de trabalho: dois alemães que podiam ser meus avós, o
Mathias e o Peter, que com a maior boa vontade e saber que tinham
me puseram a falar o seu idioma. Em Outubro do ano seguinte
consegui admissão numa universidade e a vida prosseguiu
calmamente até que uma outra reforma, a da guerra colonial, me fez
de novo interromper a minha cavaqueira académica.

O importante desta estória não é de modo algum o historial das


minhas deambulações no final da minha adolescência, nem as minhas
experiências educacionais na Alemanha, mas a mostarda. Já dizia o
Evangelho: Se tivésseis fé como um grão de mostarda ...! Não sei se
a força da minha fé depende dos milhões de grãos de mostarda que
me passaram pelas mãos, o que posso garantir, todavia, é que na
fábrica onde trabalhava a mostarda não tinha tempo nem espaço
para ter fé.

Chegava em sacos indistintos, quem para eles olhasse não


saberia à primeira vista do que se tratava, poderiam ser de trigo,
aveia, ou de qualquer outro cereal. E havia-os de vários tipos de
mostarda. Como grãos pouca diferença faziam uns dos outros:
tinham tamanho, cheiro e cor semelhantes. Todavia, tivessem esses
grãos permanecido na terra, decerto que teriam dado lugar a plantas
mais ou menos viçosas, que teriam tido uma vida própria, teriam
estabelecido relações sinergéticas com o seu meio ambiente, e teriam

25
a seu tempo morrido, depois de, no entanto, haverem fecundado a
terra com outras sementes e a transformação da sua matéria.

A Unifranck – parece-me que era assim que se chamava a


fábrica e nem sei se ainda existe -- entendia diferentemente. Os
grãos de mostarda não estavam destinados às vicissitudes de uma
vida natural, livre e autêntica. Aqueles grãos de mostarda tinham
desígnios mais altos: haviam sido escolhidos, tratados e iriam agora
ser processados para desempenharem a sua função naquilo a que eu
chamo a Grande Máquina do Mundo. Ora a salsicha ocupa um lugar
proeminente nessa máquina, e como poder saborear salsichas sem
uma boa mostarda! Da mesma maneira que já se não pode ver
cinema sem pipocas, como manter o império do desporto e da vida
até às tantas da matina, sem salsichas, o que quer dizer sem
mostarda?! Assim, apesar de aparentemente ocupar um lugar
subalterno à salsicha, a mostarda ocupava um lugar essencial: uma e
outra complementavam-se na perfeição.

A Unifanck tinha, como empresa séria, honesta e progressista


que era, uma missão, uma estrutura organizativa, um currículo, uma
metodologia e saídas profissionais. Tudo devidamente enquadrado,
legislado, administrado, inspeccionado e relacionado com o exterior.
Com a mesma frequência com que entravam sacos repletos de grãos
de mostarda saíam caixotes contendo as diferentes especialidades de
mostarda: para cada tipo de salsicha, sua mostarda. Os grãos eram
primeiro que tudo triturados e misturados com água, vinagre e outros
condimentos. Pouco importava o que o grão fora, o importante era o
que o grão iria ser. Uma vez obtida uma pasta informe, era esta
colocada em enormes barris para que assim a mostarda pudesse
começar o seu processo de transformação planeada e prevista e
arrumada por idades em compartimentos. Havia, portanto, sempre
mostarda em diferentes estádios de processamento. Só que a
mostarda não tinha nada a dizer: nem quanto ao processo, nem
quanto às companhias em que a haviam colocado, nem quanto ao
que ela alguma vez desejaria ter sido. Havia um sistema e o sistema
funcionava.

Podíamos quase dizer que o barril era o espaço educativo da


mostarda: contido, definido, etiquetado, prescrito, previsível,
determinado. Uma vez terminado esse estádio a mostarda era
empacotada e era nesse processo que ela mais se vingava de nós,
emitindo os seus gazes furibundos. Depois saía devidamente
certificada, expondo nos tubos, ou canudos reluzentes, em que a
haviam empacotado, os diplomas da sua especialização. A Unifranck
foi uma grande escola para mim, pois lá aprendi muita coisa sobre
educação. Aprendi como funciona um sistema bem concebido e bem
administrado. O presidente da empresa visitava todos os dias
seguido pelo seu estado maior todos os departamentos da fábrica.
Tenho quase a certeza que nem lhe passava pela cabeça se as

26
misturas estavam boas ou não. Ele como cabeça da pirâmide
sistémica vinha-nos demonstrar diariamente que nós éramos
importantes, que éramos elementos essenciais da empresa. A
mostarda era só um acidente.

É difícil aos dezoito anos estabelecer uma relação real entre o


que acontecia à mostarda e o que me acontecia como aluno e como
pessoa. Mas não há dúvida que os gazes furiosos da mostarda
processada em muito se assemelhavam à contestação, frustração,
sentido do vazio que quantas vezes angustiam os últimos anos da
adolescência. É claro que mostarda e crianças são coisas
completamente diferentes, mas o mesmo não poderemos dizer do
tratamento que lhes infligimos. Como já tive a ocasião de dizer, a
escola tal como ainda existe um pouco por todo este mundo difere
pouco da Unifranck, porque foi concebida segundo os mesmos
parâmetros de acção, concepção do real e visão do futuro. Sem
querer fazer de novo o historial da escola tradicional 19, limitar-me-ei a
analisar as três variáveis que apontei:

· A escola e a empresa que surgem da Revolução Industrial têm


um parâmetro de acção definido e pré-determinado.
Concebidas como subsistemas de um sistema fechado, a sua
função era determinada pelas necessidades e aspirações, pelos
desígnios, poderíamos dizer, do mundo maior. Sair fora desses
parâmetros seria desequilibrar o sistema e o sistema da Grande
Máquina do Mundo não podia permitir tais desvarios. Tal e qual
como num relógio em que qualquer folga produziria
inevitavelmente um erro no cálculo do tempo. O mundo era
assim um todo certinho, governado por leis observáveis e
medíveis. O ajuste, a conformação, a moldagem, o currículo
estipulado, a metodologia subordinada aos conteúdos, a
autoridade do treinador sobre o treinando, a verticalidade e a
preeminência do ensino, a subalternização da aprendizagem
vista como treino, a mais valia do sabedor-de-coisas sobre a do
explorador de ideias, a arrogância do cientismo sobre a dúvida
da filosofia, a afirmação da verdade como certeza científica, o
enclausuramento da realidade nas páginas do compêndio, a
uniformização dos tempos lectivos determinando assim a
uniformização dos ritmos de aquisição de conteúdos, a
organização das classes magisteriais e laborais em associações
centradas primordialmente nos seus próprios interesses, a
concepção centralizadora e monolítica do sistema, são ainda
apanágio da maior parte daquilo a que nós chamamos o espaço
educativo em que se movimentam as nossas crianças.

· Esses parâmetros de acção perfeitamente definidos e mantidos


tinham a sua génese numa visão aparentemente racional e

19 Cabral, Ruben de Freitas (1994). Gestão escolar em tempo de mudança. In


Brotéria, Vol. 140. (pp. 155-177). Lisboa: Brotéria - Cultura e Informação.

27
lógica: uma concepção determinista e mecanicista da
realidade. Se a lógica do mundo é a racionalidade da máquina,
a causalidade linear é o seu corolário necessário. Da mesma
maneira que a acção sobre a alavanca A força a roda B a
deslocar-se pondo um comboio imenso em movimento, o treino
das crianças em determinados conteúdos e segundo
determinadas metodologias, ministrado por mestres que por
sua vez tinham sido formados nesses mesmos conteúdos e
nessas mesmas metodologias, poderia produzir anualmente
fornadas de jovens treinados para o mercado do emprego,
suporte social da Grande Máquina. Daí a constante
preocupação que ainda ouvimos sobre as saídas profissionais
dos treinandos das escolas secundárias e superiores.

· A visão do futuro traduzia-se assim pelo aperfeiçoamento de


políticas que pudessem manter um ritmo, se possível
uniformemente acelerado, de progresso. No mundo
mecanicista não há muito lugar para o devaneio e realização
pessoal: há a preocupação com a formação de determinado
tipo de carácter e a bem-aventurança da realização profissional.
A pessoa bem-ajustada é, portanto, aquela que se molda,
encaixa e disfarça os seus prazeres e necessidades mais
íntimas na aparência externa e material duma vida assim
julgada bem-conseguida. O movimento Yuppie foi só um
momento mais alto dessa tendência que já vinha dos séculos
XVII e XVIII. Ordem e Progresso, o dístico da bandeira brasileira,
reflecte bem as prioridades da Era chamada Industrial.

É fácil criticar e até ridicularizar esta concepção do mundo.


Todos somos sábios sobre as coisas passadas. O que é certo e de
todo o rigor afirmar, é o sucesso tremendo que esta visão mecanicista
do mundo obteve, e as benfeitorias que trouxe à humanidade.
Podemos dizer que a era da escassez, flagelo da história de todos os
homens e de todas as mulheres, não é mais um problema. O fim da
escassez atesta uma vitória tremenda da pessoa humana e a sua
libertação do condicionalismo de viver fora do tempo, para passar a
viver no tempo, gente que controla a história, melhor ainda, gente
que faz a história.

O fazer a história não me parece que dependa tanto nem da


ordem, nem do progresso. É claro que uma certa espécie de ordem é
desejável e que o progresso não deixa de continuar a ser uma
variante muito importante. Ordem e progresso, no entanto, não
promovem por si só as coordenadas segundo as quais a humanidade
poderá e deverá avançar no objectivo de se conseguir um presente
melhor, já que ordem e progresso não asseguram de modo algum um
futuro desejável. A história está cheia de exemplos de civilizações
que alcançaram progressos sociais e tecnológicos tremendos e que

28
caíram irremediavelmente por terra, sombras quase ilegíveis de um
passado sem futuro.

A visão mecanicista do mundo, a busca da ordem e do


progresso constitui ainda, quer nós queiramos quer não, as grandes
matrizes das nossas escolas como espaços educativos. Ackof 20 diz o
seguinte:

A maioria das escolas são disseminadores


industrializados de informação e conhecimento. Elas
têm pouco a ver com a geração e o alargamento da
compreensão e da sabedoria. Elas usam materiais e
métodos que seriam apropriados se os alunos fossem
caixas pretas cujos outputs deveriam ser idênticos ao
que se lá tinha posto anteriormente. (... ) Os professores
esquecem que esquecer o que é irrelevante é pelo
menos tão importante como lembrar o que é relevante.
(...) A maioria das escolas foram concebidas
inconscientemente segundo o modelo da fábrica.

Como que a corroborar o meu exemplo da Unifranck, Schlechty 21 diz o


seguinte:

( ... ) os alunos são vistos como produtos a serem


moldados, testados em função de padrões comuns e
inspeccionados cuidadosamente antes de passarem à
nova mesa de trabalho, para prosseguirem o seu
processamento.

Dezenas de textos poderiam ser referidos sobre este mesmo assunto.


Ordem e progresso, bandeira dessa visão mecanicista do mundo, não
são por sua vez os catalizadores dos conceitos que eu considero
imprescindíveis à criação de um presente-futuro melhor: a
democracia, a justiça e a liberdade. A prossecução destes conceitos
implica por definição um espaço educativo diferente, uma vez que
estes conceitos não podem ser ensinados e a escola tradicional
baseia-se irredutivelmente no ensino. Talvez seja por isso que tenha
sido e continue a ser tão difícil fazer destes três conceitos, contra os
quais ninguém de bem poderá alguma vez estar, a matriz da nossa
cultura.

Vivemos, quando muito, liturgias democráticas; alegramo-nos


periodicamente com o folclore democrático das eleições; raramente
nos sentimos donos das decisões que nos atingem, nem tão pouco
senhores da história. Falamos vezes bastantes de justiça, mas

20 Ackof, Russell L. (1994). The democratic corporation. Oxford: Oxford


University Press, p. 200.
21 Schlechty, Phillip C. (1991). Schools for the twenty-first century. San
Francisco: Jossey-Bass Plubishers, p. 22.

29
continuamos presos por uma mentalidade que aceita sem grandes
angústias as maiores injustiças, desde que fora de portas.
Defendemos tenazmente a nossa liberdade, só que muitas vezes o
que defendemos não é a liberdade, mas o nosso catálogo de direitos.

Ora acontece que ninguém por certo discordará que o fim de


toda a actividade humana é o de um conhecimento maior e mais
aprofundado do mundo que nos rodeia para a transformação desse
mesmo mundo em algo melhor. A prossecução dessa visão
teleológica terá porventura várias vias: desde a da contemplação
mística à da actividade mais intensa. A demanda desse mundo
melhor, dessa Cidade de Deus, desse Santo Graal, dessa última lei
física, da essência da matéria, da mais evidente fórmula matemática,
da matriz da interacção de todos os genomas, da mais presciente de
todas as novelas, da versão última de todas as histórias, do escrutínio
do mais esconso espaço geográfico, da previsão meteorológica
correcta, do quadro perfeito, da escultura mais expressiva, do
composto químico mais resistente, da política mais ecológica, da
caridade mais solidária, da teologia mais reveladora, da oração mais
sincera, do começo de todos os géneses, do destino de todos os
êxodos, da revelação de todos os apocalipses, a demanda de tudo
isto e muito mais, é algo que, de uma maneira ou doutra, nos
preenche a vida e a vincula a uma visão de serviço, de propósito, de
acção.

O espaço educativo da escola não é outro senão este: o de


ajudar crianças, jovens e adultos a compreender a matriz possível e
conhecida deste nosso mundo, que inclui aquilo com que trabalhamos
e aquilo que nos transcende. O estudo da física, da matemática, da
literatura, da história, da geografia, da arte, até da própria religião,
não pode ter outra finalidade na escola senão a da construção,
melhor ainda, da transformação deste nosso mundo em algo melhor.
Um processo de transformação não é um processo de reforma, não é
um processo de melhoramento, não é uma tentativa revisionista, mas
aproxima-se mais de outros conceitos, como o da invenção, da
criação, da concepção global das coisas. Não é um mapa, mas uma
visão, uma visão tão irresistível que nos compromete com uma vida
de acção e de reflexão, de procura dos outros e das suas visões, do
encontro conjunto de caminhos estimulantes e aparentemente
prometedores, no fundo e em termos mais prosaicos, uma visão que
nos compromete com uma vida de investigação, de perguntas e de
dúvidas, e, porque não, de fé.

Parece-me que só através de uma tal abertura à vida e ao


mundo, será possível a transformação do mundo que conhecemos
num mundo em que cada pessoa se sinta gente (não há outro
propósito para a democracia); num mundo em que cada pessoa saiba
raciocinar, saiba razoar moralmente (como buscar melhor a justiça);
num mundo em que o conceito de liberdade não acabe onde comece

30
a liberdade dos outros, mas que seja compreendida como um
processo de desenvolvimento social: afinal a minha liberdade
começa onde começa a liberdade de todos os outros, e não tem fim.
Perguntar-me-eis então: como ensinar isto na escola? Não sei.

Na visão mecanicista da realidade, escolar ou outra qualquer,


que mencionei há pouco, tinha-se a certeza de que a perfeição, a
felicidade, o bem-estar, a ordem, o progresso, que a busca de tudo
isso era um processo cumulativo, prescrito, determinado, planeável,
previsível. A certeza científica era dogma, o método científico
infalível, a lógica irredutível.

Parece que afinal não há certezas científicas. Não é um místico


que o diz, mas um cientista de inabalável reputação que o afirmou
nos idos de 1927: Heisenberg. Parece, afinal, que as leis da
macromecânica não se aplicam a toda a realidade perceptível,
decerto que não se aplica à realidade quântica, e ela existe. Parece,
afinal, que a realidade que conhecemos é descontínua,
indeterminada, complexa, caótica, imprevisível? Num mundo assim
como planear, como coleccionar certezas em compêndios, que
conhecimentos certos transmitir? Ou vamos transmitir
conhecimentos incertos, meias certezas, coisas que são, quando
muito, assim-assim, afirmar a utilidade de medidas que na melhor das
hipóteses são mais-ou-menos? Se os conteúdos são assim tão
incertos, que ensinar? Se a realidade é assim tão descontínua e
indeterminada, o que ensinar? E com que objectivo?

Charles Handy22, relembrando a sua experiência escolar, disse o


seguinte:

Mais tarde, vim a perceber que não tinha aprendido


nada na escola de que me pudesse recordar agora,
excepto isto -- que todos os problemas já tinham sido
resolvidos por alguém, e que a resposta andava algures,
nas páginas finais dum livro ou na cabeça do professor.
Aprender parecia significar a transferência das
respostas deles para mim.

Um mundo de respostas é um mundo determinado, um mundo


prescrito, um mundo contínuo, linear, previsível. É o mundo do
ensino, do conceito bancário da educação, no dizer de Freire 23, ou dos
vasos vazios, ou de tantas outras metáforas que nos apontam para a
mesma coisa: um sistema educativo baseado no ensino não é
consentâneo com a realidade tal como ela é percebida hoje. Por
outro lado, é possível através do ensino prosseguir-se uma visão
reformista da vida, mas nunca uma visão transformadora do mundo.
A cartilha pode ensinar a ler, mas não enriquece o espírito. Não há

22 Handy, Charles (1990). The age of unreason. London: Arrow Books Ltd, p. 46.
23 Freire, Paulo (1970). Pedagogy of the oppressed. New York: Seabury Press.

31
compêndio que o consiga. Uma visão da realidade feita de respostas,
é uma visão necrofílica da vida. Por isso, Einstein24 disse uma vez que
as escolas se especializavam em transmitir conhecimentos mortos a
alunos vivos.

Dado tudo isto, como definir o espaço educativo da escola? Se


um mundo de respostas não nos poderá levar a compreender o
presente, que no fundo é a parte que mais interessa do futuro, onde
nos poderá levar um mundo de perguntas? Confesso que também
não sei. Mas desta vez, decididamente, estou interessado em saber.
O mundo das perguntas é o mundo das aprendizagens, é o mundo do
aprender, e a aprendizagem é essencialmente um acto social.
Ninguém aprende sozinho. A aprendizagem contextualiza-nos no
real: só poderemos fazer perguntas sobre aquilo que vemos ou
vislumbrarmos. A aprendizagem faz-nos senhores do tempo e da
história. É no querer saber o porquê, o como, o para quê das coisas
que nós agimos sobre o mundo transformando-o e damos existência a
esse mesmo mundo. Nunca me canso de citar aquela bela história
que Paulo Freire25 conta sobre o diálogo entre um camponês chileno e
o seu educador àcerca desta relação homem-mundo como factor
essencial da educação:

(Disse o camponês) "Eu agora vejo que não há mundo


sem homens". Quando o educador perguntou: "Supõe
que todos os homens morreram, mas que ainda havia
árvores, animais, rios e estrelas, não seria isso o
mundo?" "Não, respondeu o camponês, não haveria
ninguém que dissesse: Isto é o mundo.

Prefiro uma escola de perguntas a uma escola de respostas. O


mundo em que vivemos não é um mundo fechado, mas um mundo
aberto, livre, que se expande em miríades de constelações e de
pensamentos, de perguntas e de teorias, de respostas cujo único
mérito é o de levantar mais perguntas.

Pergunto de novo, que novo espaço educativo é este, aberto,


livre, imprevisível, caótico, fascinante? Como conceptualizar um tal
espaço de aprendizagens? Que fazer dos compêndios de
matemática, de física, de história? Será que tudo isto não tem valor?
Será que tudo o que temos andado a fazer foi pura estultícia e perda
de tempo? Como aprender? que aprender? que perguntar? E quem
deve fazer as perguntas? Será que estaremos a fazer as perguntas
certas? E como aferir, medir, classificar, separar, distinguir o bom
aluno daquele que não é tão bom? E o que é um bom aluno num
mundo de aprendizagens? Aquele que faz mais perguntas ou o que
consegue mais respostas? E o que somos nós, professores? Não nos

24 Einstein, Albert (1954). Ideas and opinions. New York: Bonanza Books, p. 60.
25 Freire, Paulo (1985). The politics of education. South Hadley, MA: Bergin &
Garvey Publishers, Inc., p. 94.

32
ensinaram a ensinar? Qual o nosso papel num mundo de
aprendizagens? Como é que vamos agora organizar o nosso currículo
com tanta a gente a fazer tantas perguntas?

Tenho de confessar-vos que também não sei, mas afinal não


vivemos nós num mundo de perguntas? Será que as gentes da
Bósnia e do Ruanda e de Timor e da Indonésia têm respostas para o
que lhes acontece? Será que os sobreviventes dos ataques
terroristas em Madrid, Paris, Belfast ou Londres têm respostas? Será
que nós temos respostas para todas as nossas angústias? Será que
os cientistas quando se debruçam sobre os seus bancos de ensaio
têm as respostas prontas? Será que temos as respostas para o que
nos poderá acontecer no segundo que se seguir àquele em que eu ler
estas palavras? Será que este mundo é mesmo um mundo de
respostas, ou será antes um mundo de perguntas? E como é que eu
vivo se não sei a maior parte das coisas que me poderão e irão
acontecer? Como é que eu giro a minha casa, vivo com a minha
família, convivo com os meus amigos? Que outro uso têm a
matemática, a física, a história, senão o de me ajudarem a fazer mais
perguntas, a buscar um sentido mais lato, uma compreensão maior,
uma visão mais ampla da vida, o que é dizer de mim mesmo? Como
vou gerir a minha sala de aulas num espaço educativo de perguntas?
Talvez da mesma maneira que giro a minha vida.

No meio desta Babel de perguntas e respostas/perguntas, no


meio desta realidade que cada vez se nos apresenta mais
descontínua, complexa e imprevisível, Popper 26, que fez imensas
perguntas sobre isto tudo, apresenta-nos uma matriz possível e
atractiva de definição da realidade tal como a compreendemos hoje.
Diz ele que a realidade é emergente: que é parte causal, parte
probabilística e parte indeterminada. Quer isto dizer que não
estamos tão perdidos como à primeira vista poderíamos supor, nem
abandonados aos fados, nem deixados esvaídos de canseira, com
maxilares caídos sobre o peito de tanta pergunta fazer sem resposta
alcançar. A visão emergente da realidade, que no fundo é o nosso
presente, diz-nos que o que acontece é em parte fruto da nossa
vontade, isto é da nossa acção transformadora sobre o mundo, da
nossa intervenção na vida, da nossa curiosidade; é em parte
probabilístico, o que quer dizer que quanto mais sinergias nós
criarmos entre nós mesmos e entre nós e o nosso mundo mais
reduziremos a improbabilidade; não há dúvida de que para nós, a
realidade é de facto, também, em parte indeterminada. E ainda bem
que assim é.

A palavra emergente segundo os teóricos da complexidade


pode-se definir como a organização que é gerada de muitas partes
actuando em concerto27. A definição de Popper surge-nos assim
como um desafio fascinante: a realidade resulta da capacidade de

26 Popper, Karl (1988). O universo aberto. Lisboa: Publicações D. Quixote, p. 129.

33
cada um de nós saber actuar em concerto com os outros, criando
tendências, e também com o indeterminado. Um tal conceito de
realidade parece negar a nossa apregoada capacidade de
planeamento estratégico, ou até de muitos outros aspectos da macro-
gestão. Mais ainda, o próprio conceito de planeamento estratégico,
que em suma pretende fazer com que certas coisas aconteçam, é
mais próprio duma visão mecanicista e linear do mundo do que da
noção de um mundo aberto. O querer fazer com que determinadas
coisas aconteçam, limita, ao prescrevê-lo, o potencial possível duma
determinada organização. Daí, quanto a mim, um dos motivos da
falência de tantos projectos de reforma escolar.

Se as reformas estão, por assim dizer, condenadas à partida a


produzirem, quando muito, modificações modestíssimas, e se o
próprio processo de macro-gestão determinista não é consentâneo
com os processos que podem levar à transformação do mundo, o que
é dizer, às aprendizagens, como esperar grandes coisas de órgãos
burocráticos centrais de administração, como os ministério? São
contradições em termos de difícil resolução. As aprendizagens que
aqui menciono não têm nada a ver com as que geralmente
associamos às competências técnicas que adquirimos em cursos de
formação. A aprendizagem que aqui equaciono é uma cultura, é uma
atitude, é uma matriz de vida. Tanto o aluno, como o professor, como
o administrador deverão viver num espírito constante de
aprendizagem, o que é dizer, em diálogo constante uns com os outros
e com o meio em que se inserem, para além de desenvolverem as
sensibilidades imprescindíveis para a percepção de tendências e as
capacidades necessárias para gerirem o indeterminado. Não há
descentralização que permita tal estilo de gestão e de vivência. Só
uma completa não-centralização. Só uma completa reinvenção, não
da escola, mas da própria maneira de conceber a educação. E não há
maneira de se lá chegar devagar e com jeitinho.

É claro que a escola como espaço educativo deveria sofrer


transformações de raiz e não restam dúvidas de que a autonomia
administrativa das escolas é uma das tendências e uma das
perspectivas futuras. Duvido, todavia, que a autonomia
administrativa das escolas como espaços educativos possa resolver
muitos dos problemas. Há experiências, noutros países, em que o
que muitas vezes aconteceu, foi desaparecer um Ministério muito
grande e aparecerem muitos ministérios muito pequeninos. Para que
a educação pela aprendizagem aconteça de facto, é imprescindível
que nos compenetremos de que o paradigma mecanicista por que
temos guiado a nossa acção não é mais capaz de traduzir a realidade,
de conjugar técnicas, esforços e metodologias para a transformação
do mundo, para a criação de um mundo melhor. Sem querer entrar

27Kelly, Kevin (1994). Out of control. Reading, MA: Addison-Wesley Publishing


Company, p. 458.

34
em futurologia e sem pretender apresentar nenhuma resposta,
gostaria, no entanto, de propor alguns conceitos para discussão.

Gostaria de propor um binómio que substituísse com vantagem


o já gasto Ordem e Progresso. Permitam-me que lhes proponha Paz e
Desenvolvimento. São dois conceitos completamente diferentes.
Enquanto que os primeiros podem ser ensinados, os segundos só
podem ser aprendidos. A Paz não se ensina; a paz cria-se ao ritmo
em que conseguimos aprender a viver não em paz, mas a paz. O
viver em paz está mais próximo da noção de ordem, mas muito longe
do viver a paz. Viver em paz poder-se-á traduzir por tolerância, viver
a paz passa muito para além da tolerância, é já a interdependência,
um conceito muito mais cristão do que a tolerância. O conceito de
tolerância assenta num paradoxo irresolúvel: a afirmação de que
todos são diferentes e de que todos são iguais. A interdependência
afirma o carácter único - a palavra inglesa é muito mais rica:
uniqueness - a singularidade de cada ser humano. Na singularidade,
na uniqueness de cada homem, de cada mulher e de cada criança
não há lugar para a noção de diferença, há só lugar para a noção de
igualdade. Não há, pois, nem contradição, nem paradoxo.

O desenvolvimento é o outro conceito fundamental da matriz


duma escola como espaço educativo. É que democracia, justiça e
liberdade também não podem ser ensinadas, mas só podem ser
conquistadas através da aprendizagem. Nunca estaremos
suficientemente ensinados para a democracia, nem para a justiça,
nem para a liberdade. São processos pessoais de desenvolvimento
que só podem ser conseguidos em diálogo com as outras pessoas e
com o meio. Todos também sabemos que não há regressão num
processo de desenvolvimento. Há, todavia, a possibilidade de
regressão num processo de ordem e de progresso.

Se o mundo em que desejaríamos viver é um mundo em que


todas as pessoas se sentem comprometidas com a história; se o
mundo em que desejaríamos viver é um mundo livre de injustiças; se
o mundo em que desejaríamos viver é um mundo em que a liberdade
se conquista dia a dia em comunhão com todos os outros,
imprescindível se torna que a escola se assemelhe tanto quanto
possível a esse mundo. Teremos assim definida a missão profética da
escola como espaço educativo: a de ser hoje um laboratório, se bem
que imperfeito e em contínua construção, desse mesmo mundo. Pois
como educar crianças, jovens ou adultos na vivência da democracia
num ambiente autoritário, ou fazê-los razoar moralmente numa
cultura arbitrária, ou querer que aprendam a ser livres num meio que
lhes nega a capacidade de ser?

Parece-me também que a escola não é o verdadeiro espaço


educativo. Numa perspectiva desenvolvimentista não me parece
razoável pôr a ênfase na organização que administra um determinado

35
processo educativo. Tal atitude parece-me muito mais consentânea
com o modelo mecanicista, com a fábrica, com a Unifranck de que
vos falei no princípio desta palestra. Numa perspectiva
desenvolvimentista parece-me que o que verdadeiramente conta é o
grão de mostarda. Numa perspectiva desenvolvimentista parece-me
que o que verdadeiramente conta, que o verdadeiro espaço educativo
é o aluno, é a criança. Mas quantos de nós é que compreende isto?
Quantos de nós põe o interesse da criança em primeiro lugar quando
fazemos horários, ou delineamos currículos, ou desenvolvemos
metodologias, ou até quando lhes falamos. Perguntem a cada
professor o que é que ele ensina: se matemática se alunos, e
asseguro-vos de que vos assustareis com a resposta. Eu quando a fiz,
assustei-me. Peçam a um Conselho Directivo que altere o horário
duma escola porque um grupo de alunos precisa de ajuda que não
pode ser ministrada dentro dos confins apertados de um horário que
só leva uma coisa em conta: o conforto dos professores. E quanto
mais antigos, mais regalias. Perguntem ao Ministério, ou ao
administrador de qualquer escola, quantas pessoas lá trabalham, e
asseguro-vos de que se esquecerão das crianças.

E eu pergunto, num processo de aprendizagem quem é que


deve trabalhar numa escola: o professor? Se concordam, não sei se
gostaríeis de ver um jogo de futebol com os treinadores em campo e
os jogadores na bancada. Se é aprendizagem que queremos, se é
desenvolvimento que pretendemos, se é nosso objectivo alargar as
fronteiras do conhecimento não temos outra alternativa senão
transformar as nossas escolas em laboratórios em que professores,
alunos, administradores e pais trabalham lado a lado, perguntando,
experimentando, questionando, descobrindo e perguntando de novo.

Que desafio tremendo este, o de considerarmos o aluno, ou em


sentido mais lato – a pessoa, como o verdadeiro espaço educativo.
Só assim ela será o agente da sua própria educação e não
meramente o objecto de um determinado processo. Mas o professor
é também parte desse espaço educativo, se o definirmos como
aprendedor, como cientista. E eu não vejo outra maneira de fazê-lo.
Reduzir o professor a um simples técnico do ensino seria reduzir o
processo educativo a uma quase irrelevância. Centremos o processo
educativo na pessoa humana, consideremos tudo o que acima foi dito
e veremos que, primeiro que tudo, as paredes da escola se revolvem
nos seus eixos abrindo-se para fora, porque é lá que está o mundo, a
realidade, a física, a biologia, a matemática, a literatura, o sentido
das coisas. A ideia de que o conhecimento humano é uma colecção
de disciplinas separadas e catalogadas é um conceito que começou a
ser abandonado pelos homens e mulheres da ciência. Não faz já
muito sentido. Na era da mecânica quântica e da genética, como
separar a matemática da física, ou a química da biologia, ou a
matemática da música, ou a biologia da engenharia e da ética. A
aprendizagem não é já só apanágio do ser humano, mas também de

36
seres que nós fabricamos. Parece-me, pois, que uma outra tendência
será a de fazer com que os alunos trabalhem em grandes áreas de
conhecimento do que propor que estudem disciplinas desconexas. Se
ainda como educadores olharmos para fora e começarmos a
descortinar outras tendências, veremos que a escola como sala de
aulas terá de se reinventar como oficina/laboratório onde alunos e
professores investigam o real que nos contextualiza para o poder
compreender e explicar. Gostaria de levantar algumas questões:

1 Parece que não muita coordenação entre o horário da escola e


os horários do mundo do trabalho. A escola como uma fábrica
antiquada que é, pois as modernas já funcionam muito
diferentemente, abre às nove e fecha às catorze e trinta, ou
funciona em turnos. Qualquer tentativa de flexibilização dos
horários provoca a maior das contestações.

2 Não há dúvida de que em Portugal a estrutura da família já


apresenta múltiplas configurações. Mesmo dentro daquilo que é
considerado a família-protótipo poderemos dizer, sem grande
margem de erro, que os membros duma família se habituaram
a viver mais em regime de part-time do que a tempo integral.
Com pais e mães no trabalho, os filhos numa ou mais escolas
(não nos podemos esquecer das escolas de música, de ballet,
de desporto) e a televisão, pouco tempo resta para as pessoas
poderem conviver. E não chega criticar: esta é uma realidade,
se bem que em franca mudança.Com o desenvolvimento das
tecnologias da comunicação já não é, por exemplo, necessário ir
ao banco, como começa a não ser necessário comutarmos entre
o local de trabalho e o de residência. Hoje um número cada vez
maior de pessoas telecomuta e esse número só tende a
aumentar. Parece-me que o desafio maior será o de fazer com
que as famílias aprendam de novo a viver em conjunto a maior
parte do tempo. Não vai ser tarefa fácil, mas é urgente que nos
preparemos para uma tal eventualidade. E se as crianças
podem estar em casa e, consequentemente, inseridas numa
comunidade, será absolutamente necessário que elas tenham
de ir à escola todos os dias? Pode ser que sim, pode ser que não
e pode ser que sim e que não.

3 O avanço da cibernética permite-nos hoje um índice qualitativo


de aprendizagem difícil de imaginar. Bastará falar do que se
pode aprender através do processo de simulações por
computador. Não há professor, nem compêndio, nem mesa
redonda, nem visitas de estudo que possam igualar a força, o
impacto, a penetração, a envolvência, o realismo que tem, por
exemplo, pedir a um grupo de alunos que simule o
funcionamento duma cidade, ou duma galáctica, ou duma
escola. Não há dúvida de que aprender é viver, como viver é
aprender.

37
É claro que a transformação do processo educativo implica pelo
menos uma grande troca: teremos de trocar controle por poder.
Teremos de trocar o controle que um sistema baseado no ensino nos
proporciona por um poder diferente: não o poder hierárquico dos
sistemas fechados, o chamado poder-sobre, mas o poder duma
hierarquia de funções, ou o poder com. É esse poder como
capacidade e oportunidade de trabalhar, construir, transformar com
os outros que é o motor da educação como aprendizagem. É essa
concepção de poder que nos liberta para o estudo de tudo aquilo que
não aprendemos nas disciplinas que nos ensinaram na universidade.
Pois se o conhecimento é o centro do processo educativo e o aluno, a
pessoa humana constituem o espaço educativo, o que é que temos
estudado ultimamente sobre o funcionamento do cérebro, ou sobre a
teoria das inteligências múltiplas de Gardner, ou sobre o impacto da
física quântica ou da genética, ou da cibernética no processo
educativo? É provável que a maioria dos professores já tenha
participado em múltiplos programas de formação. É provável
também que uma grande parte desses cursos tenha andado à volta
da didáctica da matemática, ou da didáctica do francês, ou da
didáctica de qualquer outra coisa. Tudo isso não é mais nem menos
do que mais do mesmo, o que é muito pouco. Teimamos em ser
especialistas, mas alguém já definiu o especialista como aquele que
sabe cada vez mais de menos, até que sabe tudo de nada.

É imprescindível que nos deixemos apaixonar de novo por


aquilo que nos trouxe para a educação: as crianças e o saber. Ora
tudo está intimamente ligado. Nick Herbert28, no seu livro intitulado A
Realidade Quântica, diz o seguinte:

As religiões asseguram-nos de que somos todos irmãos


e irmãs, filhos da mesma divindade; os biólogos dizem
que estamos ligados a todas as formas de vida neste
planeta: o nosso futuro melhora e piora com o deles.
Agora os físicos descobriram que os átomos dos nossos
corpos são tecidos a partir dum mesmo fabrico super-
luminal. Não somente em física nos encontramos
divorciados da realidade, mas a ignorância destas
conexões pode-nos fazer perigar.

A compreensão destas conexões é talvez uma forma elevada de


solidariedade. De qualquer modo, não poderemos ser solidários com
a vida se continuarmos solidários com uma só disciplina, com uma só
perspectiva de escola, com um só processo de educação. A vida e a
descoberta dessa mesma vida pela educação é por demais rica e
fascinante e intrigante para que possamos continuar
confortavelmente no nosso ramerrão quotidiano.

28 Herbert, Nick (1985). Quantum reality. Garden City, NY: Anchor


Press/Doubleday, p. 250.

38
Qual é o espaço educativo duma pessoa, dumacriança? Kevin
Kelly29 diz o seguinte: Talvez que o espaço da cognição possível, seja
o nosso espaço Qual o espaço possível da aprendizagem? Qual o
espaço possível da aprendizagem da vossa área de conhecimento? .
Qual será o limite da cognição possível da pessoa humana? Qual o
espaço possível do poder educativo duma comunidade?

29Kelly, Kevin (1994). Out of control. Reading, MA: Addison-Wesley Publishing


Company, p. 467.

39
Gestão e organização escolar

Do controle à emergência

O voo de Ícaro permanece como a metáfora do ser humano na


sua frustrada tentativa de agarrar o sol. Agarrar o sol, isto é,
podermo-nos soltar da prisão gravitacional e possuir a realidade e a
vontade realizada, afigura-se-me como o continuado desafio maior de
todo e qualquer ser humano. A busca de novas paragens onde
refazer a vida, o sondar novas praias para alargar horizontes, a
penetração das nossas origens para a reformulação do mundo, dum
mundo nosso, são fenómenos que nós, portugueses, compreendemos
bem. Temo-lo feito ao longo dos séculos, como manifestação
ostensiva do nosso querer e da nossa capacidade de construir algo
que é verdadeiramente nosso num contexto eminentemente
universalista.

Não vejo outra maneira de perceber a condição do educador.


Se a educação é a busca que continuadamente frustra e compele,
ilude e atrai, desvenda e esconde, porque há sempre mais a
desvendar; se o acto de educar é a tentativa sempre renovada de
encontro com o sentido da vida; se a nossa condição de educandos-
educadores nos impele e nos responsabiliza pela dessacralização do
lado oculto do conhecimento, não vejo grandes possibilidades de
cumprirmos a missão sem rasgos de voluntariedade inseridos num
contexto afectivo de grande inquietude.

No fundo, o nosso voo voluntarioso e inquieto não é mais do


que a tentativa de gerir o compromisso inviável com o comum da
vivência educacional que nos rodeia. Uma visão reducionista deste
nosso voo, poderá considerar arrogante o que é vontade e fútil o que
é resultado do nosso compromisso com a vida. Se o nosso voo for
demasiado baixo, corre o risco de cair no afunilamento dos
fundamentalismos; se demasiado alto, perde-se na irrelevância das
experiências descontextualizadas, e como a cera das asas de Ícaro,
desfaz-se na confrontação com o real. A vocação maior da educação
é a de aproveitar ao máximo a liberdade que lhe é inerente para a
prossecução de experiências arrojadas, de visões estimulantes, de
caminhos verdadeiramente transformadores. É esta a altitude
correcta do nosso voo, aquela que nos permite voar uma rota
emergente, sem cair nas turbulências sempre perigosas da
construção de modelos fixos e aprisionantes, ou no vazio de um
diletantismo fácil e desumanizante.

Quer isto dizer, que uma escola autónoma deve ser sempre
uma proposta nova e jamais uma resposta diferente. Quer isto dizer
ainda, que um projecto educacional deve viver em sinergia com todos
os outros sistemas ou subsistemas educacionais, sem, todavia, perder

40
a sua identidade ou deixar-se submergir no facilitismo da
dependência de qualquer espécie. Um escola autónoma, que vive
como um sistema fechado, define necessariamente uma percepção
segmentada da realidade. Uma escola autónoma que se deixa
dissolver no sistema maior deixou de viver a vida: existe como um
apêndice a que falta integridade, carácter e congruência interna. Um
projecto autónomo de educação não deve surgir como reacção
separatista, mas como afirmação da liberdade e da responsabilidade
que temos de escolher os nossos próprios trilhos.

É fácil cairmos no seguidismo, confortável mas inerte, das


massas ou do que é familiar. O seguidismo, todavia, tem muito mais
a ver com instrução do que com educação, muito mais com as
técnicas do ensino, do que com as metodologias da aprendizagem.
Mas não é só o seguidismo que confunde, apesar do seu aparente
conforto. Igualmente enganadora é a noção, quantas vezes
prevalecente, de que objectivos são o mesmo que destinos. A
educação como processo de aprendizagem é sempre uma viagem,
nunca um destino. Ela vive de perguntas e da curiosidade levantada
por cada porto de arribação em relação ao seguinte. Tal e qual como
a ciência, a educação como aprendizagem não procura soluções
finais, mas explicações possíveis; procura a verdade provável e não
necessariamente a certeza. Aliás, sabemos hoje bem, que a ciência
pode ser verdadeira, mas que nunca é certa. Por outras palavras,
toda a resposta conduz necessariamente a uma pergunta, cada porto
de chegada é simultaneamente cais de embarque para uma nova
viagem.

Começa-se assim a gerar a problemática maior do tema que


nos foi proposto para reflectir: A gestão e a organização da escola
como serviço público. E eu pergunto: Que gestão e que organização
escolar? Será que a relação entre a gestão e a organização escolar é
óbvia e incontroversa? Que queremos dizer quando falamos em
gestão e em organização? Serão gerir e organizar uma e a mesma
coisa, ou serão antes coisas muito diferentes? Que modelo ou
modelos conceptuais usamos para definir e relacionar a gestão e a
organização escolar? E no modelo que conhecemos, que diferença
existe entre gestão de uma escola e gestão de um sistema escolar?
Será ainda que gestão escolar é o mesmo que gestão educacional? E
se não são a mesma coisa, o que distingue escolaridade de educação,
e que implicações traz para a gestão? Que queremos dizer quando
falamos de organização escolar e da sua gestão? Será que a gestão
do desenvolvimento é compatível com o modelo mecanicista de
organização? E se não é, por que modelo optar, se é que existe
algum modelo? Será que a relação entre a gestão e a organização
escolar poderá e deverá ser em alguns casos adversarial, mesmo
subversiva? E se a organização organizada é coisa do passado, como
alguns propõem, como gerir a não-organização-organizada? O que é
isso de uma não-organização-organizada? E o que é que se gere,

41
quer numa organização escolar organizada, quer numa não-
organização escolar organizada?

Tudo isto parece muito complicado, mas não o é: é apenas


complexo, como complexa é toda a realidade, toda a vida, todo o
universo. Na verdade, o grande problema das organizações
organizadas é que cresceram muito e desenvolveram-se pouco,
preferindo a linearidade da complicação burocrática, à complexidade
simples da vida.

1. A perspectiva mecanicista ou Krishnamurti e as vacas loucas

Gareth Morgan30 descreve deste modo o surgir do conceito


moderno de organização:

A ideia de descrever um grupo de pessoas como uma


organização tornou-se popular com o despertar da
Revolução Industrial e adquiriu tonalidades mecânicas.
Organizações, assim como máquinas, vieram a ser vistas
como instrumentos que podiam ser concebidos e geridos
racionalmente, de tal modo que os seus órgãos humanos
e técnicos se comportassem de uma maneira racional e
predizível.

Este modelo de organização organizada, feito à imagem e


semelhança da máquina, não há dúvida que teve um sucesso
enorme. A máquina certinha, obediente, ordeira, planeada e
programada para objectivos específicos, que não recalcitrava nem
fazia greves, que, desde que lhe fizessem a manutenção a tempo e
horas, trabalhava 24 horas dia após dia, que funcionava segundo
princípios de linearidade causal de uma simplicidade que parecia
desafiar toda a lógica, que, quando emparceirada com outras,
formava um todo harmonioso e produtivo, parecia a metáfora e o
modelo da sociedade perfeita. A tentação foi, de facto, irresistível.

Porque não conceber uma sociedade humana que funcionasse


como uma máquina, em equilíbrio, em harmonia e em paz, para o
progresso dos povos? Da concepção à realização foi um passo. E ela
ainda aqui está, representada pelas grandes instituições que só
ligeiramente se sentem ameaçadas pela transformação do mundo: as
grandes burocracias estatais, uma grande parte das escolas e das
igrejas, e ainda algumas das grandes corporações multinacionais. O
paradigma mecanicista existe sobretudo nas mentalidades, apesar de
nos últimos decénios os seus fundamentos terem sido fortemente
abalados. Atentemos nas escolas e na sua organização e analisemos,
ainda que superficialmente, alguns dos seus elementos
identificadores:

30 Morgan, Gareth (1993). Imaginization. London: Sage Publications Ltd, p. 278.

42
· Uniformização e estandardização: A preocupação com a
uniformização é quase obsessiva. Dos programas curriculares
nacionais ao tratamento das relações humanas e contratuais a
preocupação com a uniformização é elevada. Há tabelas e
formatos para tudo. Tudo tende a ser tratado da mesma
maneira. A noção de que o aluno entra vazio de saberes e
experiências e é enchido e formatado na escola advém do
conceito de escola como fábrica de profissionais, homens-peças
para a Grande Máquina do Mundo. É o império do quadrado e
do rectângulo nas mentalidades e na arquitectura.

· Previsibilidade e determinismo: A rotina, o trabalho repetitivo


feito a uma velocidade prescrita, possibilitavam a certeza das
previsões da produção. Um determinado tipo de aluno, que
frequentasse uma determinada escola e que fosse instruído
num determinado currículo, segundo uma determinada
metodologia, deveria sair com uma determinada forma(ta)ção,
pronto a desempenhar uma determinada função social. Daí o
ainda falarmos no perfil do aluno ideal. Prevalece a ideia de
que uma boa gestão é aquela que prevê mecanicamente os
resultados de determinadas acções. Isto aplica-se não só a
escolas, como a sistemas inteiros. Imperam ainda a
macrogestão e o planeamento estratégico. É a gestão da self-
fulfilled prophecy: a profecia que se auto-realiza. Os próprios
movimentos de reforma alinham-se por este mesmo molde.
Mintzberg31 diz o seguinte sobre este assunto:

O planeamento assume a predeterminação numa


série de aspectos: a predição do ambiente através de
previsões ou da sua implementação através da acção
organizacional, o desenrolar do processo de formação
da estratégia de acordo com o horário previsto(...), e
a imposição das estratégias resultantes num
ambiente aquiescente, de novo a tempo e horas, com
a organização estabilizada para o fazer através da
programação. (...) O plano estratégico é um
itinerário com um destino fixo e bem definido, e com
os passos precisos para o alcançar.

O determinismo é a matriz da vida, o fado, o nosso destino.


Não há que fazer!

· Hierarquia: Uma das grandes preocupações do ser humano nos


últimos trezentos anos tem sido a ordem, e, se ela, nesta
perspectiva, é fundamental ao progresso dos povos, há que
organizar a sociedade de modo a que tudo seja concebido para
promover a ordem como um factor cultural de primeira

31 Mintzberg, Henry (1994). The rise and fall of strategic planning. Hertfordshire:
Prentica Hall International (UK) Limited, pp. 227-228.

43
grandeza. Assim como cada peça de uma máquina
desempenha uma única função, de igual modo deve ser
concebido o labor humano. As funções são hierarquizadas em
termos de importância, poder e autoridade. Todo o trabalho é
bom e digno, mas cada macaco no seu galho. A instrução é
delineada de forma a promover lealdade, conformidade,
obediência, seguidismo. Ainda me recordo da frase de Salazar
escrita por cima da porta do gabinete do reitor de um dos liceus
que frequentei: Se soubesses o que custa mandar, gostarias de
obedecer toda a vida. É o reino determinista do magister dixit,
da realidade encapsulada nas páginas de um compêndio, da
imaginação reduzida à sua capacidade reprodutora, da eventual
mudança imposta de cima, como parte de um novo plano
estratégico. Ainda há muito disto por todo o mundo. Basta
entrar numa sala e observar a primeira acção dos alunos,
abrindo os seus cadernos, prontos a receber a lição do mestre,
numa reacção pavloviana fomentada por um conceito de
educação baseado na transmissão de conteúdos, aquilo que
Paulo Freire32 descreve do seguinte modo:

A narração, de que o educador é sujeito,


conduz os educandos à memorização mecânica do
conteúdo narrado. Mais ainda, a narração os
transforma em vasilhas, em recipientes a serem
enchidos pelo educador. Quanto mais vá enchendo
os recipientes com seus depósitos, tanto melhor
educador será. Quanto mais se deixem docilmente
encher, tanto melhores educandos serão.

Desta maneira, a educação se torna um ato


de depositar, em que os educandos são os
depositários e o educador o depositante. (...) Eis aí a
concepção bancária da educação, em que a única
margem de acção que se oferece aos educandos é a
de receberem os depósitos, guardá-los e arquiva-los.

· Linearidade causal: Assim como a peça A acciona a peça B que


põe em movimento a C, assim se define todo o relacionamento
entre os seres humanos e entre estes e o mundo. A realidade é,
pois, uma sucessão linear de causa-efeito que liga os elementos
entre si. A simplicidade é substituída pelo simplismo, do
mesmo modo que a ciência assume foros de cientismo. A
linearidade causal elimina qualquer veleidade de concepção de
uma realidade complexa. A realidade é prescrita, determinada e
simplista.

32 Freire, Paulo (1987). Pedagogia do oprimido. São Paulo: Editora Paz e Terra S/A,
p. 58.

44
· Segmentarização do saber: Um conceito holístico do saber
humano não se coaduna com a visão de uma realidade que se
quer facilmente identificável e descritiva. A divisão do saber
em disciplinas autónomas, e ensinadas como se nenhuns laços
existissem entre si, acentua-se e perpetua-se, sobretudo no
ensino secundário e no universitário. A universidade é ainda
hoje a grande guardiã dessa tradição. É muito difícil querer que
professores instruídos numa só ciência, e nas virtudes da sua
autonomia, concebam e implementem eficazmente projectos
inter- ou transdisciplinares. Ou se é professor de Matemática, ou
de Física. Os próprios regulamentos da carreira e contratos
colectivos de trabalho, um pouco por todo esse mundo, assim o
prescrevem.
Alan W. era um óptimo professor de Biologia no Liceu de
Cambridge. Ainda o estou a ver entrar no meu gabinete,
sentar-se no cadeirão com abandono e falar-me da sua
angústia. Como continuar a ensinar Biologia por mais 25 anos,
era um futuro que ele não conseguia compreender. Alan era
também um escultor com um currículo invejável, mas a
universidade não o havia certificado nessa matéria. Para o Alan
ou a Biologia, ou nada. Os exemplos abundam.

Gerir uma organização organizada com esta perspectiva


curricular é fácil, mas extremamente oneroso, ineficiente,
ineficaz, altamente desumanizante e cientificamente
questionável.

· Departamentalização e burocratização: O modelo mecanicista


cedo evoluiu outras formas de arranjo e controlo dos seus
recursos humanos. A divisão da organização em unidades
hierárquicas mais fáceis de controlar, a difusão da autoridade
por esses numerosos departamentos e a aderência a regras
inflexíveis de comportamento e procedimento vieram dar a
pedra de toque a uma organização organizada até à sua mais
ínfima instância. A gestão não era mais do que uma cadeia de
transmissão e implementação de ordens. Cada gestor tinha um
campo bem definido de acção e a autoridade necessária para
poder administrá-lo.

É fácil verificar, olhando para o que atrás foi dito, que a


organização escolar que conhecemos segue ainda de perto este
modelo mecanicista. Mesmo as próprias iniciativas de
descentralização do sistema não são mais do que uma forma mais
evoluída, uma reforma, portanto, desse mesmo sistema. São como
que uma tentativa, vã no meu entender, de perpetuar uma forma de
existência e de percepção da realidade, que já não se coaduna nem
com uma, nem com outra.

45
Apesar de toda a boa vontade e de todas as reformas feitas e
por fazer, apesar de todos os esforços dispendidos, os diferentes
sistemas escolares estatais enfermam porque padecem todos do
mesmo mal: a demonstrada incapacidade de se reinventarem como
sistemas abertos, capazes de evoluirem e de se desenvolverem numa
relação sinergética com o mundo. Alguns sistemas escolares estatais,
e alguns particulares, são ainda, por natureza e por definição,
sistemas fechados, altamente hierarquizados e eminentemente
burocratizados. O modelo mecanicista está demasiado enraizado
para que possa ser transformado: a cultura prevalecente é a
mecanicista e não há vontade política suficiente, talvez até neste
momento, possível, que possa virá-lo do avesso.

Prevalece a noção de que sem controle o caos é a única


hipótese. Sabemos hoje, que o caos -- percebido no seu sentido
científico -- é uma das perspectivas verdadeiras de perceber a
realidade, e que o controle não faz hoje muito sentido, sobretudo
quando definido na sua forma tradicional. Prevalece a noção de que
uma gestão ordeira da escolaridade passa por entregar a
funcionários, ou a comissões ad hoc, nomeadas e controladas pelo
estado, a elaboração dos programas curriculares possíveis e
permitidos. O paralelismo pedagógico e a própria autonomia
pedagógica -- esta só é concedida após a escola ter demonstrado que
é boa zeladora dos princípios do paralelismo pedagógico -- são outras
formas de reduzir os projectos educativos particulares ao paradigma
estatal. A liberdade de ensinar e aprender resume-se a pouco mais
do que ao direito de propriedade. Vive-se assim como que um
sistema de ensino por empreitada.

Prevalece a noção de que a inovação deve vir de cima, do


organismo macrocéfalo que controla todas as escolas. É a
modalidade da inovação por funil: há muito à entrada, mas muito
pouco à saída. Discute-se e planeia-se muito a nível das cúpulas,
mas o que chega à escola são mais decretos-leis a juntar aos muitos
que por lá se acumulam. Por outro lado, toda a tentativa de inovação
que parta das bases tem de passar pelo crivo ministerial. Isto
significa que toda a iniciativa não difere muito de um processo de
clonagem, tendo o modelo estatal como protótipo.

Prevalece a noção de que o estado é o garante da qualidade,


porque prevalece a noção de que a qualidade se gere através da
burocracia ministerial, quando todos sabemos que a qualidade é
muito mais uma cultura que um procedimento. Aliás, mesmo que o
não fosse, como pode alguém em Lisboa controlar o grau de
qualidade do que acontece diariamente por todo o país. Missão
impossível, que nem o Mr. Phelps conseguiria levar a cabo.

Ora acontece que a iniciativa estatal não é necessariamente


boa nem necessariamente má. Tenho advogado que o verdadeiro

46
papel do estado é o de liderar o processo de criatividade, de
inovação, de mudança, de transformação. O que é verdadeiramente
perigoso é a liderança inovadora acoplada à gestão macro e micro de
todo o sistema, por outras palavras, o monopólio estatal, implícito e
explícito, de toda a gestão do sistema educacional. Mais grave ainda
é que isto tudo é um filme em que realmente não há bons nem maus.
As situações perpetuam-se porque se permite que se perpetuem.
Partíssemos agora mesmo para um processo de descentralização ou
de desconcentração do poder decisório, de possibilidades de
transformação, de verdadeiro empenho na reinvenção do sistema
educacional e suspeito que encontraríamos poucos preparados para
assumir os riscos de um tal processo. Fomos todos gerados e
formatados num mesmo sistema.

A gestão numa organização escolar mecanicista não vai muito


além da gestão do quotidiano, tendo o imediatismo como visão; tudo
se resume a fazer aquilo que é necessário para manter um mínimo de
funcionamento da organização. Dada a mentalidade predominante, o
espaço de acção existente não é completamente preenchido. Há
medo de assumir riscos, há medo do insucesso e da prestação de
contas, se bem que todos saibam que na situação de quase colapso
em que se encontra a grande maioria dos sistemas de educação
estatais, o prestar contas seja muito relativo.

Se nos voltarmos para o sistema escolar particular, é possível e


viável embrenharmo-nos em experiências inovadoras de
relacionamento com as crianças. Todavia, é preciso não esquecer que
a grande maioria dos intervenientes provem do mesmo molde
mecanicista. É possível seleccionar alunos, é possível um melhor
acompanhamento das suas necessidades, é possível inovar dentro da
flexibilidade permitida, tudo isso é possível e acontece. Não
acontece, todavia, com a frequência que seria desejável. O
relacionamento, quase incestuoso, entre os sistemas estatal e
particular cria assim ciclos de infecção impeditivos do
desenvolvimento que urge fomentar.

Um tal regime de organização e gestão é também um grande


obstáculo à consolidação da democracia como parte fundamental da
cultura. Aliás, os sistemas autónomos de educação só adquirem
verdadeira autenticidade, validade e sentido num regime
democrático. Eles constituem uma das suas maiores valências. A
democracia, todavia, não se ensina, pratica-se. Ora a contradição
que encontramos logo à partida, é que a prática de todo o sistema é
eminentemente autoritária. Se bem que os compêndios e os
professores falem dos valores e processos democráticos, o currículo
oculto da escola e do sistema transmite uma mensagem muito
diferente. Há assim muito folclore democrático, mas pouca
democracia. Há muitas eleições, mas pouca participação ao nível das
decisões. Há, por vezes, consulta que baste, mas a imagem que

47
transparece é a de um estado-providência, um estado-patrão, um
estado que por vezes até quer estar próximo dos cidadãos, mas que
nas suas manifestações de poder continua no topo de uma pirâmide
inassaltável.

Daí o subtítulo desta primeira parte: Krishnamurti e as vacas


loucas. Krishnamurti33 viu este problema com grande clarividência
quando escreveu:

A maior parte da educação que recebemos consiste na


aquisição de conhecimentos, o que está a tornar-nos
cada vez mais mecânicos: as nossas mentes estão a
funcionar em caminhos rotineiros e estreitos, quer o
conhecimento que adquirimos seja científico, filosófico,
religioso, comercial ou tecnológico. A nossa maneira de
viver, em casa ou fora dela, e a nossa especialização
numa profissão determinada tornam as nossas mentes
cada vez mais estreitas, limitadas e incompletas. Tudo
isto leva a um modo mecânico de viver, a uma
mentalidade que se ajusta a padrões, e assim
gradualmente o Estado, mesmo um Estado democrático,
dita aquilo em que deveremos tornar-nos. Muitas
pessoas dadas à reflexão têm naturalmente consciência
disso, mas infelizmente parecem aceitar viver assim. E
isso torna-se um perigo para a liberdade.

A liberdade que geralmente usufruímos traduz-se geralmente


pelo inventário de alguns dos direitos que nos assistem; só muito
raramente é a liberdade concebida e exercida como um processo de
desenvolvimento. A liberdade como processo de desenvolvimento
não acaba, como sói dizer-se, onde começa a liberdade dos outros.
Ela começa onde começa a liberdade dos outros, o que é uma coisa
completamente diferente.

Ora as vacas loucas têm preenchido nos últimos tempos muitas


das parangonas dos jornais. Parece que a doença é, de facto,
transmissível ao homem, e parece também que a sua propagação
entre a espécie está muito associada à criação intensiva de gado
alimentado a ração. Parece que o gado criado na liberdade das
pastagens não está tão sujeito à doença. Parece-me, também, que
Krishnamurti nos alerta no seu texto para um ciclo de infecção que
existe na nossa sociedade: o trabalho intensivo, a educação
concebida como instrução intensiva, o trabalho intelectual prescrito, a
relação afectiva planeada, o logro do tempo-qualidade com os filhos
ou com os alunos. Há muito pouco envolvimento das crianças e dos
adultos com as pastagens da realidade. Que ração lhes estamos a
dar?

33 Krishnamurti, J. (1988). Cartas às escolas. Lisboa: Livros Horizonte, p. 18.

48
2. A perspectiva emergente, ou o novo voo de ícaro

Russel Ackof34 disse uma vez o seguinte:

Hoje todos admitem que desenvolvimento é o que


Winnie the Pooh chamaria uma Coisa Boa. Poucos
saberão, porém, o que significa desenvolvimento ou em
que medida difere de crescimento. São menos ainda os
que têm consciência das subtis obstruções à sua
consecução. É uma teoria minha que muitos dos
sistemas criados para promover desenvolvimento
acabam, na prática, por impedi-lo ou retardá-lo. Se
queremos, portanto, maximizar o nosso
desenvolvimento pessoal ou o dos grupos nos quais nos
inserimos, devemos aprender maneiras de subverter
esses sistemas obstrutivos.

Este apelo à acção subversiva contra as burocracias não é


novo, mas é sintomático quando é proferido por um dos gurus da
gestão nos nossos dias. Diria mais, que essa acção subversiva não é
exercida só pelos cidadãos, mas que alguns dos seus mais exímios
praticantes se encontra na classe política governante. É preciso,
também, dizer que os sistemas burocráticos são constituídos
essencialmente por pessoas tão boas ou tão más como o mais
comum dos mortais. Parece que estamos, portanto, num ciclo
vicioso, em que tanto governantes como cidadãos, como ainda,
muitas vezes, os próprios burocratas, têm a consciência de que o
sistema falha terrivelmente, e, o que é muito pior, impede que se
concretizem medidas destinadas a fomentar o desenvolvimento,
condição essencial para a nossa sobrevivência como sociedade e
como cultura.

Numa das minhas visitas a Portugal, lembro-me de perguntar


uma vez ao Prof. Pedro da Cunha, à altura Secretário de Estado no
Ministério da Educação, como é que a burocracia respondia aos seus
apelos e propostas de renovação. Retorquiu-me sem rebuços que
simplesmente não respondia. Na maioria dos casos, os projectos
tendentes a promover a inovação e o desenvolvimento eram
elaborados por um grupo de assessores que funcionava em paralelo
com o aparelho burocrático do ministério.

A transformação de um tal sistema não se efectua nem com


medidas subversivas, nem com o estabelecimento de sistemas
paralelos a nível governamental. Qualquer destas medidas não passa
de um remedeio. Todos nós sabemos, no entanto, que urge mudar.
Propõem-se modelos de gestão diferentes para as escolas e para o

34 Ackof, Russell (1995). Fábulas de Ackof. Lisboa: Publicações Dom Quixote, p.


11.

49
sistema. Não há consenso sobre a regionalização do país, mas já
existem as direcções regionais no Ministério da Educação, e os
municípios, por seu lado, já têm algo a dizer quanto ao sistema
educativo dos seus cidadãos. A cultura, no entanto, permanece
enraizadamente mecanicista. É por isso que, estou convencido, de
que nem projectos de reforma, nem a descentralização
administrativa, poderão fomentar a emergência de condições
propícias ao desenvolvimento e ao aparecimento de novas maneiras
de conceber o processo educacional das crianças e dos adultos.

E que processo é esse? Como gerir a sua promoção? Qual o


papel da gestão a nível ministerial, a nível regional, a nível das
escolas? Se a máquina já não funciona nem como modelo nem como
máquina; se a verdade substituiu a certeza nas ciências outrora ditas
exactas; se o caos permite uma percepção diferente da realidade; se
a complexidade óbvia dos sistemas humanos, e não só, põe a nu a
incoerência da linearidade causal; se a mecânica quântica nos
propõe a descontinuidade e a incerteza como factores importantes da
compreensão da realidade; se a noção de projecto subalterniza a de
plano, seja este estratégico ou não; se a pessoa humana, com todas
as suas supostas limitações e incongruências, é hoje considerada
como o verdadeiro capital de uma empresa; se um diploma não
significa competência, nem é já passaporte para um emprego, pondo
assim em causa muitos dos objectivos do sistema escolar que
conhecemos; se há cada vez menos emprego, mas cada vez mais
trabalho; se tudo isso é facilmente constatável pela simples
observação do que acontece à nossa volta, ou pela reportagem dos
media, porque será que tudo parece permanecer na mesma situação?

Quando falo destas coisas aos meus alunos, a maior parte, ao


sentir o tapete escorregar-lhe por debaixo dos pés, não deixa de
perguntar: mas se isso se sabe há já algum tempo porque é que não
se faz qualquer coisa? Será tudo isto só um problema de gestão?
Penso bem que não. Em países, como os Estados Unidos, que
praticamente inventaram a gestão tal qual a conhecemos nos nossos
dias, fenómenos semelhantes acontecem. De novo Ackof 35:

A preocupação dos educadores com o que os


estudantes precisam saber só pode ser justificada se os
educadores souberem (1) o que vão os estudantes fazer
depois de formados, e (2) o que lhes é preciso saber
para o fazerem bem feito. Os educadores não sabem
nem uma coisa nem outra. Dentro de um breve espaço
de tempo após a formação, muitos licenciados, se não a
maioria, estão a praticar num ramo diferente daquele
para que foram preparados. Num relatório elaborado
para a Carnegie Foundation, W. G. Ireson comentava:

35 Ackof, Russel (1995). Fábulas de Ackof. Lisboa: Publicações Dom Quixote,


pp. 50-51.

50
O facto mais importante trazido a lume ... por
sondagens cobrindo um período de 30 anos é
que mais de 60 por cento de pessoas que
obtiveram licenciaturas (em engenharia) nos
Estados Unidos ou tornaram-se gestores de
qualquer tipo nos 10 a 15 anos posteriores, ou
abandonaram completamente a profissão de
engenheiros para entrar nas mais variadas
paradas do mundo dos negócios ...

Num editorial da Science, Dael Wolfle afirmava que um


quinto dos americanos doutorados abandonam o ramo
no qual se doutoraram dentro dos cinco anos
subsequentes à sua formação, e 35 por cento fazem o
mesmo num espaço de quinze anos. ( ... ) O acelerado
ritmo de mudança, em particular no campo tecnológico,
torna rapidamente obsoletos muitos dos nossos
conhecimentos. ( ... ) Segundo algumas estimativas,
cerca de 50 por cento do que é actualmente relevante
em muitas profissões deixará de o ser dentro de cinco
anos.

O que é dito aqui para os Estados Unidos da América é fácil de


extrapolar para Portugal.

Parece-me evidente que o objectivo fundamental de qualquer


sistema educacional não é o de preparar jovens para a vida, seja ela
profissional ou outra qualquer. O objectivo fundamental de qualquer
sistema educacional é o de iniciar as crianças e os jovens no mundo
da aprendizagem. E assim a educação, em vez de preparar para a
vida, é a própria vida, reflecte a realidade percebida. Quer isto dizer
que a escolaridade, tome ela as formas que tomar, tem de se basear
muito mais na aprendizagem que no ensino, muito mais no real
envolvente que na sala de aulas.

É por isso que, cada vez mais, a gestão escolar tem de evoluir
para a gestão da educação, que é um fenómeno muito diferente.
Perguntar-me-eis, onde ficará a escola? Qual a sua organização
futura? Confesso que não sei, nem estou muito preocupado com esta
ignorância assumida. Se a realidade é emergente, a minha maior
responsabilidade não é a de planear novas maneiras de remendar a
organização existente, mas a de ler os sinais dos tempos, de estar
atento às tendências que parecem prevalecer, de gerir aprendendo.
Há muito que compreendi que gestão era essencialmente uma forma
de pedagogia. Percebo hoje que organização escolar é um mero
acidente de percurso. Binney e Williams36 propõem o seguinte:

36 Binney, George, Williams, Colin (1995). Leaning into the future. London:
Nicholas Brealey Publishing, p. 7.

51
Líderes com sucesso em mudança combinam
liderança com aprendizagem: eles lideram de maneira
a que a aprendizagem seja encorajada; eles aprendem
de uma maneira que informa e guia aqueles que
desejam liderar. É a isto que chamamos inclinando-nos
para o futuro.

Estes líderes combinam a direcção clara com a


criação de espaços em que os outros possam tomar
iniciativas: eles são de falas directas, incisivos, mas com
uma capacidade altamente efectiva de ouvir.

Os resquícios do paradigma mecanicista provocam a ansiedade


de encontrar novos modelos, novos paradigmas, novas receitas que
substituam as antigas com vantagem. Só que num mundo
indeterminado, descontínuo, complexo, paradoxal, incerto, toda a
receita, o que é dizer, toda a reforma, esvazia-se mesmo antes de ser
implementada. Todos aqueles que se dedicam de uma maneira
formal ou informal aos problemas da gestão, sentem hoje, todavia,
um frenesim constante de inovar, de encontrar caminhos novos,
fórmulas e formas diferentes, actuais, de dar mais sentido às suas
organizações. Os caminhos novos, a inovação, as fórmulas e formas
diferentes não existem em outro lado que não dentro de nós. As
organizações não são organigramas, mas pessoas. E a mudança não
pode ser efectuada mecanicamente. A mudança só acontece quando
nós nos transformamos. Heller37 põe o problema da seguinte
maneira:

A forma é uma coisa, o espírito é outra. Mas as formas


organizacionais podem afectar o desempenho (...) As
pressões da complexidade estão a levar-nos a adoptar a
gestão múltipla: não a variedade múltipla, estilo cabeça
de hidra, (...), ainda menos as troikas presidenciais, (...)
mas um genuíno esforço colegial no qual a primazia não
tem nada a ver com ditadura.

Temos aqui uma das tendências que nos podem ajudar a


conceber uma organização, uma escola, capaz de prover às
necessidades e aos desafios dos nossos dias: o trabalho em equipa, a
gestão em equipa, a ideia de que todos devem e têm a
responsabilidade de participar na construção contínua de um
qualquer projecto humano. O trabalho em equipa não é uma receita,
mas única e simplesmente bom senso. Não é preciso um
doutoramento para perceber que duas ou três cabeças funcionam
melhor do que uma.

37 Heller, Robert (1995). The naked manager for the nineties. London: Little,
Brown & Company, pp. 352, 358.

52
A outra das tendências é, como já disse, a ênfase na
aprendizagem. Bostingl38, um dos proponentes das escolas de
qualidade, diz o seguinte:

(Nas) Escolas de Qualidade, todos os indivíduos devem


dedicar-se ao seu próprio aperfeiçoamento e ao
melhoramento -- pouco a pouco, dia após dia -- das
outras pessoas na sua esfera de influência. Isto (...) é
(...) uma viagem sem fim de aperfeiçoamento de cada
um de nós, das nossas famílias e amigos, colegas de
trabalho, comunidade, e, finalmente do mundo. (...) As
Escolas de Qualidade vêem o processo de aprendizagem
como uma espiral, com as energias dos alunos e dos
professores dirigidas para um aperfeiçoamento ilimitado
e contínuo.

Motivar uma escola para a aprendizagem não é, todavia, tarefa


fácil. A escola tradicional reprime a aprendizagem natural de uma
criança. Todos nós somos, de uma maneira ou doutra, em maior ou
menor degrau, produtos dessa escola. Todos nós sabemos o desafio
tremendo que é, motivar professores e gestores a manterem-se
actualizados não só nas suas disciplinas, mas na problemática geral
da sua profissão. Peter Senge39 diz- nos que:

As escolas treinam-nos a nunca admitir que não sabemos


a resposta. (...) A consequência é aquilo a que Argyris
chama de incompetência treinada (skilled incompetence)
- grupos cheios de pessoas que são incrivelmente
proficientes em manterem-se afastados da
aprendizagem.

E Binney e Williams40 acrescentam:

As pessoas não podem ser forçadas a aprender. Se as


pessoas aprendem, e como aprendem, são processos
subtis, e a experiência varia enormemente de um
indivíduo para outro. Os líderes em mudança não
podem prescrever o que as pessoas vão aprender; o
que eles podem fazer é ajudar a criar as circunstâncias
nas quais as pessoas podem aprender. As pessoas têm
de experimentar as questões, pensá-las
aprofundadamente por elas próprias, antes que possam
interiorizar as lições e actuar sobre elas no futuro.

38 Bostingl, John Jay (1992). Schools of quality. Alexandria, VA: ASCD, p. 37.
39 Senge, Peter M. (1993). The fifth discipline. London: Century Business, p. 25.
40 Binney, George, Williams, Colin (1995). Leaning into the future. London:
Nicholas Brealey Publishing, p. 147

53
A gestão escolar numa realidade emergente define-se assim
pela gestão de um projecto educacional. A maneira como os
intervenientes nesse projecto se organizam é fluida e nada
permanente. Numa tal escola nada é rígido, mas flexível: horários,
distribuição de trabalho, etc. Numa tal escola o meu amigo Alan W.
poderia ensinar escultura ou outra qualquer competência que
possuísse. É preciso não esquecer que um diploma qualquer não
confere necessariamente competência a ninguém. Aliás a nossa
competência varia com a nossa capacidade de perceber e gerir as
diferentes situações que encontramos.

Para que esta viagem de exploração da realidade emergente


possa fazer sentido, é mister que aprendamos uma outra capacidade
fundamental: aquilo que hoje chamamos de pensamento sistémico,
isto é, a capacidade de conseguir ver e pensar todos, sistemas
inteiros, com os seus subsistemas e as suas interacções. Precisamos
de nos treinar a voar como Ícaro, só que não em direcção ao sol, mas
à luz do sol. Precisamos de aprender a ver a realidade total em todas
as suas manifestações e é à luz dessa mesma realidade que devemos
construir a nossa escola em toda a sua potencialidade. Essa
potencialidade, por seu turno, envolve necessariamente outras
escolas e outros projectos. No nosso voo de Ícaro não vemos só a
nossa casa, mas o bairro e as ruas e a cidade e os campos e as
pessoas que conhecemos e que poderemos vir a conhecer e o
horizonte sem fim. Voar sem ver é uma abstracção inútil. Voar com
destino fixo é um mero percurso. Voar para ver o mundo em que
vivemos é a nossa verdadeira vocação como educadores e,
sobretudo, como gestores.

3. A perspectiva do possível: Da fantasia e da Realidade

Como transformar a escola que temos no projecto que


deveríamos ter? Tudo depende. No entanto, há uma medida que nos
poderá ajudar a discernir os limites que temos. É claro que os limites
são geralmente aqueles que nós próprios identificamos. Mintzberg 41
dá-nos uma ideia dessa medida, que podemos definir como a medida
do possível: Só quando reconhecermos as nossas fantasias
poderemos começar a apreciar as maravilhas da realidade.

Como gerir um projecto sem um sonho, uma fantasia, uma


visão. Sonho, fantasia e visão não são, todavia, planos. Não há, por
definição, rigidez nem dogmatismo no sonho, nem na fantasia, nem
na visão. A rigidez e o dogmatismo transformam qualquer uma delas
numa obsessão. O sonho, a fantasia e a visão evolvem e
transformam-se na medida em que somos capazes de perceber a
realidade possível, e essa depende das capacidades de cada um.
Como partir de um sonho, de uma fantasia, de uma visão individual

41 Mintzberg, Henry (1994). The rise and fall of strategic planning. Hertfordshire:
Prentica Hall International (UK) Limited, p. 416.

54
para a complexidade de um projecto? Estou certo de que é este o
grande desafio da gestão, hoje. Permitam-me que sugira algumas
pistas, convicto que estou de que nada do que poderei dizer é novo
ou revolucionário. Uma das coisas que se aprende com a prática da
gestão e com a investigação, é a humildade. De facto, poucas são, se
é que existem algumas ideias verdadeiramente novas. Não considero
a originalidade como a preocupação principal do investigador ou do
gestor. Tenho mesmo sérias dúvidas se ela existe. O que é
importante é a criatividade, que no fundo não é mais do que pegar
naquilo que se conhece e reinventá-lo como uma outra coisa que
possa fazer e dar mais sentido à nossa vida, ao nosso trabalho, à
organização que gerimos.

1. Seja qual for a situação em que nos encontremos, o primado da


nossa atenção e acção tem de ser dado às pessoas. Elas
constituem e definem não só a organização, mas também o
verdadeiro capital que possuímos. Só que este capital não pode
ser gerido da mesma maneira como gerimos o outro, o dinheiro,
por exemplo. Nos processos de reforma ou de reestruturação,
todavia, é muito frequente ver as pessoas jogadas
mecanicamente num organigrama como se se tratasse de uma
operação financeira. Não há dúvida de que os seres humanos
são por vezes difíceis, opiniosos, dogmáticos, teimosos, mas
são também inteligentes, versáteis, flexíveis, capazes,
inventivos, fidedignos, e, o que é mais importante, são como
nós. Compete ao gestor promover um ambiente em que as
características mais positivas das pessoas possam fruir
livremente.

2. O ambiente que se cria tem muito a ver com a maneira como o


gestor concebe a sua intervenção no desenrolar e no
desenvolvimento da organização que lhe é confiada. Se ele ou
ela vêem a sua intervenção como acção de mudança unilateral,
como a peça-chave dessa mesma acção, é muito provável que
as pessoas reajam passiva, ou mesmo adversativamente. Se,
por outro lado, o gestor concebe a sua intervenção de uma
forma democrática, assegurando, por exemplo, que o processo
de mudança não seja dominado por uma facção, protegendo as
minorias, engendrando consensos, mantendo o rumo,
perspectivando horizontes novos, desbloqueando problemas,
promovendo um espírito de inquirição e de pesquisa, apelando
para a suspensão contínua de suposições e de preconceitos,
sustentando uma relação colegial entre os intervenientes,
refreando os seus ímpetos intervencionistas, para que os mais
lentos também possam lá chegar, as probabilidades de sucesso
serão muito maiores. É preciso não esquecer que não é
necessariamente o gestor que executa os projectos: estes são,
na sua grande maioria, executados por aqueles a quem
raramente é dada a oportunidade de participar na sua

55
concepção. Para que um projecto tenha maiores probabilidades
de sucesso é essencial que cada interveniente se sinta dono,
proprietário desse mesmo projecto. O gestor é-o sempre por
defeito.

3. Percebi cedo na minha carreira como gestor que quanto mais


poder delegasse, mais poder adquiria e que o meu sucesso
pessoal não dependia tanto daquilo que eu fazia, mas sim
daquilo que os outros faziam. Neste sentido, gestão é
encenação. Nós criamos o ambiente; podemos, por vezes,
escolher todos os actores; quase sempre, todavia, só podemos
escolher ou promover os actores principais; o nó górdio da
questão é que num projecto não há guião, ou melhor, o guião é
algo que se vai escrevendo. O gestor é, assim, um pouco como
Godot, está presente na peça, mas não deve usurpar o palco.

4. Há alturas, no entanto, em que o gestor deve assumir a


liderança efectiva e pessoal de uma determinada acção, mas
um pouco como os cônsules da velha Roma: só em momentos
de crise ou confusão e só por um tempo determinado. É em
alturas como essas, que cabe ao líder optar claramente pelas
alternativas impopulares ou de maior risco, aquelas, porém, que
se afiguram como as mais aceitáveis de uma perspectiva ética,
ou moral, ou de justiça, ou de assegurar a vida democrática de
uma organização.

5. Já vimos que uma organização se define pelas pessoas que a


integram. A maioria das pessoas, formatada que está no
modelo mecanicista que define cada uma como uma peça, tem
a tendência para construir mundos pequenos: o mundo da sala
de aulas, da família, do pequeno grupo de amigos, da disciplina
que lhe ensinaram. Um mundo pequeno é um sistema fechado,
praticamente inerte, sem grandes possibilidades de
desenvolvimento. É um mundo que facilmente se fossiliza. É o
mundo em que se pode ser professor sem ter de aprender. É o
mundo limitado pelo horizonte do que se sabe. É o mundo do
compêndio e não do livro. Do dogmatismo e não da dúvida. Da
certeza e não da fé. Do preconceito e não da esperança.

Cabe ao gestor ajudar a destruir esses mundos pequenos e


fazer com que as pessoas entrem na exploração dos
micromundos, da dimensão do possível. Uma das capacidades
que urge promover é a capacidade de esquecer. Nós só
aprendemos uma coisa quando estamos convencidos de que a
não sabemos.

6. A dimensão de um projecto é outro dos factores que influenciam


grandemente a probabilidade do seu sucesso. A dimensão
óptima de um projecto não pode ser medida pelo número de

56
mundos pequenos que o constituem, nem tão pouco pelo
número de interconexões que existem entre eles. A teoria da
complexidade42 parece indicar-nos que as organizações em que
o número de ligações entre os seus componentes é muito
reduzido tendem para uma vivência caótica muito irregular e
que o oposto tende a fazer com que elas se imobilizem num
gigantesco congestionamento de tráfego. Isto não tem muito
de novo numa perspectiva de bom senso, mas da perspectiva
científica é algo de muito novo.

A dimensão de uma organização tem assim muito a ver com a


sua dinâmica interna. Como vimos, se a gestão promover um
inter-relacionamento muito intenso, a organização não se
adapta, não funciona, não se desenvolve. O mesmo acontece
se esse inter-relacionamento for muito reduzido. Estou também
convencido que, numa perspectiva de gestão, o número de
intervenientes numa organização pode influenciar a vivência
dos seus componentes: numa organização muito pequena o
número de conexões pode tender para a insuficiência; numa
demasiado grande pode tender para o excesso. Tanto umas
como outra tendem também a constituir-se como sistemas
fechados.

7. Isto tem muito a ver, por exemplo, com a estrutura


organizacional da escola e com a maneira como nós agrupamos
os alunos, os professores e os saberes. Todos nós já sabemos
que uma educação inter, ou transdisciplinar é muito mais rica,
verdadeira e autêntica, que a tradicional por disciplinas. Parece,
pois, fazer mais sentido, agrupar professores por áreas de
conhecimento que por disciplinas. As conexões poderão assim
mais facilmente atingir a intensidade ideal para o
desenvolvimento. O agrupamento por disciplinas dificulta o seu
inter-relacionamento, o considerar as disciplinas como um todo
poderá levar ao tal engarrafamento de tráfego: isto é, muita
gente a falar com muita gente sobre muita coisa leva
facilmente à estagnação do processo de desenvolvimento.

Parece-me também que a dimensão ideal de uma escola em


termos de alunos deveria oscilar entre os 350 e os 500 alunos.
Um número inferior inviabiliza uma oferta curricular e extra-
curricular rica, um número maior dificulta o acompanhamento
personalizado dos alunos. Estou também convencido que as
escolas organizadas verticalmente e com o maior número de
faixas etárias possível, permite um índice de desenvolvimento

42 Ver: Kaufam, Stuart (1995). At home in the university. Oxford: Oxford


University Press.
Kelly, Kevin (1994). Out of control. Reading, MA: Addison-Wesley Publishing
Company.

57
das crianças mais elevado e a criação de uma comunidade de
aprendizagem mais autêntica.

Gostaria de fazer ainda duas observações: a primeira tem a ver


com as escolas que foram concebidas para números de alunos
muito mais elevados. É possível criar numa escola com 2000
alunos condições semelhantes às que só têm 500; bastará para
isso, dividir a escola em 4 ou 5 escolas autónomas, que poderão
até ter filosofias de educação, metodologias, programas de
estudo e ethos diferentes, oferecendo, assim, aos pais uma
maior variedade de escolha. Há já uma enorme experiência
neste campo.

A outra observação tem a ver com as escolas do interior com


números muito reduzidos de alunos. Discordo completamente
do encerramento dessas escolas. A desertificação do interior
não se resolve com tais medidas. Se queremos atrair pessoas
para essas regiões, não restam dúvidas de que a existência de
escolas é um atractivo fundamental. Por outro lado, a escola
permanece como um dos poucos pólos de vida comunitária
ainda existentes nessas regiões. Elas podem e devem ser
dinamizadas para poderem assumir uma importância maior,
sobretudo quando a educação para toda a vida é uma das
matrizes dos nossos dias.

Claro, que muitos levantam a problemática da socialização


dessas crianças e dos benefícios que receberiam se se criassem
escolas centrais para onde poderiam ser transportadas. Se bem
que não negue o valor da socialização das crianças, parece-me
também que o aspecto mais importante da socialização é o da
radicação das crianças na realidade da vida, no seu contexto
social. Este aspecto da socialização não acontece muito nas
escolas tradicionais. A vida que a escola projecta é geralmente
uma vida artificial, dependente de muitos pressupostos e
preconceitos que pouco têm, geralmente, a ver com o que
acontece no dia a dia. O que é mister fomentar é a criação de
núcleos centrais de apoio a essas escolas dispersas, que
possam não só prover a necessidades especiais, como também
enriquecer as experiências educacionais dessas crianças e
fomentar a sua integração periódica para a consecução de
projectos específicos. Penso também que nesta área há um
espaço muito importante para a iniciativa privada, ou pelo
menos para projectos híbridos.

8. Acima de tudo, urge promover, sempre, uma não-centralização


do poder e uma concentração de propósitos. Isto leva-nos à
relação entre escolas e estado. Tenho dito várias vezes que a
intervenção do estado no processo educativo deve definir-se
pela liderança dos processos de desenvolvimento e de

58
mudança. O estado deve assim gerar e não gerir. Deve gerar
ideias, consensos, experiências, motivações, diversidade,
desenvolvimento, sinergias, e jamais gerir, centralizada, ou
descentralizadamente, as escolas. Qualquer gestão do estado é
sempre ingestão. Não estou a advogar que quanto menos
estado, melhor estado, mas sim que há uma medida certa para
essa intervenção. A pergunta que se levanta é: que fazer das
enormes estruturas estatais? Que não funcionam, todos nós
sabemos, por experiência e pela investigação. Parece-me que
uma boa medida seria reduzir a estrutura até ao ponto em que
não pudesse agir muito, mas pudesse pensar bastante.

9. Não acredito muito na viabilidade futura de escolas particulares


isoladas como verdadeiros centros educacionais, nem acredito
tão pouco nas dinâmicas geradas por organizações que quase
só existem para organizar congressos ou para representar a
corporação nas negociações com o estado. Urge transformar
essas associações em redes, se possível, em teias de interacção
e de entreajuda, de desenvolvimento de projectos comuns, de
integração de certos módulos comuns de gestão, de partilha de
projectos e de pessoas. As escolas particulares devem ser
muito mais do que pequenas ou grandes instituições
educacionais. Elas podem constituir uma malha de redes ou
teias em que a experimentação de novos conceitos de
associação possa levar a vivências educacionais e empresariais
mais dinâmicas, autênticas e válidas.

A verdadeira vocação das escolas particulares, nos dias que


correm, é a de apresentar propostas diferentes de educação. Os
seus processos educativos não devem ser segmentarizados,
nem obedecer a um ou dois modelos, mas devem emergir da
sua ligação ao real. Não ser feitos só de livros, mas de pessoas,
pois há um mercado imenso ainda por atingir. Urge criar
ligações horizontais e verticais entre os vários níveis. Eu diria
mesmo que redes de escolas particulares podem atingir muitos
daqueles alunos que não podem pagar algumas das propinas.
Em democracia, esta é decididamente uma das vocações
destas escolas.

A problemática da gestão e da organização escolar não se pode


colocar unicamente em termos de gestão ou mesmo de organização,
mas sim de aprendizagem, de pedagogia. E termino citando
Morgan43: Estamos a deixar a idade das organizações organizadas e
a entrar numa era em que a capacidade de compreender, facilitar e
encorajar processos de auto-organização se tornará numa
competência fundamental.

43 Morgan, Gareth (1993). Imaginization. London: Sage Publications Ltd., p. xiii

59
A autonomia das escolas.

O conceito de autonomia administrativa é algo de muito recente


em Portugal. Fomos quase sempre uma nação organizada a partir do
centro e por ele governada. Na sequência da Revolução de Abril
ensaiaram-se as primeiras experiências autonómicas nos
arquipélagos atlânticos, mas a aventura ficou por aí. O
macrocefalismo governativo tem tentado descentralizar-se. Uma das
experiências que prometia surgiu com a criação do GETAP, a primeira
direcção-geral sedeada fora de Lisboa. Mas foi sol de pouca dura. A
criação das Direcções Regionais e de outros órgãos de coordenação
prometiam uma maior eficiência e eficácia dos serviços
administrativos, mas como é corrente, reduzem-se a pouco mais do
que caixas de correio.

A legislação que surge agora sobre a autonomia e gestão das


escolas é uma nova tentativa. O seu sucesso, todavia, vai depender
em grande parte da capacidade dos agentes das escolas e do
ministério mudarem profundamente muitas das suas culturas
políticas. Vejamos por isso, alguma dessa problemática.

1 o reconhecimento

Parece que, finalmente, começamos a compreender em


Portugal que reforma educacional, ou qualquer outra, não produz
necessariamente mudança, quando muito alterações pontuais. Só um
processo constante de reinvenção pode aproximar a escola, a
empresa, ou qualquer outro tipo de empreendimento social, da matriz
da realidade, compreendida hoje como descontínua, incerta, caótica,
complexa, emergente.

As mudanças estruturais relacionadas com a autonomia e


gestão das escolas, se bem implementadas, podem constituir uma
viragem fundamental na maneira como a educação se desenvolve em
Portugal. Há muita coisa interessante nos dois documentos que
abordam este assunto. Refiro-me ao despacho normativo e ao
documento Autonomia e Gestão das Escolas.

É interessante notar que, primeiro, se reconhece a autonomia


da escola como um processo de desenvolvimento e a necessidade
que o Estado sente de reforçar essa autonomia. Implícita nesta frase
está a afirmação de que a autonomia da escola é um fenómeno
natural que, pelas mais variadas razões só é reconhecido agora. Quer
isto também dizer que no entender da administração a escola tem
sido considerada como uma organização dependente de um órgão
central, como uma das peças de uma grande e pesada máquina, de
cuja existência extraía a sua própria definição e o seu sentido próprio.
É esta a escola que conhecemos, não somente aqui, mas um pouco

60
por todo o mundo: a escola coisificada no Estado; a escola baseada
no compêndio e no professor como leitor, transmissor e zelador da
dogmática compendial; a escola em que os alunos são considerados
objecto do ensino e produto da escola; a escola em que o educador é
compreendido como um técnico, raramente como um cientista; a
escola em que os pais existem fundamentalmente como fornecedores
da matéria prima, abstractamente, como intervenientes no processo
educativo dos filhos, raramente como parceiros da educação,
compreendida esta como um fenómeno pessoal e social.

Dessa coisificação no Estado resulta que a escola funciona


como um sistema fechado, sujeita às leis que regulam tais sistemas.
O reconhecer-se a autonomia da escola pressupõe uma percepção
diferente do mundo. Uma escola autónoma não pode ser peça de
nenhuma máquina, porque uma escola autónoma é uma escola que
pensa e que age, atributos inaceitáveis e absurdos numa visão
mecanicista da mesma. A autonomia é, assim, um atributo natural do
ser humano, e das suas organizações, não podendo, por conseguinte
ser doada. Não podemos doar a inerência natural dos seres
individuais ou colectivos. Resta-nos reconhecê-la.

Por outro lado, a autonomia não define, por si só, a escola como
um sistema aberto. A autonomia pura e simples pode criar um
sistema atomizado, desconexo e sem sentido. Daí que a escola tenha
de surgir como uma organização integrada num sistema local que,
por sua vez, se integra noutros mais complexos. Esta integração não
é mecanicista, mas dinâmica. A escola não se integra como um todo
determinado e prescrito, mas como um todo dinâmico, em que os
seus atributos e vivências se relacionam, influenciam e são
influenciadas pelos atributos e vivências dos outros sistemas. Essa
vivência define-se por três critérios maiores, a saber: a
responsabilidade, a possibilidade e a oportunidade. Analisemos, por
isso, cada um deles.

· A responsabilidade
Qualquer projecto educativo autónomo poderá fruir e ter vida
própria se a comunidade escolar e a sua liderança forem
responsabilizadas e se responsabilizarem pela sua
implementação. Anne C. Lewis44 diz que a capacidade de
tomada de decisão pela escola local tem sido trivializada
porque as pessoas não têm ou não querem o poder de efectuar
mudanças significativas. Paulo Freire45 chama a esta
incapacidade o medo da liberdade:

44 Lewis, Anne C. (1994). Reinventing local school governance. Kappan (75) 5, p.


356.
45 Freire, Paulo (1987). Pedagogia do oprimido. São Paulo: Editora Paz e Terra S/A, p.
34.

61
Os oprimidos, que introjetam a “sombra dos
opressores e seguem as suas pautas, temem a
liberdade, na medida em que esta, implicando a
expulsão desta sombra, exigiria deles que
"“reenchessem” o “vazio” deixado pela expulsão,
com outro conteúdo – o da sua autonomia. O de sua
responsabilidade, sem o que não seriam livres. A
liberdade, que é uma conquista, e não uma doação,
exige uma permanente busca. Busca permanente
que só existe no acto responsável de quem a faz.

Esta relação entre governantes e governados, entre


chefes e subordinados, entre detentores do poder e
dependentes, forja uma cultura que aprisiona tanto os que
mandam como aqueles que lhe são dependentes. É o modelo
vigente em todo e qualquer sistema mecanicista. É o modelo
em que ainda de certo modo vivemos, por muito que se fale em
democracia e em liberdade. Daí que fracasse a maioria dos
planos de reforma. Estes resumem-se geralmente a alterações
formais do relacionamento, muito raramente a mudanças do
próprio relacionamento. A autonomia, quando doação, reduz-se
na melhor das hipóteses a uma delegação de poder, quando o
que ela pressupõe é uma assunção de poder, é um agarrar a
responsabilidade.

Para que a autonomia doada, ou mesmo reconhecida, se


transforme em autonomia assumida, é rigorosamente
necessário que exista nos doadores uma consciência legítima e
racional de confiança na capacidade dos dependentes de gerir o
seu futuro. É rigorosamente imprescindível que os dependentes,
agora autónomos, sintam, compreendam e procurem a
dimensão imensa da sua nova liberdade. É condição necessária
e suficiente que ambos os grupos comunguem de uma mesma
percepção da realidade: uma realidade que deixa de ser
estática, prescrita, determinada, certa, planeável, para se
transformar numa realidade dinâmica, emergente, incerta e
projectável. Em termos educacionais, é condição necessária e
suficiente que a escola deixe de se alicerçar na certeza parada
do ensino, para se desenvolver na abertura concretizante da
aprendizagem. O assumir desta responsabilidade não é fácil,
mas é possível.

· A possibilidade

A responsabilidade maior da escola autónoma define-se pela


capacidade de perceber a medida do possível. Por outras
palavras: a extensão da sua liberdade. Sabemos também, que
essa medida é praticamente o infinito. Resta perguntar: como
agarrar o infinito?

62
O horizonte perscrutável define a medida do possível num
determinado momento. À medida que nos aproximamos desse
horizonte, dessa cumeada, um novo horizonte e uma nova
cumeada se desenham perante os nossos olhos, e uma
percepção mais alargada do possível põe-nos de novo em
movimento, impelidos que somos pelo sentido da
responsabilidade.

Para que uma escola autónoma possa perseguir o seu horizonte


possível, é mister que todos os seus membros tenham a
percepção de um mesmo horizonte, de outro modo não haveria
horizontes novos, mas uma multiplicidade de horizontes
pequeninos, feitos à medida da insuficiência de cada pessoa,
trabalhando isoladamente. A capacidade de uma organização
olhar e perseguir um mesmo horizonte depende da sua
capacidade de partilhar uma visão comum. Esta partilha
depende, por sua vez, da existência de um processo de
comunicação eficaz e eficiente. Não chega partilhar informação,
é mesmo necessário que haja comunicação. É através do
diálogo sobre a realidade que somos, que nos rodeia e que
poderemos vir a ser, que começamos a construir uma
linguagem comum, de modo a que as coisas que
percepcionamos possam ter e fazer sentido.

Uma linguagem comum, todavia, não significa a busca do


consenso a todo o custo. Esta busca do consenso a todo o
custo, do consenso trabalhado, é uma armadilha terrível, pois a
mera procura de um denominador comum conduz-nos
invariavelmente à definição de horizontes redutores. Uma
linguagem comum não tem como objectivo um consenso
qualquer, mas a inquirição conjunta sobre o mundo. O consenso
transforma-se, assim, num produto, numa consequência
natural, jamais num objectivo. É esta diferença entre o
consenso como objectivo e o consenso como produto que
distingue o ensino da aprendizagem e o trabalho em grupo do
trabalho em equipa.

· A oportunidade
O sentido da responsabilidade perante um horizonte comum
implica necessariamente acção transformadora da realidade. A
escola autónoma não pode escusar-se a tirar o proveito máximo
das oportunidades que descortina, e ela descortinará tantas
mais oportunidades quanto menor for o seu medo da liberdade,
e quanto maior for o seu sentido da responsabilidade.

A capacidade de perceber o maior número possível de


oportunidades depende de quão desenvolvidas estão as nossas
competências de mestria pessoal, de modelos mentais e,

63
sobretudo, de pensamento sistémico. A capacidade que advém
da responsabilidade que sentimos de nos aperfeiçoarmos
continuadamente, de construirmos cenários, configurações
possíveis da realidade futura, e de podermos ver sistemas como
todos interdinâmicos, possibilita a identificação de áreas
passíveis de investigação, de projectos de aprendizagem, de
metas novas de desenvolvimento. Esta é uma tarefa
decididamente comunitária que viabiliza a configuração do
horizonte como um cone aberto para a realidade e não como o
espaço mediado por linhas paralelas, necessariamente
redutoras.

A vivência da autonomia implica, também, a capacidade de


fazer escolhas e aumenta geometricamente o número de
escolhas possíveis. Num estado de dependência, as escolhas
que se nos oferecem não requerem geralmente uma opção
racional e volitiva, mas resumem-se, quase sempre, à decisão
pelo mal menor. O contexto em que elas são feitas define-se
pelo medo, pela alienação, sobretudo pela procura da
percepção do que eles esperam que nós escolhamos. Sair deste
contexto não é possível à pessoa individual e colectiva isolada.
A autonomia que liberta só acontece quando uma comunidade
se percebe como isso mesmo: um conjunto de pessoas, de
escolas, livres em interacção constante. Esta deve ser a matriz
desta organização. Sem ela não há autonomia possível ou
viável.

2 A partilha

A constante interacção de pessoas autónomas, unidas por uma


visão de horizontes comuns, num contexto de liberdade
pressupõe uma maneira nova de relacionamento e de definição
dessa relação como realidade. A autonomia é um atributo, é
uma característica inerente da pessoa humana e das
organizações sociais. Todavia, a autonomia não promove a
relação, melhor ainda, a autonomia, considerada isoladamente,
não permite perceber a realidade interdinâmica que nos
contextualiza. Já vimos que a autonomia, por si só, pode levar a
uma percepção atomizada, fragmentada e desconexa da
realidade. A atomização, a segmentarização e a desconexão,
por sua vez, induzem formulações do mundo como uma
realidade certa, contínua, previsível, determinada, passível, por
que matriciada na causalidade linear, de ser controlada e gerida
por planos; em suma, uma realidade com um futuro feito à
medida do nosso querer imediato, nunca à medida da
potencialidade do nosso ser.

Uma sociedade construída como um aglomerado autónomo de


seres autónomos, em que a autonomia é considerada como

64
objectivo e direito e não como atributo e com vivências
motivadas mais pelos interesses próprios do que pela viagem
de descoberta dos horizontes comuns e possíveis, é uma
sociedade perfeitamente inserida numa concepção mecanicista
do mundo e da vida; é uma sociedade que se alimenta do
passado, se bem que previsível; é uma sociedade dependente,
se bem que confortável; é uma sociedade com um futuro
determinado, se bem que certa; é uma sociedade
necessariamente hierárquica, se bem que estável; é uma
sociedade segmentarizada, se bem que definível; é uma
sociedade equilibrada, se bem que em morte lenta.

A vida, todavia, não é nada disso. A vida, a realidade, tal como


a conseguimos perceber hoje, abre-se para o futuro, é
autónoma, é democrática, é globalmente integral, é
descontínua, é caótica, e vivifica-se no desequilíbrio.
Prigogine46, Prémio Nobel da Química, e um dos grandes
cientistas do nosso tempo, afirma que, nas suas investigações,
tem identificado muitos sistemas que escapam à entropia, à
morte lenta, exactamente porque não tendem para a harmonia,
para o equilíbrio. Diz ele:

O próprio universo, considerado como um todo, é


um sistema termodinâmico altamente heterogéneo e
longe do equilíbrio.
Para dar um significado dinâmico a este desvio em
relação ao equilíbrio devemos, como sublinhámos,
incorporar a instabilidade no nível dinâmico. Mas este
desvio é igualmente uma condição do nosso diálogo com
a natureza. É o fluxo de energia que provém das
reacções nucleares no interior do Sol que mantém o
nosso eco-sistema longe do equilíbrio e que, por isso,
permitiu que a vida se desenvolvesse na Terra. O
afastamento do equilíbrio conduz a comportamentos
colectivos, a uma regime de actividade coerente
impossível no equilíbrio.

Se a actividade coerente não é possível em sistemas baseados


no equilíbrio, a relação de seres e de organizações livres não se pode
definir nem pela causalidade linear, nem por planeamentos
estratégicos, nem pela gestão norteada por objectivos específicos,
nem por hierarquias, nem por nada que possa conduzir ao equilíbrio,
ou induzir sistemas equilibrados. Se o equilíbrio leva à entropia, ao
desgaste, à morte lenta – e sabemos isso da teoria sistémica – e o
desequilíbrio produz vida, a relação entre seres e organizações tem
de definir-se pela democracia no contexto da interdependência.

46 Prigogine, Ilya (1996). O fim das certezas. Lisboa: Gradiva, p. 150, 151.

65
A interdependência afirma a singularidade da pessoa humana e
não se baseia, como a tolerância – um estádio de desenvolvimento
mais primário que o da interdependência – no paradoxo irresolúvel
igualdade – diferença, ou como diz o slogan: todos diferentes, todos
iguais. Uma questão se levanta: como perceber a interdependência e
como traduzi-la na experiência comum, quando culturalmente todos
nós ainda vivemos, em maior ou menor grau, numa realidade que
confunde liberdade com direitos, que faz da autonomia um objectivo,
e que insere tudo isto num regime decididamente de dependência?
Por outras palavras, como é que pessoas e organizações dependentes
perdem o medo da liberdade, assumem a autonomia que lhes é
inerente e constroem uma vivência interdependente?

Parece razoável supor que a escola-mera-organização terá


grandes problemas em conseguir superar esse processo de
desenvolvimento, dado que é composta por professores formatados
na sua maior parte por uma universidade pouco distanciada ainda do
trivium e do quadrivium, estática, burocratizada, encastoada em
modelos seiscentistas de investigação e monopolizada por uma casta
hierática de arrogâncias quase olímpicas, por alunos dóceis até à
domesticidade e por pais cada vez mais habituados a delegarem na
escola a educação dos seus filhos.

Estou plenamente convencido que o catalisador do processo de


desenvolvimento de sociedades democráticas, justas, livres e
interdependentes é a liderança. Não me parece razoável esperar que
sistemas humanos, no estádio de desenvolvimento em que a espécie
se encontra, consigam saltar a barreira do equilíbrio e da estabilidade
para encetar a descoberta dessa realidade descontínua, caótica e
complexa. A busca deliberada do desequilíbrio, numa matriz
mecanicista, é contra-natura. O papel da liderança, todavia, é
exactamente esse: o de desestabilizar a organização, forçando os
seus membros a questionarem-se continuamente sobre o que fazem,
porque o fazem, como o fazem e para quem o fazem.

Uma tal liderança não pode ser, também, de matriz


mecanicista, não pode partir de uma concepção hierárquica do
mundo, nem pode usar o poder como um poder sobre os outros. Tem
de ser precisamente o contrário: tem de acreditar na capacidade e na
possibilidade dos membros da comunidade que lidera; tem de estar
convicta de que a democracia só se desenvolve através da
experiência, através da aprendizagem; tem de estar consciente que a
visão comum não parte necessariamente de um consenso trabalhado
como objectivo, mas da vivência comum, da investigação aberta, das
grandes sínteses conjuntamente alcançadas.

A liderança educacional tem de ser capaz de guiar esse


processo de desenvolvimento com calma, discrição, sensibilidade e,
sobretudo, com muita humildade. A liderança democrática e livre é,

66
em si mesma, um processo de aprendizagem que envolve não só o
líder, mas todos os participantes endógenos e exógenos da
comunidade. É uma caminhada para a excelência, em que o que
conta não é propriamente a implementação das mecânicas de um
despacho normativo que visa uma reestruturação do sistema escolar,
mas a construção do sentido desse reordenamento – a promoção de
uma vivência escolar mais integradora. Esta legislação, que espero,
apesar das suas deficiências, venha a vigorar, tenta, assim, ainda que
timidamente, fomentar o aparecimento de novas formas de
organização e de gestão das escolas, de modo a que a
segmentarização da experiência escolar possa ser substituída por
outra muito mais integradora, que permita ao aluno, por exemplo, ir
da pré-primária ao 12º ano numa mesma instituição. É o que
acontece, por exemplo, na maioria dos colégios internacionais e numa
parte significativa das escolas privadas.

O reconhecimento da autonomia como um dos atributos da


pessoa humana e da organização social não pode ser outra coisa que
não um primeiro passo para uma compreensão mais profunda e mais
alargada da realidade interdependente. A tarefa da liderança é essa
mesma. Richard Sagor47 diz que, muito embora o estilo de liderança
possa diferir de pessoa para pessoa, quatro propósitos parecem ser
comuns a uma liderança eficaz: (1) pôr perguntas aos professores que
eles não possam responder com o conhecimento que possuem; (2)
apoiar os professores nos seus projectos de investigação; (3) celebrar
publicamente a aprendizagem, quer ela seja a consequência do
sucesso, quer do insucesso; (4) modelar expectativas elevadas. O que
Sagor propõe é a prossecução pura e simples da excelência, ou no
dizer de Deming, da qualidade total. Nada mais e nada menos deve
ser exigido.

A construção de um projecto educativo numa comunidade


educativa interdependente, não é a gestão da autonomia – isso seria
pouco mais que uma forma de mordomia – mas a gestão da
emergência. Essa é a gestão da possibilidade. Somos, portanto,
responsáveis pela exploração dessa oportunidade, dia após dia,
minuto após minuto. Stuart Kaufman48, um dos grandes proponentes
da teoria da complexidade, diz o seguinte:

Nós construímos os nossos mundos conjuntamente. O


máximo que podemos fazer é ser sábios localmente (…) Se as
teorias da emergência (…) têm algum mérito, talvez estejamos
em casa no universo em modos não conhecidos desde o tempo
em que sabíamos muito pouco para saber duvidar.

47 Sagor, Richard (1997). Collaborative action research for educational change.


Hargreaves, Andy /Ed.). Rethinking educational change with heart and mind.
Alexandria, VA: ASCD, pp. 189-190.
48 Kaufman, Stuart (1995). At home in the universe. New York: Oxford University
Press, p. 303.

67
A percepção da realidade interdependente faz com que nos
sintamos assim mesmo, em casa. No paradigma mecanicista, não nos
era dado sentir em casa, pois nos encontrávamos imersos na
natureza e no concretismo das coisas. O nosso sucesso media-se pela
capacidade de nos conformarmos com o mundo, nunca pela
responsabilidade de olhar o mundo como uma realidade a
transformar.

O grande educador que foi Paulo Freire 49 disse que a educação


(era) um acto de amor, e, assim, um acto de coragem. Ela não (podia)
temer a análise da realidade ou, sob a pena de se revelar uma farsa,
evitar a discussão criativa. A construção de um sistema
verdadeiramente educativo tem de ser isso mesmo: a recriação, a
reinvenção continuada do nosso mundo. Não há outro projecto
educativo possível para pessoas autónomas, participantes activas
numa realidade interdependente.

3 o desafio

Se o reconhecimento da autonomia só deve ser entendido como


a afirmação de um atributo inerente da pessoa e da organização
humana e se essa mesma autonomia só tem sentido na partilha de
responsabilidades e de direitos num contexto de interdependência,
qual o desafio? Se tudo parece tão lógico, natural e razoável, qual a
razão de tanta demanda, de tanta discussão, de tanta ansiedade?
Porque é que o Estado tem de reconhecer um atributo que deveria ser
inerente? O que é que a classe professoral teme quando levanta
dúvidas, suspeitas e tenta assegurar controle? Porque é que me dizia
um educador com altas responsabilidades no sistema educativo, a
quando da saída do despacho normativo, que autonomia só com
contrato?

O desafio maior que se nos levanta parece-me que tem pouco a


ver com aspectos formais. De resto as escolas podem escolher o seu
próprio figurino funcional. O desafio maior que se nos levanta tem,
quanto a mim, tudo a ver com mudanças culturais profundas. Se é
certo que, legalmente, vivamos numa democracia, parece-me que
culturalmente continuamos agarrados a noções, estruturas e
relacionamentos que pouco têm a ver com uma cultura
verdadeiramente democrática. É que a democracia não se reduz a
decretos, leis, ou mesmo constituições. A democracia afirma-se,
sobretudo, como uma cultura, como uma opção de vida.

Comecemos pela noção de Estado. Numa cultura democrática,


o Estado não é mais nem menos do que a Nação organizada. O poder
reside na Nação e o exercício do poder é delegado nas pessoas eleitas
temporariamente para governar. Por isso se usa a palavra ministro

49 Freire, Paulo (1973). Education for critical consciousness. New York: The
Continuum Publishing Company, p. 38.

68
que denomina alguém ao serviço de outrém. A sobreposição do
Estado à Nação não faz sentido numa democracia, pois qualifica tipos
de regime autoritários e mesmo totalitários.

É vulgar, todavia, referirmo-nos ao Estado como a entidade que


detém o poder e que o delega a seu bel-prazer. Tudo isto tem muito a
ver com o nosso passado histórico em que se privilegiou o Estado
forte contra a força da Nação. Regimes houve até que proclamaram a
violência do Estado como força criativa. Outros ainda, que sem fazer
apanágio da violência, violentaram o cidadão em nome do bem das
massas.

A noção corrente de Estado tem origem na ideologia


individualista, que considerava o homem – concebido agora como um
ser abstracto – como o modelo, o centro, o repositório das grandes
virtudes que até aí eram atribuídas às organizações sociais. Segundo
o individualismo, a sociedade mais não era do que o reflexo do
homem: o conjunto de homens livres, autónomos, social e
moralmente separados uns dos outros.

O paradigma mecanicista, saído da Revolução Industrial, vem


reforçar esta visão. O homem concebido como peça da grande
máquina social, era movido por impulsos naturais e pela razão que
lhe era inata. O agregado social deixa, assim, de ter uma existência
própria, passando a definir-se pelo conjunto das partes de um sistema
fechado. O ser humano visto em abstracto, considerado auto-
suficiente e repositório das virtudes maiores, levou naturalmente a
uma concepção diferente de Estado. Se os homens são livres, o
conceito de autoridade passa assim a ter de ser despersonalizado,
objectificado, externalizado, o que é dizer centralizado na imagem
cada vez mais distante e impessoal do Estado. E assim, uma vez que
o homem-concreto, pela sua imperfeição, não podia nem de longe
nem de perto corporizar as virtudes maiores, estas foram
naturalmente transferidas para a noção também abstracta de Estado.

O Estado surge, por conseguinte, como o detentor natural, por


deferência, não só das virtudes maiores, mas também da autoridade
e do poder. Deste modo, o Estado, no conceito da ideologia
individualista, identifica-se cada vez mais com a noção de Estado
autoritário e, mesmo, totalitário. Os modelos democráticos saídos do
liberalismo do século XIX enfermam quase todos desta contradição:
se por um lado se operacionalizam processos eleitorais destinados,
pelo menos teoricamente, a reafirmar a primazia da nação sobre o
estado, na prática, o que estabelece pouco mais é que uma forma
interessante de folclore democrático. Bertrand de Jouvenal 50, em
1945, descreveu esta situação de uma maneira que ainda é
perfeitamente adequada:

50 Jouvenal, Bertrand de (1962/1945). On power. Boston, MA: Beacon Press, p. 10.

69
Hoje, como sempre, o Poder está nas mãos de um
grupo de homens que controlam a casa do Poder. O
chamado Poder é este grupo, cuja relação com os seus
compatriotas é a de governantes com governados. A
única mudança é a de que é agora mais fácil para os
governados mudar a composição do grupo que controla o
Poder.

Se bem que a ideologia individualista ainda impregne muitos


dos nossos conceitos e atitudes, é certo que como matriz da realidade
há muito que deixou de fazer qualquer sentido. O ser humano, hoje,
não é mais compreendido como um indivíduo moral e socialmente
separado dos seus congéneres, mas como pessoa unida a todas as
outras pela interdependência. As virtudes maiores, se bem que
mantendo a sua condição absoluta, passam a ser consideradas como
horizontes de desenvolvimento, deixando de se radicar na noção de
Estado.

A compreensão do ser humano como pessoa e da sociedade


como uma realidade interdependente permitem o aprofundamento da
cultura e da vivência democráticas. A autoridade do Estado deriva
naturalmente da força da Nação, não é algo que lhe seja inerente. Eu
preferiria mesmo acabar com o uso da palavra Estado e usar outra
como Governo, essa sim, bem democrática. Uma democracia precisa
de um bom governo, não creio que precise de um grande Estado.
Aliás nas democracias mais antigas a palavra Estado raramente é
utilizada. Não se fala tanto no Estado Britânico, nem no Estado
Americano, mas no Governo Britânico e no Governo dos Estados
Unidos, por exemplo. Assusta-me o uso cada vez maior que se faz da
palavra Estado, dada a ideologia política que vigorou durante o
Estado Novo. Parece que sem Estado não existimos. E no contexto da
União Europeia onde cabe e quem é que é Estado, no sentido
tradicional que lhe atribuímos? Gostaria, no entanto, de dizer que
considero que numa democracia o governo deve, por natureza, ser
um governo forte. Talvez mesmo o mais forte dos governos porque
assenta na vontade dos cidadãos. Se quisermos construir uma
democracia há muitas teias de aranha que têm de ser removidas.

O problema agrava-se com a noção de poder que define o


relacionamento entre cidadãos, entre governo e cidadãos, entre
organizações. O conceito de poder é geralmente definido por poder
sobre alguém ou alguma coisa. Num contexto democrático isto não
faz muito sentido. Se o poder reside nos cidadãos e se aqueles que
governam são eleitos temporariamente para nos servir, como
compreender a noção prevalecente do poder quase todo poderoso do
Estado sobre os cidadãos? Há, porém, outras noções de poder. Faria
muito mais sentido partir para uma concepção de poder como poder
com. Isto implicaria uma sociedade aberta, interdependente. De
algum modo é este poder com que define o relacionamento nas

70
estruturas governamentais da União Europeia, ou mais importante
ainda, no GATT, de maneira muito mais gráfica na Internet. Já nas
Nações Unidas isto não acontece tanto, uma vez que há países que
têm direito de veto. É nesta noção de poder com que tem de se
radicar o conceito de serviço público. Tenho proposto e mantenho que
a gestão do serviço público não deve ser outra que a dinamização da
sociedade civil. O princípio da subsidariedade que se aplica ao
relacionamento entre as nações da União Europeia, deveria ser a
norma que determinasse as relações entre governo, cidadãos e
organizações sociais.

Muito ligado a tudo isto, está o papel exercido pela legislação.


Costumo dizer que é raro ler um artigo sobre educação em Portugal
que não comece pela citação da lei, como se a lei definisse a
realidade. Ora a lei não define realidade nenhuma, mas a realidade é
que define a lei. Uma lei não é mais do que uma decisão temporária
sobre a maneira como um aspecto da realidade deve ser gerido. E
como todas as decisões deste género, as leis só vigoram enquanto o
que é nelas estipulado se adequa à realidade. Leis fazem-se e
desfazem-se, mas a realidade, não. Como educadores, o que deve
contar não é a leitura estreita da lei, mas sim a leitura do real. Por
outro lado, toda a leitura é interpretação e recriação, se assim não
fosse, de que viveriam os advogados e os juristas? Se a leitura é
recriação e interpretação, deve ser feita com muito bom senso. Dizia-
me um dos meus instrutores a quando cadete na Escola Prática de
Infantaria, em Mafra: Há as NEPs (Normas de Execução Permanente)
e o bom senso, e em caso de dúvida, sigam o bom senso.

Por último, é vulgar falar-se de autonomia e de descentralização


num mesmo fôlego. Ora, parece-me que autonomia e
descentralização não ligam muito bem, nem conceptualmente nem
em termos operacionais. Descentralização significa que o poder
tradicional do Estado se aproxima mais do cidadão. Em vez de um
Estado centralizado distante, passa a haver um Estado centralizado à
nossa porta. A descentralização não reforça a capacidade de acção
governativa do cidadão, mas muito pelo contrário, reforça
grandemente o poder e a acção do Estado.

Ora, parece haver divergências várias sobre o que significa


descentralização. E a confusão adensa-se quando se lhe contrapõe
um outro vocábulo – desconcentração. Para já, é interessante notar
que, por exemplo, em inglês, as duas palavras (decentralization e
deconcentration) têm praticamente o mesmo significado. E, de facto,
dizem a mesma coisa: a transferência de alguns poderes ou
responsabilidades do centro para algumas partes. Tudo isto estaria
bem se o pano de fundo fosse outro que não a concepção de Estado
segundo a matriz do individualismo. Por isso, quando ouvimos falar de
descentralização administrativa raramente se fala do empowerment

71
das partes, mas geralmente duma melhor eficiência, tenho ouvido a
palavra coordenação, dos serviços administrativos.

A própria linguagem da lei parece corroborar tudo isto. Não se


fala da autonomia como uma condição inerente da escola, mas da
possibilidade de se subcontratarem algumas responsabilidades e
poderes. O poder final, todavia, continua firme nas mãos do Estado
central. Numa democracia, a descentralização não chega. O que é
mesmo necessário é a criação de sistemas não-centralizados de
poder. Num sistema não-centralizado (a literatura de língua inglesa
chama-lhes non-centered organizations) o poder deixa de estar num
só centro, mas materializa-se em vários núcleos. Não há delegação
nem repartição de poder, mas o assumir da autonomia que nos
inerente com todos os seus atributos um dos quais é o poder, aqui
definido como poder com. Só assim podem surgir organizações e
sistemas interdependentes. Só assim se pode compreender o poder
sistémico.

A não-centralização, por sua vez, pode assumir duas versões:


uma em que esses centros de poder funcionam como ilhas, como
sistemas fechados, e outra em que esses centros múltiplos de poder
se entrecruzam e se influenciam mutuamente numa relação
dinâmica. É óbvio que a primeira versão não traz quaisquer benefícios
e pode levar a situações piores que as existentes num sistema
centralizado. A segunda versão, por outro lado, define as
características dos sistemas naturais e vivos.

Se as escolas devem ser autónomas, isto é, se elas passarem a


definir e a gerir a sua própria realidade, todo este processo não pode
inserir-se num processo descentralizador, mas num processo de não-
centralização. A não-centralização não aproxima o Estado dos
cidadãos, mas restitui aos cidadãos a possibilidade de se auto-
governarem. É dentro deste contexto que podemos compreender
conceitos como o da subsidariedade, referido há pouco, um dos
pilares da construção europeia. A subsidariedade afirma a capacidade
e a autonomia de governo das unidades básicas duma sociedade. O
centro só interfere em matérias que não podem ser melhor geridas
pelas partes periféricas.

A não-centralização é um princípio democrático e


desenvolvimentista, e está em total consonância com a leitura que
podemos fazer hoje da realidade. A interdependência pressupõe uma
sociedade com múltiplos centros de poder, em que as partes tenham
vida própria e uma vida ainda maior no todo. Há países que
funcionam assim. O poder político nos Estados Unidos reside ao nível
do município. É o município que gere as escolas, a segurança pública,
e as obras públicas. Nem os diferentes estados, nem o estado federal
intervêm a não ser que algum dos direitos fundamentais dos cidadãos
esteja a ser infringido. Um exemplo foi o da desegregação racial das

72
escolas. Porque um direito da Constituição federal estava a ser
infringido, o governo federal pode legitimar a sua intervenção.

Daí que em autonomia o grande desafio não resida em partilhar


responsabilidades, mas em assumi-las, como já referi. A autonomia só
acontece quando nós agimos como pessoas autónomas. É na acção
que exercemos os nossos direitos e as nossas responsabilidades. A
gestão autonómica das escolas passa por isso mesmo: pela acção
que envolve alunos, pais e professores. Por isso, num contexto de
interdependência, não faz nenhum sentido a tomada de atitudes
corporativistas, quer de alunos, quer de pais, quer de professores.
Aliás o corporativismo é outra das teias de aranha que teremos de
arrancar dos nossos olhos, pois faz parte do ideário de uma outra
senhora. Os interesses das partes só adquirem sentido na visão de
um horizonte de desenvolvimento comum.

O horizonte de desenvolvimento da gestão autonómica das


escolas aponta para a concretização dos processos educativos de
todos os seus membros. O centro de uma escola não é constituído
nem por alunos, nem por professores, nem por pais, mas pelo
conhecimento, como dinâmica de aprendizagem. Alunos, professores
e pais são sujeitos desse processo individual e colectivo. Daí que
numa escola a única atitude corporativa legítima seja a da
prossecução do conhecimento. Tudo o mais, tem a ver com tentativas
de controle da escola como sistema. Ora o controle é um atributo de
sistemas fechados. Em sistemas abertos e em processos de
desenvolvimento o controle não é possível, nem faz sentido. Conta,
sim, a capacidade de coordenar esforços, de conseguir consensos, de
construir uma visão comum. Isto é, como vimos, o factor liderança.

A escola sempre foi, de algum modo, e tem de continuar a ser o


espaço-tempo em que uma comunidade se aperfeiçoa através dos
seus confrontos internos, do seu diálogo com o mundo, no contexto
do futuro. O desafio maior que se levanta a nós, professores, é o de
nos transformarmos em aprendedores, em pessoas capazes de ler o
real. Não há melhor maneira de gerir a autonomia que nos é inerente.

73
o projecto educativo: Uma visão desenvolvimentista

Falar de projecto educativo é falar habitualmente de


planeamento, de estratégia, de sonho, de fantasia, de realidades
encontradas e de realidades que gostaríamos de construir. Todavia,
que fantasias poderemos nós reconhecer? Que realidades
conseguiremos apreciar?

O projecto educativo apresenta-se-nos assim como um repto de


difícil solução: Será que a projecção do processo educativo a curto,
médio ou longo prazo deverá e poderá ser uma auto-estrada para um
futuro desejado, ou para um futuro prescrito? E quer seja uma auto-
estrada para um futuro desejado, ou para um futuro prescrito, qual o
seu ponto de partida? De que variáveis depende essa projecção do
processo educativo? Da situação contingencial de cada escola e do
seu meio? Do seu estatuto público ou privado? Da autoridade dos
órgãos gestores? Da aparente omnipresença ministerial? Da nossa
tradição legalista e seguidista? Da irredutibilidade de programas?
Das necessidades dos alunos? Do profissionalismo dos professores?
Da apatia de muitos docentes? Da separação tradicional entre escola
e meio? Da distância real ou psicológica entre querer e poder? Da
clarividência da gestão? Da capacidade de ler o futuro? Do estudo?
Da magia? Dum embalador cepticismo sobre o possível? Do
sentimento quase certeza da sua futilidade?

Não é fácil responder a tanto desafio. Talvez seja por isso


mesmo que geralmente olhamos para o projecto educativo numa
perspectiva redutora, e nos contentamos com uma mera listagem de
actividades escolares. Todavia, a visão redutora do projecto
educativo levanta-nos outros problemas e outros desafios: Será que
actividades escolares são necessariamente educativas? Será que
poderemos confundir escolaridade com educação? Será que a
redução do processo educativo a uma lista de actividades não estará
a deixar de fora todo o contexto em que a educação também
acontece: a família, a sociedade em que a escola se integra, o
próprio aluno? Será que fazer o aluno participar numa actividade, por
muito bem pensada que ela seja, contribui necessariamente para a
educação do aluno concreto? Do João? Da Margarida? Do António?

Será que uma lista de actividades preenche a vocação de uma


escola? Será que ela integra o seu papel, a sua função, o seu
contributo? Será que essa lista juntamente com os programas que
vêm de Lisboa têm alguma coisa a ver com a realidade que se vive
numa qualquer região? Com a desertificação do interior? Com o
preparar os jovens para a reanimação de terras aparentemente
cansadas? Ou será que poderá servir de chamariz à vinda de
forasteiros que dêem uma amplitude e um colorido maior à sua vida?

74
Não é fácil ser-se escola numa altura como esta em que não há
certezas sobre o que deveremos fazer para obter um determinado
resultado. Nós não sabemos até bem que resultados escolher. Por
isso, talvez, nos deixemos embalar no ramerrão do programa e do
compêndio, que pouco nos dizem como comunidade de pessoas
concretas. Por isso, adormecemos quantas vezes as nossas
consciências num fervilhar de actividades, mais parecidas com a boa
acção diária do escuteiro do que com uma acção deliberadamente
transformadora da realidade em que estamos inseridos.

Não é fácil ser-se escola, mas muito mais difícil é ser-se


educador. É que as responsabilidades do educador não acabam onde
acaba a intervenção da escola. Nem pode a acção do educador
circunscrever-se à rotina escolar. Não podemos atirar para cima de
sistemas abstractos a responsabilidade das nossas acções, nem para
cima deles, quem quer que eles sejam, a incapacidade e a falta de
motivação que às vezes sentimos para melhorar a qualidade e a
amplitude da nossa inter-relação com os alunos. Nós somos
educadores concretos e lidamos com crianças concretas. É só a partir
desta condição -- do concretismo do nosso contexto, da nossa
situação de educadores, da realidade possível, presente e futura, dos
nossos alunos que nós poderemos começar a falar do projecto
educativo duma escola.

Um projecto educativo é muito diferente de um plano


educativo. A palavra plano tem a ver com algo unidimensional,
atributo que lhe vem da sua raiz etimológica -- o latim planus: uma
superfície que não tem desigualdades, nem curvas, nem ondulações,
onde se pode assentar uma linha recta em todas as direcções 51. O
Dicionário Britannica-Webster52 faz derivar a palavra em parte do
latim planum, em parte do latim bárbaro plantare. A palavra plano
integra assim dois conceitos fundamentais: por um lado o da planura,
da superfície sem alterações de recorte, por outro, o de plantar, fixar
num determinado lugar. Um plano é isso de facto: um programa de
férias, um mapa para uma viagem estabelecida, um plano de
actividades.

Os nossos planos de estudo são, muitas vezes, isto mesmo:


algo que se define, que se inscreve no tempo e no espaço, que se
tenta cumprir à risca. Algo também que não pressupõe alterações de
recorte, e quando essas acontecem, há mister de justificá-las. É algo
que não leva em conta um futuro aberto, mas que se alimenta e se
segura num passado determinado e prescrito. Tal e qual como numa
excursão: não há o sabor da aventura, da escolha do momento, do

51 Figueiredo, Cândido (1953). Pequeno dicionário da língua portuguesa. Lisboa:


Livraria Bertrand, p. 1085
52 The New Britannica Webster Dictionary & Reference Guide (1981). Chicago:
Encyclopædia Britannica, Inc., p. 688.

75
poder parar, reflectir e mudar de rumo. Uma excursão já era antes de
acontecer. Um plano educativo é isto mesmo: não leva em conta as
situações concretas do dia a dia, nem as aspirações ou gostos
particulares de cada pessoa, nem objectivos pessoais ou mesmo
sociais. É uma viagem em que se embarca cujo itinerário alguém
determinou. É como uma fuga seguidista; um olhar sem ver; um
agir sem pensar. Óptima terapia para quem trabalhou e determinou
viajar sem pensar. Péssima receita para quem tem de trabalhar.

Um projecto é algo de muito diferente. A Enciclopédia Luso-


Brasileira de Cultura53 diz o seguinte e eu transcrevo:

É o que alguém decide ou se propõe fazer. Como sugere


o étimo da palavra (pro+jacere = lançar, atirar para a
frente), todo o P., enquanto antecipação intencional do
futuro, supõe uma certa independência a respeito dos
dados actualmente presentes. Por isso mesmo, só o
homem pode ser sujeito de P., porque só ele, como ser
espiritual e livre, guarda uma certa distância a respeito
das coisas que continuamente o solicitam, permitindo-lhe
organizar, pelo pensamento, uma resposta interior de
uma qualidade totalmente diferente da simples reacção
animal. (...) Pelo P., antecipação espiritual das
possibilidades oferecidas pela sua mesma natureza e
pela realidade circunstante, o homem encontra-se já, de
algum modo, onde ainda se espera. Na aliança deste já e
ainda não reside a seriedade de todo o autêntico P., que,
assim, se distingue de uma simples veleidade ou
capricho. (E mais abaixo) Viver é para o homem
projectar; e projectar é inquirir e perguntar.

Que viagem bem diferente. Ao invés duma excursão super-


planeada, surge a oportunidade intencional da aventura. Um projecto
educativo não pode ser a proposta de outrem, ele tem de integrar a
proposta de cada um dos intervenientes e o acto de lançamento, o
seu projacere, deve surgir duma decisão comum. Enquanto que um
plano pressupõe uma viagem para algo que já existe e que está
estaticamente plantado no terreno (a Acrópole de Atenas, ou o Forum
de Roma, ou o Castelo de Guimarães são dados conhecidos e não
podem integrar nenhum processo de mudança), um projecto parte
sempre para um processo de mudança. O texto que acima lemos
indica que o(s) projectista(s) devem sentir-se livres e independentes
de quaisquer solicitações presentes na projecção de um futuro
possível. Por outras palavras, o projectista não deve sentir-se
acorrentado a um presente-passado, mas livre para pensar o
presente-futuro. É por isso que o texto fala da antecipação das
possibilidades, da aliança entre o já e o ainda não. Esta tensão entre

53 Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura (1992). Lisboa: Editorial Verbo, pp.


1209-1210.

76
o passado e o futuro na dimensão do presente é difícil de resolver. O
presente fundamentado no passado oferece uma vivência cómoda, se
bem que fictícia. Para já, é impossível viver-se uma coisa morta, e o
passado é morto. Por outro, o passado também não é tradição. A
tradição é viva. A tradição é memória e é descoberta. É um pouco
daquilo que nos liga ao ciclo da vida das pessoas que existem, que já
existiram e que virão a existir. A tradição é assim como que um
projecto colectivo.

Um projecto educativo deve ser motivado pela antecipação das


possibilidades e surgir da tensão que existe entre o já e o ainda não;
entre o hoje e o amanhã; ou mesmo, entre teoria e prática; entre
tecnologia e ciência; entre saber e saber fazer; entre esperança e
angústia. O texto diz-nos ainda que viver é projectar. Por outras
palavras, que educar é projectar; que aprender é projectar; que ser-se
escola é projectar. Por último, o texto citado define projectar como
inquirir e perguntar; como aprender através da pesquisa e aprender
através do diálogo. Isto não é nem mais nem menos que uma visão
desenvolvimentista da educação e da vida.

1. O projecto educativo como um projecto de Desenvolvimento

Defrontamo-nos nas nossas escolas com pelo menos duas


visões diferentes de educação. Uma super organizada em programas,
horas de aula, calendário escolar, compêndios, hierarquias de
pessoas e valores, organizações de vários tipos, tendência
centralizadora de controles e um mandato definido: fazer com que
um grupo de crianças, no fundo, todas ou o maior número possível,
progrida através de lotes definidos de conhecimento humano, para
poder depois ser avaliado. Esta avaliação dividirá o grupo de crianças
entre aptos e inaptos e criará ainda subcategorias em cada um destes
subgrupos. Os aptos herdarão a terra. Os inaptos, se após uma ou
duas oportunidades não conseguirem subir pelo menos ao escalão
mais baixo da aptidão, estarão destinados a nunca chegar a nada na
vida. Não é infrequente ouvirmos isto mesmo nas reuniões de
professores acerca de um ou de outro aluno.

A história da vida relata-nos porém uma história bastante


diferente. Vezes bastantes, não são os considerados aptos pela
escola que herdam a terra, mas os inaptos. Bastará lembrar dois
exemplos paradigmáticos: Einstein e Churchill, para não falar das
centenas, milhares, ou mesmo dezenas de milhares de inaptos que no
confronto com a vida souberam, o que quer dizer que tinham
conhecimentos mais que suficientes para poder tirar um sentido da
realidade e viver vidas úteis, frutíferas, confortáveis, que em muitos
casos constituíram verdadeiros paradigmas de desenvolvimento.

77
A massa de aptos que vive vidinhas dóceis, sossegadas,
encaixados em gabinetes burocráticos, puxando um papelinho atrás
doutro papelinho, tal e qual o operário da linha de montagem não tem
conta. Dezassete anos de escolaridade: aptos para quê? No sistema
mecanicista, hierarquizado e determinista em que ainda, de certo
modo vivemos, dezassete ou menos anos de escolaridade não eram
muito mais do que um passaporte para não trabalhar em actividades
laborais.O mundo da produção havia-se mecanizado e nem nos
chamados paraísos dos trabalhadores a situação era diferente.
Raramente a dacha no Mar Negro ia parar às mãos dos não
classificados aptos pela escola, e se encontrávamos aptos a trabalhar
na produção era muitas das vezes mais por castigo, que por mérito.

Criámos até nomes diferentes para estes dois mundos: os


colarinhos azuis e os colarinhos brancos. A diferença entre ambos era
abissal: uns estavam, aparentemente destinados a mandar, os outros
a obedecer. Esta visão da vida era por natureza mecanicista,
determinista, hierarquizada, estática e funcionou muito bem durante
os últimos trezentos anos; enquanto foi possível expandir o mundo
do emprego para absorver as massas de aptos e inaptos; enquanto
foi possível à bandeira do progresso industrial sobrepor-se à do
desenvolvimento pessoal e social. Julgou-se que a democratização da
escolaridade iria resolver alguns dos grandes problemas sociais e que
através da instrução a luta de classes, em termos mais modernos, a
luta entre escolarizados-aptos e escolarizados-inaptos poderia ser
resolvida. A massificação do ensino ainda em curso está a levantar,
por seu turno, sérios problemas sociais. Afinal um diploma não dá
direito a um emprego, e que fazer de um investimento de pelo menos
dezassete anos e rios de dinheiro? O próprio mundo dos
escolarizados-inaptos se encontra seriamente ameaçado: depois de
todas as auto-estradas construídas, bastarão somente uns poucos
para fazer a sua manutenção. Nada mais parece fazer sentido.

E o que fazemos nós, professores? Será que a nossa função


poderá continuar a ser a de preparar cada vez números maiores de
jovens para o desemprego? Será que nos vão deixar continuar a
funcionar comodamente em blocos de cinquenta minutos,
papagueando a mesma lição de geografia anos após ano, passando
diplomas de apto e de inapto a quem a papaguear melhor ou pior?
Será que este mundo, o mundo quase sagrado do ensino, centrado na
figura augusta do professor, e na verdade-certeza do compêndio
poderá continuar sem alterações tão profundas, que eu mesmo
chamaria de reinvenção? Será que os nossos bem delineados planos
educativos farão ainda sentido? E se, por acaso, ainda fizerem algum
sentido, será que têm sentido?

Não tenho quaisquer dúvidas sobre este aspecto. O mundo do


ensino, que tão bons serviços nos prestou, está para a realidade de
hoje, como um coche de D. João V para um Twingo, perdoe-se-me a

78
publicidade: não é paga! Se buscarmos um meio de transporte, não
há dúvida que optaríamos pelo Twingo, ou por um Volkswagen, ou por
um Ford, ou por um Rover, ou por qualquer outro carro que
despertasse a nossa fantasia e pudesse ser sustentado pela fartura
das nossas bolsas. Se quisermos, por outro lado, organizar um museu
dos transportes, talvez aí encontremos lugar para esse magnífico
exemplo da fantasia, da arte e do engenho humano que pertenceu ao
Magnífico.

Não há dúvida de que precisamos de um projecto educativo, de


uma educação projacere, de uma educação que nos lance para a
frente; de uma educação que inquira do mundo uma visão da
realidade que nós possamos compreender, e que nos lance para uma
vida de perguntas em conjunto com todas as outras pessoas.
Precisamos de um projecto de aprendizagem. O do ensino já não
chega. A realidade não é nem mecanicista, nem determinista, nem
certa, nem tão pouco hierárquica, pelo menos no sentido tradicional
do termo. A transmissão de conhecimentos, base do sistema de
ensino, não faz hoje também muito sentido. O que é que os alunos
vão fazer com teoremas e corolários completamente ultrapassados?
O que é que eles poderão fazer com um coche de D. João V? Não lhes
estamos a dar muito mais.

Em 198854, a Associação Nacional de Governadores dos Estados


Unidos, uma coisa parecida com uma Associação dos Presidentes dos
Estados Europeus e Primeiros-Ministros, dizia o seguinte sobre este
problema:

(Os alunos precisam) tanto de uma base substancial de


conhecimento, como de uma ordem mais alta de
competências cognitivas. Estas competências incluem:
a capacidade de comunicar ideias complexas, de analisar
e resolver problemas complexos, de identificar ordem e
encontrar caminhos num ambiente ambíguo, e de pensar
e razoar abstractamente. Porque os trabalhadores no
futuro experimentarão mudanças rápidas ... devemos
requerer que os alunos desenvolvam a capacidade de
aprender novas competências e tarefas rapidamente.
Isto exigirá uma compreensão profunda das matérias e
uma capacidade para aplicar este conhecimento com
criatividade e imaginação, em contextos novos, e em
colaboração com os outros.

Não me parece que seja bem isto que nós fazemos


habitualmente. E digo-vos também que a lista não está completa. A
capacidade de aprender como aprender, de inquirir do mundo, de ter
uma atitude de humildade voluntariosa em relação ao conhecimento,
de trabalhar numa atitude de cooperação com os outros não tem

54 Schenkat, Randy (1993). Quality connections. Alexandria, VA: ASCD, p. 8.

79
muito a ver com a cultura do emprego e tudo a ver com a cultura do
trabalho.

É evidente que a cultura do emprego e a cultura do trabalho


coexistiram e coexistem. Sempre houve gente que viu a vida como
uma oportunidade de criação e de empreendimento e sempre houve
gente que preferiu vivê-la na segurança relativa da sua integração no
projecto de um outro qualquer. Todavia, tanto a oportunidade como a
preferência não dependeram sempre da vontade humana, antes se
encontravam determinadas por factores exógenos, como o berço, o
contexto social, ou mesmo a educação. A vida definia-se muitas vezes
à nascença: havia os que nasciam com oportunidades e havia os que
nasciam para se adaptarem. Havia os que conseguiam alterar os
condicionalismos do seu universo contentor e fechado através do
esforço ou da educação, como havia os que se amedrontavam com a
incerteza da liberdade.

Este mundo predestinado de líderes e liderados conheceu


diversas fases, desde o patriarcalismo das sociedades antigas, ao
mecanicismo da modernidade industrial e ao organicismo fechado das
sociedades derivadas da ideologia marxista. Qualquer um destes
mundos tendia a criar condições de vida razoáveis, ou pelo menos
assim consideradas. A definição do que era ou não razoável pertencia
invariavelmente a um pequeno grupo que encimava a pirâmide
social. Os lados e os estratos da pirâmide definiam, por sua vez, um
universo determinado. Num universo prescrito o futuro era concebido
como uma realidade temporal também fechada. A expectativa era em
grande parte um dado adquirido, muitas vezes compreendido como
um direito por quem nascera para mandar e como um dever para os
que estavam destinados a obedecer.

A Revolução Industrial alterou profundamente a sociedade. Por


um lado, o desenvolvimento tecnológico forçou a criação de sistemas
cada vez mais complexos de escolarização e, se bem que tenha
aberto muitas fendas na estrutura da sociedade patriarcal, manteve
uma visão determinista da vida. Esse determinismo foi ainda
reforçado pela adopção dum paradigma mecanicista que afectou
profundamente os conceitos de escola, de educação, de governo e de
desenvolvimento. A escola transformou-se numa fábrica de
empregados, isto é, a sua função passou a ser produzir técnicos
suficientemente estandardizados e categorizados. A formação de um
técnico, isto é, de alguém preparado para desempenhar uma
determinada função, pressupõe uma instrução formatadora e o
ensino de valores que induzissem a pessoa a uma adaptação fácil à
vida nessa sociedade. A docilidade, a lealdade, a obediência, o zelo, a
capacidade de se apagar no grupo foram e, de certo modo ainda são,
valores muito importantes.

80
O mundo, todavia, mudou. A nossa capacidade de perceber o
real alargou-se substancialmente. Os determinismos e as visões
mecanicistas perderam quase todo o seu sentido. A complexidade
impera. A incerteza desassossega-nos. A descontinuidade desafia-
nos. Como compreender e gerir mundo súbito interdependente,
caótico e tendente para o não equilíbrio? Como fazer sentido desse
mundo difícil de prever, mas completamente aberto e emergente?
Como educar para um mundo em que a actividade humana não é
mais vista sob a perspectiva do emprego, mas percebida como a
gestão do trabalho? Como educar para um mundo em que as
decisões não vêm necessariamente do topo da pirâmide, mas são
tomadas de forma muito mais participativa e mesmo a todos os
níveis? Como aprender a avaliar a amplitude da participação no acto
de decidir? Como aprender a identificar oportunidades? Como
aprender a gerir a descontinuidade no decurso das carreiras? Como
aprender a ver para lá do horizonte imediato? Como aprender a
trabalhar cooperativamente num contexto de concorrência
acentuada? Como aprender a decidir os momentos das nossas
mudanças? Como aprender a perceber uma realidade complexa, um
sistema aberto, uma escola como comunidade educativa?

Não me parece razoável pedir à escola tradicional que consiga


organizar-se para prover a todas estas aprendizagens. Não é de um
momento para o outro que as escolas vocacionadas para a
modernidade industrial, poderão reinventar-se como centros de
aprendizagem compatíveis com a sociedade pós-industrial e a nova
cultura do trabalho. Algo, todavia, terá de acontecer. A matriz da
escola não pode ser configurada num modelo completamente
ultrapassado, quando os milhões de alunos que povoam as nossas
escolas entrarão no mercado de trabalho não de hoje, mas como ele
será daqui a 15 ou 20 anos.

Não há reforma que possa ajudar a gerir esta descontinuidade.


Não me restam dúvidas que precisamos mesmo de reinventar a
escola. E como fazê-lo? A resposta parece-me óbvia: assumindo uma
atitude científica. Se a realidade se caracteriza pela interdependência,
não podemos ter escolas dependentes, mas temos de promover a
autonomia dessas escolas em toda a sua complexidade. A
interdependência não emerge de situações de dependência ou de
independência, mas em contextos autónomos. A autonomia é uma
outra maneira de falar da singularidade – da uniqueness – das
pessoas e das organizações humanas. Se a realidade se define como
um fenómeno emergente, não podemos continuar a governar as
escolas do topo de uma pirâmide rígida e formatadora que,
verdadeiramente, já nem existe. Se o mundo da actividade humana
se caracteriza pela complexidade dos sistemas abertos que tendem
para o não equilíbrio, precisamos de relacionar a vida curricular
explícita e implícita da escola com essas mesmas características. Se a
mecânica quântica nos permite perceber melhor a realidade, porque

81
passar mais de uma dezena de anos a estudar a mecânica
newtoniana que serve para explicar cada vez menos?

É evidente que algumas destas transformações não poderão ser


operadas pelas escolas enquanto estas se considerarem como
entidades dependentes de um topo qualquer, ou mesmo como
entidades individuais num ambiente atomizado. É evidente que
dificilmente poderemos esperar que o topo hierárquico abdique das
suas prerrogativas, ou reconheça a incapacidade de gerir o sistema
em que insere. Por outro lado, a escola não pode permanecer
indiferente ao fosso que cada vez mais separa a realidade da escola
do contexto real da vida, nem pode justificar inacção por
incapacidade, insuficiência, ou espaço de competência.

A percepção do real constitui a centralidade da escola. É


através da prossecução do conhecimento que alunos, professores e
pais se afirmam como aprendedores, o que é dizer como cientistas,
ou em sentido mais lato, como pessoas. Ser-se pessoa é sentirmo-nos
responsáveis pelos nossos próprios processos de desenvolvimento
cognitivo, afectivo, social, espiritual, físico e o que mais houver. Um
processo de desenvolvimento é, por natureza um processo social. É
através do nosso trabalho cooperativo com os outros para uma maior
compreensão do mundo – ou para usar a frase belíssima de Freire 55:
to name the world – que verdadeiramente nos afirmamos como
pessoas. Este trabalho para dar nome ao mundo desenvolve-se em
todos os campos em que desenrola a actividade humana.

É através da formulação do projecto educativo que alunos,


professores, pais e demais agentes acordam sobre as suas posturas
científicas perante a vida. O projecto educativo, como mapa (não
necessariamente roteiro) do processo de desenvolvimento de uma
comunidade, tem de definir horizontes de desenvolvimento comuns e
incluir estratégias que permitam o caminhar para o alargamento
desses mesmos horizontes.

2. O projecto educativo como um processo de aprendizagem

Peter Senge56 diz-nos que as organizações só aprendem através


de indivíduos que aprendem. Os indivíduos que aprendem, todavia,
não são necessariamente aqueles que foram escolarizados. A escola
que se vê como transmissora do conhecimento (se tal é possível)
concebe o aluno como objecto de um processo educativo e raramente
como o seu sujeito. A educação tende, assim, a dogmatizar
comportamentos, a pronunciar certezas, a prescrever futuros. Atrevo-
me a dizer, por isso, que o mundo do ensino, isto é, que o mundo das

55 Freire, Paulo (1970). Pedagogy of the oppressed. New York: Seabury Press, p. 78.
56 Senge, Peter M. (1993). The fifth discipline. London: Century Business, p. 139.

82
respostas em que vivemos separa-nos culturalmente daquele outro
mundo, hoje fundamental, que é o mundo da aprendizagem, que é o
mundo das inquirições, que é o mundo do projecto. Atrever-me-ia
ainda a dizer que se de facto estamos interessados em desenvolver
um projecto educativo, teremos de optar pelo mundo da
aprendizagem, uma vez que, em meu entender, ensino e
aprendizagem são incompatíveis, pois pertencem a culturas, a
universos diferentes. Incompatibilidade, todavia, não inviabiliza a
coexistência. Todo o aspecto tecnológico da educação pode e, talvez
até, deva ser ensinado; não se pode, todavia, ensinar a ciência. Esta
só pode ser aprendida.

Na cultura do emprego, de que vos falei, precisávamos


sobretudo de técnicos; na cultura do trabalho há mister de promover
a formação de cientistas e esta só se faz através da aprendizagem;
nós sabemos também que só se aprende fazendo. O mundo da
aprendizagem é, pois, o mundo do fazer, da experiência, da tentativa
e do erro; é o mundo da descoberta que uma vez achada aponta para
outra a descobrir; é o mundo com um horizonte que se expande à
medida que mais para ele avançamos; o mundo do ensino, do
compêndio e da resposta é um mundo com esse cone de horizonte
invertido: o cone fecha-se à medida que processamos todas as
respostas. Fim do livro, fim do estudo; fim do curso, fim do saber.

Metamos a mão na nossa consciência. Qual foi a última vez em


que verdadeiramente aprendemos alguma coisa? Qual foi a última
vez em que nos debruçámos sobre a banca de ensaio da vida e
estudámos cientificamente um problema, uma questão? Qual foi a
última vez em que pusemos em causa aquilo que fazemos todos os
dias, o compêndio que nos serve de cabeça e de cajado? Qual foi a
última vez em que pensámos na palavra possível, na capacidade de
antecipar o futuro, na responsabilidade de ajudar, de guiar, de
coordenar a actividade dos alunos para um mundo completamente
diferente daquele em que nós próprios começámos a caminhar: um
mundo agora complexo, descontínuo, incerto, paradoxal, caótico,
causal, probabilístico, um mundo emergente, no dizer de Popper 57, de
Kelly58, ou Kaufman59.

Que sentido fazer no meio de toda esta convulsão de ideias,


solicitações, ambiguidades? Como planear numa realidade em
constante mudança? Que caminho encontrar? Que receita seguir?
Lamento desapontá-los, mas não posso em consciência vir aqui
ensinar-vos como planear um projecto educativo. Já vimos que plano
e projecto não são nem de perto nem de longe a mesma coisa, ou
57 Popper, Karl R. (1988). O universo aberto. Lisboa: Publicações D. Quixote, p.
129.
58 Kelly, Kevin (1994). Out of control. Reading, MA: Addison-Wesley Publishing
Company, p. 458, or
59 Kaufman, Stuart (1995). At home in the universe. Oxford: Oxford University
Press, p. 23

83
mesmo coisas compatíveis. A viagem da vida já não é, como o era
muitas vezes antigamente, uma excursão: 5º ano dos liceus -
amanuense; magistério primário - professor ou professora das
primeiras letras; licenciatura - título de doutor e direito a sapatos
engraxados por outrem; doutoramento - e o estatuto automático de
oráculo.

O projecto educativo que vos proponho não é o preenchimento


de quadrículas num formulário preparado por um burocrata qualquer.
Não é o deslindar de um sem número de actividades boas e criativas
e úteis. Não é a elaboração de conteúdos programados
sequencialmente. Nem é sequer um apelo à reforma. A maior parte
das reformas, mais não é do que o remendar de roupagens velhas. É
muito mais simples do que isso tudo, mas muito mais desafiante.

O projecto educativo que vos proponho é um processo de


aprendizagem que tem por sujeito cada um dos intervenientes no
processo educativo de cada criança; por objecto, as situações
humanas, as inter-relações e o trabalho que fazemos (é esse
verdadeiramente o produto da escola), e por mediador, este
maravilhoso mundo em que vivemos. O projecto educativo, como
processo de aprendizagem, é verdadeiramente um projecto de
transformação.

A verdadeira aprendizagem, nos diz Senge60, vai ao coração do


que significa ser humano. Através da aprendizagem aprendemos a
nos recriar. É por aqui que começa um projecto educativo: pela
nossa própria recriação como verdadeiros educadores. A pergunta
que se nos põe é lógica e premente: Como fazê-lo? Habituados que
estamos a seguir as receitas dos outros, ou talvez mesmo, as nossas
próprias; habituados que estamos a falarmos ex-cátedra as certezas
de que nos convencemos; habituados que estamos à rotina do ensino
como sistema de instrução, como arrepiar caminho de repente e nos
recriarmos como aprendedores, o que quer dizer, como cientistas?
Não é tarefa fácil, mas não é nada que não esteja ao nosso alcance.
Só que desta vez, o isolamento em que vivemos como professores na
sala de aulas e na escola terá de ser rompido, e uma nova vivência de
constante inter-relação e interdependência terá de ser forjada.

Neste processo de aprender a viver diferentemente com o


nosso trabalho é necessário que usemos uma das faculdades que
possuímos e que raramente utilizamos: a faculdade de esquecer. É
imprescindível que esqueçamos todas aquelas coisas que nos têm
servido de barreira a uma verdadeira aprendizagem: o medo de
sermos considerados insuficientes, a timidez de partilhar com outrem
um mesmo mister, a incerteza sobre a propriedade das nossas
perguntas. A faculdade de esquecer o que perdeu valor ou razão de
ser, é tão importante como lembrar aquilo que faz e tem sentido.

60 Senge, Peter M. (1993). The fifth discipline. London: Century Business, p. 14

84
A recriação de nós mesmos como educadores-aprendedores
não pode acontecer na solidão das nossas pessoas como indivíduos.
Não há aprendizagem na solidão, só no convívio com os outros. O
projecto educativo como processo de aprendizagem apresenta-se-nos
assim com um duplo objectivo: a recriação de nós próprios como
educadores-aprendedores para a recriação da escola como um centro
de aprendizagem. Não há outra razão para um projecto educativo, do
que a de repensar continuadamente a natureza, função e objectivos
da escola em que trabalhamos.

O já citado Peter Senge61, um dos grandes proponentes da


aprendizagem como a força motriz da empresa moderna, e quem diz
da empresa com mais precisão dirá da escola, propõe-nos cinco
disciplinas da aprendizagem. A saber:

· Mestria pessoal: A capacidade de clarificarmos e aprofundarmos a


nossa visão pessoal, de enfocarmos as nossas energias, de
desenvolver a paciência e de ver a realidade objectivamente.
· Modelos Mentais: Suposições interiorizadas, generalizações, ou
mesmo imagens que influenciam a maneira como compreendemos
o mundo e como agimos.
· Visão comum: A capacidade de construirmos uma visão comum
sobre o futuro que gostaríamos de criar.
· Aprendizagem em equipe: Sabemos que a aprendizagem em
equipe funciona melhor, porque se baseia no diálogo e nos permite
reconhecer as formas de interacção em equipes que podem minar
a aprendizagem.
· Pensamento sistémico: A capacidade de conceptualizar a
natureza, a complexidade e o funcionamento de um sistema
completo, de cada uma das suas partes e do seu inter-
relacionamento.

Temos aqui não propriamente uma receita, mas um processo de


desenvolvimento de um projecto de aprendizagem, e como já vimos,
não há aprendizagem que não acabe por nos transformar. É um
processo que só pode ser conseguido por grupos de pessoas e não
por indivíduos. A última vez que encetei um destes processos foi já
há bastantes anos, nos Estados Unidos. Peter Senge ainda não havia
publicado o seu livro, mas o processo seguido assemelha-se em muito
ao que ele propõe.

Estou convencido que quanto mais convencidos estamos de


que tudo corre bem, pior as coisas estão. A escola secundária que eu
então dirigia há já uns sete anos parecia bastante bem: dávamo-nos
todos bem; havia uma óptima relação de respeito, confiança e até de
carinho entre a administração, professores e alunos; primávamos
pela criatividade e inovação; os pedidos de adesão à nossa escola

61 Senge, Peter M. (1993). The fifth discipline. London: Century Business, pp. 6-12

85
por parte dos professores, todos os anos, eram sempre muitos mais
dos que aqueles que podiam ser satisfeitos. Faltava em meu
entender qualquer coisa de muito importante. Faltava-lhe alma.
Éramos quando muito, uma burocracia viva, criativa, consciente,
inovadora, flexível, mas ainda assim uma burocracia. Não tínhamos
ainda posto em causa o sistema. Não nos tínhamos questionado
seriamente sobre o que fazíamos. Quando identificávamos áreas que
mereciam uma atenção maior, tentávamos mobilizar recursos que
pudessem de algum modo aliviar esse problema. E assim por diante.

Vivíamos bem uns com os outros, mas como indivíduos e


víamos os alunos como indivíduos também, se bem que já tivéssemos
ensaiado algumas experiências de aprendizagem em grupo. Cada
professor, todavia, continuava a funcionar na sua sala de aula, cada
aula durava 50 minutos e havia pelo menos um compêndio por
disciplina. Não nos podíamos queixar de falta de know-how, dos
cerca de 80 professores, 14 eram doutorados, alguns eram
professores universitários em regime de part-time, e todos os outros
tinham pelo menos um mestrado. Tentei, por várias vezes, quebrar
certas rotinas, como as resultantes da inflexibilidade do horário, mas
pouco consegui. Era muito difícil convencer gente razoavelmente
feliz a repensar a sua vivência profissional. Como aprendedor sério
da teoria de sistemas eu sabia que todos os sistemas tendem para a
entropia, para o desgaste, e que aquela escola mais cedo ou mais
tarde entraria em declínio. Percebi naquela altura, mais
intuitivamente que por saber, que uma das maneiras de evitar a
entropia era a de ir contra outra das regras áureas da teoria de
sistemas: a tendência que todos os sistemas têm para o equilíbrio.
Eu comecei a ver cada vez mais com maior clareza que a minha
função era a de desequilibrar aquele sistema para que o desgaste não
viesse a acontecer. E foi o que eu fiz. Escolhi o departamento mais
unido, mais forte e mais capaz e propus simplesmente aboli-lo. A
revolução não se fez esperar. Fui acusado de traidor, de má fé, de
não estar muito bom do juízo, mas nada me demoveu. É claro que
não consegui acabar com o departamento, nem era essa a minha
intenção, mas durante dois anos usei essa ameaça como uma
alavanca para o desenvolvimento de um novo projecto educativo.

Passados cerca de dois anos, dois dos professores desse


departamento vieram falar comigo e disseram: Ruben, isto assim
não pode continuar. Temos de chegar a um acordo. Eu concordei e
lancei-lhes um repto: Apesar de toda a gente pensar que isto está
muito bem, todos sabemos que talvez pudéssemos fazer isto mesmo
de uma maneira diferente e muito mais eficaz. Proponho que
formem um grupo e comecem a repensar esta escola de cima para
baixo e de baixo para cima. Convoquei todos os professores para
uma reunião e disse-lhes o acordo a que havia chegado com aqueles
dois professores, que eram obviamente líderes informais
incontestados, e para além disso, amigos pessoais.

86
Lancei-lhes uma série de perguntas: como é que podíamos
definir a nossa escola? Será que o conceito de escola ainda fazia
sentido? O que significava ser professor? E ensino? E aprendizagem?
Quais as relações existentes entre estes conceitos? Cerca de 30
professores ofereceram-se para fazer parte desse grupo de discussão
que passou a reunir-se todas as quartas-feiras, julgo que às sete e
meia da manhã, uma hora, portanto, antes das aulas, para discutirem
o que é que afinal andávamos ali a fazer. A comissão funcionou
durante cerca de um ano. Mensalmente eram dadas informações
sobre o desenvolvimento dos trabalhos a todos os outros professores
e quando necessário eu era chamado para esclarecer ou ajudar numa
ou noutra questão. É claro que eu não fazia parte da comissão.

Pela primeira vez os professores começaram a analisar a escola


como um todo, o tal pensamento sistémico de que fala Senge. Pela
primeira vez começaram a construir uma visão diferente, e digo
diferente, não porque eles buscassem o diferente à força, mas porque
mal começaram a antecipar o futuro e a olhar para o mundo, para os
alunos e para as rotinas da escolaridade, tornou-se óbvio que muito
tinha forçosamente de mudar. Pela primeira vez começaram a
trabalhar, e não somente a conviver, em equipe. Pela primeira vez
começaram a dar expressão pública aos seus sentimentos mais
íntimos sobre o que significava para cada um ser professor, ser-se
escola e sentir-se aquela organização. Pela primeira vez lhes foi
possível aprofundar e clarificar as suas visões e sentimentos
particulares sobre educação, docência, escolaridade, mas agora numa
perspectiva muito mais ampla, pois que a visão de cada um passou a
ser enriquecida pela dos outros.

Ao fim de cerca de um ano, havia o esboço de um projecto


educativo que definia a missão da escola, os objectivos gerais e
específicos, as tarefas que deveriam ser executas a curto prazo,
sistemas de avaliação de cada uma delas e de cada um dos
objectivos, e resultados prováveis. Definiu-se o inter-relacionamento
dos professores e dos saberes, criando-se equipes de professores
responsáveis por áreas de conhecimento que trabalhariam com
grupos de alunos como quisessem, em blocos de tempo libertos das
campainhas, no caso era música, que tocava em intervalos de 50
minutos. Escolheram-se metodologias de aprendizagem mais
adequadas e treinaram-se os professores. Tal como aconteceu, dois
dos professores foram treinados externamente e depois estes
treinaram os outros. Finalmente decidimos que não concordávamos
com as conotações ligadas à palavra escola, e chamamos-lhe
Academia. Foi uma das primeiras da última década. Hoje há
centenas por todos os Estados Unidos.

Um projecto educativo não é um produto, mas um processo de


mudança, é um lançarmo-nos para a frente ao encontro da realidade

87
e dos outros, pois como disse Bostingl62: Sabemos agora que a única
maneira de assegurarmos o nosso próprio crescimento é ajudando os
outros a crescer. Aquilo a que os Japoneses chamam kaizen.

3. O projecto educativo como a busca do sentido

O encontro com a realidade nunca nos deixa indiferentes. A


realidade de que vos falo não é aquela que necessariamente vem nos
compêndios, mas a que se adquire da nossa inquirição científica, da
nossa observação atenta e perspicaz, do diálogo com os nossos
colegas, alunos, pais, membro da comunidade, etc. Popper, como já
citei diz que a realidade é emergente: que é em parte causal, em
parte probabilística e em parte indeterminada. Quer isto dizer, que a
realidade a advir pode ser influenciada pela nossa vontade, a
probabilidade aumentada pelo trabalho em conjunto guiado por uma
mesma visão, e que apesar de tudo também é indeterminada. Talvez
seja esta a parte mais aliciante.

Nós estamos habituados a ver a realidade como um espelho


onde, para além da nossa aparência nada mais vemos reflectido.
Nem o nosso pensar, nem o contexto total que nos envolve, nem as
pessoas com quem convivemos. É uma realidade à medida do
quadrado de vidro que nos confronta. É uma realidade contida,
estática, de momento. É a realidade do nosso dia escolar: da nossa
sala de aulas, da lição do momento, das caras sempre e
inadiavelmente jovens que temos à nossa frente.

O mundo, todavia, é muito mais do que o reflexo num espelho.


O mundo, a vida, a realidade é um todo sistémico em mudança
descontínua e, na maior parte das vezes, em desequilíbrio. É um todo
sistémico que parece impossível de controlar. Numa visão
mecanicista da vida o controle é importante. Numa visão
desenvolvimentista, o controle de pouco vale, é até
contraproducente. Uma visão desenvolvimentista do mundo não é
como um espelho, mas como uma janela aberta. O horizonte
alcançável de uma janela é expansivo, como expansivo é sempre o
desenvolvimento. É um horizonte que não se pode fechar sobre si
mesmo, da mesma maneira que o desenvolvimento não é regressivo.
É um horizonte vivo, que nos desalinha os cabelos com a brisa que
entra, que nos enche de dias e de noites, de aromas, de encontros
inesperados. É um horizonte que convive connosco, que nos
influencia e que nós podemos influenciar. Em frente da janela aberta,
o mundo e nós somos um todo interdependente. Não há necessidade
nem possibilidade de controle. Kelly 63 diz que o futuro do controle (é)
a partilha, o co-controle, ou o controle ciborguiano. Não precisamos

62 Bostingl, Jhn Jay (1992). Schools of quality. Alexandria, VA: ASCD, p. 5.


63 Kelly, Kevin (1994). Out of control. Reading, MA: Addison-Wesley Publishing
Company, p. 331.

88
de discutir este último aspecto. Basta-nos o conceito de partilha e de
co-controle.

Da nossa janela aberta, o horizonte a alcançar é o horizonte


possível; é o horizonte que quisermos alcançar; é o horizonte que
pudermos alcançar; e haverá sempre um horizonte que estará para
lá do que é viável, dadas as nossas limitações de tempo e de espaço.
A medida do possível tem de ser, todavia, a nossa medida. Nunca a
medida do previsto. O possível é a medida do projecto. O previsto é a
medida do plano. E há um horizonte infinito entre estes dois
conceitos.

Aos 45 anos, o evoluir da minha vida trouxe-me de novo a


Portugal, após uma ausência de quase 25 anos. Eu era, e sou, casado
e tinha duas filhas, na altura com 13 e 17 anos. Minha mulher
permaneceu nos Estados Unidos por mais um ano para fazer aquelas
coisas que são necessárias fazer quando uma família atravessa o
Atlântico com um certo sentido de permanência. Estivemos assim um
ano separados. Um dia recebi um telefonema de minha mulher, num
estado bastante nervoso, a dizer-me que estava grávida. Confesso
que habituado às mudanças descontínuas não fiquei abalado, nem
nervoso. De qualquer modo eu e ela tínhamos estado juntos não
havia ainda três meses. Passados cerca de seis meses regressei de
novo aos Estados Unidos para a graduação das minhas duas filhas e
para o nascimento da Victoria. A Victoria era uma realidade,
desintencionalmente causada, mas fruto do nosso amor,
indiscutivelmente provável, apesar dos meus 45 anos, mas uma
realidade completamente indeterminada. A Victoria era possível, mas
não tinha sido prevista. Não tinha sido planeada, mas era fruto do
nosso projecto de amor.

Quase que se poderia dizer, que numa concepção emergente


da realidade, a Victoria escolheu-nos. Eu acredito neste conceito
maravilhoso da vida. Nós somos responsáveis pelo projecto, mas o
seu desenrolar não depende da estruturação linear de nenhum plano.
Todos nós sabemos o que acontece aos melhores planos. É fácil e
provável que chova em muita excursão. Quer isto dizer que a partilha
da vida com os outros, que a interdependência nos faz escolher e
sermos escolhidos. Deixai-me ir um pouco mais além. O sermos
escolhidos depende em larga medida da nossa capacidade de entrega
e essa entrega é uma opção da nossa vontade. É essa entrega como
opção da vontade, aquilo a que Pedro da Cunha 64 uma vez chamou o
dom de si mesmo, esse dom que marca a fronteira entre o prazer
efémero da conquista e a felicidade. Não tenho dúvidas de que é a
felicidade vista como resultado da entrega e não como fruto da
conquista, por outras palavras, que é a felicidade como fruto dum
projecto e não como objectivo geral de um plano qualquer, que dá
verdadeiro sentido às nossas vidas.

64 Cunha, Pedro d'Orey da (1996). O dom de si mesmo. Lisboa: Brotéria

89
Um projecto educativo, tenha ele a forma que tiver, pode trazer-
nos esse sentimento de felicidade, esse sentido às nossas vidas
profissionais. Claro que como a felicidade, esse sentido tem e terá a
medida do possível e essa, quem é que sabe qual é? Quem é que
sabe qual é a medida do possível de uma criança? Quem é que sabe
qual é a medida do possível da nossa capacidade de agir? Quem é
que sabe qual é a medida do possível da nossa acção conjunta?
Quem é que sabe qual é a medida do possível de uma escola
trabalhando em conjunto, construindo uma visão comum,
aprofundando a compreensão das coisas, e olhando para a realidade
através de uma janela aberta, poderá fazer com e pelas crianças, por
si própria, pela comunidade que a integra?

Não é de um plano de actividades que verdadeiramente


precisamos, se bem que ele seja importante, mas de um projecto
educativo, de um projecto que, como a própria palavra indica, nos
lance para a frente, nos desafie a ler com cada vez maior clareza os
sinais dos tempos, e nos faça chegar a um visão comum do que é
possível. Parafraseando Senge65, o importante não é o que um
projecto educativo é, o verdadeiramente fundamental é o que um
projecto educativo faz.

4. E como é que se faz um projecto educativo?

Num projecto o que verdadeiramente conta é o processo que se


usa, não propriamente o produto acabado. Não é muito difícil
encomendar a uma comissão a feitura de um projecto educativo
perfeito. Por outro lado, um projecto educativo não é algo que se faça
para emoldurar ou arquivar na biblioteca. Um projecto educativo
existe para dar vida e sentido a uma escola. Por isso, ele tem de ser
produzido, directa ou indirectamente por todos aqueles que lhe vão
dar vida. Daí que o processo utilizado para a sua formulação seja
fundamental. Todos os componentes duma escola, dentro dos limites
da razoabilidade, devem ser envolvidos nesse processo. Quanto
melhor for o processo, melhor será o projecto, porque todos se
sentirão seus proprietários, igualmente envolvidos e
responsabilizados.

Não é tarefa muito fácil conceber um tal processo. Não chega


pôr professores a falar sobre o que gostariam de fazer nas suas aulas
ou mesmo na escola. A tendência seria a de aceitar o imediato como
percepção do presente e partir daí em direcção ao futuro. O contrário,
todavia, deve acontecer. Se bem que o passado seja importante como
referencial, é o apelo do futuro que deve conduzir a construção de um
presente cada vez melhor. A visão da escola ideal deve-nos servir de
horizonte de desenvolvimento, afectando, por consequência, a sua
arquitectura organizacional, académica e etológica. De certo modo, é

65 Senge, Peter M. (1993). The fifth discipline. London: Century Business, p. 154.

90
esta a visão profética da escola: ser um laboratório hoje, do mundo
melhor que queremos construir.

Esta visão construtivista duma realidade emergente pressupõe


uma escola que se percebe como um sistema completamente aberto,
eminentemente dinâmico e liderado democraticamente. A liderança
numa democracia deve ser firme sem ser dogmática, deve apontar
para horizontes sem precisar roteiros, deve ser uma vanguarda que
se desdobra e afirma no seguir. Quer isto dizer, que a liderança de
uma escola tem de ser sensível não só aos apelos do futuro, mas
também às percepções de todos os seus agentes, especialmente dos
mais fracos. Se se diz que uma organização é tão forte como o mais
fraco dos seus elementos, também sabemos que as condições para o
desenvolvimento são muito menores se se nivelar tudo por baixo. É
preciso, por isso, conceber um processo que desafie os mais
visionários ao mesmo tempo que sustenta e desenvolve as
insuficiências dos mais fracos. Técnicas de trabalho e de
aprendizagem cooperativa, como o trabalho em equipa, parecem
boas propostas, porque reforçam e exigem o contributo de cada um
dos membros, capitalizam as suas maiores valências e enfocam as
energias no processo em curso e não propriamente no produto. Daí
que processo seja mais importante que produto. Por outras palavras,
um bom processo deverá resultar num bom produto. O inverso já não
me parece igualmente razoável.

A construção de um projecto educativo tem de ocorrer num


ambiente de liderança esclarecida e de cooperação estruturalmente
aberta. O processo sistémico de elaboração de um projecto educativo
que proponho é fruto da experiência, herdeiro de muitas outras
abordagens, e tenderá naturalmente a evoluir e a adaptar-se às
realidades em que servir de matriz. No fundo, é uma grelha cujo
preenchimento implica não só a participação de todos os elementos
da escola, mas o repensar dessa mesma escola numa perspectiva de
mudança sistémica.

O processo sistémico desenvolve-se ao longo de cinco domínios


principais, como indicado na seguinte grelha:

Metas mediações objectivos Alvos para Mudanças


sistémica sistémicas operacionais este ano sistémicas
s
1- 1.1- 1.1.1- 1.1.1.1- 1A-

Importa pensar a escola como um sistema e não como um


acoplamento de unidades regido por um plano. Parte-se da visão
sistémica da escola para a definição de objectivos concretizadores e
regressa-se, na fase final, à visão sistémica. É evidente que o
princípio e o fim deste processo não poderão ser meras repetições.
Pelo contrário, enquanto que Metas Sistémicas apontam para
91
horizontes de desenvolvimento, as Mudanças Sistémicas tenderão ser
pré-visões (e não previsões mecanicistas) do que poderá ser a escola-
futura após ter vivido o projecto educativo.

Sem querer definir rigidamente cada um destes domínios ou


processos, é imprescindível, no entanto, relacionar estes conceitos e
processos de modo a possibilitar a formulação coerente de um
processo de construção de um projecto educativo. Assim:

metas sistémicas – Relacionam-se com os grandes horizontes de


desenvolvimento da escola, entendida como um sistema aberto.
Definem a imagem do que deve ser a escola aquando da
execução plena do projecto educativo. As metas sistémicas são
determinadas por certos consensos, como sejam uma visão
comum do que deve ser a escola dentro de 5 anos, modelos
prováveis do que deverá ser a escola, a comunidade em que
está inserida, a sociedade, num futuro a médio prazo, etc. As
metas sistémicas devem ser definidas pelo Conselho
Directivo/Director e pelos Adjuntos. Numa segunda fase, os
outros órgãos gestores da escola poderão rever e acrescentar
algumas metas, mas sempre de comum acordo com o órgão
executivo da escola.

mediações sistémicas – Relacionam as Metas Sistémicas com a sua


implementação no sistema. Definem o impacto que essas
metas terão nos diferentes subsistemas da escola, como sejam,
nas pessoas e nos processos. As mediações sistémicas devem,
também, ser definidos pelo Conselho Directivo/Director +
Adjuntos. Numa segunda fase, os outros órgãos gestores da
escola poderão rever e acrescentar algumas mediações, mas
sempre de comum acordo com o órgão executivo da escola.

Objectivos operacionais – Relacionam-se com as acções/processos


que terão de ocorrer para que os Objectivos Sistémicos possam
ser implementados. Estas acções/processos deverão ser
definidas tendo em conta a duração do Projecto Educativo, não
devendo pautar-se por nenhuma inquietação imediatista. Os
Objectivos Operacionais deverão ser definidos pelo Conselho
Pedagógico, ou por grupos mais alargados de professores,
alunos e pais. O Conselho Directivo/Director poderá rever e
acrescentar alguns objectivos operacionais, mas sempre de
comum acordo com os outros órgãos de gestão escolar.

Alvos para este ano – Os Alvos não têm nada a ver com o Plano de
Actividades da Escola. Os Alvos referem-se a acções ou
processos de desenvolvimento que deverão ter lugar em cada
ano de vigência do Projecto Educativo. Este domínio deverá, por
isso, ser elaborado anualmente, após uma avaliação cuidada e
participada dos resultados da implementação dos Alvos em

92
cada ano de vigência do Projecto Educativo. A avaliação deverá
ser feita por todos os órgãos de gestão da escola. O Conselho
Directivo/Director será responsável pela elaboração do
documento final, que terá, por sua vez, de ser aprovado pelos
outros órgãos de gestão.

Mudanças sistémicas – A partir da imagem/visão do que deverá ser a


escola dentro de 5 anos, e das acções e processos a efectuar,
deverão ser antevistas algumas das transformações por que a
escola terá de passar para que as Metas Sistémicas se realizem.
Não se trata aqui de prever e de determinar o futuro, mas de
perceber o processo de transformação da escola enquanto
sistema.

Temos usado um processo semelhante no colégio em que


trabalho e servir-me-ei de alguns extractos do seu projecto educativo
para exemplificar um possível conteúdo da grelha:

Metas mediações objectivos Alvos para Mudanças


sistémica sistémicas operacionais este ano prováveis
s
2.0 2.1 2.1.1 2.1.1.1 2A
Centrar a Desenvolver Promover o Alargar o Professores
vida do uma conhecimento planeament e alunos
CLIP no abordagem através da o desenvol-
fenómeno holística do integração de interdiscipli vem uma
da conheciment disciplinas nar. maior
aprendiza o. através do compreensã
gem. currículo. o da unidade
do
conheciment
o e aplicam-
na melhor
no ensino e
na
aprendizage
m.
2.1.1.2 2B Os
Promover o alunos
trabalho desenvolve
mais eficaz m uma
dos maior auto-
professores confi-ança e
em equipa. tornam-se
melhores
aprende-
dores,
investigado-

93
res e
resolvedores
de
problemas.
2.1.1.3 2C O CLIP
Envolver os desenvolve
alunos no uma maior
planeament base de
o curricular. recursos.
2.1.1.4
Desenvol-
ver as
competên-
cias dos
profes-
sores na
apren-
dizagem
baseada
nos
conceitos
(Concept-
based
learning).
2.1.1.5
Desenvol-
ver as
competên-
cias dos
profes-
sores na
apren-
dizagem
baseada na
problemati-
zação
(Problem-
based
learning).

94
Metas mediações objectivos Alvos para Mudanças
sistémica sistémicas operacionais este ano sistémicas
s
2.2 2.2.1 2.2.1.1
Desenvolver Estimular Desenvol-
nos projectos de ver
professores investi-gação competênci
e alunos e de aprendi- as de
uma atitu-de zagem trabalho
de cooperativa. indivi-dual
investigação e em
acerca do equipa.
conheci-
mento.
2.2.2 2.2.2.1
Melhorar os Ligar pela
recursos dos www as
media. bibliote-cas
das Lower e
Upper
Schools.
2.2.2.2
Providen-
ciar
formação
suficiente e
bem
desenvolvid
a.
2.2.3 Mudar 2.2.3.1
os caminhos e Estimular o
os méto-dos uso de
de atingir os várias
objectivos de abordagens
aprendi- de
zagem. resolução
de
problemas,
dado que
não uma só
maneira
correcta.
2.2.3.2
Aplicar
metodologi
as de
ensino e de
aprendizag

95
em
baseadas
na Teoria de
Inteligência
s Múltiplas,
e nas de
aprendizag
em
baseada
nos
conceitos e
na
problematiz
ação.
2.2.4 Centrar 2.2.4.1
o CLIP na Promover a
problemática aprendizag
do em
conhecimento, individual e
fazendo com cooperativa
que todos os .
seus agentes
(alunos,
professores,
pais, etc.)
sejam sujeitos
dos seus
processos
individuais e
comuni-tários
de aprendiza-
gem.

96
Metas mediações objectivos Alvos para Mudanças
sistémica sistémicas operacionais este ano sistémicas
s
2.2.4.2
Fazer com
que todos
os
membros
da co-
munidade
escolar se
sintam res-
ponsáveis
pelo
sucesso dos
seus
processos
indivi-duais
e comuni-
tários de
aprendizag
em.

Como projecto que é, um Projecto Educativo tem de partir para


metas sistémicas e não partir de conjunturas imediatas. Por outras
palavras: um Projecto Educativo tem de ser abordado a partir de
horizontes de desenvolvimento, consensualmente compreendidos, e
daí aproximar-se do presente. Poderá perguntar-se: e o passado?
Onde é que está o passado com toda a sua riqueza experiencial?
Parece-me evidente que o passado está na base do horizonte de
desenvolvimento que, como comunidade, conseguimos perceber. O
passado é, por assim dizer, um saber implícito no presente, não tanto
um saber a propor como matriz.

O conhecimento como construção social não pode nem deve


viver do passado, mas partir do apelo do amanhã. É assim que a
ciência avança. É disso que vive a poesia. É para isso que devem
existir sistemas educativos.
Gertrude Stein66 disse-o muito melhor nas suas últimas palavras: Qual
é a resposta? (Silêncio) Nesse caso, qual é a pergunta?

66Citado por Ferris, Timothy (1997). The whole shebang. New York: Simon &
Schuster, p. 285.

97
Uma ética para a acção educativa

Sou daqueles que concebem a acção educativa como a


construção do mundo. Nem mais, nem menos. A construção do
mundo, ou mesmo de qualquer coisa, pressupõe acção: pressupõe a
capacidade de projectar uma realidade, de agir sobre esse projecto,
de mediar essa acção pela vontade reflectiva. A realidade surge,
assim, de um diálogo constante, e nem sempre pacífico, entre o
projectar, o fazer e o reflectir. Sabemos que o acto de projectar
afirma a nossa capacidade de sonhar, de visualizar a excelência, e
vive de uma certa antecipação da realidade desejada, aquela tensão
que existe entre o já e o ainda não. Sabemos que o fazer traduz a
concretização mecânica da leitura possível de um projecto. Sabemos
que a reflexão autentica e viabiliza esse projecto em construção.
Acção educativa define-se, assim, como um acto humano de
transformação do mundo, da realidade.

Acontece, porém, que nem sempre há diálogo entre estas três


variáveis. A acção, neste caso, a acção educativa, resume-se quantas
vezes a meras actividades, senão mesmo activismo, que pouco
valem, e a ética, a mera laboração de valores. Coelho Rosa 67 diz-nos
que:

A acção humana determina-se pela sua capacidade


de produzir sentido, isto é, de ser definidora dos seus
próprios fins. (…) São critérios éticos que permitem
determinar, entre as acções do homem, aquelas que são
mais próximas do que é acção humana e que, por
conseguinte, devem ter consideração hierarquicamente
superior. (…) é o critério ( de , julgar, decidir) que,
caso a caso, nos faculta o sentido para todos os actos.

Para além dos critérios éticos, uma acção educativa pauta-se,


também, sempre por valores. Se os critérios dão sentido ao acto
humano, os valores dão-lhe substância. Todavia, todos nós sabemos
da grande dificuldade que sentimos ao tentar definir quer os critérios,
quer os valores. Essa dificuldade traduz-se quantas vezes na dúvida
acerca de tantas coisas, essa dúvida que no dizer de Kierkgaard 68 é
um desespero do pensamento, essa dúvida que se levanta pela
dificuldade, por vezes mesmo incapacidade, que sentimos em
responder à catadupa diária e esmagadora de solicitações, de
escolhas, de tomadas de posição.

67 Coelho Rosa, Joaquim (1997). Ética e profissão docente. (Inédito), p. 8.


68 Kierkgaard, Søren (1986). Either / Or. New York: Harper & Row, Publishers, p.
200.

98
Por outro lado, um mundo cada vez mais difícil de compreender
e que cada vez exige mais de nós como pessoas e como sociedade,
envolve-nos numa sensação de fragilidade ansiosa, por vezes, mesmo
numa sensação de impotência que tentamos dissimular. Parece-me
que o problema que se nos põe agora já não é propriamente um
problema de dúvida e, por consequência, um sentimento de
desespero, como diz Kierkgaard. A dúvida pressupõe a possibilidade
de uma escolha: crer em Deus ou não crer, casar ou não, ter filhos ou
não ter, ir para a universidade ou não ir, pactuar ou não com um
sistema injusto. A dúvida pressupõe também a possibilidade do ser
humano controlar o contexto, a conjuntura em que se encontra. Por
isso Kierkgaard69 dá tanta importância à escolha e ao momento da
escolha.

O problema que agora se levanta é bastante mais complexo. O


contexto em que a dúvida se levanta é o contexto dum real contido,
definível, determinado. É um contexto em que soluções ainda podem
ser aventadas, porque a existência ainda tem contornos; ainda
existem âncoras cuja função principal ainda é a de segurar o barco no
momento da chegada. Uma realidade emergente, todavia, não
propriamente pontos de chegada, mas única e simplesmente pontos
de partida. Se assim é, a nossa vida não é constituída por uma série
de viagens definidas, mas por uma viagem que se define pela
descontinuidade, pela incerteza, pelo caos, pela complexidade. E o
que estou aqui a apresentar não são abstracções filosóficas, mas
ciência física, matemática, biológica. A realidade pós-quântica é
assim mesmo, e sabemos hoje através das ciências do caos, que a
realidade da mecânica clássica nunca foi outra coisa.

A dúvida é, assim, substituída pela incerteza e o desespero pela


angústia. Ora acontece que a angústia é o contraponto da
esperança, enquanto que o desespero o é da paixão. E enquanto
estes dois últimos são fenómenos passageiros, a esperança e a
angústia não o são. A distinção que aqui faço entre dúvida e
incerteza é uma distinção contextual. Enquanto que o contexto da
dúvida é definido por uma situação momentânea de incerteza, o
contexto que aqui apresento para a incerteza é o contexto do real
indeterminado, tal e qual ele nos é apresentado pela física quântica,
pela matemática, pela biologia. Stuart Kaufman70, biólogo e
matemático e um dos proponentes da teoria da complexidade, diz o
seguinte:

Nós nunca poderemos prever os ramos exactos da


árvore da vida, mas podemos descobrir leis poderosas
que predigam e expliquem a sua forma geral. Eu espero

69 Kierkgaard, Søren (1986). Either / Or. New York: Harper & Row, Publishers, p.
200.
70 Kaufman, Stuart (1995). At home in the universe. New York: Oxford University
Press, p. 23.

99
por essas leis. Eu tenho ainda a audácia de ter a
esperança de que nós já podemos começar a esboçar
algumas delas. À falta de uma melhor frase geral, eu
chamo a estes esforços a busca por uma teoria da
emergência.

Popper71, por sua vez e como já vimos, define a realidade como


emergente: parcialmente causal, parcialmente probabilística e
parcialmente indeterminado.

Como agir perante a incerteza duma realidade emergente? Se


perante a dúvida há a possibilidade da escolha, que escolhas serão
possíveis num contexto incerto, caótico (aqui usado no seu sentido
científico), descontínuo, complexo? Qual o papel da âncora como
metáfora da esperança e, por consequência, da angústia? Se na
percepção que temos hoje da realidade, qualquer ponto de chegada
não é mais do que uma possibilidade, o que quer dizer, um novo
ponto não sequencial de partida, será que o papel da âncora se
define por agarrar o fundo no meio de um mar imenso e sem
contornos definidos? Será o papel da âncora o de nos conduzir ao
imobilismo no meio de um oceano que desconhecemos? Não será a
tentação parar o barco e fazer dele uma realidade à nossa medida,
isto é, certa, previsível, determinada?

Se bem que as ciências nos afirmem que o determinismo é


também incerto, parece-me que o usar a âncora como um ponto de
fixação é a atitude, a escolha, que muitas vezes fazemos. Ignoramos
a realidade e criamos um mundozinho todo nosso, a realização de um
deus ex machina. As escolas são isso muitas vezes, como quase
sempre o são os muitos movimentos fundamentalistas e fanáticos
que, por todo o lado, proliferam.

Talvez seja por isso que hoje se fala tanto de valores e de


educação moral. Mas pergunta-se: que valores e que educação?
Que mundo queremos construir e transformar? O mundo como o
percebemos hoje, ou um dos muitos mundozinhos feitos à medida das
nossas insuficiências? Que educação queremos? Uma educação de
valores? Uma educação para os valores? Uma educação com
valores? Cada uma destas três propostas pressupõe uma visão
particular do mundo e algumas delas poderão ser mesmo
incompatíveis.

É claro que no meio desta tentativa de gerir o imediato e de lhe


dar algum contexto moral, ou pelo menos moralizante, esquecemos
quantas vezes os princípios, os valores, os critérios essenciais da
acção humana, da acção educativa. Esquecemos que a construção
de um qualquer projecto tem a ver com uma concepção do hoje como

71 Popper, Karl R. (1988). O universo aberto. Lisboa: Publicações Dom Quixote, p.


129.

100
o hoje-futuro, o hoje-amanhã, o hoje-esperança, e nunca como o hoje-
tempo-parado, o hoje-imediato, o hoje-sempre-ontem. Miguel Torga 72
que pensou bem sobre estas coisas, diz-nos num dos seus belos
poemas, intitulado Eis-nos aqui:

Eis-nos aqui, sentados à lareira


do desespero.
O borralho ideal vai-se apagando,
Enquanto o vento da realidade
Sopra lá fora.
É esta a nossa hora
De amor
ou de traição?
Porque fechamos todas as portas
do coração,
entanguidos de frio e de terror?
Se o temporal entrasse,
Talvez a labareda se ateasse
E nos desse calor …

No decurso da nossa história como espécie, raras vezes temos

deixado entrar esse temporal da realidade no nosso intelecto e no

nosso coração, para usar as palavras do poeta.

1. A ética da inacção educativa, ou a vida como torre de menagem

O regime patriarcal que definiu a sociedade medieva, inseriu a


concepção da pessoa humana no enunciado de um emaranhado de
relações, em que o conceito de liberdade só tinha porventura sentido
na medida em que definia algum do relacionamento de um grupo
social hierárquico com outro. A dignidade da pessoa humana definia-
se pela dignidade do grupo, sobretudo, pela dignidade da pessoa que
encimava a pirâmide social. Era esse o critério fundamental dessa
situação histórica.

A relação entre as diferentes classes de pessoas definia-.se pela


relação de poder sobre que as dividia entre opressores e oprimidos.
Essa situação de opressão justificava-se, por parte dos opressores,
como uma situação de direito, em que o privilégio e a propriedade
eram motivações principais, e por parte dos oprimidos, como um
fatalismo, uma determinação. Se englobarmos tudo isto na
religiosidade do homem medievo, encontramos uma situação que
aprisiona tanto os opressores como os oprimidos. Paulo Freire 73
explica esta situação da seguinte maneira:

72 Torga, Miguel (1974). Cântico do homem. Coimbra: Edição do Autor, p. 47.


73 Freire, Paulo (1994). Pedagogia do oprimido. São Paulo: Editora Paz e Terra S/A,
pp. 48, 49.

101
Uma destas, (…) é a dualidade existente dos
oprimidos que, “hospedando” o opressor, cuja “sombra”
eles “introjectam, são eles e ao mesmo tempo são o
outro. (…) Quase sempre este fatalismo está referido ao
poder do destino ou da sina ou do fado – potências
irremovíveis – ou a uma destorcida visão de Deus.
Dentro de um mundo mágico ou místico em que se
encontra, a consciência oprimida, sobretudo a
camponesa, quase imersa na natureza, encontra no
sofrimento, produto da exploração em que está, a
vontade de Deus, como se Ele fosse o fazedor desta
“desordem organizada”.

Os valores que contavam eram os da obediência cega, da


lealdade total, do conformismo domesticante. Esses valores eram
ensinados, transmitidos, como era ensinada a doutrina,
completamente destorcida, daquilo a que vulgarmente se chama, o
evangelho da consolação. Havia, pois, uma educação de valores, só
que os valores a transmitir eram definidos por quem detinha o poder.
Em situações como esta, e algumas ainda existem, não podemos falar
de acção educativa. O que há é inacção educativa, uma vez que o
que interessa é a manutenção do status quo, conseguido através do
desenraizamento da pessoa humana, da sua descontextualização, da
sua inserção num real contido e formatado, em que a torre de
menagem permanece como o símbolo da realidade e o próprio
horizonte do real.

2. a ética da actividade educativa, ou a vida como uma


encruzilhada

Foi contra esta situação que os filósofos e os pensadores


políticos dos séculos XVII e XVIII se levantaram. Se o sistema
medieval considerava o ser humano como parte inclusa e imersa
numa estrutura social sincrética, eivada duma religiosidade que
tocava a magia, a situação nova tinha forçosamente de libertar o ser
humano desse sincretismo social e mágico. O novo homem era
definido em abstracto, como o modelo, o centro, o repositório das
grandes virtudes até aí atribuídas à organização social.

Segundo o individualismo, a nova ideologia dominante, a


sociedade não era mais do que o reflexo do ser humano, do homem
em particular: o conjunto de homens livres, autónomos, social e
moralmente separados uns dos outros. Quer isto dizer, que o ser
humano só era livre na medida em que se separava de todos ou
quaisquer laços que o pudessem fazer dependente duma sociedade
qualquer. Com o advento da ideologia individualista, o critério da
acção evoluiu: o ser humano passou a ser concebido como um
indivíduo e já não como um ser imerso numa realidade sincrética.

102
O paradigma mecanicista, saído da mecânica newtoniana, veio
fortalecer esta visão. Conformou-se assim toda a realidade ao
modelo da máquina: cada pessoa uma peça, cada acção um
movimento, o encadeado de movimentos em uníssono, a ordem.
Uma sociedade ordenada era uma sociedade pacífica, rica, útil, moral.
Urgia, portanto, controlar a vontade para que esta por sua vez
dominasse o resto do ser humano. Definiu-se a pessoa humana, pré –
ou sem escola, como uma tábua rasa; o único conhecimento válido
era aquele que a escola transmitia. Como numa máquina, o
fenómeno B procedia sempre de A e C era sempre o resultado de
A+B. O conceito da causalidade linear tudo podia explicar.

O sucesso deste binómio, constituído pela filosofia/psicologia do


individualismo e pela percepção mecanicista da realidade, foi imenso.
Foi uma época de grandes triunfalismos, porque também foi uma
época de grandes certezas. Da quase omnipotência da ciência à
tremenda explosão e progresso das tecnologias, o período que
medeia entre os séculos XVII e XIX, século este que se prolonga, pelo
menos, até ao primeiro quartel do século XX, personifica, talvez, o
período de maior intervenção e visibilidade da Europa no mundo. É o
tempo dos grandes ismos: dos nacionalismos, dos imperialismos, dos
cientismos, do liberalismo, do marxismo, do comunismo, do
capitalismo, do socialismo, do ateísmo, do agnosticismo, do
darwinismo, do heroísmo, e por aí fora.

Parecia que, finalmente, o homem liberto do jugo das


sociedades medievais iria resolver de uma vez por todas os grandes
problemas da humanidade. Os valores que faziam a matriz da cultura
do século, como sejam a honestidade, o trabalho, a poupança, o
patriotismo, aquelas qualidades heróicas que tão bem sobressaem
do poema If, de Rudyard Kipling, eram valores universalmente aceites
na Europa e inculcados em milhões de seres humanos por esse
mundo fora, através das políticas colonialistas e, também, de muito
movimento missionário. Esse messianismo da raça brança europeia,
esse white man’s burden, essa carga do homem branco, teve
colaboradores à altura através, sobretudo, do papel cada vez mais
assertivo dos Estados Unidos na cena mundial. A ética, no entanto,
que presidia à forma(ta)ção dos jovens pertencentes à Europa e às
Américas brancas e poderosas não era a mesma que servia de base à
formação de todos os outros. Para esses, a situação que se engendra
é em tudo semelhante à que caracterizou a Idade Média europeia.
Há, assim, dois critérios que se sobrepõem e que pervertem a acção e
o ser humano. Se há seres humanos que se afirmam como indivíduos
– geralmente os brancos e os poderosos – os não brancos e os fracos,
os oprimidos, que são definidos como seres imersos na natureza,
cujas vivências não se inserem no tempo, e que, portanto, não têm
nem fazem história.

103
Se no sistema patriarcal medievo os valores eram impostos
directamente, com o individualismo a situação altera-se. Se o homem
considerado em abstracto é o repositório das virtudes e dos valores, o
homem-concreto, concebido agora como auto-suficiente e movido
pelos instintos naturais e pela razão, deveria ser despertado para os
valores que lhe eram inerentes e educado para atingir essa função
superior. A formulação da escola como uma máquina de formatação
de homens e de mulheres-modelo levou a que os valores fossem
considerados como uma das partes do currículo escolar que deveria
fazer do homem-concreto uma aproximação cada vez maior do
homem-abstracto-modelo. Daí que surgisse um sistema de educação
para os valores, aquilo a que se chamou a educação do carácter. As
história bíblicas, os grandes feitos dos heróis altamente seleccionados
e romanceados, os poemas que exortavam à prática individual de um
bem, de virtudes e de feitos definidos à partida, constituíram alguns
dos meios através dos quais se efectuou a educação para os valores.
Os valores surgiam como mais uma disciplina, ou pelo menos como
um objectivo distinto da formação, melhor ainda, da formatação dos
jovens. Tínhamos, assim, não acção educativa, acção transformadora
da pessoa humana e do seu mundo, mas actividade educativa,
actividade que não nascia de um projecto, mas de um plano, e cujo
objectivo não era propriamente o desenvolvimento, mas o progresso
linear do ser humano, perfeitamente prescrito, previsível e medível.
Muitas das práticas educativas que ainda seguimos têm como critério
e valores esta concepção do ser humano e do mundo. Quantas vezes
não estrangulamos a realidade que deveria ser possível numa
realidade pré-definida e, portanto, sem potencial. Quantas vezes não
reduzimos a acção humana, a acção educativa, a meros actos
implementadores de objectivos, por vezes bem intencionados, mas
sempre redutores do horizonte possível dessa mesma raça humana.

Os anos que precedem a Segunda Guerra Mundial vêm pôr em


causa muito desse edifício que começara a ser construído cerca de
dois séculos antes. Por um lado, o evolucionismo de Darwin abala
profundamente a rigidez mecânica das coisas e da moral. Depois,
como Thomas Lickona74 explica:

A filosofia do positivismo lógico, (…) afirmou a


distinção radical entre factos (que podiam ser provados
cientificamente) e valores (que o positivismo considerava
como meras expressões do sentimento, não verdade
objectiva). Como resultado do positivismo, a moralidade
foi relativizada e privatizada – feita matéria de juízo de
valor pessoal, não um assunto para debate público e
transmissão através das escolas.

74 Lickona, Thomas (1993). The return of character education. Educational


Leadership, 51, (3), p. 6.

104
Nos anos vinte, uma explosão de criatividade e de um laisser-
faire, laissez-passer, avassala as grandes capitais europeias. Essa
explosão tem causas múltiplas: os efeitos sociais da descoberta da
teoria da relatividade de Einstein e da realidade quântica, mais tarde
sintetizada no princípio d incerteza de Heisenberg, o desejo de
experimentar a plenitude da vida depois dessa hecatombe horrível
que foi a Primeira Grande Guerra, uma guerra em que não se
degladiaram ideologias, mas que surge como uma verdadeira
tragédia, o abandonar dos espartilhos que caracterizavam a rigidez
moralista da era vitoriana.

Os hábitos corrompidos, a moral banalizada, a religião quase


peça de museu, levou a que muitos pensadores, poetas, dramaturgos,
novelistas, políticos até, começassem a falar numa crise moral. Tudo
isso parece culminar na perversidade moral, filosófica, religiosa,
política e social que definiu os movimentos totalitários dos anos trinta
e que de certo modo levaram a essa hecatombe maior que foi a
Segunda Guerra Mundial. Nesta guerra, todavia, jogou-se o futuro de
toda a tradição clássica europeia. Jogou-se a sobrevivência de
horizontes éticos, morais, religiosos, políticos e sociais que
constituíam a matriz da civilização ocidental. A destruição do
nazismo e do fascismo pareceu restituir às nações da Europa e da
América o sentido verdadeiro dos seus valores essenciais e a
necessidade de os preservar e desenvolver. Só que a conjuntura
social, política e cultural não permitiu o desenvolvimento pleno
desses valores. Para já, continuavam a coexistir sistemas socio-
económicos muito parecidos com o feudalismo medieval. O próprio
individualismo nunca se materializou completamente como um
sistema social e político, porque formas tradicionais de sociedade se
mantiveram vivas. Teve, todavia, uma influência enorme na cultura,
na educação, no pensamento, na percepção do ser humano, da
sociedade, do Estado.

Essa influência atingiria a sua plenitude com o personalismo, ou


subjectivismo dos anos sessenta. Se por um lado se declara guerra
às injustiças e às opressões, por outro, muitas dessas tomadas de
posição não são propriamente motivadas por um acordar da
consciência e por um sentimento de solidariedade para com os mais
desprivilegiados, mas como uma afirmação das virtudes tradicionais e
racionalistas do individualismo. É a arena em que surge em toda a
sua plenitude a figura do middle class radical, o radical de classe
média, hoje confortavelmente instalado no establishment que jurara
destruir. Além disso, os anos sessenta apregoaram e legitimaram o
hedonismo a todo o custo, a gratuidade do prazer, a relativização
completa da moral, o descomprometimento para com as normas
sociais. Fugir ao recenseamento e desertar, por exemplo, foram
considerados como actos meritórios, morais mesmo,
independentemente da justiça ou não das guerras em questão. As
experiências do Vietname e das guerras coloniais, sobretudo as

105
levadas a cabo pela França e por Portugal, a sua falta de justificação
moral e a sua futilidade final, pareceram dar razão a todos aqueles
que se recusaram, pela fuga, a participar nelas. Só que uma atitude
verdadeiramente ética teria possivelmente levado esses mesmos
jovens a lutar ao lado daqueles considerados como oprimidos. Tal
tomada de decisão teve muitos poucos adeptos. É esta geração, a
minha geração, que está agora no poder, e é visível em tantos dos
nossos líderes a nível mundial, essa falta de fibra, de estrutura
interna, e de coerência ética e moral.

A ideologia individualista nascida no triunfalismo acabava no


muro das lamentações. O Presidente Carter dos Estados Unidos, um
homem com uma sólida formação ética, moral e religiosa, teve a
coragem de apontar a fraqueza e a incongruência ética e moral a que
a civilização ocidental havia chegado. Pela televisão, ele falou a todo
o país da doença moral, ele usou a palavra malaise, de que os
Estados Unidos e todo o Ocidente sofriam, e apelou para a
necessidade do desenvolvimento de uma consciência moral, mas em
termos universalistas e comunitários. Os americanos, todavia, não
estavam preparados, nem queriam assumir essa responsabilidade
acrescida. Foi, talvez, uma das grandes causas porque perdeu es
eleições. Julgaram-no um mau presidente. Hoje, no entanto, é o
maior, por assim dizer, um paradigma, do que deve ser um ex-
presidente americano.

Nos anos setenta, surgem dois novos modelos de educação


para os valores, um deles completamente filiado ainda na ideologia
individualista, o movimento pela clarificação de valores, outro
dividido entre a ideologia individualista e a ideologia comunitarianista
que se avizinhava, a metodologia Kohlbergiana de desenvolvimento
moral.

O método da clarificação de valores parte do pressuposto


individualista de que todas as crianças têm valores próprios e
suficientes que precisam de ser clarificados para que melhor possam
orientar as suas vidas. A clarificação de valores fazia-se através de
numerosos exercícios que pretendiam levar o aluno a pensar sobre os
seus próprios valores e que deixavam ao professor a tarefa de
facilitador que mantém um clima de não-directividade, não
julgamento, total neutralidade, de modo a que cada participante se
sinta totalmente livre de se assumir como é 75. Politicamente, este
método obteve uma grande popularidade, pois a sua neutralidade era
bem vista quer por pais conservadores, quer por mais liberais, quer
pelos professores que não se sentiam responsabilizados. O método
enfermava, todavia, de alguns dos piores males do individualismo.
Pedro da Cunha76 faz a seguinte análise:

75 Cunha, Pedro d’Orey da (1996). Ética e educação. Lisboa: Universidade


Católica Editora, p. 204.

106
O método, portanto, minimiza a análise racional da
actividade humana e, como consequência, não pode
deixar de cair num relativismo profundo (…). Todos os
valores são iguais: é meu gosto, a minha idiossincrasia
que determinam a sua hierarquia. A única coisa que
peço é que respeitem o meu “posicionamento” e eu, em
troca, prometo tolerância para com os outros. A
tolerância acaba por ser o único valor absoluto. Não se
vê como é que um jovem assim educado na clarificação
de valores se possa indignar com um Hitler, ou com um
Watergate, ou com Apartheid ou com qualquer outro tipo
de escravatura moderna.

Confesso que, como educador e gestor educacional, me insurgi


sempre contra esta metodologia e faço minhas as palavras do Pedro
que aqui transcrevi.

Lawrence Kohlberg, que conheci bem e com quem tive o prazer


e o privilégio de conviver, foi durante muito tempo o guru da
educação moral. O seu Centro de Educação Moral, na Universidade
de Harvard, era como que uma Meca a que acorriam todos aqueles
que se preocupavam com a derrapagem das escolas e da sociedade
em relação à ética e às referências morais desejadas.

Para Kohlberg77, a educação do carácter, através do que ele


chamava saco de virtudes, não fazia qualquer sentido:

A resposta tradicional à pergunta “O que é a virtude?” é a


enumeração de uma lista ou “saco” de virtudes. (…) O
problema da abordagem do “saco de virtudes” é que
equaciona o ensino da virtude com endoutrinação da
moralidade convencional ou social. (…) De uma forma
mais elaborada, a teoria das virtudes assenta
usualmente no relativismo social (…).

Kohlberg insurge-se contra esse relativismo que insere a clarificação


de valores e a educação do carácter, não num processo de
desenvolvimento, mas, quando muito, num processo de gestão do
imediato. A ética e a moral são mais duas de muitas contingências.

Para Kohlberg78, a justiça tem a primazia de todos os princípios


morais e é definida pela regra áurea: Não faças aos outros aquilo que
76 Cunha, Pedro d’Orey da (1996). Ética e educação. Lisboa: Universidade
Católica Editora, pp. 204, 205.
77 Kohlberg, Lawrence (1978). The moral atmosphere of the school. In Scharf,
Peter (Ed.). Readings in moral education. Minneapolis, MN: Winston Press, Inc.,
p. 2.
78 Kohlberg, Lawrence (1975). Stages of moral development as a basis for moral
education. Cambridge, MA: Harvard University – Center for Moral Education, p.
64.

107
não queres que te façam a ti. A liberdade, a igualdade e a
reciprocidade são componentes essenciais do conceito de justiça. Um
programa de educação moral kohlbergiano 79 deve centrar-se na
discussão de dilemas morais, reais ou hipotéticos. Tais
procedimentos formam –- como ele disse – um currículo intelectual
explícito de educação moral. A teoria de desenvolvimento moral de
Kohlberg80 não ocorre só a nível cognitivo, a vivência experiencial é
de importância vital, e nesta vivência é fundamental que as crianças
aprendam a assumir o papel do outro, tomando consciência dos
pensamentos e sentimentos, etc. Esse assumir do papel do outro,
mesmo que inclua aspectos afectivos, é primordialmente um acto
intelectual em que o que conta é a criação de uma situação de
justiça, baseada no respeito pelos direitos uns dos outros.

Por outro lado, Kohlberg não concebe uma metodologia de


desenvolvimento moral divorciada do contexto social do aluno. Para
ele81, um tal currículo não devia existir em abstracção, todavia, ele
deveria existir como um reflexo do currículo oculto da vida da escola.
(…) O ensino da justiça requer escolas justas. E assim, Kohlberg 82
junta-se àqueles que comungam da visão profética da escola, na
medida em que a escola deve projectar nas suas estruturas o modus
operandi, o desejado, mas utópico, mundo moral do futuro. O
corolário de tudo isto é que quanto mais for o nível de justiça
institucional, maior será também a compreensão da justiça.

Kohlberg83 também não aceita a neutralidade de valores ou da


educação, mas só aceita para a escola o papel de agente de mudança
dentro dos domínios restritos da justiça. Ele dá primazia ao
desenvolvimento moral do aluno como indivíduo. Assim, no seu
entender, a teoria de desenvolvimento moral como a educação do
carácter que a antecedeu, continuam a pôr o indivíduo numa
encruzilhada decisional, em que a escolha, de preferência a escolha
moral, continua a ter um papel preponderante. A grande diferença é
que, enquanto a educação do carácter assenta na inculcação de
valores relativos, a metodologia de desenvolvimento moral de
Kohlberg fundamenta-se na universalidade do princípio da justiça e do
desenvolvimento moral do aluno através de seis níveis, sendo que os

79 Kohlberg, Lawrence (1978), The moral atmosphere of the school. In Scharf,


Peter (Ed.). Readings in moral education. Minneapolis, MN: Winston Press, Inc p.
160.
80 Kohlberg, Lawrence (1975), Stages of moral development as a basis for moral
education. Cambridge, MA: Harvard University – Center for Moral Education pp.
31-32.
81 Kohlberg, Lawrence (1978). The moral atmosphere of the school. In Scharf,
Peter (Ed.). Readings in moral education. Minneapolis, MN: Winston Press, Inc
pp. 160, 161.
82 Kohlberg, Lawrence (1975). Stages of moral development as a basis for moral
education. Cambridge, MA: Harvard University – Center for Moral Education p. 2.
83 Kohlberg, Lawrence (1981). Essays on moral education: The philosophy of
moral development. San Francisco: Harper & Row, Publishers, p. 37-38

108
últimos são decididamente superiores aos primeiros. Tal postura é
decididamente não relativista84.

A preocupação demasiada com o desenvolvimento individual


das crianças, a concepção redutora do papel da escola como agente
de mudança social e política e o pendor intelectualista definem, por
sua vez, a matriz individualista da teoria de Kohlberg. A visão de
Kohlberg é também uma visão essencialmente masculina, como Carol
Gilligan85 demonstrou:

O criticismo que Freud faz ao sentido de justiça das


mulheres, vendo-o como um compromisso na sua recusa
de imparcialidade cega, reaparece não só no trabalho de
Piaget, mas também em Kohlberg. (…) Muito embora
Kohlberg afirme a universalidade da sua sequência de
níveis, os grupos que não foram incluídos na sua amostra
original raramente atingem os níveis mais elevados (…).
Proeminentes entre aqueles que assim parecem ser
deficientes em desenvolvimento moral quando medidos
pela escala de Kohlberg, estão as mulheres, cujos juízos
parecem exemplificar o nível três da sua escala de seis
níveis.

Ora a amostra original de Kohlberg, a partir da qual ele formulou toda


a sua teoria de desenvolvimento moral, era constituída por 84
rapazes brancos. O problema não parece surgir com a fundamentação
teórica, nem tão pouco com o pendor desenvolvimentista da sua
abordagem ao desenvolvimento moral das pessoas, mas sim com as
inferências, necessariamente derivadas duma amostra tendencial,
que definem estruturalmente cada um dos seis níveis propostos por
Kohlberg. Se bem que duma perspectiva ética pareça fazer todo o
sentido fundamentar uma teoria de desenvolvimento moral na
universalidade dos princípios da justiça (sobretudo se atendermos ao
actual estádio de desenvolvimento da espécie humana) e se bem que
as condições de irreversibilidade da progressão através dos níveis
afirmem a não relativização da teoria Kohlbergiana, a definição de
cada nível parece, por outro lado, não possuir a universalidade que é
reivindicada para a teoria como um todo. A formulação do mundo
kohlbergiano parece ser eminentemente masculina, pois faz derivar
da percepção da justiça e das formas de relacionamento manifesta
pelo macho (branco) da espécie, a matriz para toda a humanidade.
Gilligan86continua:

84 Kohlberg, Lawrence (1981). Essays on moral education: The philosophy of moral


development. San Francisco: Harper & Row, Publishers p. 126-127.
85 Gilligan, Carol (1982). In a diferent voice. Cambridge: Harvard University Press,
p. 18.
86 Gilligan, Carol (1982). In a diferent voice. Cambridge: Harvard University Press
p. 18.

109
A este nível (nível 3) a moralidade é concebida em
termos interpessoais e o bem é igualado ao ajudar e dar
prazer aos outros. Esta concepção de bem é considerada
por Kohlberg e Kramer (1969) como funcional nas vidas
de mulheres maduras na medida em que as suas vidas
acontecem no lar. Kohlberg e Kramer sugerem que só se
as mulheres entrarem na arena tradicional da actividade
masculina poderão reconhecer a inadequação desta
perspectiva moral e progredir como homens para níveis
mais elevados em que as relações estão subordinadas às
regras (nível 4) e as regras aos princípios universais de
justiça (níveis 5 e 6).
Aqui reside um paradoxo, pois as características
que definem o “bem” nas mulheres, o seu desvelo (care)
pelos outros e a sensibilidade às necessidades dos
outros, são as mesmas que as marcam como deficientes
em desenvolvimento moral. Nesta versão de
desenvolvimento moral, todavia, o conceito de
maturidade deriva do estudo da vida de homens e
reflecte a importância da individuação no seu
desenvolvimento.

A problemática levantada, e muito bem, por Carol Gilligan, é tão


velha como o mundo e tem muito a ver com uma educação com
valores. O mundo, o homem, a própria mulher, têm sido ao longo dos
tempos concebidos e narrados por homens como reflexo da sua
masculinidade. A matriz masculina define-se, em traços muito gerais,
pela importância que dá à existência e ao cumprimento de regras de
jogo (a maior parte das guerras têm tido como uma das suas
principais causas a infracção de regras), pela noção de poder sobre,
pela hierarquia, pela preponderância do cognitivo sobre o afectivo.
As próprias imagens de Deus chegam até nós eivadas de
masculinidade e a visão do Deus do poder é mais prevalecente que a
imagem do Deus do amor.

O problema não se põe tanto ao nível da sexualidade no


mundo, mas ao nível da hierarquia de poder que define a relação
entre os sexos. Esta hegemonia da masculinidade é quase geral em
toda a natureza macroscópica, mas já não parece que o seja ao nível
das partículas. Correndo o risco de um grande salto interpretativo,
poderíamos dizer que no mundo das partículas prevalece o conceito
de paridade.

Não há dúvida de que o mundo é masculino e que é feminino, e


que não é admissível qualquer diferenciação entre estas duas faces
da realidade. Enquanto que a face masculina aponta para a
necessidade do estabelecimento de regras de convívio e para o seu
cumprimento, a face feminina aponta para a necessidade de nos
responsabilizarmos uns pelos outros, de cuidarmos uns dos outros.

110
Da conjunção destas duas faces poderá surgir o estabelecimento
duma sociedade verdadeiramente interdependente. Kohlberg e
Kramer não parecem ter muita razão quando sugerem que o
desenvolvimento moral das mulheres passa pela sua masculinização.
Parece-me bem mais razoável afirmar que o desenvolvimento moral
de pessoas e sociedades passa, outrossim, pela descoberta por cada
homem da sua feminilidade, e da descoberta por cada mulher da face
masculina que a inteira.

A teoria de desenvolvimento moral de Kohlberg não falha na


sua articulação teórica. De facto, a justiça, quando definida pela
regra áurea, é um valor universal e absoluto, que inclui a noção
restrita kohlbergiana de desenvolvimento moral e a noção
complementar de Gilligan, que fala da necessidade de incluir o
cuidado, o desvelo, o care, nessa mesma articulação. O que em parte
falha é a sua implementação como pedagogia, isto é, a abrangência
relativa de critérios e mecanismos que definem o grau de
desenvolvimento moral de uma pessoa. Gilligan 87 propõe uma
síntese destas duas visões quando diz:

Assim como a linguagem da responsabilidade oferece um


imaginário das relações como uma teia para substituir o
ordenamento hierárquico que se dissolve com a chegada
da igualdade, assim a linguagem dos direitos sublinha a
importância de incluir na rede do desvelo (care) não
somente o outro, mas também o eu.

Kohlberg também não valoriza suficientemente a definição da


acção educativa como uma visão verdadeiramente transformadora,
em que a pessoa humana surge como sujeito cuja vocação e missão é
a transformação do mundo, da realidade. De outro modo, qualquer
teoria de desenvolvimento não tem qualquer sentido. Apesar das
críticas de que, logo desde o início, foi alvo, o contributo de Kohlberg
para a educação moral é tremendo. E se a sua metodologia pode
suscitar críticas, já a sua teoria de desenvolvimento moral e,
sobretudo, o seu conceito de comunidade justa, se bem que ainda
frágil e insuficiente, são contributos de valor incalculável para uma
compreensão maior desta problemática.

3. a ética do activismo educativo, ou jerry mcguire como


modelo de virtude

Confesso que raramente vou ao cinema, mas há tempos fui ver


um filme que andava muito na moda. Intitulava-se muito
simplesmente Jerry McGuire, e representa, diríamos que na perfeição,
a abordagem que nos anos 90 se está a dar à formação ética e moral
dos jovens. Incapazes de conceber a curto prazo um projecto ético

87 Gilligan, Carol (1982). In a diferent voice. Cambridge: Harvard University Press,


p. 173.

111
para a acção humana, educativa em particular, e mentalizados que
estão na necessidade de encontrar receitas a todo o custo, muitos
políticos e educadores dos nossos dias lançaram-se num activismo
frenético de definição de problemas e de esquematização de
respostas. Mas voltemos ao nosso filme.

Jerry McGuire personifica na perfeição o novo homem moral,


inserido num mundo politicamente correcto, feito à medida das
ansiedades da sociedade americana e, porque não, ocidental. É um
filme, portanto, gerado pelo imediato. É uma história que fala de
pessoas, de relações, de valores, de encaixamento de gente, de
relações e de valores em caixinhas perfeitamente reconhecíveis. O
filme, dentro da perspectiva de moralidade just-in-time que
caracteriza o ressurgimento da educação do carácter, tende a
identificar problemas morais da nossa sociedade e a apresentar uma
receita para os sarar. Assim, os problemas sociais identificados são
os seguintes: (1) o conceito material do sucesso; (2) a
desumanização do trabalho; (3) a dissolução dos costumes; (4) a
desagregação da família e o aparecimento de um número cada vez
maior de mães solteiras; (5) o relacionamento homem-mulher
baseado na performance hedonista; (6) o desaparecimento dos
valores típicos da ideologia individualista e da visão mecanicista do
mundo, como seja o da lealdade.

O contexto social em que estes problemas surgem tem as


seguintes características: (1) há um número cada vez menor de
empregos em que o sucesso material é possível; (2) a desagregação
familiar é vista principalmente como um síndroma dos grupos étnicos
(eufemismo para não-brancos), ou das classes menos privilegiadas;
(3) a relação mecanicista de igualdade entre o homem e a mulher, os
tais casamentos a 50% -- fifty-fifty – parece que não funcionam muito
bem; (4) a concepção da sexualidade como um fim em si próprio
apresenta grandes problemas, sobretudo na Era da Sida; (5) a
presença dos anti-heróis, isto é, o repúdio de alguns resquícios dos
anos sessenta, personificados no filme pelo babysitter da segunda
namorada de Jerry, é considerada desmotivadora; (6) a produção e
reprodução de heróis à antiga – homens mais que mulheres – capazes
de sozinhos reescreverem a história da humanidade é considerada
imprescindível.

A história é perfeitamente banal e previsível. Jerry apresenta-se-


nos como um homem de sucesso. Gere as carreiras de numerosos
desportistas e esse sucesso é-nos transmitido em estatísticas:
número de clientes, número de telefonemas, etc. Os seus clientes
são tantos que mal os conhece. Limita-se a negociar-lhes bons
contratos para receber boas comissões. Jerry namora uma mulher de
carreira e também com sucesso. A certa altura da sua vida Jerry
experimenta um momento de conversão, ou melhor, converte-se num
momento, muito ao gosto de determinadas tendências de

112
religiosidade fundamentalista, ela própria eivada quantas vezes da
ideologia individualista ainda predominante. A conversão de Jerry não
surge de um momento de introspecção, ou mesmo até de
arrependimento. Ele converte-se porque, no vazio materializado do
sucesso que experimenta, recorda subitamente os ensinamentos do
seu mentor principal, e é esse guru – figura imprescindível em
qualquer processo de formatação de consciências – que, através da
memória, o vai guiar passo a passo, situação a situação. Jerry passa,
assim, de escravo do sucesso material a seguidor irreflectido de uma
ideologia moral. Pelo meio, Jerry perde todos os seus clientes à
excepção de um, perde a namorada de sucesso, mas encontra uma
outra que não quer sucesso, mas que quer ser inspirada, e,
finalmente, de slogan em slogan, de receita em receita, num frenesi
de movimento, Jerry acaba por provar ao mundo que há uma outra
maneira de viver e de ter sucesso.

As moralidades são óbvias: (1) O Herói: Jerry McGuire é um


jovem simpático, com uma mentalidade yuppie e com um nome
irlandês (se estivéssemos em Portugal, Jerry seria transmontano ou
alentejano), isto é, para se ser herói não é preciso pertencer às elites.
(2) O Amigo: O único cliente que lhe permanece fiel é negro, muito
baixo para ser um bom jogador de futebol americano e o protótipo do
chefe de família exemplar. A moralidade óbvia da história é que não é
preciso ser-se um Arnold Schwarznegger para se poder ser um herói.
Mais ainda, pode-se ser negro e bom chefe de família. (3) As
Namoradas: A primeira namorada de Jerry é uma mulher de sucesso,
com carreira, com vida própria, com um bom pedigree universitário e
que vê na sua relação com Jerry uma boa parceria profissional e
física. Quando essa parceria chega ao seu fim natural ela não hesita
em recorrer à agressão física para demonstrar o seu
descontentamento. É evidente que esta não é uma relação normal. A
segunda namorada de Jerry é uma apagada contabilista, mãe solteira,
com um filho super-adorável e uma irmã amargada por um divórcio
traumatizante e que serve de animadora a um grupo de apoio mútuo
de divorciadas, todas elas, obviamente, caricaturas mais ou menos
ridículas. Esta namorada não tem grandes ideias próprias, mas
solidariza-se com a conversão de Jerry e quer ser inspirada; (4) A
Família: Desde o princípio que se intui que a mãe solteira, a segunda
namorada de Jerry, tem de arranjar um homem que sirva de pai ao
seu filho. Aliás, Jerry fica com ela mais por causa do garoto, que é em
tudo perfeito, que por causa dela. A família nuclear constituída por
um homem, uma mulher e rebentos é apresentada como condição
última e desejável do ser humano, independentemente das
motivações particulares. No filme, a família ideal é protagonizada por
uma família negra, sendo a moral óbvia neste caso, que até os negros
podem constituir famílias estáveis, apesar das estatísticas com que a
sociedade é constantemente bombardeada. (5) As Relações: No
filme raramente se fala de amor, mas fala-se muito de lealdade:
lealdade ao cliente, lealdade aos amigos, lealdade a uma namorada

113
supostamente fragilizada por um casamento desfeito, lealdade como
o valor fundamental nas relações humanas, superior ao amor como
catalisador da família. A moral óbvia é que se o casamento falha e
deteriora em violência ou em qualquer outra situação desumana,
aguenta!, que o que conta é a lealdade. (6) e por fim, o Sexo: Há
duas cenas de relações sexuais no filme. Na primeira, Jerry e a sua
primeira namorada são exibidos na vertigem da relação sexual,
exacerbada por grunhidos primários de prazer e engalfinhados numa
posição, senão heterodoxa, pelo menos criativa. Para além dos
grunhidos conseguem-se ouvir frases que denotam uma contínua
avaliação da performance em curso, como se aquele acto não
existisse como um acto em si próprio, mas como um acto sequencial
e referenciado. Exige-se performance porque há expectativas e uma
cultura da sexualidade como prazer descontextualizado. Na segunda
cena sexual que envolve Jerry e a contabilista, o contexto é
completamente diferente. Jerry e a namorada são apresentados
depois do coito. Estão deitados calma, tradicional e passivamente.
Moral óbvia: se não queres sexo com stress arranja uma contabilista
sem ideias.

Jerry Mcguire é, assim, uma série de receitas definidas,


previsíveis e inúteis, mesmo que bem intencionadas. O objectivo não
é o desenvolvimento do ser humano norteado pela ética e pela moral,
mas a rectificação de comportamentos considerados indesejáveis no
contexto da sociedade actual. Jerry McGuire é um filme, mas podia
ser um plano de educação do carácter tal como é preconizado pelos
seus novos promotores.

Segundo Lickona88, há três causas principais para este


ressurgimento ou reformulação da educação do carácter: (1) o
declínio da família, (2) algumas tendências preocupantes no carácter
da juventude, (3) a recuperação de valores éticos consensuais e
objectivamente importantes. Os proponentes esperam que as escolas
que adiram ao projecto devam avaliar-se através de uma

(…) óptica moral e considerar que tudo o que acontece


afecta os valores e o carácter dos alunos. Os professores
devem: (1) agir como dadores de afecto, modelos e
mentores; (2) criar uma comunidade moral; (3) praticar
uma disciplina moral; (4) criar um ambiente democrático
na sala de aulas; (5) ensinar valores através do currículo;
(6) usar a aprendizagem cooperativa; (7) desenvolver
uma “consciência do ofício”; (8) encorajar a reflexão
moral; (9) ensinar a resolver conflitos; (10) promover a
solidariedade para além da sala de aulas; (11) criar na
escola uma cultura moral positiva; (12) recrutar os pais e
a comunidade como parceiros na educação moral.

88 Lickona, Thomas (1993). The return of character education. In Educational


Leadership (51) 3, pp.8, 9.

114
É difícil ser-se contra esta litania de deveres. Todavia, esta
nova versão da educação do carácter peca, como as anteriores, em
muitos aspectos, como por exemplo: a noção kohlbergiana de
desenvolvimento moral é praticamente abandonada; o ensino directo
de valores presta-se a críticas, o papel da escola, se bem que
mencionado, não é suficientemente explicitado; o papel do professor
no processo da educação moral das crianças é de tal maneira vasto
que desafia os super-homens e as super-mulheres da classe docente;
o aluno não é considerado como agente interveniente, como sujeito
desse processo, mas surge como objecto; acima de tudo, é um
projecto que, praticamente, nasce e morre dentro da estrutura
escolar e que confunde vivência ética com bom comportamento. Por
outro lado, e como já vimos, há muito de mito nas razões que Lickona
aponta como motivadoras desta nova abordagem de educação do
carácter.

Para além disso, o ensino directo leva o aluno a um processo de


adaptação, o mesmo é dizer, de domesticação. A adaptação é uma
característica comportamental dos animais. No homem é
desumanizante. A afirmação da pessoa faz-se pela integração, que na
análise de Freire89, resulta da capacidade de nos adaptarmos a uma
realidade, mais a capacidade crítica de poder fazer escolhas, mais o
poder de transformar essa realidade. A pessoa integrada é sujeito, a
pessoa adaptada é objecto. Daí que qualquer educação de ou para os
valores, que caia na tentação fácil de endoutrinar, constitui um acto
profundamente desumanizante e, dada a área de conhecimento que
trata – a ética, a moral, a construção de sociedades e de
comunidades justas – diria mesmo que é quase um acto de
perversidade. John Holt90 analisa este mesmo assunto do seguinte
modo:

Os professores e as escolas tendem a confundir


bom comportamento com bom carácter. O que eles
apreciam é docilidade, sugestionabilidade; a criança que
fará o que lhe for dito; ou melhor, a criança que fará o
que é requerido mesmo sem nada lhe ser dito. Eles
valorizam mais na criança aquilo que a criança menos
valoriza nela própria. Não admira que o seu esforço para
formar o carácter seja um tal falhanço; eles não o
reconhecem quando o vêem.

4. a ética da acção educativa, ou a vida como horizonte

89 Freire, Paulo (1973). Education for critical consciousness. New York: The
Continuum Publishing Company, p. 4.
90 Holt, John (1997). How children fail. Citado por Kohn, Alfie. How to teach values.
In Kappan (78) 6, p. 429.

115
Não concebo uma educação, seja ela moral ou não, que não
parta e que não viva da realidade e que não tenda para a
transcendência. E digo isto porque não concebo uma educação que
não seja aprendizagem. Ora, só se aprende fazendo, e o fazer
pressupõe a existência de um projecto. É evidente que há lugar para
algum ensino, mas esse ensino tem de se limitar à invenção,
melhoramento e transmissão das ferramentas necessárias à
aprendizagem. Toda e qualquer intervenção do professor tem de
acontecer no contexto dum diálogo honesto e humilde com os alunos,
com os outros professores, com as outras pessoas para a descoberta
do mundo e da maneira como devemos agir nele e com ele,
sobretudo, para a sua transformação.

Importa, pois, afirmar a primazia da pessoa humana, não mais


como um ser separado, totalitariamente autónomo, auto-suficiente,
mas como um ser interdependente. Um dos fundamentos da
interdependência, por sua vez, é a aprendizagem, pois como
fenómeno emergente que é, a interdependência não pode ser
definida à partida e, portanto, passível de ser ensinada, ela constrói-
se através da aprendizagem. A interdependência, como fenómeno
superior que é ao da tolerância, inviabiliza qualquer processo de
educação moral do tipo clarificação de valores, do mesmo modo que,
se é um processo de aprendizagem, invalida quaisquer esforços de
ensino directo das virtudes.

O conceito de interdependência pressupõe, também, a


existência de valores absolutos que lhe dêem substância,
autenticidade e dinâmica. É evidente que esses valores não são
primariamente do tipo a que Kohlberg chama de saco de virtudes: a
honestidade, o respeito, a lealdade, o falar sempre a verdade, etc.
Estes valores comportamentais surgem como o resultado natural da
aprendizagem integrada de outros valores maiores.

Temos assim duas categorias de valores. Por um lado, aquilo a


que chamaremos valores relacionais e que se definem como
catálogos temporais de comportamentos aceites por uma
determinada sociedade num determinado contexto histórico. Dada a
sua natureza temporal e relacional, todos estes valores são relativos
por definição. A honestidade tem conteúdos diferentes consoante a
aplicamos a pessoas com poder ou a pessoas dominadas. A venda de
escravos, sobretudo de escravos negros, foi considerada durante
muito tempo como uma actividade honesta, como o são ainda outras
formas mais dissimuladas de exploração humana. E que diremos da
virtude que se define pelo dever de falar sempre a verdade? Se
tivésseis Anne Franck escondida no sótão da vossa casa e a Gestapo
vos chegasse à porta, que diríeis? A verdade? Uma mentira? Como
pode haver duas espécies de verdade, ou de mentira, num valor
considerado absoluto? A própria casuística não resolve o problema.
Não podemos resolver dilemas morais através de processos

116
mecânicos, como o do jogo de palavras. Daí que concordo
plenamente com Kohlberg quando ele diz que estes valores, que eu
chamo relacionais, são mesmo um saco de virtudes: só são virtudes
enquanto estão no saco.

A acção educativa não pode assentar em tais valores, por muito


importantes, atractivos ou familiares que sejam. Ela tem de assentar
em valores absolutos que possibilitem às pessoas, à sociedade, a uma
comunidade, a construção de uma pessoa melhor, de uma sociedade
melhor, de uma comunidade melhor. Assim, identifiquei três desses
valores maiores a que chamo valores operacionais, e que são a
democracia, a justiça e a liberdade. É evidente que há mais, como por
exemplo, a fé, o amor, a esperança, mas não creio que seja ainda
possível à espécie humana elaborar para eles processos operacionais
de desenvolvimento. Estes valores operacionais constituem-se como
horizontes de desenvolvimento, como consensos implícitos, inerentes
à condição humana e como consequentes da acção consciente,
melhor ainda, da acção conscientizada do ser humano. Como Paulo
Freire91 escreve:

Os homens relacionam-se com o seu mundo de


uma maneira crítica. (…) E no acto de percepção crítica,
os homens descobrem a sua própria temporalidade. (…)
A dimensionalidade do tempo é uma das descobertas
fundamentais na história da cultura humana. Em
culturas iliteradas, o “peso” do tempo aparentemente
ilimitado impede as pessoas de atingir essa consciência
da temporalidade, e assim de atingir um sentido da sua
natureza histórica. (…) à medida que os homens
emergem do tempo, descobrem a temporalidade, e
libertam-se do “hoje”, as suas relações com o mundo
tornam-se impregnadas com consequência.

Só a pessoa histórica, a pessoa que tem consciência do tempo e


que sabe, portanto, da urgência da sua acção transformadora, pode
ter a percepção dos valores operacionais. Só homens e mulheres
históricos sabem que só através da sua acção se pode transformar o
mundo e que essa transformação efectua-se por um processo de
desenvolvimento. A aprendizagem destes valores não pode ser
meramente cognitiva, nem meramente afectiva, nem meramente
comportamental. Ela tem de ser feita integralmente, pois tem de
acontecer no contexto do real. Quer isto dizer, que a democracia
aprende-se e acontece ao construir-se uma pessoa, uma sociedade,
uma comunidade democrática; que a justiça aprende-se e acontece
quando construímos pessoas, sociedades e comunidades justas; que
a liberdade aprende-se e acontece quando a percebemos como um
processo de desenvolvimento que envolve num todo integrado todas

91 Freire, Paulo (1973). Education for critical consciousness. New York: The
Continuum Publishing Company,, pp. 3, 4.

117
as pessoas. Por outras palavras, ninguém é democrata sozinho,
ninguém é justo sozinho, ninguém é livre sozinho.

A visão da vida interdependente força a uma nova concepção


do ser humano e a uma nova revisão dos critérios. Como diz Coelho
Rosa92, a evolução recente (…) obriga a considerá-lo (ele, ser
humano) como pessoa e não apenas como “indivíduo” de uma
espécie, “cidadão” de uma sociedade ou “sujeito” unitário de
decisões.

Creio também que, apesar de não haver uma hierarquia de


valor entre os valores operacionais mencionados, há uma hierarquia
de precedência. Assim, não deveremos partir para a aprendizagem
da justiça sem que primeiro construamos um contexto democrático.
A democracia faz com que estabeleçamos regras e processos de
funcionamento baseados na igualdade e na participação para
assegurar um modelo de tomada de decisões que inclua todos os
membros de uma determinada sociedade. Na acção educativa, a
vivência democrática é essencial. Pergunto, portanto, quem é
cidadão na escola? Se a democracia se define pelo poder do povo,
quem é povo na escola? Aceitamos limiares para o voto político nas
sociedades organizadas, mas não podemos excluir a criança da vida
democrática da escola e da família sem ver a própria democracia
perigar.

O estabelecimento de um sistema democrático de interacção


decisional é o primeiro passo para a construção de uma sociedade
desejável. A democracia não define por si só uma comunidade boa e
desejável. Pode haver sociedades que funcionem segundo um
modelo perfeitamente democrático, mas que tenham objectivos
perversos. De qualquer modo, há sempre a tentação da ditadura das
maiorias e há, sem sombra de dúvidas, um vazio moral.

É a justiça que dá à democracia um conteúdo moral. Esse


conteúdo moral, como já vimos das abordagens de Kohlberg, Gilligan
e outros, parte da noção de que é da máxima importância que as
pessoas saibam pensar moralmente, saibam relacionar-se
moralmente, saibam agir sobre o mundo moralmente. Como também
vimos, a justiça liberta a sociedade de relações parciais e
hegemónicas. Ela tende sempre para a igualdade, para a paridade,
que parece ser um dos estados normais da realidade. A emergência, a
construção de uma sociedade, de uma comunidade justa, passa
necessariamente pela conceptualização do processo educativo como
uma aprendizagem do pensamento, acção e relacionamento ético e
moral. Por outras palavras, não chega formar ou formatar o carácter
de cada indivíduo. Urge construir, através de uma acção educativa
ética dentro e for a dos muros da escola, a possibilidade da
aprendizagem da vida real que emerge. Quer isto dizer, que o

92 Coelho Rosa, Joaquim (1997). Ética e profissão docente. (Inédito), p. 3.

118
horizonte da ética não pode ser o indivíduo, mas tem de ser a própria
vida, como expressão da acção de pessoas.

É Paulo Freire que abre completamente a educação a toda a


problemática da vida e do ser humano. Para ele 93, para além de ser
um acto de saber, a educação é também um acto político. É por isso
que nenhuma pedagogia é neutra. A liberdade assume, assim, um
lugar fundamental no pensar de Freire.

A liberdade para Freire é um processo de desenvolvimento que


tem por objectivo a libertação de todos os homens e de todas as
mulheres. Para ele o conceito de educação que sai do sistema feudal
e que é aperfeiçoado pelo individualismo é aquilo a que ele chama o
conceito bancário da educação94. Este conceito bancário da educação
define perfeitamente o sistema de ensino em que o professor faz
depósitos na cabeça dos alunos para depois fazer levantamentos a
seu bel-prazer. Tal conceito leva a situações de educação para a
domesticação que são incompatíveis com a noção de liberdade como
desenvolvimento.

Enquanto que no sistema feudal e patriarcal a liberdade era


compreendida como dependência, e na ideologia individualista ela se
confunde com a noção de direitos – a minha liberdade acaba onde
começa a liberdade dos outros – numa concepção desenvolvimentista
a liberdade é um processo de desenvolvimento em que todos os
homens e todas as mulheres estão empenhados. Assim, a minha
liberdade não acaba onde começa a liberdade dos outros, ela começa
onde começa a liberdade dos outros. Por isso se diz que ninguém é
livre até que todos sejam livres. A liberdade tem, pois, um carácter
expansivo, diria mesmo infinito.

Uma educação com valores é uma educação transformadora,


uma educação que transforma não só alunos e professores, mas
também pais, comunidade e, finalmente, o mundo. A sociedade
interdependente em construção tem de se basear nestes valores
operacionais, todos os outros surgirão naturalmente, não só por via
cognitiva, ou afectiva, mas sobretudo porque o processo de
construção de uma tal comunidade educativa forçosamente induzirá o
desenvolvimento de percepções e de comportamentos mais
consentâneos com a visão de uma sociedade melhor.

A construção duma comunidade melhor deve levar em conta


que a massificação da educação é um dos processos mais opressores.
Dorothee Soelle95 diz que a nossa educação massificada tem lugar no

93 Freire, Paulo, Shor, Ira (1987). A pedagogy for liberation. Massachusetts: Bergin
& Garvey Publishers, Inc., p. 13.
94 Freire, Paulo (1994). Pedagogia do oprimido. São Paulo: Editora Paz e Terra S/A,
p. 58.
95 Soelle, Dorothee (1981). Choosing life. Philadelphia: Fortress Press, p. 89.

119
medium da publicidade, o que conspurca cada emoção humana,
porque pressupõe que tudo está para venda. A negação desta
educação massificada poderá estar no desenvolvimento da
capacidade de olhar a realidade reflectida e criteriosamente. Esta é
uma das capacidades fundamentais da construção de uma
comunidade democrática, justa e livre.

A capacidade de agir reflectida e criteriosamente numa


sociedade interdependente pressupõe um ser humano capaz de se
revelar. Emerson96 diz que a sociedade é como que um baile de
máscaras, onde cada um esconde o seu carácter real, e revela-o ao
escondê-lo. Se bem que alguns possam escolher esta revelação,
creio que a revelação num contexto de interdependência deve
acontecer com fé, humildade e muita esperança. Kierkgaard 97 diz que
(…) aquele que não pode revelar-se a si próprio não pode amar, e
aquele que não pode amar é o mais infeliz de todos os homens.

A construção de um mundo melhor, de um mundo democrático,


de um mundo justo, de um mundo livre, não pode deixar ninguém de
fora. A interdependência pressupõe a participação e a inclusão de
todos nessa caminhada. É um processo utópico, mas todos sabemos
que a utopia de ontem é a realidade de hoje. Estamos vivendo uma
época em que conhecemos o mundo melhor, sabemos como começar
a construí-lo, temos a noção das dificuldades que teremos de
enfrentar e temos a consciência de que grande parte, senão mesmo a
maioria da humanidade está for a deste processo de educação com
valores, deste processo de construção. T. S. Eliot 98 diz num dos seus
grandes poemas: Que vida tens tu senão tiveres vida conjuntamente?
/ Não há vida que não seja em comunidade (…).

Se a acção educativa é importante, e todos sabemos que o é


cada vez mais, se os valores são importantes, e já sabemos que há
valores absolutos que nós podemos começar a construir
sistematicamente nas nossas vidas interdependentemente concretas,
que estamos a fazer pelo desenvolvimento livre das nossas crianças?
Será que estamos a pautar as nossas vidas por valores relacionais,
como sejam o sucesso material, o desejo de ser alguém na vida, isto
é, alguém que mande, que tenha poder sobre os outros, em vez de
construirmos as nossas vidas pelos tais valores operacionais de que
vos falei?

Não sei, mas os indicadores não prometem muito. Será que os


nossos filhos, que nós próprios, nos tenhamos deixado aprisionar pelo

96 Emerson, Ralph Waldo (1969). Selections. Kansas City: Hallmark Editions, p. 21.
97 Kierkgaard, Søren (1986). Either / Or. New York: Harper & Row, Publishers, p.
170.
98 Eliot, T. S. (1970). Collected poems. San Diego: Harcourt Brace Jovanovich,
Publishers, p. 154.

120
activismo dos nossos dias super-ocupados perdendo assim de vista os
horizontes de desenvolvimento que dão sentido à vida?

121
Asas e Raízes*: Repensando a Escola

O condado de Santa Maria, no Estado norte-americano de


Maryland, em conjunção com a Universidade John Hopkins, tem a
decorrer um projecto de repensamento da escola intitulado Roots and
Wings, que no ritmo da nossa língua se poderá traduzir por Asas e
Raízes99, e que tem tido um sucesso significativo. O programa tem
dois objectivos principais: ( 1 ) garantir que cada criança complete a
escola elementar -- isto é, o 6º ano – com as classificações mais
elevadas; ( 2 ) envolver os alunos em actividades que lhes permitam
aplicar tudo o que sabem na resolução de problemas que
demonstrem a interligação do conhecimento. O primeiro objectivo
tem a viver com as raízes, o segundo com as asas.

Uma das metodologias que este projecto usa para integrar as


diferentes áreas disciplinares é a simulação de situações reais em que
os alunos têm de assumir uma personalidade real e conseguir em
conjunto recriar um ambiente histórico, uma descoberta científica, ou
um problema do mundo do trabalho. Este componente, conhecido por
WorldLab – por cá poderia chamar-se MundoLab – tem lugar todos os
dias durante noventa minutos. Como dizem os articulistas100:

O MundoLab nasceu da nossa convicção de que as


competências mínimas são essenciais, mas não são
suficientes para as crianças de hoje. Os alunos devem
ser capazes de resolver problemas com criatividade, de
compreender os seus próprios processos de
aprendizagem, e de interligar o conhecimento das
diferentes disciplinas.

É evidente que a reformulação da vida curricular de uma escola


segundo este modelo mexe com tudo aquilo que consideramos
normal no dia escolar. Quando se reservam noventa minutos por dia
para uma simulação qualquer, temos de pensar também no tempo
que é necessário para preparar esse simulação, o que implica uma
vida curricular que vive em função da integração dos saberes. A
matemática, os estudos sociais, a composição escrita, as ciências, a
história, a geografia, ou qualquer outra disciplina deixam de ter uma
existência compartimentalizada, e passam a ter uma vivência
interdependente.

* Não resisti à tentação de roubar este título. A quem? Mais adiante se verá.
99 Slavin, Robert E. & al. (1994). Roots and wings: Inspiring academic excellence.
Educational Leadership, (52) 3, pp. 10-13.
100 Slavin, Robert E. & al. (1994). Roots and wings: Inspiring academic excellence.
Educational Leadership, (52) 3, p. 11.

122
Mas como funciona o MundoLab? Funciona exactamente como o
nome indica, como um laboratório da realidade. Slavin 101 e os outros
autores do artigo descrevem uma das sessões:

Na escola elementar de Lexington Park, numa pequena


aldeia no sul de Maryland, Jamal, com dez anos, levanta-se
para falar. “A presidente da mesa dá a palavra ao delegado da
Escola Ridge,” diz o presidente da mesa, um aluno do liceu
local. “Eu gostaria de falar a favor do projecto-lei R130,”
começa Jamal. “Esta lei diria aos agricultores que não
poderiam usar adubos a menos de 200 pés da Baía de
Chesapeake. Os adubos vão para a baía e causam poluição e
matam peixes. Os agricultores podem ainda cultivar bastantes
produtos senão se aproximarem da água, e todos teremos uma
vida melhor se pudermos parar a poluição da baía. Cedo a
palavra para perguntas.”

Uma mão levanta-se. O presidente da mesa dá a


palavra a uma delegada da Escola Carver. “Como é que os
adubos prejudicam a baía? Pergunta ela. Jamal explica que
os adubos fornecem matérias nutritivas às algas e que
quando há algas a mais, as ostras, os caranguejos, as
amêijoas e outros seres maiores ficam sem oxigénio.

Uma delegada da Escola Green Holly apresenta uma


outra perspectiva: “Eu sou uma agricultora,” diz Maria,
que tem onze anos. “Da maneira que as coisas estão, mal
posso pagar as minhas contas e tenho três crianças para
sustentar. Se não puder adobar todo o meu terreno
entrarei em falência!”

O debate sobre o projecto-lei continua por mais de


uma hora. Os alunos delegados que estão a representar o
papel de pescadores comerciais de caranguejos e de
outros que têm vivido da pesca na baía há séculos,
descrevem como o seu modo de vida está a desaparecer
dado o declínio das pescarias devido à poluição. Os
comerciantes dizem da maneira como a poluição arruina a
economia local. Finalmente, a comissão faz emendas ao
projecto-lei, proibindo todos, com excepção dos
agricultores mais pobres, de plantarem perto das vias
aquáticas. O projecto-lei é aprovado e passa para a
Assembleia de Delegados para ser votado.

Vejamos algumas das características desta sessão de


aprendizagem e comparemo-la depois com um aula tradicional sobre
poluição resultante da influência do uso de adubos na saúde das

101Slavin, Robert E. & al. (1994). Roots and wings: Inspiring academic excellence.
Educational Leadership, (52) 3, p. 10.

123
redes fluviais ou marítimas. No MundoLab, os alunos tiveram de
investigar por si próprios as condições da vida na Baía de
Chesapeake, situada na região em que vivem, e que para além de ser
um dos viveiros mais importantes de ostras, caranguejos e bivalves
da costa leste dos Estados Unidos, é também um local
verdadeiramente paradisíaco. Essa aprendizagem não tinha a ver
com um local desconhecido. Muito pelo contrário, ela incidia sobre
temas que decerto eram mote de conversa e apreensão no seio das
suas próprias famílias. A aprendizagem do inter-relacionamento das
várias actividades humanas – a pesca, a agricultora, a economia local
– forçosamente levou os alunos a terem de analisar os problemas
através das perspectivas das diferentes disciplinas: a biologia, a
química, a matemática, a estatística, a sociologia, a psicologia, a
ecologia, a história, a geografia, a física, para além de terem de
aprender a dominar outras ferramentas da aprendizagem, como a
escrita, a retórica, o trabalho em equipa, a capacidade de ouvir,
reconhecer, assimilar e relacionar as diferentes intervenções, a
flexibilidade necessária para assumir o papel de uma outra pessoa, a
arte do debate parlamentar.

Comparemos, pois, esta experiência de aprendizagem com uma


aula tradicional sobre o mesmo tema, por mais audio-visuais que
fossem utilizados, por mais atraente e viva que tivesse sido a
apresentação, por mais rica que fosse em informação. Não há
comparação possível. Numa aula tradicional, a aprendizagem maior é,
na melhor das hipóteses, feita pelo professor ou professora: é ele ou
ela que pesquisa, que se interessa pelo tema, que decide o que é
importante, que elabora a argumentação, que escolhe a maneira, ou
maneiras, como a informação e a problemática deve ser apresentada.
Por muito envolvido que seja o aluno na vivência da sala de aulas,
não há propriamente aprendizagem, mas assimilação, catalogação e
armazenamento de informação. A aprendizagem propriamente não se
faz, pois essa só acontece com o fazer.

Parece que não chega ser-se um profissional bom e


consciencioso se a missão que se nos impõe é a de fazer com que os
alunos aprendam verdadeiramente. Parece que as horas que
passamos em casa a vasculhar livros em busca de informação, a
tramar argumentos, a escolher os media mais adequados ao assunto,
não servem de muito aos alunos. A situação agrava-se quando
reconhecemos que um sector significativo da classe docente nem
sequer faz isso: limita-se aos compêndios, às fichas e a um diálogo
insípido com os alunos, qualquer coisa como um método socrático de
trazer por casa.

Asas e raízes. Sem dúvida. Mas a maior parte das vezes aquilo
que passa por educação das crianças e dos jovens não se radica nem
voa: espraia-se na horizontalidade indefinível de um solo infértil.
Medimos a educação pela extensão dos programas, pelo volume das

124
cargas horárias, pelas capacidades exibidas pelos alunos de encaixar
e de desencaixar, com maior ou menor facilidade, aquilo que lhes
damos por conhecimento. Parece que sempre assim foi. Parece que
assim terá de ser. Os trabalhos de projecto e a área-escola têm dado
pouco mais que um sem número de feiras medievais.

Mas terá mesmo de ser assim? Será que a formatação escolar,


que por todo este mundo pulula, possibilita às crianças e aos jovens
uma compreensão verdadeira e uma intervenção eficaz na realidade
que os envolve? Será que nós, educadores, temos as competências
necessárias para liderar este processo de mudança? E se todos
sabemos que urge mudar, ou pelo menos, que a mudança é
inevitável, qual a natureza dessa mudança? Será que poderemos
sanar todos os problemas com planos de reforma? Ou será necessário
utilizar uma outra metodologia?

Uma coisa sabemos: a escola está em crise por todo o mundo;


aventam-se receitas múltiplas; decretam-se reformas; legislam-se
contra-reformas; despacha-se a reformulação de contra-reformas de
outras reformas. Já tivemos actividade educativa, continuamos a ver
activismo educativo e já vimos muita inacção educativa. Para quando
uma acção educativa?

1. entre a raiz e as asas: o mundo dos horizontes imóveis

Os aprendedores de hoje precisam de ser capazes de processar


informação complexa, de resolver problemas, de tomar decisões num
contexto de incerteza e de relacionar os seus conhecimentos e
competências com situações novas e em mudança continuada. A
aprendizagem devia, pois, ser activa, construtiva, orientada por
metas e sistemática102.

Assim começa um dos capítulos do relatório da European Round


Table of Industrialists (A Mesa Redonda de Industriais), intitulado,
Investindo no conhecimento. E um artigo da prestigiada revista
britânica The Economist103 diz o seguinte:

As políticas da educação estão num estado confuso


e peculiar. Por todo o mundo, é um dado adquirido que
competência educacional e sucesso económico estão
intimamente ligados – que a luta para melhorar o nível de
vida de uma nação trava-se primária e principalmente na
sala de aulas.

Por sua vez, William Knoke104 escreve o seguinte:

102 ERT – The European Round Table of Industrialists (1997). Investing in knowledge.
Brussels: ERT, p. 8.
103 The Economist (1997, March 29). Education and the wealth of nations, p. 15.

125
(…) se um governo pudesse ter uma só função, a
educação deveria ser essa função. Nada daquilo que um
governo providencia – estradas, leis de impostos,
regulamentos, defesa, polícia – se lhe aproxima em
importância. (…) Sem educação, a seu tempo, a economia
colapsa, as receitas fiscais afundam-se, a ética e a moral
entram numa situação caótica, as drogas e a violência
governam, a tecnologia e a defesa deterioram-se, a
democracia degrada-se, as infra-estruturas apodrecem –
tudo para nada.

Parece, assim, que tanto industriais, como banqueiros,


jornalistas e políticos vêem a educação como o catalisador do
progresso e do desenvolvimento das nações. Parece mesmo que a
educação é neste momento um dos fenómenos fundamentais da vida
humana em sociedade. E tudo isto, porque o progresso e o
desenvolvimento dos povos já não assentam na mera produção de
bens, e o conceito de riqueza já não se mede unicamente pela conta
bancária, ou pelo volume de negócios de uma multinacional.
Industriais e governantes japoneses disseram-me nos finais dos anos
oitenta que consideravam gente como o seu capital principal, e Phillip
Schlechty105, referindo-se à situação nos Estados Unidos, diz que não
são as escolas que se estão a transformar em empresas, mas que,
pelo contrário, são as empresas que se estão a transformar em
escolas (p. 15). Mas que escolas?

Estarão as nossas escolas voltadas para o desenvolvimento e


para o futuro? Receio bem que não. Se a matriz da realidade presente
e futura se define pela interdependência, pelo conceito de
comunidade, pela democracia, pela justiça, pela liberdade, tudo isto
num contexto de incerteza, de descontinuidade, sobretudo de
emergência, não me parece que a escola tradicional, baseada na aula
de cinquenta minutos, na quase sacralização do compêndio e da
ficha, no monolitismo e rigidez de programas curriculares, no
planeamento milimétrico de coisas, métodos e pessoas, no activismo
dos professores, no passivismo dos alunos, no distanciamento ou
alienação dos pais, possa de algum modo preparar alunos com as
competências necessárias ao reconhecimento, leitura e acção
transformadora duma realidade emergente.

A escola, tal e qual a conhecemos, saiu duma visão mecanicista


da sociedade e duma percepção prescritiva e determinista da
realidade. O presente revia-se no passado, o futuro na continuidade
planeada, a ciência na certeza, a educação no ensino, o
conhecimento no facto provado, o professor na lição, o aluno na

104 Knoke, William (1996). Bold new world. New York: Kodansha International, p.
303.
105 Schlechty, Phillip (1990). Schools for the 21st century. San Francisco: Jossey-Bass
Publishers, p. 15.

126
resposta esperada, a moralidade no bom comportamento, tudo
encadeado linearmente, logicamente e regularmente. Este mundo-
máquina, fabricante de homens e de mulheres-peças e gerador de
instituições formatadoras de coisas e sociedades serviu bem a
humanidade e permitiu-lhe, praticamente, vencer o espectro da
escassez.

Ironicamente, a ciência que sustentou essa visão da sociedade


deu-lhe também o seu golpe mortal. O contacto com a realidade
quântica, com o mundo das partículas, permitiu, e permite, uma
percepção cada vez mais aproximada da essência da realidade, e
essa percepção pôs em causa muitos dos alicerces centenários da
ciência: a certeza, a objectividade, a medida exacta. Da Lei da
Incerteza de Heisenberg, pronunciada em 1927, às teorias do caos e
da complexidade dos nossos dias, as descobertas científicas
transformaram a realidade prescrita e determinada numa realidade
emergente, e o futuro programado num futuro completamente
aberto. E é, exactamente, esse emergência e essa abertura que põem
em causa e que desacreditam o mundo da escola como ensino, a
vocação da escola como a preparação para a vida, a capacidade de
aggiornamento através de planos reformistas específicos. O já citado
Knoke106 diagnostica a escola tradicional do seguinte modo:

As nossas escolas estão assustadoramente mal


equipadas para os desafios do futuro. Exceptuando o
retroprojector e o giz colorido, elas são idênticas às
escolas medievais. Cerca de trinta carteiras frente a um
professor aturdido leccionando isto ou aquilo, enquanto os
alunos olham para além da janela. Vem, então, o “teste”,
a campainha soa, e eles aí vão para a próxima aula. (…)
Para alguns, esta linha de montagem é muito fácil,
levando ao enfado e a potencial não atingido. Para outros,
a linha é muito difícil, levando à humilhação e à rejeição.
De qualquer maneira, a sociedade perde por não
aproveitar ao máximo todos os seus recursos humanos.

Palavras duras, saídas de alguém que vive o dia a dia do mundo real,
competitivo, incerto, complexo e desafiante. A escola que
conhecemos é muito mais o contrário: é pouco competitiva – as
vantagens e desvantagens de cada concorrente estão praticamente
definidas à partida, é certinha, simplista, previsível e muito irreal. A
vida escolar é quase uma vida de clausura, uma metodologia
iniciática, em que os segredos da vida não são descobertos, mas
transmitidos pouco a pouco, consoante a idade, o grupo e a estrutura
socio-económica do aluno. A escola baseia-se ainda na transmissão
daquilo que já se conhece. A sua vida, portanto, alimenta-se do

106Knoke, William (1996). Bold new world. New York: Kodansha International, p.
303.

127
passado, exactamente aquilo que pouco ou nada diz ao aluno do
presente, cidadão do futuro.

Uma escola que se baseia somente no passado é uma escola


sem horizontes, ou melhor, é uma escola com horizontes imóveis: é
uma escola que vive naquela terra de ninguém que existe entre a raiz
e as asas. De facto, nessa terra onde não vivem raízes que nos
liguem à fecundidade da vida de outras gentes, e onde se não pode
explorar o futuro nas asas da experiência, a única possibilidade que
resta é a de repetir ad infinitum as histórias e as percepções de coisas
que não se experimentaram, mas que passaram a definir o real
prescrito a transmitir. A realidade é, assim, definida não por uma
experiência vivencial, mas por narrativas que, apesar de terem um
valor histórico e às vezes moral, não levam necessariamente à
prospecção do presente-futuro.

Uma educação viva, real, incontida, não pode viver num


contexto de horizontes imóveis. Uma escola que se alicerça na
preeminência do ensino é uma escola cujos horizontes param na
prescrição do conhecimento transmissível. Tal escola não promove as
capacidades já enunciadas: a capacidade de processar informação
complexa, de resolver problemas, de tomar decisões num contexto
de incerteza e de relacionar os seus conhecimentos e competências
com situações novas e em mudança continuada. Estas competências
só poderão ser adquiridas através da aprendizagem.

2. Raízes, alicerces e túneis

“Precisamos saber se esse é o lugar certo para as


águias viverem, mas pensamos que é”. (…) Os alunos do
5º ano de Kerry Sinclair das Escolas para Pensar (Schools
for Thought), estão a avaliar as vantagens e desvantagens
de usar várias torres de nutrição para reintroduzir
aguiazinhas no seu habitat selvagem. Trabalhando em
grupos, estes alunos da Escola Média de Carter Lawrence,
em Nasville, Tennessee, irão fazer planos para salvar a
águia (careca) ameaçada de extinção. Eles precisam de
fazer investigação em biologia, comportamento e habitat
da espécie, bem como sobre as causas do seu estado de
perigo de extinção. (…) Outros alunos procuram em CD-
ROMs, em livros, em artigos, na Internet, informação sobre
a alimentação, o acasalamento e os planos correntes de
recuperação. Usando computadores, eles escrevem,
corrigem, revêem e publicam relatórios de grupo. (…) Em
cada projecto, alunos das Escolas para Pensar adquirem,
organizam e interpretam informação, comunicando depois
as suas descobertas aos colegas e a um autêntica
audiência de adultos. Os membros da audiência
questionam os alunos para estimular a sua aprendizagem.

128
O professor cria um clima de pesquisa que promove a
aprendizagem com compreensão, ao invés de simples
memorização de factos107.

Temos aqui mais uma forma de aprendizagem autêntica: o


assunto é real, a pesquisa segue o método científico, os alunos estão
em controle da situação, o professor coordena e cria o ambiente mais
propício à investigação, o trabalho das crianças é validade pelo
interesse e participação dos adultos.

Este estilo de aprendizagem, com que todos sonhamos, não se


materializa, todavia, da inconsistência do desejo, nem simplesmente
da expressão da vontade. Não basta achar uma ideia interessante e,
até útil, comprar um livro, estudar a lição e tentar concretizá-la na
sala de aulas, ou mesmo na escola. Nenhum projecto de mudança
pode definir-se e consistir num grupo de ideias e numa metodologia
de implementação. É por isso que falham ou se frustram tantos
planos de reforma. Há muitas vezes um diagnóstico e uma receita
específica. Só que nos sistemas fechados e eminentemente
burocratizados se esquece o doente como pessoa, e todos sabemos
que 50% da cura reside nele. Aliás, o papel do médico, no nosso caso,
da gestão, não deve ser propriamente o de tratar a doença, mas o de
manter a saúde. E essa, não há receita que a mantenha. A saúde vive
principalmente da capacidade da pessoa gerir um corpo e uma mente
em evolução, por vezes em mudança brusca, e de interagir com a
medicina quando essa capacidade não parece suficiente.

Os projectos de saúde das escolas nascem e morrem na


vitalidade ou na inércia das interacções sistémicas. E que quer isto
dizer? Sabemos da teoria de sistemas que tudo o que existe, com vida
própria ou derivada, está interligado. Sabemos também que os
sistemas tendem para a harmonia e para o desgaste. É este o destino
aparente de toda a matéria: é o que acontece com os nossos corpos,
com os nossos carros, com as hortaliças. Mas será mesmo? É já da
sabedoria popular que nada se perde e que tudo se transforma.
Quererá isto dizer, que o círculo que existe entre o que se faz e o que
se desfaz, entre a vida, a morte e a reaparição numa natureza
transformada é eterno e inevitável, o que quer dizer determinista?
Prigogine108, Prémio Nobel da Química e um dos grandes cientistas do
nosso tempo, parece não pensar assim. Ele afirma que nas suas
investigações tem identificado muitos sistemas que escapam à
entropia exactamente porque não tendem para a harmonia, para o
equilíbrio.

Parece, por conseguinte, que a harmonia não produz


necessariamente vida e que o equilíbrio determina a entropia, isto é,

107 Secules, Teresa, et al. (1997). Creating schools for thought. Educational
Leadership, (54) 6, pp. 56-60.
108 Prigogine, Ilya (1996). O fim das certezas. Lisboa: Gradiva.

129
o desgaste, por outras palavras, a morte. É por esta e por outras
razões que tenho afirmado que é difícil que um projecto codificado de
reforma escolar possa aproximar a escola da realidade, possa
transformar a escolaridade em projecto educativo. As reformas que
conhecemos, nascidas que foram na matriz mecanicista, tendem
sempre para a reformulação da escola, alterando algumas das suas
variáveis, mas mantendo intacta a sua concepção como sistema
clássico. Por outras palavras, as reformas tendem a sanar problemas
de desequilíbrio – a falta de motivação dos professores, o insucesso
dos alunos, a alienação dos pais – pela reimposição de um novo
equilíbrio sistémico conseguido pela reformulação de alguns aspectos
do sistema escolar. Permanece, assim, intacta a obsessão da
mecânica clássica com o problema da ordem linearmente concebida,
dependendo esta do nível de controle que se consegue exercer sobre
o sistema. Daí, também, a dificuldade, diria mesmo, a incapacidade
que os órgãos centrais de gestão escolar têm em deixar as escolas
viver a sua liberdade natural. Nabokov, citado por Prigogine 109, estava
convicto, no entanto, de que o que pode ser controlado nunca é
completamente real, o que é real nunca pode ser rigorosamente
controlado. Por isso, parece haver tão pouca relação entre a escola e
a realidade; talvez, por isso mesmo, haja tão grande insucesso
escolar por parte dos alunos e tanta falta de motivação nos
professores.

Se a reforma não assegura a transformação da escola num


projecto educativo baseado na aprendizagem, que fazer? Como
chegar a quotidiano escolar em que as experiências relatadas sejam
mais a norma que a excepção? Talvez que precisemos mesmo de
raízes, de alicerces e de túneis.

A. As Raízes: A função duma raiz é a de servir de suporte à


planta, de procurar alimento e água no solo e de armazenar
esse mesmo alimento. Quais serão, portanto, as raízes de um
processo de aprendizagem?

A primeira raiz da aprendizagem tem a função de a ancorar


solidamente na realidade. Por detrás de qualquer pensamento,
de qualquer projecto, de qualquer acção deve estar sempre a
ideia do real. O real deve ser como um crivo, talvez mesmo,
como o crivo mais importante, através do qual deve passar tudo
o que se faz na escola. O real, não é, por vezes, fácil de
descortinar. Há escolas que estão tão desfasadas da realidade
que, só através de uma profunda penetração, poderá a raiz
encontrar terreno sólido onde segurar todo o sistema. O real
tem pouco, ou mesmo nada a ver com o familiar e com aquilo
que parece óbvio. O familiar e o aparentemente óbvio
constituem duas das maiores armadilhas que enfrentamos na
busca do real. A percepção do real depende de uma observação

109 Prigogine, Ilya (1996). O fim das certezas. Lisboa: Gradiva, p. 150.

130
contínua, não só do contexto em que vivemos, mas, sobretudo,
do desenvolvimento de instrumentos que nos permitam ver
com cada vez maior clareza e perspicácia as estruturas mais
íntimas, os critérios mais subtis, as tendências mais
prevalecentes.

Para além da observação crítica e perspicaz, há a investigação.


As ciências duras fornecem-nos cada vez mais pormenores
sobre a maneira como a vida, o mundo, a realidade natural
funcionam. Há um trabalho fundamental a fazer continuamente
e que consiste na tradução para as ciências humanas de todas
essas descobertas. É um trabalho perfeitamente inter, senão
mesmo, transdisciplinar, fundamental e imprescindível. Para os
profissionais da educação, a percepção do real talvez seja o
processo de aprendizagem mais importante. O imperativo de
ancorar a escola no real implica que tudo o mais – programas,
compêndios, metodologias – seja analisado, adaptado e
transformado consoante a percepção que dele tivermos.

As raízes não só ancoram a planta como lhe fornecem água e


alimentos. A água e os alimentos são condições essenciais ao
sucesso da planta, à sua sobrevivência. A segunda raiz define
as fontes de sucesso da escola. As principais fontes de sucesso
de uma escola são as seguintes: (a) Todo o trabalho, quer de
alunos, quer de professores tem de ter e de fazer sentido. Quer
isto dizer, que todo o trabalho deve ter um propósito e que esse
propósito deve ser lógico e racional, isto é, deve partir de e
para o real; (b) A comunidade escolar deve decidir sobre as
metodologias e sobre os processos a utilizar. Deming 110, o
teorizador da qualidade total, diz que 90% dos problemas
residem na disfuncionalidade dos sistemas, não na
incompetência das pessoas. Não tenho dúvidas sobre esta
asserção. A tradição moderna da universalidade dos métodos e
dos processos está demasiado enraizada para que possamos
ver que não se coaduna com a diversidade humana. A
comunidade escolar deve ter em funcionamento a maior
variedade possível de metodologias, processos e abordagens de
modo a poder manter a vitalidade do sistema no seu potencial
máximo. (c) A vida escolar deve ser motivada por metas
realizáveis. Schmoker111 diz o seguinte:

As metas conduzem-nos. O psicólogo Mihalyi


Csikszentmihalyi (1990) fez uma das mais
interessantes descobertas recentes acerca da
ligação entre as metas e a felicidade: As metas são a
substância da motivação, da persistência e do bem-

110 Citado por Schenkat, Randy (1993). Quality connections. Alexandria, VA: ASCD,
p. 40.
111 Schmoker, Mike (1996). Results. Alexandria, VA: ASCD, p. 18.

131
estar. Numa linguagem que ecoa os pensamentos de
Farmer, ele descobriu que geralmente o que as
pessoas mais apreciam é a perseguição de uma
meta clara, fazível e que valorizem. Esta ligação
explica porque muitas pessoas são mais felizes a
trabalhar do que nos seus tempos livres. Na
ausência de metas, o que se instala é a entropia e a
vida sem desígnios.

É interessante notar que as metas que geralmente existem nas


escolas são as impostas pelos programas oficiais, ou pelos
compêndios, raramente aquelas que nascem da observação
crítica da realidade dos alunos, da capacidade dos professores,
dos recursos existentes, dos horizontes perscrutáveis.

A exequibilidade das metas pode, todavia, representar uma


outra armadilha: a de que situemos a fasquia demasiado baixa.
A fasquia baixa demais deve-se, entre outras coisas, à nossa
ânsia de sucesso, à comiseração sentida para com alunos de
meios mais desfavorecidos, à rotina de aplicar universalmente
um método que não pode suprir as necessidades da diversidade
intelectual e emotiva dos alunos e que nos leva, por sua vez, a
encontrar o menor denominador comum. É por isso que o
horizonte da escola não pode ser a qualidade, mas a
excelência. A noção de qualidade tende naturalmente para uma
qualquer quantificação – os tais índices de qualidade –
enquanto que a excelência se define pela consecução do
potencial máximo de cada pessoa ou organização; (d) A
excelência como horizonte e matriz da escola não exclui a
necessidade de se avaliar sistemas e subsistemas. Não há
dúvida que o sucesso de uma escola não pode ser validado sem
resultados observáveis. Por muito redutor e falível que pareça
ser qualquer sistema avaliativo, há uma necessidade inadiável
de se saber quantitativa e qualitativamente o resultado de um
processo educativo em curso. O risco que não podemos correr é
o de fazer comparações baseadas em dados simplistas e
indiferenciados.

B. Os alicerces: Se compararmos o processo educativo com uma


casa, verificamos que esta se compõe de duas partes
essenciais: o alicerce e a casa propriamente dita. O alicerce é o
fundamento da casa, segura-a no terreno. No entanto, o
alicerce não se vê, é rígido e é inabitável. A parte visível da
casa emerge do nosso sonho, dos nossos recursos, do diálogo
com amigos, da guerra aberta com o arquitecto, das
questiúnculas com o empreiteiro, da frustração com a banca,
das mudanças que naturalmente resultam da materialização de
uma ideia e da confrontação com o real, da nossa capacidade
de gerir tudo isto e ainda tudo aquilo com que o indeterminismo

132
da vida nos surpreende. Além disso, a parte visível da casa
nunca está acabada: ela evolve e transforma-se com a nossa
própria evolução e transformação. Costumo dizer que o alicerce
está para o ensino como a casa está para a aprendizagem.
Exactamente nas mesmas proporções. O alicerce da
aprendizagem define-se pelos conhecimentos, ferramentas,
metodologias, técnicas, tecnologias que devem e, por vezes,
têm de ser ensinados. O alicerce é, assim, como que o passar
do testemunho da tradição do saber humano a uma nova
geração. É a herança que recebemos. Todavia, tal como o
alicerce duma casa, o alicerce não pode ser nem o princípio
nem o fim do processo educativo: apenas isso, o alicerce
invisível e inabitável, mas imprescindível.

C. Os túneis: A função dos túneis é a de estabelecer e facilitar as


comunicações em áreas difíceis de transpor. Os túneis falam-
nos de relações, e quão difíceis elas são na escola! Entre uma
sala de aulas e outra, entre gestão e docentes, entre
professores e alunos, entre escola e pais, quantos himalaias se
não levantam! No entanto, sem comunicação, sem túneis,
pouco poderá acontecer na escola. Krovetz e Cohick 112
escrevem:

Quando os professores se apoiam, estimulam,


confiam e respeitam mutuamente e preferem o
trabalho em conjunto, as oportunidades
educacionais dos alunos aumentam. (…) Como
Roland Barth escreve: “A relação entre adultos nas
escolas é a base, a pré-condição, a condição sine
qua non que permite, dinamiza e sustenta todos os
outros esforços de melhoria das escolas. A não ser
que adultos falem uns com os outros, se observem
uns aos outros e se ajudem mutuamente, muito
pouco mudará.

Se a mudança é impraticável sem comunicação, se a


aprendizagem é inviável sem comunicação, o que resta é o
monólogo vazio e estéril. Os túneis que temos de criar não se
resumem, como já disse, às relações entre os professores, mas
têm de percorrer todo o sistema, no seu sentido mais amplo.
Esses túneis, essa comunicação deve ser baseada, como diz
Hargreaves113, na abertura, informalidade, desvelo, atenção,
funcionamento de relações laterais, colaboração recíproca,
diálogo cândido e vibrante, e numa vontade de enfrentar
juntos a incerteza.
112 Krovetz, Martin, Cohick, Donna (1993). Professional collegiality can lead to
school change. Kappan (75) 4, pp. 331-333.
113 Hargreaves, Andy 81997). Rethinking educational change: Going deeper and
deeper in the quest for success. In Hargreaves, Andy (ed.). Rethinking
educational change with heart and mind. Alexandria, VA: ASCD, p. 22.

133
3. asas e horizontes

Se as raízes nos ancoram na realidade percebida, as asas


libertam-nos para perseguir a realidade possível. É este conceito que
nos permite dar o salto criativo que nos leva da mudança como
reforma ao repensar da sociedade e da escola. O repensar da escola
nasce da recusa intelectual e emocional de aceitar qualquer realidade
corrente, uma vez que sabemos que nada permanece, salvo a
mudança. Essa mudança, por sua vez, é fruto dum mundo em
emergência, é tocada pela evolução do ser humano como espécie, é
influenciada pelos nossos próprios esforços para perceber e sonhar a
realidade possível.

A realidade possível é aquilo a que geralmente chamamos


visão. De certo modo, a visão é a essência da liderança, se
compreendermos esta como a gestão da mudança. A visão, todavia,
não pode nascer e morrer com o gestor, ela tem de ser partilhada por
todos os membros duma determinada comunidade, porque ela só
acontece, só se materializa no esforço comum. Esta partilha de uma
mesma visão não é tarefa fácil. Como Peter Senge 114 muito bem
observa, as pessoas têm muitas vezes grande dificuldade em falar
acerca das suas visões, mesmo quando essas visões são claras.
Porquê? Porque estão muito conscientes do fosso entre a nossa visão
e a realidade. Todavia, esse fosso, essa distancia entre a realidade
percebida e a realidade possível, ou como Senge, mais adiante diz,
entre a visão e a realidade corrente é também uma fonte de energia.
(…) Chamamos a esse fosse, a tensão criativa.

É esta tensão criativa que nos impele para tentar aprender


coisas e metodologias novas que permitam não só perceber melhor a
visão que nos move, mas também os percursos possíveis para a sua
concretização. Uma das capacidades fundamentais que temos de
adquirir é a do pensamento sistémico, isto é, a capacidade de pensar
sistemas inteiros, de perceber todos. A escola que conhecemos não
nos ensina isso. Muito pelo contrário. O pensamento moderno
reforçou a tendência já existente de que a realidade era e podia ser
fragmentada, tal e qual como uma máquina podia ser desmontada
peça a peça. E, assim, temos um conhecimento fragmentado em
disciplinas, uma organização fragmentada em departamentos, uma
natureza fragmentada por catálogo. É evidente que a fragmentação
não é real. O que é real é a totalidade e o apelo da realidade como
um todo integrado é irresistível. Por isso não podemos dissociar a
escola do seu contexto mais vasto, nem decompô-la, como se os seus
componentes fossem realidades autónomas.

O repensar, ou usando uma outra palavra que prefiro, a


reinvenção da escola como um projecto educativo requer uma

114 Senge, Peter (1992). The fifth discipline. London: Century Business, 150.

134
abordagem sistémica, total. Urge, portanto, quebrar moldes. Urge sair
da armadilha do familiar. Urge perder o medo do que se não conhece.
A verdadeira missão da escola é conhecer o desconhecido, é pôr em
causa o familiar, é desformatar a realidade corrente.

Charles Handy115 diz que um mundo em mudança precisa de


ideias novas. Quantas mais houverem, tanto mais nos
acostumaremos a elas. Pensar o impensável é uma maneira de pôr a
roda da aprendizagem a andar, tanto na sociedade como nas
pessoas. Handy chama a este pensar o impensável, pensar ás
avessas, e é isso mesmo que precisamos. Como pensar a escola às
avessas?

Que aconteceria se todas as escolas, incluindo as


universidades, fossem reinventadas segundo os princípios
desenvolvimentistas que devem ser a base da educação infantil? Que
aconteceria se todas as escolas fossem concebidas como campos de
criatividade ao invés de fábricas reprodutoras? Que aconteceria se
todas as escolas fossem povoadas por adultos livres, mas
comprometidos com a incerteza e insegurança da vida, em vez de se
organizar em esquemas de emprego, de dependência e de quanta
alienação? Que aconteceria se todas as escolas se transformassem
em centros de investigação e de ciência em vez de continuarem a ser
enquadramentos de técnicos? Que aconteceria se todas as escolas
deixassem de ser lugares limitados por muros e paredes e passassem
a ser espaços-tempo que incluíssem no seu quotidiano as mais
diversas realidades, como a família, a empresa, ou outras
organizações sociais?

O pensar às avessas permite-nos utilizar as nossas asas para


descortinar horizontes possíveis cada vez mais vastos. Pode ajudar a
libertarmo-nos da armadilha do familiar e a encontrar caminhos
novos. Decerto que nos apela à visão de uma realidade emergente
mais de acordo com as nossas possibilidades. Pensar uma outra
realidade possível é condição sine qua non de qualquer processo de
desenvolvimento, que deverá ser sempre um processo de
transformação. É isso que promove o estabelecimento de uma cultura
de excelência, de uma comunidade ética e moral, de uma vivência
mais democrática e mais livre.

Asas e raízes. Talvez seja na tensão que entre elas existe que
vive a nossa dimensão educacional. Talvez a fecundidade do adulto se
alimente da possibilidade da criança. Talvez a realidade humana mais
verdadeira seja a criança. Que fazer, todavia, do ser complicado em
que nos tornámos? Como redescobrir um processo educativo que nos
liberte para a vida sem nos amarrar a um amanhã prescrito?

115Handy, Charles (1990). The age of unreason. London: Arrow Books Limited, p.
201.

135
Que aconteceu às asas da nossa curiosidade de crianças, que
tudo inquiriam, tudo punham em causa, tudo exploravam? Onde
estão os horizontes vastos que nos permitiam pensar o impensável?
Talvez que tenhamos de esquecer muito daquilo que aprendemos na
escola. É pena que tenhamos de reaprender o que nos era natural
como crianças.

136
Educação intercultural: Caminhos e horizontes

Quem não se recorda da primeira vez que viu aquilo que


convencionalmente se chamava o outro! São sempre momentos
surpreendentes e fascinantes. A fusão repentina da imagem e do
olhar são como que pequenos momentos de criação. Parecem o
eclodir de pequenos universos, a metamorfose de bocadinhos de
matéria criando um real concreto. Nesse momento aquilo que era
imagem fez-se gente, que falava como nós, que mexia como nós, que
precisava de se alimentar como nós, que amava como nós, que
desgostava de certas coisas como nós, que tinha uma história como
nós.

O outro. A outra. Havia sempre tantas coisas que queríamos


saber sobre eles. E as perguntas cascateavam na ânsia de se
descobrir qualquer coisa, qualquer coisa diferente daquilo que
conhecíamos. O outro, a outra, eram isso mesmo. Tinham de ser
diferentes. Quem cresceu, como eu, na Europa dos cinquenta e dos
sessenta, o outro e a outra, eram aqueles que conhecíamos dos livros
de história, descendentes daqueles avoengos com os quais, ou contra
os quais, os nossos próprios se haviam afirmado. É claro que sob o sol
de uma praia qualquer, ou à sombra refrescante de uma imperial, não
havia história, por mais descrita e prescritiva, que não se alterasse
profundamente face à realidade do outro, ou da outra, materializados.

Numa nação pluricontinental e pluriracial, como então se dizia,


o outra e a outra não eram tanto os povos das nossas sete partidas
do mundo, aqueles que viviam muito para lá dos nossos horizontes de
cor e som. Os povos do nosso império não eram bem o outro, ou a
outra. Esses conhecíamo-los bem dos livros de geografia, e, acima de
tudo, pertenciam-nos. Eram grandes-pequenas partes daquele corpo
de que éramos a cabeça e a consciência. Podíamos nunca tê-los visto,
mas conhecíamo-los. Possuíamos descrições suficientes para não ter
grandes dúvidas. Angola e Timor eram assim como os Açores, talvez
um pouco mais longe. Tínhamos ideias perfeitamente concebidas
sobre quem e o que eram.

Havia mérito nesse conhecimento. Se bem que a ideia de


colonização fosse contestada por alguns daqueles que eram mesmo-
nossos, esta ideia geral de posse e de pertença, bem no fundo,
parecia fazer algum sentido. A nossa história lá dizia que havíamos
confrontado adamastores no desejo de libertar essas almas da sua
barbárie e ignorância. Deste modo, a nossa condição de possuidores
parecia diluir-se na condição de pai. Esta simplificação linear parecia
óbvia. Só que, como qualquer pai de meia idade sabe, a parte mais
longínqua do corpo que consegue ver é o próprio umbigo. Por outro
lado, no Estado autoritário em que vivíamos, se aqueles que viviam

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para lá do Cabo Espichel não tinham muita liberdade, nós também,
não nos safávamos lá muito melhor.

Ironia aparte, o esforço de apresentar graficamente os povos e


as pessoas que faziam parte do nosso império, apresenta
singularidades interessantes que, por vezes, entravam em profunda
contradição com a política oficial. Se por um lado, era considerado
necessário doutrinar a cabeça lusíada na noção de que éramos
maiores do que o nosso quintal, por outro, era considerado perigoso
potencializar o encontro das pessoas. Tivemos sempre a mania e o
medo das grandezas. Quem não se lembra de decorar o nome do
mais pequeno riacho de S. Tomé, ou os produtos típicos de cada
região angolana, ou a parecença dos mais diversos grupos daqueles
que eram nossos e que nunca tínhamos visto. Por outro lado, os
nossos livros oficiais incluíam alguns textos, obviamente não políticos,
de escritores que viviam dentro dos confins do nosso império. Já de
brasileiros não havia tantos. Esses tinham buscado caminhos
diferentes. Eram periodicamente amados como uns filhos pródigos, só
que com mais dinheirinho que os progenitores.

Apercebi-me, julgo que pela primeira vez, destas singularidades


e inconsistências numa aula que tratava de multiculturalismo, ou de
relações raciais, na Universidade de Massachusetts. O professor
Marvin Scott, era um afro-americano muito envolvido na luta pelos
direitos cívicos do seu povo. Possuía uma inteligência brilhante, uma
ironia mordaz, uma argumentação desarmante, uma capacidade de
comunicação invejável e uma frontalidade incomodativa. Parecia
conhecer bem África (o que não era muito vulgar, nem ainda o é) e
revoltava-o a invisibilidade a que o sistema educacional americano –
fundamentalmente eurocêntrico – votava quase todas as minorias
étnicas. Numa dessas suas tiradas disse que, numa das suas estadias
em Angola, se tinha apercebido que o governo fascista de Portugal
olhava os povos colonizados com maior humanidade, pois nos livros
oficiais da escola esses povos não eram invisíveis, mas encontravam-
se representados. Lembro-me de ter ficado mais aturdido que inchado
de fervor patriótico.

É claro que essa representação não fazia de nós um povo


aparte, um povo eleito, imunizado contra o vírus do racismo. O
passado recente e o presente, bem que esclarecem esta situação. De
qualquer modo, o ser-se considerado como o outro, a outra, tem
muito a ver com esse factor de pertença, de comunidade, que se
constrói em grande parte com conhecimento. Mas não só.

Lembro-me muito melhor de ter a noção exacta de ser


considerado como o outro, algumas vezes dentro da minha própria
casa nacional, como alguém, cuja imagem era tecida de preconceito
em vez de conhecimento, e, por conseguinte, eivada de ignorância. É
vulgar falarmos do desconhecimento que os povos da América do

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Norte têm em relação à Europa e usamos muitas vezes essa situação
como um dos critérios por que julgamos os seus sistemas de
educação. Na Europa dos sessenta, todavia, quem é que conhecia
Portugal? Não fora o Eusébio e o Benfica Lissabon e talvez nos tivesse
sido impossível aderir à União Europeia por invisibilidade geográfica.

Cada um de nós é, ao mesmo tempo, nós e o outro. Para


alguém somos Abel e para um outro alguém seremos decididamente
Caim. Como compreender de outro modo a dinâmica da violência na
Irlanda do Norte, o hediondo das limpezas étnicas surgidas no
desintegrar da República Jugoslava, as guerras fratricidas
despontadas no dealbar das liberdades africanas, o reacender da
violência como móbil político de nacionalismos serôdios, a barbárie de
cabeças rapadas, de claques futebolescas, de gangs?

Talvez mais trágico pareça ser a invisibilidade a que votámos


sectores inteiros da humanidade. Quem é que verdadeiramente se
interessa pelos genocídios dos Ruandas deste mundo, pelos milhões
de crianças vivendo mortes lentas e morrendo nos novos campos de
concentração, ou pela pobreza apoucada e pela miséria praticamente
endémica que ainda afloram as periferias das nossas cidades,
supostamente ricas e desenvolvidas?

Se isto é desenvolvimento, onde está a educação? E se há


educação onde está a sua acção transformadora? Se não há
transformação, onde está a aprendizagem? Será que continuamos
limitados a informação sobre o outro? Será que o outro, ou a outra,
mais não são do que alíneas num compêndio qualquer? Será que uma
simples assinatura do National Geographic poderá substituir-se ao
encontro com esse outro, com essa outra? Será que o outro vale pela
sua diferença ou pela sua singularidade? Será que, no nosso íntimo,
ainda procuramos a frieza de um separate but equal, ou a hipocrisia
de aceitarmos alguém como mesmo-nosso, desde que esse alguém
viva longe, psicologicamente tão longe como um pouco mais que
para além dos Açores?

O eu e o outro mais não são que personificações do sentir e do


agir de milhões de pessoas, de nações e de sociedades inteiras.
Falamos de interculturalismo, de multiculturalismo, de pluralismo, de
diversidade como se estes fenómenos se passassem somente ao
nível das chamadas culturas étnicas, ou linguísticas, ou até sexuais,
mas o real não é assim tão fácil, nem tão linear. Se o fosse, decerto
que o esforço dispendido em programas de estudos étnicos, em
currículos para a paz, em engenharia policial, já teria trazido alguns
benefícios. Todavia, tal como nos incêndios de Verão, mal apagamos
um, logo outro se ateia. Serão o racismo, a xenofobia, a violência
inter-étnica endémicos na nossa espécie? Será que o que mais nos
separa são mesmo essas diferenças? Será que teremos mesmo de
repetir a tragédia de Abel e de Caim geração após geração, vida após

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vida, morte após morte? Como refazer das cinzas a nossa matriz
comum? Como reavivar essa ancestralidade herdada? Como afirmar a
humanidade que nos define e nos contextualiza?

E, todavia, quem é que não se lembra dessa primeira


experiência em que nos sentimos nós no meio de tanta suposta
diferença? Quem é que ainda se não deixou perder, ainda que
momentaneamente, no olhar supostamente exótico do outro ou da
outra? Quem é que ainda não viveu os momentos mais sublimes de
humanidade partilhada, exactamente quando as características
pessoais pareciam ser mesmo diferenças? Aliás, não será esse um
dos grandes atractivos e catalizadores de sucesso dos grandes
areópagos da humanidade, das Expo98, dos grandes movimentos
ecuménicos, sejam estes religiosos, políticos ou sociais?

Estou convencido que só nos realizamos completamente como


pessoas, na nossa diversidade grandiosa e na beleza da nossa
singularidade. O saber nascido da homogeneidade parece-me cada
vez mais um saber estéril, descontextualizado, incestuoso. Daí a
importância duma visão holística da educação: uma visão que parta
da realidade multicultural para uma dinâmica intercultural mais
enriquecedora. Por outro lado, a interculturalidade sempre existiu. É
praticamente impossível conter a diversidade em cada um dos seus
elementos. As diferentes culturas, etnias e línguas sempre se
entrecruzaram e interpenetraram. Bastará relancear qualquer
dicionário, manual de cozinha, ou simplesmente olhar os rostos que
passam por nós numa rua qualquer, para nos darmos conta dos
milénios de encontros.

O que está em causa não poderá ser, portanto, se houve ou não


interculturalidade. Nem mesmo, se houve processos educativos que
focassem o fenómeno das relações entre culturas. É claro que houve,
e, em muitos casos, esse esforço foi mesmo deliberado. Gregos e
romanos, impérios europeus, asiáticos, africanos ou das Américas,
diferentes religiões organizadas, todos estabeleceram políticas de
relacionamento e de educação intercultural. O que está em causa é a
motivação desse esforço. O que interessa percorrer são os caminhos
desse percurso: os caminhos da interculturalidade.

1. Os caminhos do medo e da perplexidade

A minha filha Victoria, que há pouco completou seis anos, tem


uma grande preocupação: quem é que manda lá em casa! Claro que
tudo sempre se relaciona com uma questão muito simples: como é
que ela vai conseguir fazer aquilo que quer. E assim, se a mãe lhe
proíbe qualquer coisa, ela vem direita a mim e pergunta-me como
quem não quer a coisa: Papá, quem é que manda cá em casa? Quase
sempre brinco com a resposta. Se lhe digo que é ela – o que até nem
é mentira – adianta logo: Ah, então posso fazer isto ou aquilo. Quando

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lhe pergunto se já pediu à mãe, a resposta invariável é que, sim
senhor, já o fez, mas a mãe não deixa. E adianta logo, pegando em
todos os estereótipos que observa: Mas a mãe não manda nada, tu é
que mandas! Por sua vez, à minha secretária diz que quem manda
mais nela é a mãe, porque saiu da barriga dela, e que o pai também
manda, mas só um bocadinho. Quando lhe prego o sermão do
costume, sobre autonomia e responsabilidade, vai-se embora
resmungando que um dia quem vai mandar é ela.

Não há volta a dar-lhe. As relações humanas definem-se em


grande parte por relações de poder de alguém sobre um outro ou
sobre alguma coisa. A matriz da vida, que tudo indica tende para a
interdependência e, por conseguinte, para a unidade de propósito
numa grande diversidade, encontra-se assim pervertida. Ao nível
macro da existência, o poder como forma crua de domínio parece ser
o lugar comum. Quem é que manda cá em casa?

Não me parece que essa preocupação tenha muito a ver com


um sentido de ordem, ou até mesmo de hierarquia. As ciências da
complexidade apontam para a capacidade natural que os seres têm
de se auto-organizarem e parece que as hierarquias baseadas
unicamente na relação de poder sobre também não fazem muito
sentido. A perversão principal que eu encontro é a da tentação do
domínio, a de extravasar para o território dos outros a nossa
capacidade de fazer o que queremos, a vã gloria de mandar. Parece-
me também que toda a sede de domínio nasce do medo: do medo da
insegurança, do medo do que os outros nos poderão fazer, do medo
de não sermos reconhecidos como gostaríamos de o ser, do medo do
que poderá acontecer se não controlarmos todas as variáveis. Não
creio que haja muito prazer no domínio e na opressão, a não ser o de
enganar esse medo primevo.

Parece evidente que a história das relações humanas se


encontra envenenada por este ciclo nefasto e necrofílico de domínio e
submissão. Este ciclo nasce da violência e gera violência. É por
natureza desumano. É um ciclo que corrompe tanto o dominador
como o que se submete. Tanto o opressor como o oprimido. Diz Primo
Levi116 que um regime desumano alarga-se e estende a sua
desumanidade em todas as direcções, incluindo e especialmente para
baixo; a não ser que encontre resistência e caracteres
excepcionalmente fortes, corrompe tanto as suas vítimas como os
seus opositores. Por outro lado, um regime de dominação fica
prisioneiro da sua própria desumanidade, dos seus próprios medos.
De contrário, porque submeter alguém? Porque não negociar, trocar
bens ou serviços? Não teremos nós perdido a nossa alma como nação
quando trocámos a feitoria pela fortaleza? É claro que, construída a

116Levi, Primo (1989). The drowned and the saved. New York: Vintage International,
p. 112.

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fortaleza, só a violência poderá transformar essa situação. Aliás,
conhecemos esta história, quase todos, na carne.

O assalto à fortaleza branca americana começou seriamente na


situação gerada pelo pós-guerra. A luta pelos direitos civis explodiu
em todas as frentes, as cidades incendiaram-se, os submissos
sacudiram os grilhões e a nação branca tremeu de medo e de
perplexidade. Tremeu, porque qualquer situação que ponha em causa
qualquer status quo cria instabilidade. Tremeu de medo, porque a
contestação radical e organizada de grandes grupos tidos como
satisfeitos e obedientes ameaça a segurança pessoal e colectiva e
põe em causa a arquitectura social. Tremeu de perplexidade, porque
a matéria da reivindicação desses grandes grupos enquadrava-se
geralmente nos grandes princípios apregoados como a essência
dessa sociedade de alguns. Como negar a milhões de cidadãos os
direitos especificamente consignados na Constituição? Como negar-
lhes o direito ao voto, por exemplo?

Aliás, o direito de votar já tinha sido o catalizador de uma outra


revolução, no primeiro quartel do século: a luta das mulheres por esse
direito. O Movimento Sufragista, todavia, apesar de ter abalado a
fortaleza branca masculina, não logrou modificá-la substancialmente.
O Movimento Sufragista era um movimento essencialmente de
brancos. Uma vez conseguido o direito ao voto, as mulheres
resubmeteram-se à sua condição social. Mesmo o surto da
intervenção feminina no aparelho de produção das nações durante as
duas Grandes Guerras não teve duração. Acabada a guerra, pareceu
lógico devolver os postos de trabalhos aos homens e reenviar as
mulheres para o conforto anestesiante das suas moradias.

Desta vez, todavia, tudo era diferente. Da luta pelos direitos


civis, passou-se à luta pelos direitos humanos. Súbito, não eram só
negros que lutavam pelos seus direitos, mas mulheres que
reivindicavam a sua humanidade completa, minorias linguísticas que
queriam o seu lugar ao sol, jovens que se opunham a uma guerra
considerada injusta, outros que se opunham a toda e qualquer guerra,
minorias políticas que, aproveitando essa revolução de ideias e
pessoas, semeavam a violência, estudantes que exigiam a
reformulação da escola, dos currículos, do seu próprio futuro.

E o que é que a sociedade branca, masculina americana tinha


para lhes dar? Um ideal inverosímil, gasto, perfeitamente enquadrado
no ciclo de dominação-submissão que estabelecera: a noção do
Homo Americanus, animal saído da fusão de todas as etnias que
haviam formado e que continuavam a formar a América, num cadinho
mágico, o tal melting pot. Claro que o modelo que se queria que
saísse do cadinho mágico não era outro senão o do macho americano
anglo-saxónico. Quem não se lhe conseguisse assemelhar, não
pretendia ou não tinha, obviamente, capacidade para entrar no

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cadinho e redimir-se. Gente como essa, não deveria ser considerada
cidadã.

Alguns tentaram trepar para o cadinho, mas de pouco lhes


valeu. De pouco lhes valeu mudar o António em Tony e o Machado em
Marshall. De pouco lhes valeu alourar o cabelo e desmaiar as cores da
face casando com outros ou com outras que, apesar de possuírem
esses atributos físicos, também, por outras razões, não estavam no
cadinho. De pouco lhes valeu esquecer as migas alentejanas, a
alcatra açoriana, ou os rojões à moda do Minho e converterem-se
àquilo que eles julgavam ser o maná do cadinho: o hamburger e as
french fries. A verdade é que a classe dominante, simplesmente, não
estava no cadinho. Pior ainda, não havia nenhum cadinho. Tudo pouco
mais era do que um mito. Mas depois de tanto esforço era difícil
abandonar o mito. Que lhes restaria?

Cheguei aos Estados Unidos na cauda dessa primeira


efervescência. Já vivera na Europa, ainda que insipidamente, os
movimentos de contestação a uma sociedade falida, que pouco
aprendera com a hecatombe da 2ª Guerra Mundial, e que mal as
armas se haviam calado, tentara voltar placidamente às suas rotinas.
Tinha participado nas franjas dos pequenos grupos que discutiam a
inviabilidade do Portugal daqueles tempos e da justeza da guerra em
África. Nada, todavia, me havia preparado para a América do começo
dos anos setenta. Não havia lugar para a neutralidade. Havia que
escolher e depressa. Pela primeira vez, eu via a liderança na rua, isto
é, cada cidadão podia, devia e exercia os seus direitos e opções
políticas. Não havia cadinhos, nem homines americani, mas pessoas
em toda a sua diversidade biológica e cultural.

Subitamente, todos procuravam uma pátria cultural. Ser-se


étnico estava definitivamente na moda. Quem não descobria uma avó
Cherokee, inventava uma Cheyenne. Os moldes estavam quebrados.
A América afinal, era multicultural, abençoadamente assim. A
consciência da multiculturalidade tornou toda a gente visível, política
e socialmente. Começaram a surgir, nas escolas, os Black Studies, os
Portuguese Studies, os Hispanic Studies, os Women Studies e,
finalmente, aquilo que ficou conhecido como a educação
multicultural.

O establishment havia tido medo e cedera. Mas soube reagir.


Na ânsia de perpetuar por mais algum tempo a sua influência, o
establishment agarrou a bandeira da multiculturalidade e à boa
maneira americana, comercializou-a. Uma coisa é certa: uma vez
entreaberta a porta é quase impossível voltar a fechá-la. Já o Mem
Martins o havia demonstrado cabalmente na conquista de Lisboa. E
assim a educação multicultural prevalece apesar dos ataques que
tem sofrido e das continuadas tentativas de a amesquinhar e
ridicularizar.

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A educação multicultural é, como toda a educação, uma
afirmação política destinada a estimular (1) o desenvolvimento da
identidade de pessoas e grupos, (2) o reconhecimento do valor da
diversidade cultural e linguística, (3) o estabelecimento de projectos
de cooperação, (4) a promoção dos direitos humanos e do respeito
pela diferença, (5) a compreensão pela escolha de estilos de vida
alternativos, (6) o alargamento e aprofundamento da justiça social e
da igualdade de oportunidades, e a facilitar a distribuição equitativa
de poder entre indivíduos e grupos 117. Como todo e qualquer processo
de aprendizagem, a educação multicultural é um processo de
transformação da realidade. Não faz sentido de outro modo.

A educação multicultural nasceu da necessidade de aprofundar


o conhecimento e a interpenetração de culturas, e de promover a
erradicação das situações de injustiça. O caminho do medo levou,
assim, a um projecto de redenção, que envolveu dominadores e
dominados num processo de alargamento e de aprofundamento das
práticas da democracia, da justiça e da liberdade. O caminho,
todavia, não foi nem continua a ser linear. Aliás, tal nem sequer é
possível. A chamada educação multicultural foi lançada como uma
válvula de escape. Dava-se espaço às minorias raciais, étnicas ou
linguísticas para falar e analisar mais aprofundadamente quem eram
e como se viam como pessoas e grupos, no contexto curricular da
escola.

Nesse primeiro instante, essas disciplinas eram frequentadas


quase unicamente pelos membros dos diversos grupos e, por um ou
outro raro estudante turista que por razões ideológicas ou de simples
solidariedade consciente se sentia na necessidade de alargar o seu
mundo intelectual e social. Esses espaços curriculares, todavia, não
eram fáceis de penetrar. Eram considerados como um território
privado em que os membros de um determinado grupo se sentiam
livre, identificados, visíveis. De algum modo, era um espaço
terapêutico, mas era também um espaço contentor.

Num estudo que há quase 20 anos fiz sobre os Portugueses na


Nova Inglaterra, propus que uma comunidade se afirma através do
seu sentido de identidade, do seu sentido de propósito e do seu
sentido de território. O sentido de identidade de uma comunidade
emigrada, como, por exemplo, a comunidade portuguesa emigrada
para os Estados Unidos não se afirma tão automaticamente como se
poderia supor. Fala-se à boca cheia das velhas culturas europeias face
às suas mais novas congéneres do Novo Mundo. A realidade, todavia,
oferece dinâmicas muito diferentes. A comunidade portuguesa, a
exemplo de muitas outras era e, de certo modo, continua a ser, uma

117Udvari-Solner, Alice, Thousand, Jacqueline S. (1995). Promising practices that


foster inclusive education. In Villa, Richard A., Thousand, Jacqueline S. (Eds.).
Creating an inclusive school. Alexandria, VA: ASCD, p. 87.

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manta de retalhos, um mosaico de mini-subculturas que praticamente
só surge como uma espécie de todo nas grandes festas religiosas e
na mercearia da esquina. Uma visita a Cambridge Street, em
Cambridge, Massachusetts era uma visita pelos arquipélagos dos
Açores e da Madeira e pelo continente: cada ilha com seu clube e,
durante muito tempo, com a sua festa religiosa própria. A barreira da
língua e de alguns costumes, a passagem de uma cultura rural para
uma cultural industrial, já a acenar a era pós-industrial, a alteração
profunda do papel da mulher e da criança na família, e a força
centrípeta exercida pelos clãs, impediram durante muito tempo a
comunidade portuguesa de se sentir como um todo.

É muito difícil a uma comunidade emigrada – quer num país,


quer dentro do seu próprio – perceber as regras de jogo do poder. A
imagem que geralmente têm do poder, tem pouco a ver com a sua
capacidade e direito de intervenção na vida social e política. A
imagem que quase sempre tem do poder é a da díade domínio-
submissão. Esta concepção de poder como poder sobre é tanto
interiorizada por quem domina como por quem lhe é submisso. É por
isso que o encarregado ou encarregada de serviço numa fábrica trata
muitas vezes aqueles e aquelas que dele ou dela dependem
hierarquicamente como costumavam ser tratados ou tratadas na
situação inversa.

O sentido da identidade como uma comunidade maior começou


a surgir mercê do trabalho de politização das pessoas e do esforço
dispendido nas escolas. Esse trabalho de consciencialização das
pessoas para a realidade nova em que se inserem e a prática de
processos educativos que levem à libertação dessas mesmas pessoas
é difícil de conseguir sem a afirmação de líderes que se solidarizem
com essas situações de discriminação e de disfranchisement. O
trabalho desses líderes, venham eles de onde vierem, só ganha
eficácia e autenticidade quando promove e reconhece as lideranças
formais e informais que emergem na comunidade. Um dos homens
com quem mais aprendi sobre política era completamente analfabeto
e ainda hoje o reconheço como um dos meus grandes mestres. É aqui
que os professores, associados por língua ou etnia a grupos que
vegetam na base da pirâmide do poder tradicional, têm uma
responsabilidade acrescida e uma oportunidade que não podem de
modo algum desperdiçar.

É através da acção da liderança transformadora que as


comunidades chegam ao sentido do propósito, aquilo que em termos
de gestão chamamos de visão. A construção destes consensos de
acção concertada é um processo longo e difícil. É fácil congregar
vontades face a situações de grande crise. É muito mais difícil
acordar em linhas gerais de planos de desenvolvimento e de acção
política concertada. Daí uma das razões porque as comunidades
sentem grande dificuldade em eleger os seus próprios representantes

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políticos, mesmo quando constituem a maioria. Os primeiros políticos
portugueses na América das décadas de setenta e oitenta foram
geralmente eleitos sem grandes apoios dos seus pares. As gerações,
todavia, que saíram das escolas transformadas pela
multiculturalidade, já o conseguem com maior facilidade.

O sentido do território é o terceiro pilar sobre que assenta a


afirmação de uma comunidade coesa. A identificação de um grupo
com um determinado território é fundamental nos primeiros estádios
de desenvolvimento de uma comunidade. O território oferece um
módico de segurança física e psicológica. É a praça da aldeia em terra
estranha. É o ponto de partida das viagens de exploração ao resto da
cidade. São também as barricadas em que se refugiam. Nessas
primeiras fases, o território comunitário toma muitas vezes a forma
de ghetto. É um lugar separado. Conhecido para quem lá vive.
Intimidador para quem o visita.

O sentido do território perde significado à medida que os


sentidos de identidade e de propósito se desenvolvem. Passa-se,
assim, do medo à perplexidade e da perplexidade à interdependência
– à terra comum. A escola, com todos os seus pequenos ghettos,
oferece aos jovens a vivência de um espaço comum, duma vida
alargada, de contacto com o que está para lá das barricadas, sem que
para isso se tenham de planear incursões. É lá que se podem forjar as
alianças nascidas do conhecimento comungado e praticar a vida livre
nas decisões negociadas e partilhadas.

A escola desempenha, assim, um papel crucial no


desenvolvimento desses grupos e é por isso que não concebo uma
educação multicultural que não inclua estes dois aspectos principais:
(1) a educação da criança numa perspectiva multicultural, se possível
num contexto intercultural, e (2) a construção de um mundo mais
democrático, mais justo e mais livre. A lição americana demonstra as
potencialidades e a possibilidade de uma tal caminhada. Comparar a
sociedade americana dos nossos dias com aquela que se lhes
precedeu é encontrar dois mundos muito diferentes. Apesar de tudo,
não há dúvida que a sociedade americana está hoje muito mais
aberta à participação das mulheres e de membros de grupos étnicos
diferentes da matriz-poder, na vida produtiva, política e religiosa
desse país118.

A multiculturalidade, tal como surgiu nos Estados Unidos, forçou


a sociedade a repensar e a modificar comportamentos sociais. Como
diz Aronowitz119: Mesmo dentre aqueles que discriminam na base da
raça ou do sexo, muitos admitem que o direito e os costumes devem

118 Aronowitz, Stanley (1997). Between nationality and class. Harvard Educational
Review, 67 (2), p.190.
119 Aronowitz, Stanley (1997). Between nationality and class. Harvard Educational
Review, 67 (2), p.192.

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ser alterados para permitir aos excluídos a entrada na vida pública.
Talvez o exemplo mais vívido deste comportamento contraditório seja
o da affirmative action. Como sabem, affirmative action, acção
afirmativa, é o sistema pelo qual empresas e agências
governamentais estabelecem quotas para mulheres ou minorias
raciais. Foi a acção afirmativa que permitiu a líderes de minorias
entrarem nos quadros docentes e administrativos das escolas para
poderem daí, exercer a sua mais ampla acção transformadora.

No quadro mais geral, a afirmação dos Estados Unidos como


uma nação verdadeiramente multicultural não teria sido possível sem
a acção de líderes como Martin Luther King, Cesar Chavez, Malcolm X
e das organizações que os sustentavam. Também não teria sido
possível sem a acção de um Presidente como Johnson, que se por um
lado ficou para sempre ligado à escalada da guerra no Vietname, por
outro, arriscou todo o seu prestígio e esforço na luta contra a pobreza.

Enquanto que os Estados Unidos se descobriram como nação


multicultural, a situação na Europa parece ligeiramente diferente. A
Europa foi sempre, mesmo sob os impérios dos Césares, dos
Habsburgos ou de Napoleão, um mosaico de culturas diferenciadas,
ou pelo menos, julgadas diferenciadas. Se bem que os Estados Unidos
o tenham também sido desde sempre, parece haver uma diferença
importante: enquanto as diferentes culturas se encontraram nos
Estados Unidos num território comum, as culturas europeias definiam-
se tanto por aquilo que eram como pelo território que ocupavam. A
multiculturalidade americana é uma tomada de consciência. A
multiculturalidade europeia é um xadrez de muitos chãos. E esses
chãos, embora mitos, separam as culturas umas das outras tal e qual
como os portões de um ghetto qualquer.

Daí que falar-se de multiculturalidade na Europa é afirmar


aquilo que é óbvio. O problema imediato não reside numa tomada de
consciência dessa pluralidade. O problema imediato parece centrar-se
nas relações entre as culturas, por outras palavras, na
interculturalidade, sobretudo numa altura em que pela primeira vez, a
construção da Europa como uma União parece uma inevitabilidade. A
situação, todavia, não é assim tão linear. Os chãos-ghettos culturais já
não são tão uniformemente culturais. A mobilidade das pessoas
induzida por realidades políticas, económicas e sociais cada vez mais
complexas alterou profundamente a relação pessoa-cultura-chão.
Onde antes se reconheciam os vizinhos como quase parentes, hoje a
nossa rua é um areópago de cores, de cheiros e de línguas estranhas.
E se essas mudanças, há trinta anos, eram mais sentidas nas nações
do centro e do norte da Europa, devido às migrações das gentes do
sul, nos dias que correm atingem toda União com a imigração de
milhares e de milhões de pessoas fazendo a rota das descobertas no
sentido inverso. E se isso não bastasse, este cantinho à beira-mar
plantado vê-se súbito invadido por holandeses que acham que o

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Alentejo é mesmo bom para a agricultura, e por espanhóis que nos
vêem como uma extensão natural dos seus mercados, e por romenos
e búlgaros e outras gentes que mal conhecíamos dos livros de
geografia, e por aqueles que conhecíamos dos livros de geografia,
mas que julgávamos acomodados um pouco mais para além dos
Açores, especialmente agora que já não nos tinham como cabeça e
consciência.

E súbito, o nosso vizinho é o outro, ali, mesmo ao pé da nossa


porta. E não é um só outro, mas muitos outros. Tantos que parecem
mais que nós. O nosso chão, de repente, deixou de ser só nosso.
Portugal parece já não ser só dos portugueses, pois qualquer outro
pode ser português. E as escolas? Como ensinar Português quando a
maioria nas classes às vezes nem o fala? E como ensinar Matemática
nestas condições? E Física? E como falar com os pais? E quem são os
pais? Ah, o medo, a perplexidade, a maravilha da multiculturalidade!

O problema europeu adensa-se, pois nem as classes sociais,


refúgio e território mítico, podem continuar a providenciar a
segurança e os sentidos de identidade e de propósito que nos
alimentavam e protegiam. As linhas divisórias são cada vez mais
fluidas e o poder tradicional dissipa-se em reformulações novas de
agrupamentos sociais. Este rodopiar de pessoas e de estatutos de
poder, se bem que tenda a alargar a participação na vida pública, não
tende naturalmente para a eliminação de situações de discriminação
e de exclusão.

Por outro lado, as assimetrias norte-sul e oeste-leste, na Europa,


apresentam um desafio tremendo à construção de uma Europa capaz
de se afirmar e competir eficazmente num mundo globalizado. A
Europa dos chãos tem de ceder, assim, terreno à Europa das
consciências. A cultura-chão parece ter de se transformar numa
vivência cultural interdependente. Impõe-se nivelar as assimetrias
económicas e sociais. Os consensos éticos dos nossos dias não
toleram situações abertas de discriminação, de racismo, de
xenofobia, de exclusão.

Daí, de novo, a importância da escola. Daí o imperativo de


reformular a vivência curricular para que toda esta realidade possa
começar a ser percebida e resolvida. Daí a necessidade de um
processo educativo que, partindo da realidade cada vez mais
multicultural, anuncie caminhos novos de relacionamento
intercultural.

A tensão eficiência-eficácia pode, todavia, perverter toda esta


vontade legítima. Na ânsia de resolver conflitos de milénios, a
tentação de recorrer a processos de engenharia social é muito

148
grande. E não há melhor fábrica para esses processos que a escola.
Diz Derek Woodrow120:

Na Europa ocidental os educadores marxistas das


décadas de 60 e 70 estabeleceram claramente que a
educação é um veículo para a socialização, para
confirmar e continuar a ordem social e para condicionar a
população aos seus diversos papeis. Mais recentemente,
ela tem sido compreendida como um veículo para
enculturação, se bem que não tão abertamente como
uma manifestação política.. É esta noção de enculturação
que tem servido de base a muita educação multicultural
e plural, pois pressupõe a possibilidade de afectar
gerações futuras a uma conformidade de aceitação, ao
invés da enculturação dos alunos pelos seus próprios
ambientes sociais racistas. (…) Isto resulta na
substituição da ratoeira medieval da servidão pela versão
moderna de subverter pessoas em seres ao serviço do
estado.

Esta visão determinista e prescritiva da educação de modo


algum pode levar àquele nível de desenvolvimento de relacionamento
intercultural passível de transformar a realidade. Qualquer concepção
mecanicista da realidade pressupõe um futuro fechado e prescrito,
um futuro que por ser fechado e prescrito não é necessariamente
futuro, mas um presente continuado. Ora o desenvolvimento, por
natureza, não pode ocorrer em tais ambientes. O desenvolvimento
ocorre em ambientes abertos, emergentes. A história como
inevitabilidade determinista tem tido os resultados que todos
conhecemos. Esboroa-se como a areia num dia de vendaval.

A educação intercultural não pode de modo algum confundir-se


com enculturação, nem com aculturação. A interculturalidade
alimenta-se da noção de que a vida, a realidade, o mundo são plurais,
diversos, complexos e constroem-se segundo princípios
desenvolvimentistas como sejam a democracia, a justiça e a
liberdade. Tudo isto pressupõe uma escola que se define a partir do
seu contexto imediato e em direcção a um horizonte mais amplo e
melhor. Tudo isto pressupõe uma educação que seja mais
aprendizagem que treino, mais ciência que tecnologia, mais
investigação que transmissão, mais saber que informação, mais
sabedoria que saber, mais formação que formatação, mais esperança
que medo de um futuro aberto.

A tendência, todavia, de muitos países europeus não tem sido


essa, mas exactamente a oposta; a de regular, determinar e

120Woodrow, Derek (1997). Social construction of theoretical beliefs. In Woodrow,


Derek et al. (Eds.). Intercultural education: Theories, policies and practices.
Aldershot: Ashgate, p. 30.

149
prescrever o que se ensina, como se ensina e quando se ensina. Tudo
devidamente estruturado, inspeccionado e medido. O caso inglês
talvez seja o mais paradigmático. As escolas inglesas que se definiam
por uma preocupação consciente pelos contextos educacionais dos
alunos vêem-se hoje manietadas no determinismo do Acto de
Reforma Educacional de 1988. Uma realidade determinada é uma
realidade estática, uma realidade que perpetua o status quo. Ora o
status quo ainda é eminentemente discriminatório e exclusivista.
Verma121 diz que: Muitos estados da Europa Ocidental afirmam, e
provavelmente acreditam, que promovem a igualdade e que esta é
um pilar das suas leis e administração. Infelizmente, todavia,
podemos sem grande dificuldade argumentar o contrário. Ora a
educação intercultural não pode reduzir-se a um processo de troca
informativa dos aspectos culturais mais evidentes, nem tão pouco
definir-se por uma abordagem destes fenómenos sociais que não
passa de um falar desentranhado. Muito pelo contrário, a educação
intercultural tem de ter por base a formação de cidadãos capazes de
perceber a natureza plural da vida e de agir sobre essa realidade
transformando-a continuadamente em algo melhor.

A educação intercultural nasce da consciencialização da


diferença que corrompe e parte para a acção que integra e dignifica.
Derek Woodrow122 diz que: Muita da iniciativa relacionada com a
preocupação presente pela educação intercultural (…) deriva da
preocupação com injustiças e discriminação. E Garcia-Castano e
Pulido-Moyano123 referem que um dos objectivos da educação
intercultural deve ser o de

(…) prover o aluno com os recursos cognitivos para


(a) conhecer a diversidade e as diferenças culturais no
seu contexto ambiental;
(b) perceber e analisar desigualdades sociais, as quais
através da utilização de diversidades e diferenças se
tornam em desigualdades na distribuição de poder e
de recursos na sociedade;
(c) criticar tal discurso e construir propostas de
transformação; e
(d) empenharem-se pessoalmente de maneira crítica e
activa em acção social.

121 Verma, Gajendra K. (1997). Inequality and multicultural education. In Woodrow,


Derek et al. (Eds.). Intercultural education: Theories, policies and practices.
Aldershot: Ashgate, p. 56.
122 Woodrow, Derek (1997). Social construction of theoretical beliefs. In Woodrow,
Derek et al. (Eds.). Intercultural education: Theories, policies and practices.
Aldershot: Ashgate, p. 29.
123 Garcia-Castano, F. Javier, Pulido-Moyano, Rafael A. (1997). Multicultural
education and the concept of culture: a view from social anthropology. In
Woodrow, Derek et al. (Eds.). Intercultural education: Theories, policies and
practices. Aldershot: Ashgate, p. 127.

150
Em última análise, os objectivos da educação intercultural são
aqueles que definem hoje qualquer visão da educação. Quer isto
dizer, que num mundo plural não cabe nenhum conceito de educação
que não pressuponha essa pluralidade, que não seja intercultural.
Todavia, aquilo que vemos não é bem assim. A interculturalidade
aparece como algo periférico, quando devia constituir a centralidade
da escola. Pois como educar crianças, todas elas plurais, em sistemas
afirmadamente monoculturais, monolinguísticos e monolíticos.

2. Os horizontes da nossa oportunidade

A famosa antropóloga Margaret Mead124 disse uma vez: Não


duvides que um grupo pequeno de cidadãos conscienciosos e
empenhados pode transformar o mundo. Na realidade, é a única
coisa que alguma vez o fez. A transformação do mundo em que, como
educadores, temos necessariamente de estar empenhados, não é
possível sem que comunguemos de um mesmo horizonte de
desenvolvimento. Um horizonte não é um caminho, nem sequer um
ponto fixo e atingível. Um horizonte é algo que acompanha e que dá
significado ao nosso caminhar. É algo também que nos relaciona com
o futuro, concebido este como uma realidade aberta.

É evidente que os horizontes do desenvolvimento humano têm


sido sempre horizontes de multiculturalidade, de pluralismo, de
relacionamentos. É evidente, também, que a própria sobrevivência da
espécie tem dependido dessa diversidade. Parece difícil de entender,
todavia, que nos nossos horizontes mais imediatos tal evidência seja
pervertida por comportamentos humanos de indiscutível violência e
barbárie. Após a hecatombe horrenda do holocausto parecia inviável
que novos episódios de genocídio pudessem ocorrer. E, todavia, eles
aí estão multiplicados por alguns pontos do globo. Como explicar a
tragédia da Jugoslávia, do Ruanda, do Burundi, ou mesmo do Congo?
Como aceitar, hoje, a imagem televisionada do Presidente de um país
incitando os cidadãos a pegar em armas e a matar todos as pessoas
de uma outra etnia? Como conceber que, mesmo às nossas portas,
num dos grandes centros culturais da Europa, nações que viveram
em paz durante cinquenta anos se entreguem de súbito a limpezas
étnicas, que mais não são do que um eufemismo para genocídio?
Porque é que pessoas com elevado nível educacional, escolarizadas
nalgumas das grandes escolas da Europa, senhoras de uma herança
cultural invejável, são capazes de actos premeditados e deliberados
de indescritível selvajaria, indecência e desprezo total pelos mais
elementares princípios éticos e morais? Porque é que a herança de
Tito não sobreviveu na Jugoslávia? Parece ponto assente que o velho
marechal conseguiu, enquanto governou, estabelecer um regime de
coexistência, senão mesmo de concórdia?

124 Suzuki, David (1997). The sacred balance. Vancouver: Greystone Books, p. 218.

151
Para fenómenos tão complexos não há evidentemente
respostas simples. Gostaria, no entanto, de adiantar uma ou duas
hipóteses. O ideário educacional marxista é, por definição,
mecanicista e determinista. Quer isto dizer, que a acção do homem
pode determinar o futuro da história. E a certeza dessa possibilidade
levou, muitas vezes, a pensar que nenhum sacrifício presente seria
demais tendo em conta as benfeitorias do futuro. Como explicar de
outro modo, os milhões de mortos no processo de colectivização
agrária na URSS? Por outro lado, a opção deliberada por uma
liderança centralizada e ligada hierárquica e linearmente ao resto da
população, impossibilitava o fluxo de informação e a dinâmica
indispensáveis a qualquer processo de desenvolvimento.

O ideal do establishment dos países do leste era, pelo menos


em termos de processo, muito semelhante ao ideal do ocidente: a
formação de um novo tipo de pessoa humana, no caso, o homo
sovieticus. O processo seguido foi também semelhante: a
enculturação, por outras palavras, a clonagem cultural. A crença que
as pessoas e as sociedades se fazem através de engenharia social, de
que o sistema educacional era um dos elementos principais,
justificou os grandes movimentos forçados de pessoas na URSS, na
China, no Camboja, de certo modo, na Jugoslávia. À clonagem cultural
avançada sobretudo pela escola, seguia-se o convívio, a vizinhança
por decreto-lei.

É claro que no Ocidente também houve grandes migrações,


sobretudo do sul para o centro e norte da Europa, e nos Estados
Unidos do Sul para o Norte industrial da nação americana. Só que há
uma diferença fundamental. Esses movimentos de grandes massas
não foram manipulados directamente por nenhum órgão central. As
grandes migrações da Europa e da América, se bem que forçadas por
razões económicas, políticas e sociais, partiram da vontade de cada
um e de cada uma dessas pessoas. Havia a hipótese de não sair. E
muitos o fizeram. O fenómeno emigratório adquire, assim, contornos
diferentes. O emigrante que decide partir, parte com um alvo e com
uma esperança. Não parte com uma guia de marcha dada por
alguém. O emigrante acaba sempre por enriquecer-se e enriquecer a
nova cultura adoptada. E se bem que todos saibamos o preço
humano dessa decisão, o emigrante sente-se de algum modo como
senhor do seu destino. Houve, de qualquer modo, uma opção. O
migrante forçado sente-se manipulado. Sente-se como uma peça
descartável à mercê de desígnios que raramente percebe.

Pessoas clonadas acabam mais cedo ou mais tarde por


descobrir o embuste de que foram vítimas e a sua reacção normal é a
de rectificar essa situação, repondo uma situação julgada justa. O
problema que, todavia, se levanta é que o referencial que informa a
rectificação desse embuste é um referencial mecanicista e
determinista, o mesmo em que foram endoutrinadas: a visão da

152
história como um fenómeno inevitável porque fruto da vontade e da
engenharia humana. Esta situação agrava-se quando os próprios
referenciais de ética e moral são relativizados, como geralmente
acontece em tais sistemas: os fins tendem a justificar os meios.

A violência ad hoc ou organizada é, muitas vezes, fruto da


incapacidade de comunicar e viver interculturalmente, dado que
muitas vezes o que se pratica não é a interculturalidade como
processo de desenvolvimento, mas a interculturalidade como
processo de enculturação. É muito fácil cair nesta ratoeira,
especialmente quando pertencemos à cultura maioritária. Se os
outros se juntam a nós e querem viver connosco, que se façam como
nós, que aprendam a falar como nós, que sejam como nós. O sermos
seres singulares, todavia, inviabiliza essa metamorfose. Cor, sotaque,
costumes, mentalidades e atitudes distinguem-nos e afirmam-nos.

A dissimulação daquilo que somos na tentativa de ser como os


outros é um processo que nos desumaniza, porque nos desentranha.
Resta a aceitação do nós e do outro, despida tanto quanto possível de
preconceitos. Allport125 escreveu em 1954 que o preconceito diminui
quando os dois grupos: (1) possuem estatuto igual na situação, (2)
procuram as mesmas metas, (3) são cooperativamente dependentes
um dos outro, e (4) interagem com o apoio positivo de autoridades,
leis e costumes. A dinâmica situacional descrita por Allport define
aquilo que hoje chamamos de interdependência. Ora a
interdependência só pode ser vivida em sociedades abertas, livres,
incertas, indeterminadas, caóticas, emergentes. Creio ser esta
percepção da interdependência como processo de vida, um dos
grandes, ou talvez o mais importante horizonte de desenvolvimento
para que teremos de caminhar. Não há possibilidade de enculturação
numa vivência interdependente, nem há lugar para a diferença, nem
para o preconceito. Na interdependência cada ser afirma-se como
único, e é essa singularidade que define a igualdade das pessoas.

Gostaria, para terminar, de apontar alguns dos grandes desafios


e das grandes oportunidades que se nos apresentam:

1 O neo-liberalismo amoral e o endeusamento do mercado


parecem-me neste momento um desafio difícil de enfrentar. Se
por um lado o neo-liberalismo é a atitude politicamente correcta
do momento, por outro, quando acoplado à amoralidade que
também parece definir os nossos dias, poderá facilmente
subverter os ideais maiores da democracia, da justiça e da
liberdade em que assenta toda a nossa civilização. Nenhum mal
existe no liberalismo, nem no mercado. Mas o emparelhamento
do neo-liberalismo amoral com o endeusamento do mercado só
poderá levar a situações de grande clivagem social. Estas

125 Jones, James M. (1972). Prejudice and racism. Reading: Addison-Wesley


Publishing company, p. 43.

153
tendências e evidências parecem, também, definir a história
dos nossos dias. Os resultados não poderão ser bons, a não ser
que agarremos a oportunidade de praticar uma educação e
acção transformadoras.

O movimento conhecido por pedagogia crítica, encabeçado


neste momento por publicações de grande reputação como a
Harvard Educational Review, apresenta-se como uma contra-
corrente ao actual estado de coisas e define-se por um
radicalismo que lembra o dos anos 60 e 70.

A pedagogia crítica, dizem Pepi Leistyna e


Arlie Woodrum126, preocupa-se primariamente
com as teorias e práticas educacionais que
encorajam professores e alunos a desenvolver
uma compreensão da interconexão de relações
entre ideologia, poder e cultura. (…) O exame
crítico das nossas próprias perspectivas capacita-
nos para evitar as ramificações debilitantes do
“relativismo” segundo o qual toda e qualquer
prática cultural é igualmente aceitável. (…)
Criando e negociando linguagens de inclusão e
de possibilidade, que vão para além da crítica e
da desmistificação, permite analisar-nos a nós
próprios e a sociedade, a partir das perspectivas
das nossas múltiplas situações, e decidir como
iremos definir e viver as nossas vidas.

A pedagogia crítica, eminentemente pluralista e intercultural,


põe em causa a prática da escola e os papéis tradicionais de
professores, de alunos e do próprio processo educativo.

2 A criação de um sistema aberto em que a multiculturalidade se


afirma na dinâmica intercultural, pressupõe o abandono de
noções mecânicas, como sejam a de controle, e a adopção de
outras bem mais consequentes, como a de coordenação. A
preocupação, quase obsessiva, que os sistemas fechados têm
pelo controle impossibilita, por exemplo a possibilidade do
diálogo, uma vez que este só acontece numa situação de
igualdade dos dialogantes. É fundamental que nas nossas
escolas se pratique a democracia como base do relacionamento
humano. É fundamental que essa democracia seja preenchida
pelo ideal de justiça. É fundamental que a vivência da
democracia e da justiça aconteçam num contexto de liberdade,
como processo de desenvolvimento, e não controlada por uma
carta de direitos.

126 Leistyna, Pepi, Woodrum, Arlie (1996). Context and culture: what is critical
pedagogy? In Leistyna, Pepi, Woodrum, Arlie (Eds). Breaking free. Cambridge:
Harvard Educational Review, p. 3, 5, 7.

154
3 A interculturalidade está umbilicalmente ligada à noção de ser
humano e esta é influenciada pelo avanço das ciências,
especialmente da biologia. O avanço tremendo da genética tem
levado alguns cientistas a formulações desumanizantes. Reduzir
toda a vivência humana a fenómenos genéticos para daí
extrapolar políticas sociais, como já tem acontecido, é
transformar ciência em cientismo. Todavia, parece não haver
muita dúvida que o avanço da engenharia genética poderá
alterar profundamente aquela igualdade que ainda nos
distingue como seres humanos.

Lee Silver127, professor de Biologia Molecular, Ecologia e Biologia


Evolucionária na Universidade de Princeton, a casa de Einstein,
propõe no seu livro Remaking Eden – Refazendo o Éden – uma
visão possível do nosso futuro intercultural. Diz ele que as
diferenças rácicas esbater-se-ão significativamente com o correr
do tempo. Há de facto, indícios dessa tendência. Mas o que é
verdadeiramente provocante é a visão que ele tem dum futuro
possível, um futuro perturbador. Assim, diz ele que por volta do
século XXIV, a população dos países mais desenvolvidos,
encontrar-se-á completamente polarizada: de um lado, aqueles
que ele chama de Naturals – Naturais – e do outro, os GenRich,
ou Geneticamente enriquecidos. Os primeiros são seres que
evoluíram naturalmente. Os outros descendem de pessoas que
ao longo do tempo foram sendo enriquecidas por manipulação
genética que os transformou em super-homens e super-
mulheres, a tal ponto que se poderia falar de duas espécies
distintas que pouco ou nada têm a dizer uma à outra.

Poderão ler esta formulação neste livro que perturba e que


fascina. O ponto que eu gostaria de realçar é um outro que
poderia estar na base desta possível visão futurista. Diz Silver:

Enquanto que Huxley acertou no poder que


teríamos sobre o processo reprodutivo, eu
penso que ele errou completamente na previsão
que fez de quem iria usar esse poder e para que
fins. O que Huxley não conseguiu perceber, ou
recusou aceitar, foi a força motriz por detrás de
fazer bebés. São indivíduos e casais que se
querem reproduzir às suas próprias imagens.
São indivíduos e casais que querem que os seus
filhos sejam felizes e tenham sucesso. E são
indivíduos e casais (…) que controlarão estas
novas tecnologias. (…) E será na perseguição
desta última meta (ajudar os seus filhos a terem
saúde, felicidade e sucesso) que as acções

127 Silver, Lee M. (1998). Remaking Eden. London: Weidenfeld & Nicolson, pp. 1-11.

155
combinadas de muitos indivíduos, operando ao
longo de muitas gerações, poderá talvez fazer
surgir uma humanidade polarizada mais
horrífica que a Huxley imaginou no seu Brave
New World.

Num contexto de neo-liberalismo amoral e de endeusamento do


mercado tal visão não é de todo inverosímil. Todavia, e no nosso
tempo, outras polarizações se acentuam cada vez mais, como a
polarização Norte-Sul, e mesmo nas nossas nações, as que existem
entre grupos dominantes e grupos dominados. Um abismo separa-nos
já das massas anónimas que vegetam nos bairros de lata e no
chamado terceiro mundo. A re-humanização destas pessoas não se
alcança com igualdades de oportunidades garantidas em decretos,
mas esquecidas nas práticas do dia a dia. Já é vulgar encontrarmos
escolas fartas para os GenRich e escolas de miséria para os Naturals,
às vezes distanciadas por escassas centenas de metros. A re-
humanização, ou por outras palavras, a restauração da dignidade
humana destas pessoas passa por muito mais que a delegação dessa
responsabilidade em governos que se debilitam em activismo muitas
vezes estéreis e que lutam desesperadamente pela descoberta do
seu verdadeiro papel e missão na sociedade aberta dos nossos dias.

A responsabilidade maior cabe-nos a nós, cidadãos, a nós


professores, alunos e pais. A construção de uma sociedade
intercultural não pode ser feita por decreto-lei. Ela tem de ser
construída pessoa a pessoa, bairro a bairro. E não há receitas. Como
disse o poeta Antonio Machado128: Caminante, no hay camino, se
hace camino al caminar. Caminhante não há caminho. O caminho se
faz com o nosso caminhar. É exactamente isto que tem de acontecer.
Temos de construir as nossas próprias veredas como um processo de
aprendizagem. Porque afinal, como disse Eldridge Cleaver 129, uma das
figuras da luta pelo direitos civis nos Estados Unidos: Ou somos parte
do problema, ou somos parte da solução.

128 Bartolomé, Lilia I. (1996). Beyond the methods fetish: Toward a humanizing
pedagogy. ? In Leistyna, Pepi, Woodrum, Arlie (Eds). Breaking free. Cambridge:
Harvard Educational Review, p. 249.
129 Jones, James M. (1972). Prejudice and racism. Reading: Addison-Wesley
Publishing company, p. 178.

156
Homens e mulheres hoje:
Sob o signo da ética, da estética e da emergência

Na cultura do tempo, memória e esquecimento surgem como as


duas faces de uma mesma realidade. Se, por um lado, enriquecemos
o presente com a recordação dos momentos de felicidade e de
prazer, parece que, por outro, os matizes mais expressivos das horas
sofridas esbatem-se até que a sua lembrança pouco mais é que uma
sombra triste. Este aparente paradoxo parece, assim, privilegiar o
tempo que se esgotou e perturbar a clareza dos horizontes futuros.
De facto, reagimos quase sempre como gente do ontem, raramente
como pessoas do amanhã.

As Idades de Ouro são com grande uniformidade o espaço da


memória feita reminiscência, enquanto que os dias que hão-de vir são
campo vasto para as mais díspares escatologias. Esse passado mítico
povoado de heróis, de santos, de justeza, de respeito, de vida melhor,
paira como uma sombra paradigmática sobre um presente não raro
percebido como um tempo agreste, desumanizante, triturador. Ah,
que bom que era nos bons velhos tempos! E nesse encadeamento de
reminiscências desmemoriadas entorpecemos o espírito e a
esperança.

É certo que o passado é importante. É nele que se aprofundam


as raízes que nos afirmam como gente cuja história nos liga, na
intemporalidade dos dias, até às primícias da criação. Estas
genealogias de pessoas, de tradições, de valores, de pertenças, de
laços, de recordações, de dizeres, de fotografias amarelecidas, de
baús esquecidos nos sótãos, de casas, de terras, de viagens, de
amores que enternecem, de outros que talvez não foram, de
realidades vividas, de outras que se construíram como reminiscências
virtuais, de vidas constantemente lembradas, de outras que se
diluíram no anonimato das solidões, fazem-nos herdeiros de legados
que aceitamos, muitas vezes sem compreender o seu valor real, ou o
seu real significado. Ostentamos amiúde estes brasões e estas armas
como razão falseada de um presente que parece não ter rumo nem
sentido.

Mas será, de facto, o passado que justifica o nosso presente?


Será que a vida se forja num prolongamento linear de ontem para
hoje? Será que o passado reminiscência se identifica com o passado-
memória? Em que medida é que a memória influencia o nosso agir no
presente? Porque é que a história é, por vezes, memória, e outras,
virtualidade? Porque insistimos com tanta veemência em recuperar o
passado, quando a vida acontece no presente e se projecta no futuro?

É evidente que o passado pode enriquecer o presente. O


passado, todavia, não justifica muito do que fazemos hoje. Nós

157
afirmamo-nos pela nossa acção responsável e criativa sobre o mundo,
para a sua transformação. Creio que o passado importa à construção
do presente como memória, não tanto como reminiscência. Mas como
resolver o paradoxo aparente que existe na interdinâmica memória-
esquecimento? E será que existe mesmo um paradoxo? Não será
antes que essa interdinâmica liberta o passado como um fenómeno
emergente desataviado daquilo que é acidental? Se é um facto que
as Idades do Ouro de ontem parecem tornar os nossos dias numa
realidade envergonhada, certo é, também, que nada impede que as
misérias de hoje não sejam as Idades de Ouro amanhã.

A memória poderá, assim, ser compreendida como uma síntese


sistémica, o que é dizer, uma aprendizagem, em que a relevância é o
critério principal que nos ajuda a distinguir aquilo que deve ser
lembrado daquilo que deve ser esquecido. Talvez seja, por isso, que a
memória do bem prevaleça sobre a recordação do mal. Talvez seja,
por isso, que cada Idade acabe por ser, para alguém,
verdadeiramente de Ouro. Talvez seja, por isso, que o trabalho da
vida humana no tempo transforme o infortúnio, o insucesso, o mal
que nos acontece, em algo de bom e de útil.

É tudo isto que, afinal, define a aprendizagem num contexto


desenvolvimentista. Não me parece, também, razoável que ela possa
ser definida num outro contexto qualquer. Se a aprendizagem
acontece no fazer e no fazer com os outros, se ela é fruto da nossa
inquirição responsável e criativa sobre o mundo, e se o aprendedor é
o sujeito desse processo, não parece, pois, viável que o seu contexto
seja o de uma realidade estática e até simétrica. Isto só seria possível
se a própria realidade fosse concebida de igual modo e isso é hoje
muito difícil de aceitar. Uma tal concepção da realidade reduziria o
nosso tema a uma visão da pessoa e do mundo actual em termos de
passado, uma vez que passado e futuro pouca representação teriam
no acontecer da vida.

Ora uma observação ainda que superficial da vida humana e do


mundo identifica a mudança como uma das suas características
principais. Se bem que a mudança tenha sido sempre um factor
importante a considerar, as maneiras como ela é concebida hoje
alteraram-se profundamente. A ciência, sobretudo a física dos quanta,
a biologia molecular, as ciências do caos e as novas ciências da
complexidade, apontam para a descontinuidade, para a incerteza,
para a irregularidade, para a complexidade, para a probabilidade,
para o indeterminismo, para a imprevisibilidade, como definidores
fundamentais da realidade. Por outro lado, as investigações de Ilya
Prigogine130 apontam para duas outras características: o não-
equilíbrio como condição de vida sintrópica e a flecha do tempo, isto
é, a noção de tempo unidireccional. Diz ele:

130 Prigogine, Ilya (1996). O fim das certezas. Lisboa: Gradiva, p. 11.

158
Com efeito, no decurso dos últimos decénios nasceu
uma nova ciência, a física dos processos de não-equilíbrio.
Esta ciência tem conduzido a novos conceitos, como a
auto-organização e as estruturas dissipativas, hoje muito
utilizadas em domínios que vão da cosmologia à ecologia
e às ciências sociais, passando pela química e pela
biologia. A física de não-equilíbrio estuda os processos
dissipativos, caracterizados por um tempo unidireccional,
e, ao fazê-lo, confere um novo significado à
irreversibilidade. (…) A irreversibilidade já não acontece
apenas em fenómenos simples. Está na base de grande
número de fenómenos novos, como a formação dos
turbilhões, das oscilações químicas e das emissões laser.

Pelo seu carácter interdinâmico e complexo, tanto a


aprendizagem como o desenvolvimento comungam dessas mesmas
características. É difícil de negar o carácter emergente, na definição
Popperiana131 (a realidade é parcialmente causal, parcialmente
probabilística e parcialmente indeterminada), da aprendizagem e do
desenvolvimento. Como prever, determinar, até medir com precisão
qualquer processo de aprendizagem e de desenvolvimento? Como
saber a priori o desfecho de um projecto de investigação? Como
explicar a não-regressividade dos processos de aprendizagem e de
desenvolvimento sem o conceito da irreversibilidade do tempo? Não
me parece de todo possível.

A exploração do que significa viver no mundo actual só parece


fazer sentido quando perspectivada pelo desenvolvimento. O
desenvolvimento com as características atrás apontadas, e que mais
não é do que o processo de pessoas e sociedades atingirem o seu
potencial máximo, difere radicalmente daquilo a que chamamos
crescimento e progresso. O crescimento define-se por aumentos
quantitativos de alguém ou alguma coisa, e, como todos sabemos,
pode ser regressivo. Nada parece poder crescer indefinidamente. Por
seu lado, o progresso nada mais é do que movimento direccionado, o
caminhar deliberadamente numa direcção determinada. Todos
sabemos, também, que o progresso pode ser regressivo. A história
está cheia de exemplos de nações que atingiram índices elevados de
progresso para caírem depois no maior dos marasmos.

Ora o desenvolvimento não é um processo relativista: a


progressão através dos estádios ou níveis de desenvolvimento é
invariável. A história da humanidade é, para mim, um tal processo.
Apesar de todos os acidentes de percurso, de todas as hecatombes,
de todas as circunstâncias demonizadas, a humanidade tem
construído um mundo cada vez melhor. O mundo de hoje é
consideravelmente melhor que aquele que conhecemos há vinte ou

131Popper, Karl R. (1988). O universo aberto. Lisboa: Publicações Dom Quixote, p.


129.

159
trinta anos. A guerra, que há trinta e tal anos ainda era ainda
considerado um acto heróico, não o é mais. Ninguém de bem ousaria
fazer hoje a apologia da guerra. E, todavia, ainda há guerras, se bem
que localizadas, pois nem todos se encontram no mesmo nível de
desenvolvimento moral. No Portugal de há cinco ou seis anos, quem é
que falava na violência familiar como problema grave da sociedade?
No entanto, ela é hoje notícia quase diária. Quem é que, nesse
tempo, consideraria a exploração do trabalho infantil como uma
violência à criança? Todavia, tais casos são denunciados hoje com um
zelo quase fundamentalista. Continua a haver violência familiar e
exploração da criança, mas a consciência social do nosso povo, como
um todo, já não as tolera.

Viver num contexto de desenvolvimento é viver num contexto


de esperança e de fé. Esperança que concretiza a realidade. Fé que a
autentica. O desenvolvimento é, por outro lado, um fenómeno social
interdependente e como tal baseado na solidariedade, na
singularidade da pessoa humana, no amor que define qualquer acto
transformador do mundo. O caminho do desenvolvimento não é,
todavia, livre de escolhos, não é, de modo algum, uma viagem
plácida e serena pelos caminhos do tempo e da vida.

O desenvolvimento acontece na realidade, nessa realidade que,


como vimos, é descontínua e incerta e indeterminada e complexa e
caótica e não-equilibrada e extremamente estimulante. Esse caminho
de aprendizagens que continuadamente leva a novas aprendizagens,
de perguntas cujas respostas mais não são que perguntas novas, de
descobertas que inevitavelmente impele para outras descobertas, é
fecundado por sucessos que nos alimentam e por insucessos que nos
desafiam. Os sucessos, todavia, não parecem ser o campo das
grandes aprendizagens. É, sobretudo, no insucesso que interiorizamos
as maiores. É aqui que a tensão inerente à interdinâmica memória-
esquecimento nos possibilita a compreensão sistémica do mundo e
da nossa acção sobre esse mesmo mundo.

Numa dinâmica desenvolvimentista não aprendemos muito


com os produtos da nossa actividade. É a reflexão sobre o desenrolar
dos processos escolhidos que nos pode levar às grandes
aprendizagens. Talvez ainda mais importante seja a reflexão que
fazemos sobre a maneira como reflectimos, os chamados processos
metacognitivos. Num mundo em que a escassez deixou de ser o
flagelo que até há bem pouco era, a produção como produção deixou
de ser uma preocupação fundamental. Hoje pouco mais é que uma
tecnologia.

O que verdadeiramente começa a ser essencial é a pessoa


humana – o homem e a mulher – considerados cada vez mais como
sujeitos dos processos de trabalho, como verdadeiro capital das
organizações, como seres singulares, únicos, autónomos e

160
interdependentes. Da vida empresarial à política, da familiar à da
formação, o ser humano como pessoa começa a ser percebido como
muito mais importante que as noções e formas de organização. Os
grandes modelos já não fazem muito sentido como sistemas
enquadradores da actividade humana. Os grandes paradigmas
perderam praticamente a capacidade das grandes racionalizações.
Compreendemos cada vez melhor que é no estudo da fluidez
complexa das interacções de pessoas com pessoas e com a realidade
que podemos chegar a abordagens mais aproximadas do que significa
gerir processos e gerar novas maneiras de os conceptualizar.

Num mundo que existe porque nós existimos – o homem e a


mulher não existem coisificados na natureza, mas são eles que na
belíssima expressão Freiriana132, dão nome ao mundo e o
transformam – começa a ser considerada aberração a sobrevivência
ou aparição de sistemas políticos, religiosos, sociais e mesmo
educacionais que tendam para uma formatação e não para uma
verdadeira formação da pessoa. Essa formação é cada vez mais
considerada como uma transformação, como uma verdadeira
metanóia, para usar a expressão de Peter Senge133.

Vivemos, todavia, neste fim de milénio um eclodir anárquico de


movimentos, apelos e propostas que, por incapacidade de gerir a
complexidade, ou como aproveitamento dessa mesma incapacidade,
nos acenam com supostas certezas, com relativismos dogmatizados,
com a alienação disfarçada de solidariedade. Dos fundamentalismos
religiosos fanatizados, aos regimes políticos que, deliberadamente ou
não, esmagam e brutalizam a pessoa humana, passando por
movimentos sociais que desentranham essa mesma pessoa da
possibilidade de viver no real pelo apelo a uma vida diferente no
alucinogénio, o nosso quotidiano aparece como que cercado, decerto
ameaçado, por forças que temos de resistir, e cujo confronto não
podemos evitar.

Há questões, todavia, que se nos levantam: como resistir e


confrontar? Se denunciarmos a alienação, que anunciação devemos
fazer? Será que muitas das nossas anunciações, das nossas
propostas, não possam aparecer à pessoa alienada e confusa como
algo tão difuso ou tão rígido como os apelos que se lhes contrapõem?
Uma pessoa perdida é uma pessoa sem horizontes definidos. Parece-
me que muitas vezes não fazemos mais do que atirar uma bóia de
salvação, cujo único mérito é o de sustentar a flutuação por mais
algum tempo. Quando é que propomos horizontes de
desenvolvimento credíveis e possíveis? E de que maneira o fazemos?

132 Freire, Paulo (1987/1970). A pedagogia do oprimido. São Paulo: Editora Paz e
Terra S/A, p. 78.
133 Senge, Peter (1993/1990). The fifth discipline. London: Century Business, p. 13.

161
Há sinais, todavia, que nos poderão permitir um melhor
aprofundamento da nossa realidade presente. Não creio que os sinais
fundamentais tenham muito a ver com a ciência, ou com a
tecnologia, ou com sistemas políticos, ou organizações sociais.
Ciência, tecnologia, política e organização são hoje cada vez mais
processos de aprendizagem que linhas mestras de desenvolvimento.
São mais veículos que caminhos. Mais atitudes que saber. Mais
actividade que acção. Proponho três outros sinais, três perspectivas
através das quais devemos compreender um pouco melhor a
realidade que somos e que nos contextualiza, a saber: a ética, a
estética e a emergência.

1. A ética – o imperativo e a forma

Dado o estado de corrupção, do aguenta que vale tudo, do


imediatismo que persiste em querer definir o nosso quotidiano,
parece um pouco estranho que tenha escolhido a Ética como o
primeiro dos sinais dos nossos tempos. Buscamos sinais, todavia, das
grandes correntes que são subjacentes à vida, das grandes
tendências, e não propriamente das aparências mais explícitas. É fácil
confundir aparência observável com realidade integrante. A aparência
não é necessariamente sinal, pois pode muito bem ser disfarce, ou
representação duma realidade falseada ou virtual. Por sua vez, a
realidade que nos integra e que, pela nossa acção transformadora,
integramos, não é sempre fácil de identificar e perceber. Assim me
parece com a ética. Por outro lado, a simples percepção da extensão
de sistemas corruptos, de comportamentos questionáveis, de
qualidades e posturas de liderança esperadas e não realizadas, afirma
sem sombra de dúvidas a preocupação que as pessoas como
realidades colectivas têm com a ética.

O acontecimento que mais graficamente sublinhou este


fenómeno foi Watergate. Até aí, as expectativas das populações
relacionadas com o comportamento dos políticos e das organizações
políticas não atingiam índices muito elevados. Desde que as atitudes
e actividades não atingissem proporções de escândalo, isto é, desde
que fossem feitas com discrição, tudo era aceite como razoável. Não
era bom, mas era o real. Antes de Watergate, aparecem, pelo menos,
dois casos que conseguem apaixonar a opinião universal. O primeiro,
o caso Dreyfus, desmascara o racismo que prevalecia no seio das
grandes instituições da França, e por inferência, do mundo. Todavia, o
caso Dreyfus atingiu essas proporções devido em grande parte à
intrepidez do grande novelista Zola que decidiu enfrentar e pôr em
causa todo o sistema político e judicial francês. O artigo J’acuse,
permanece como um símbolo do que o cidadão movido pelos
imperativos éticos pode e deve fazer. A consciência ética da França e
do mundo ainda não tinha atingido um grau de desenvolvimento
moral suficientemente elevado que permitisse mudanças de fundo.
No decurso do processo, Zola viu-se obrigado a procurar refúgio em

162
Inglaterra. Mais tarde, o sistema político e judicial francês corrigiu de
certo modo a injustiça feita a Dreyfus. Esse sistema, todavia,
permaneceu. O caso Dreyfus foi isso mesmo, um caso. O segundo
incidente que gostaria de sublinhar é o do caso Profumo. Em ambos
os casos paira a insinuação da possibilidade de actos de traição. O
caso Profumo insere-se perfeitamente no modus vivendi e operandi
da guerra fria com todas as suas teias emaranhadas de espionagem.
John Profumo foi demitido das suas funções de ministro, mas a sua
declaração final elucida bem a maneira como estes casos ainda eram
julgados. Profumo disse que tinha infringido o 11º mandamento: Não
sejas apanhado! O caso Profumo que encheu de parangonas os
jornais durante muito tempo, também não logrou modificar
profundamente o sistema.

Watergate foi diferente. O caso que lhe deu origem é em si


quase banal. Um grupo de espiões políticos de 2ª classe, a pago da
Comissão para a Reeleição do Presidente Nixon, cabeça do Partido
Republicano dos Estados Unidos, penetra sem autorização na sede do
Partido Democrático em Washington, situada no edifício conhecido
por Watergate, para plantar alguns instrumentos de escuta. O
desenrolar dessa acção pertence decididamente ao mundo da
tragicomédia. Como nos filmes do género, tudo correu mal. A
espionagem política não era, nem é, algo de novo. Sempre havia sido
praticada, e é muito provável que o continue a ser. Por outro lado, o
Presidente Nixon estava virtualmente eleito, como, apesar do
escândalo crescente, o foi e por larguíssima margem.

A consciência da nação americana, todavia, há muito que


começava a despertar para dinâmicas sociais e políticas que até
então tinham passado quase desapercebidas. O levantamento social
em favor da universalidades dos direitos civis de todos os cidadãos
independentemente da raça, credo, sexo ou origem, e a tragédia de
futilidade que começava a ser a guerra no Vietname – uma guerra
não declarada, mas que havia mobilizado mais de meio milhão de
militares, ceifado a vida a não poucos e a qualidade de vida a muitos
mais – demonstraram que não era suficiente haver boas leis e
constituições, que o que mesmo contava era a implementação justa
dessas mesmas leis e constituição. Por outras palavras, as pessoas
responsabilizadas pela feitura e implementação das leis passaram a
contar. Os processos eram tão bons ou tão maus quanto as pessoas
eleitas para os gerir. As motivações políticas já não valiam por si só.
Tinham de ser também justificadas pela moral e pela ética. Nixon não
percebeu isso e tentou gerir a situação como qualquer líder político
até aí o teria feito. O resultado todos nós sabemos. Apesar de uma
política externa de grande abertura que permitiu o desanuviar das
tensões entre as superpotências e a integração da China no
relacionamento do Ocidente, Nixon foi obrigado a renunciar ao cargo
de Presidente dos Estados Unidos. O primeiro a fazê-lo.

163
Nixon não foi condenado pela infâmia tragicómica que foi o caso
inicial do Watergate. Nem tão pouco o foi por o ter tentado abafar,
camuflar e manipular. Não acredito que tenha sido a sua conivência e
conhecimento directo do que se estava a passar, nem talvez o facto
de haver mentido à nação americana, se bem que tudo isso tenha
pesadomuito. A manipulação da verdade é algo praticamente
inevitável no processo de governo de nações imperfeitas, pois como
gerir de outro modo situações de guerra, de concorrência ideológica,
comercial, tecnológica e científica. O que o condenou foi a sua
arrogância de pensar que como líder eleito duma democracia poderia
agir como se fosse superior à lei. Foi também a sua incapacidade
política de não ter conseguido perceber que a nação americana tinha
mudado, que se tinha operado uma metanóia colectiva e que a ética
passara a ser mais importante que a performance política. Se Nixon
tivesse admitido sem reservas nem rodeios os erros cometidos é bem
possível que a nação americana tivesse aceite a humanidade frágil do
homem quando contrabalançada pela sua estrutura ética e moral.

O caso Clinton parece corroborar esta leitura. Apesar de haver


cometido actos indesculpáveis para um presidente, de haver mentido,
manipulado situações e talvez, possivelmente, infringido a lei, a
nação americana parece permanecer indefectivelmente do seu lado,
mesmo quando os seus directos representantes no Congresso agem
para obter a sua impugnação como presidente.

Watergate começou como um caso, mas acabou como um


processo que transformou a vida social, política e até, de certo modo,
pessoal da América e do mundo ocidental. Exige-se que líderes
políticos, empresariais e comunitários se rejam por princípios éticos, e
essa exigência não existe só em relação ao presente e ao futuro, mas
também em relação ao passado. A postura imperial do Presidente
Mitterrand e o seu enorme prestígio internacional não resistiram ao
escrutínio feito ao seu passado questionável durante a 2º Guerra
Mundial, e às maquinações da sua corte presidencial. A grandeza que
revestiu muito do seu quotidiano e até das suas políticas
permanecerá para sempre empalidecida nas páginas da história.

Portugal não tem passado incólume a estes ventos de mudança.


A vida dos líderes é hoje um livro que pode a qualquer momento ser
aberto e a probabilidade de o ser é muito grande. A consciência dos
imperativos éticos afecta inevitavelmente toda a vida pública e toda a
vida privada, servindo de estímulo e de precaução. A ideia do serviço
público, quer como cidadãos quer como líderes políticos ou sociais,
exige hoje comportamentos éticos, pelo menos morais.

Esta mudança tem também a ver com uma outra viragem de


alcance, talvez, ainda maior: o eclipse da ideologia individualista e a
afirmação da interdependência como a nova matriz interdinâmica da
vida. A ideologia individualista criara a noção abstracta de Estado ao

164
conferir-lhe o estatuto de repositório das grandes virtudes éticas e ao
sobrepô-lo, de certo modo, ao ideal de nação. Um Estado virtuoso
sempre acaba por endeusar aqueles que o corporizam, o que é dizer
que a manta virtuosa do Estado cobria e justificava toda a pouca
vergonha cometida em seu nome, ou por aqueles que lhe davam
nome. De acordo com a ideologia individualista, a democracia pouco
mais era do que uma série de procedimentos organizativos,
raramente um processo de desenvolvimento.

A concepção da realidade como um fenómeno essencialmente


interdependente, veio alterar profundamente as relações cidadão-
estado. A interdependência como processo de desenvolvimento que
é, não necessita de repositórios de virtudes. Muito pelo contrário.
Num sistema interdependente, as virtudes transformam-se em
horizontes comuns de desenvolvimento,

Por outro lado, o ser humano não é mais compreendido como


um indivíduo moral e socialmente separado dos seus congéneres,
como tinha sido, até aí, prescrito nos cânones da doutrina
individualista, mas como pessoa unida sinergeticamente a todas as
outras. A compreensão do ser humano como pessoa e da sociedade
como realidades interdependentes permitem o aprofundamento da
cultura e da vivência democráticas. A autoridade do Estado deriva
naturalmente da força da Nação, não é algo que lhe seja inerente. Eu
preferiria mesmo acabar com o uso da palavra Estado e usar outra
como Governo, essa sim, bem democrática. Uma democracia precisa
de um bom governo, não creio que precise de um grande Estado.
Aliás nas democracias mais antigas a palavra Estado raramente é
utilizada. Não se fala no Estado Britânico, nem no Estado Americano,
mas no Governo Britânico e no Governo dos Estados Unidos, por
exemplo. Assusta-me o uso cada vez maior que se faz da palavra
Estado, dada a ideologia política que vigorou durante o Estado Novo.
Parece que sem Estado não existimos. E no contexto da União
Europeia onde cabe e quem é que é Estado, no sentido tradicional
que lhe atribuímos? Gostaria, no entanto, de dizer que considero que
numa democracia o governo deve, por natureza, ser um governo
forte. Talvez mesmo o mais forte dos governos porque assenta na
vontade dos cidadãos. Ora, são precisamente estas mudanças que eu
creio estar na origem do surgimento da ética como um dos grandes
sinais, das grandes tendências do nosso tempo.

Se a afirmação da ética como imperativo demonstra um avanço


enorme no processo de desenvolvimento dos povos, já a forma como
esse processo se desenrola alerta-nos para dinâmicas questionáveis.
Se os valores éticos são absolutos, a sua compreensão nunca o
poderá ser, uma vez que operamos no reino da relatividade. Por outro
lado, se bem que os princípios éticos tenham de permanecer como
horizontes de desenvolvimento em expansão contínua, o nosso
quotidiano é informado por valores morais, que não sendo

165
propriamente absolutos, ajudam-nos, todavia, a enquadrar a nossa
caminhada.

O processo de desenvolvimento em que estamos envolvidos


define-se, assim, por horizontes móveis que nos permitem imagens
do absoluto, por valores morais que, partindo da percepção desses
horizontes, nos ajudam a viver uma vida mais democrática, mais
justa, mais livre, mais humanizante, e inevitavelmente, por
insucessos, por falhas pontuais, por correcções, em suma, por
transformação. O homem e a mulher não são seres estáticos, nem tão
pouco determinados. São seres dinâmicos, interdependentes, seres
em constante desenvolvimento. Daí que a forma de julgar da
integridade e da idoneidade de uma pessoa não pode cair em
fundamentalismos desumanos, nem em relativismos absolutizados.

Nunca me hei-de esquecer do Senador Biden, que na era pós-


Watergate foi forçado a abandonar a sua candidatura à presidência
dos Estados Unidos porque alguém o acusou de copiar num teste
escolar, quando tinha 14 anos de idade. Considerar uma falha
cometida na adolescência como deficiência definitiva de carácter é
definir o ser humano como incapaz de se desenvolver, exactamente a
condição que o humaniza. É evidente que os media se transformaram
num quase quarto estado: o poder delator. É evidente também que
essa é uma das suas funções. Os media, todavia, não podem
constituir-se como investigador, como juiz e como executor. Os órgãos
de informação têm de se desenvolver como agentes, não direi mais
responsáveis, mas mais sábios.

2. Estética: o belo e o efémero

Não parece haver muita dúvida sobre a importância da estética


no viver dos nossos dias. A preocupação com a beleza surpreende-
nos a cada instante. Claro, que os critérios variam e, por vezes, bem
parece que não há quaisquer critérios, ou que, pelo menos a anarquia
reina. Poder-se-ia dizer que a estética está na rua. De certo modo,
ainda bem. A preocupação com a estética já não se reduz a uma elite
pequena e fechada, mas democratizou-se. De certo modo, ainda mal.
A massificação do belo é uma aberração.

Ninguém nega o direito que cada pessoa tem de se expressar


através do belo. Há, evidentemente, critérios pessoais de beleza. A
maneira como nos vestimos, como andamos, como falamos, como
convivemos, as casas que construímos e a maneira como as
decoramos, dão vida, inevitavelmente, às nossas concepções de
beleza. É um direito e uma condição que nos assistem. É o espaço do
artista em nós. É também uma afirmação não de diferença, mas de
singularidade. É o modo como nos apresentamos aos outros e como
queremos ser lidos por eles. Por esta perspectiva, a estética pode e é
uma forma de comunicação. É uma forma de nos tornarmos mais

166
inteligíveis, mais abertos. É, quantas vezes, uma forma de estimular
uma reacção por parte do outro.

Numa sociedade interdependente, a estética ocupa um lugar de


primeira grandeza, porque o belo enobrece o carácter e enriquece o
espírito. A preocupação com o belo é um dever de cidadania e é,
também, um processo de aprendizagem, por conseguinte, um
processo de desenvolvimento. Como cidadãos temos o dever e a
responsabilidade de contribuir para que ideais de beleza permeiem
toda a vida da cidade e possam envolver todos os seus habitantes. A
busca pessoal e colectiva do belo define-se por uma relação
interdinâmica e é, por assim dizer, um imperativo ético.

A expressão egoísta do belo parece-me, por isso, eticamente


questionável. Os antigos gregos contam-nos a trágica história de
Narciso e os novos tempos oferecem exemplos de narcisismo que
bastem. Se há um espaço pessoal para a prossecução do belo, há um
espaço maior em que essa busca se transforma num fenómeno social.
Como qualquer processo de desenvolvimento, a noção do belo
alimenta-se da memória numa perspectiva de futuro. A beleza da
cidade não pode tornar-se escrava nem do passado como
reminiscência, nem da vontade atomizada dos seus membros. O belo
na cidade é a memória gráfica plenamente definível da maneira como
aqueles que nos precederam viveram o mesmo espaço e o
engrandeceram artisticamente.

Sendo a cidade uma realidade em si própria, com o seu ritmo


singular de desenvolvimento e com os seus próprios horizontes de
desenvolvimento, cumpre a cada geração que a corporiza guardar a
memória estética e continuar a sua construção no futuro. A guarda da
memória estética pressupõe a preservação do património que lhe dá
o seu carácter singular e, quando possível e viável, a transformação
do espólio patrimonial que lhe é adventício em algo que, sem
preocupações de imitar, continue o desenvolvimento do seu carácter.
Neste sentido, as preocupações estéticas aproximam-se muito das
questões ecológicas. Um chalet suíço cai muito bem na cultura
estética dos Alpes, mas não me parece que faça muito sentido em
Santo Tirso. Sobretudo, quando há uma cultura estética autóctone
própria, afirmada, e decididamente bela, segundo critério qualquer.

A cultura estética dos nossos dias enferma de vários males. A


massificação da escolaridade e o progresso acelerado sem
contrapartidas desenvolvimentistas levou a formas de expressão
artísticas desenraizadas e culturalmente descontextualizadas. Têm-se
construído casas e mentalidades como se fosse possível compreender
um livro sem saber ler. Da mesma maneira que o nosso estilo pessoal
de escrever é precedido de fases que vão da cópia, à imitação, e daí à
criação, do mesmo modo a expressão artística não nasce

167
completamente desenvolvida, mas desenvolve-se à medida que
aprendemos a apreciar e depois a criar.

Outro dos males tem a ver com a hegemonia cultural que certos
centros poderosos de cultura exercem sobre sociedades mais
vulneráveis. Se bem que o nosso processo de desenvolvimento se
enriqueça com a exposição à pluralidade cultural do planeta, a
omnipresença de valores estéticos externos enfraquece e, por vezes,
suplanta processos locais de desenvolvimento. Daí a importância da
educação estética, preocupação que, no entanto, não parece ser de
grande prioridade, dada a sua quase ausência das nossas escolas.

O fenómeno da massificação atinge também as manifestações


estéticas com grande intensidade. A cultura da massificação promove
o seguidismo sobre a singularidade da expressão artística e
desencoraja quaisquer tentativas de liderança. Bastará olhar as
nossas escolas durante a hora de entrada para constatarmos os
batalhões de soldados da massificação perfeitamente fardados de
ganga. E não me digam que é por causa do conforto. São estes
mesmos, todavia, que criticam o uso de uniforme em algumas
escolas, quando esta prática, se bem pensada e implementada,
podem transmitir uma mensagem muito diferente e levar à
construção de atitudes e comportamentos livres daquilo que urge
combater: os fenómenos ligados com a massificação.

Felizmente que nos nossos dias podemos identificar muitos


actos exemplares de boa gestão da cultura estética comunitária. A
destruição de bairros inteiros de arranha-céus descontextualizados e
massificantes em cidades como Londres ou Boston permitem esperar
com esperança um desenvolvimento mais acelerado da estética como
cultura. Os arranha-céus podem funcionar muito bem como símbolos
do poder financeiro de algumas urbes, não promovem de modo algum
a qualidade de vida da pessoa e da comunidade. Promovem o mesmo
estado de ansiedade e alienação que o de um aviário.

A busca do belo não pode acontecer ao acaso, mas não pode


também acontecer nos confins de uma clausura qualquer. Como
processo de desenvolvimento que é, só pode acontecer em liberdade
e, esta impõe de imediato responsabilidade e solidariedade. A busca
do belo noutros contextos poderá ser quando muito a busca do
efémero. Tal e qual como uma dieta. Só uma alimentação inteligente
e regrada nos possibilitará a obtenção do aspecto e do funcionamento
desejável dos nossos corpos. Isto tem muito a ver com um outro
factor, o da disciplina. A auto-disciplina é uma coisa, todavia, que
parece não fazer parte de muitos dos nossos projectos educativos. A
auto-disciplina não se promove com a repressão nem com o
autoritarismo, mas vivifica-se em ambientes verdadeiramente
democráticos.

168
3. Emergência: a oportunidade e a possibilidade

Se a ética nos permite a construção de uma sociedade baseada


no bem, na democracia, na justiça, na liberdade e se a estética nos
leva a uma vivência mais gratificante e enriquecedora porque nos
alicerça no belo, a emergência confere à nossa existência a
oportunidade e a possibilidade de se afirmar não só no ser, mas
sobretudo no tornar-se. A realidade definida como emergente, na
elegante proposta de Popper, atrás mencionada, abre-nos caminhos
de descoberta outrora inviáveis.

O mundo actual é um mundo emergente, um mundo que vai


sendo construído pela nossa vontade, pela conjugação de esforços
que maximizam a sua probabilidade, e também -- e porque não? –
pelo indeterminado. Quer isto tudo dizer, que é um mundo aberto
com um futuro perfeitamente aberto. Um mundo de possibilidades é
isso mesmo. Não é um mundo determinado, nem é um mundo em
que as coisas acontecem porque alguém quer e faz com que elas
aconteçam. É um mundo que conta e depende do nosso
envolvimento, da nossa acção consciente, responsável e criativa. É
um mundo em que pode haver crescimento, em que pode haver
progresso, mas em que decerto tem de haver desenvolvimento. É um
mundo, todavia, que exige mentalidades, competências e acção
radicalmente diferentes das que eram requeridas ao funcionamento
numa sociedade condicionada e condicionante, como aquela em que,
apesar de exausta, teimamos em querer viver.

Esta sociedade exausta e que já não responde aos desafios de


hoje é perfeitamente inserida numa concepção mecanicista do mundo
e da vida; é uma sociedade que se alimenta do passado, se bem que
previsível; é uma sociedade dependente, se bem que confortável; é
uma sociedade com um futuro determinado, se bem que certa; é uma
sociedade necessariamente hierárquica, se bem que estável; é uma
sociedade segmentarizada, se bem que definível; é uma sociedade
equilibrada, se bem que em morte lenta.

A vida, todavia, não é nada disso. A vida, a realidade, tal como


a conseguimos perceber hoje, abre-se para o futuro, é autónoma, é
democrática, é globalmente integral, é descontínua, é caótica, e
vivifica-se no desequilíbrio. Viver numa tal sociedade é um sistema de
aprendizagem contínuo. É por isso que ouvimos falar cada vez mais
na educação ao longo da vida. A educação ao longo da vida não
significa propriamente uma actualização constante dos saberes, das
técnicas e das metodologias, mas o alargamento do nosso estudo a
outras áreas, algumas completamente novas. A escolaridade já não é
a preparação para a vida, mas tem de ser a preparação para viver a
vida. As escolas já não dão saídas profissionais. Disto sabem bem os
milhares de graduados das universidades que não conseguem

169
emprego. Aliás, já não se vive hoje uma cultura do emprego, mas
uma cultura do trabalho, que é uma coisa completamente diferente.

Fui uma vez com dois amigos assistir a um colóquio que se


intitulava: Ensino superior: que saídas profissionais? Um deles geria
um importante grupo de empresas, o outro era o jovem Director de
Recursos Humanos desse mesmo grupo. Quando entrámos não
pudemos deixar de sorrir e comentar ironicamente o tema em
debate, o que incomodou alguns dos que nos rodeavam. Esse
incómodo aumentou à mesa em que jantámos. O tema, para nós, não
fazia grande sentido. Percebíamos que educação já não estava
directamente relacionada com profissões, mas com algo muito mais
importante: o desenvolvimento da pessoa.

Quando o jantar se aproximava do fim, começou o colóquio. O


primeiro a falar foi um quintanista de engenharia que num tom
reivindicativo denunciou a injustiça de um sistema que forçava jovens
a investimentos avultados de tempo e dinheiro na universidade para
depois os deixar sem emprego. Numa peroração emotiva afirmou que
os jovens que saíam da universidade tinham direito a empregos
compatíveis com a sua formação. A sociedade devia-lhes isso. Seguiu-
se-lhe um professor universitário que entre põe transparência e tira
transparência, apresenta gráfico, condena gráfico lá foi dizendo
qualquer coisa no mesmo sentido. Perdeu-se nas curvas. Falou, por
último, um membro do governo que se solidarizou com a juventude
(estavam muita presente), anunciou mais umas comissões para
estudar o assunto e protestou o empenho do governo para essa
situação.

Passou-se então à fase do diálogo. Houve várias intervenções


até que um jovem, bem apessoado e com ar próspero, se levantou:
Eu queria dirigir-me ao colega que falou primeiro e dizer-lhe que se
está à espera que lhe vão entregar um emprego de bandeja,
desengane-se. Quando eu e o meu amigo, aqui ao meu lado,
graduámos desta universidade há dois anos, também julgávamos que
iríamos conseguir um emprego com relativa facilidade. Tal não
aconteceu. Percorremos dezenas de empresas e nada conseguimos.
Já descorçoados, sentámo-nos num café para fazer o balanço do que
nos estava a acontecer. A certa altura, perguntámo-nos: o que é que
aprendemos na universidade que nos possibilite resolver este
problema? E chegámos à conclusão, que, como engenheiros,
tínhamos aprendido a resolver problemas. Tudo se tornou um pouco
mais fácil.

De facto, parecia que as empresas não tinham possibilidades


de nos empregar a tempo integral, mas talvez o pudessem fazer a
tempo parcial. Isto é, se bem que não houvesse emprego, talvez
houvesse trabalho. Voltámos de novo às empresas e começámos a
tentar identificar trabalho que necessitasse de ser feito, mas que não

170
requeria um trabalhador a tempo integral. Feita essa análise tornou-
se evidente que havia uma grande quantidade de trabalho à nossa
espera. Elaboramos a seguir propostas de trabalho para cada uma
das empresas. O resultado é que temos a nossa própria empresa, não
nos falta trabalho e estamos muito bem, muito obrigado.

A atitude do finalista de engenharia define na perfeição a


cultura do emprego. A atitude tomada pelos dois jovens engenheiros
caracteriza a cultura do trabalho em que já vivemos. O mundo em
que já vivemos é, pois, um mundo de oportunidades num universo de
possibilidades.

Ora acontece que raras são as escolas que promovem as


aprendizagens necessárias à percepção das possibilidades e à
identificação das oportunidades. A capacidade de perceber o maior
número possível de oportunidades depende de quão desenvolvidas
estão as nossas competências de mestria pessoal, de modelos
mentais e, sobretudo, de pensamento sistémico. A capacidade que
advém da responsabilidade que sentimos de nos aperfeiçoarmos
continuadamente, de construirmos cenários, configurações possíveis
da realidade futura, e de podermos ver sistemas como todos
interdinâmicos, possibilita a identificação de áreas passíveis de
investigação, de projectos de aprendizagem, de metas novas de
desenvolvimento. Esta é uma tarefa decididamente comunitária que
viabiliza a configuração do horizonte como um cone aberto para a
realidade e não como o espaço mediado por duas linhas paralelas,
necessariamente redutoras.

Num mundo emergente, não há lugar para individualismos


redutores, mas para a cooperação que enriquece; não se dá muita
valia a heranças, mas à nossa afirmação constante; não há muito
espaço para evoluções lineares, mas para o desabrochar de toda a
nossa complexidade. Num mundo emergente a esperança conta
mesmo e a nossa maior sustentação reside na nossa fé. Essa será, de
certo modo, a medida do nosso possível.

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