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Quiroga Decálogo PDF
Quiroga Decálogo PDF
http://samizdat.oficinaeditora.com
32
fevereiro
2012
ano V
ficina
Horacio Quiroga
O mestre contista latino-americano
Participe da Revista SAMIZDAT 33
A Revista SAMIZDAT conta com a sua Por favor, aguarde o período de um mês
participação para manter o alto padrão das após receber a resposta antes de enviar um
publicações. outro texto.
Aceitamos e estimulamos a participação
de autores estreantes, pois o nosso objetivo http://revistasamizdat.submishmash.com/
é apresentar a maior diversidade possível submit
de autores, gêneros e textos.
Instruções para envio de obras Não aceitamos mais textos enviados por
e-mail.
1 - Cada escritor poderá inscrever, nos
4 - Os textos selecionados serão publica-
respectivos campos, somente 1 (um) tex-
dos na edição 33 da Revista SAMIZDAT na
to literário para publicação, de qualquer
segunda quinzena de maio de 2012, no site
gênero - conto, crônica, poesia, microconto
- ou um (1) texto teórico, como artigo de http://samizdat.oficinaeditora.com/
teoria literária, resenha de livros, ou entre- ou poderão aparecer no site, caso a edi-
vista, além de traduções de textos literários ção em .PDF já esteja fechada.
em domínio público, sob licença Creative
5 - Os textos serão publicados sob li-
Commons ou com a expressa autorização
cença Creative Commons Atribuição-Uso
do autor. A temática é livre.
Não-Comercial-Vedada a Criação de Obras
O autor também deve enviar uma breve Derivadas e o autor não será remunerado.
biografia na primeira página do arquivo. O envio de textos implica na aceitação por
2 - O limite máximo para cada texto parte do autor destes termos.
literário é de mil (1000) palavras, ou 4 6 - Os organizadores da SAMIZDAT se
páginas em A4, fonte Times ou Arial 12, reservam o direito de não publicar a revis-
espaçamento 1,5. O envio dos textos não ta, caso o número de submissões não seja
implica na aceitação automática, a seleção o suficiente para o fechamento da edição.
dependerá da quantidade de textos envia-
7 - O não cumprimento dos itens acima
dos, da qualidade literária e da disponibi-
poderá implicar na desqualificação da obra
lidade de espaço na revista. A revisão dos
enviada.
textos é de responsabilidade de seus auto-
res. O texto não precisa ser inédito.
3 - Os textos devem ser enviados até o Contamos com a sua participação!
dia 30 de abril de 2012 através do nosso
gerenciador de submissões (link abaixo) Atenciosamente,
em um arquivo anexo, em formato .DOC,
Henry Alfred Bugalho
.DOCX ou .TXT.
Editor
http://www.flickr.com/photos/advaits/2589618179/
4 anos de SAMIZDAT
Há projetos que concebemos, que não perda do nosso antigo domínio na internet,
temos ideia aonde irão. muitos dos nossos antigos leitores também
Quantos romances, contos e outras obras sumiram.
não guardamos inacabadas, certos que um Já não vejo mais a possibilidade de uma
dia recuperaremos aquele ímpeto inicial publicação mensal e, hoje, em retrospecto,
e as concluiremos? E quantas não são as penso que foi uma loucura tentarmos tal
ideias brilhantes que, assim que fazemos proeza com a estrutura totalmente descen-
o primeiro esforço para realizá-las, logo trada de então, pois cada um atuava como
percebemos que será um empreendimento bem entendia e a comunicação era bastan-
estéril? te confusa.
Quatro anos atrás, eu e um pequeno Aprendemos com nossos erros e tam-
grupo de escritores, reunidos numa oficina bém com nossos acertos. Em seu quarto
literária virtual, pensamos que talvez fosse aniversário e 32º fascículo, a SAMIZDAT
interessante publicar os nossos textos numa retorna mais madura e mais profissional.
revista. Batizamos este projeto de Revista Ainda somos um grupo de escritores
SAMIZDAT, uma homenagem às publi- lutando por um lugar ao sol, muitos de
cações clandestinas na Rússia s talinista, nós ainda publicando independentemente e
repressiva e censora. correndo às margens deste brutal mercado
Não tínhamos clareza de como tudo que nos exclui e nos ignora, pois assim são
funcionaria, de quem faria o quê, nem se as regras deste jogo.
teríamos leitores. Não sabíamos se daria Criamos nas sombras, na esperança que
certo ou não, nem aonde iríamos com isto. o fogo destes talentos possa brilhar e ilu-
Mas funcionou. minar os nossos caminhos.
Desde então, muito mudou. Alguns des- Ação e esperança, estes são os
tes autores se foram, inclusive nem escre- combustíveis que movem a SAMIZDAT.
vem mais. Depois de um hiato de mais de
Henry Alfred Bugalho
um ano nas publicações, inclusive com a
SAMIZDAT 32
fevereiro de 2012
RECOMENDAÇÃO DE LEITURA
Em Nome do Filho 10
Edelson Nagues
HUMOR
Breve Dissertação sobre o Palavrão 14
Joaquim Bispo
CONTOS
O Moedor de Café 16
Henry Alfred Bugalho
Criança Prodígio 20
Thiago Jefferson dos Santos Galdino
Vez em quando 22
Cinthia Kriemler
Relicário 25
Tatiana Alves
A deusa da chuva 27
José Guilherme Vereza
O Catavento Maluco 29
Otávio Martins
Depuração 31
Silvana Michele Ramos
Avessa (o) 35
Sara Meynard
Coletivo 37
Edweine Loureiro
Purgatório 38
Zulmar Lopes
Doa-se um helicóptero. Tratar aqui. 40
Leandro Luiz
Rugas do Tempo 41
Juliano Ramos de Oliveira
Minha vida, meu pesadelo 42
Sonia Regina Rocha Rodrigues
Marta e o gosto do tempo 44
Fernanda Cristina de Paula
TRADUÇÃO
A Galinha Degolada 46
Horacio Quiroga
Decálogo do perfeito contista 51
Horacio Quiroga
TEORIA LITERÁRIA
O que ninguém lhe dirá numa oficina literária -
parte 1 (A Criação) 54
Henry Alfred Bugalho
Castillo e Modern: dois poetas argentinos 58
Elias Antunes
O Grande Sertão de Riobaldo 60
Alessa Bertazzo
CRÔNICA
Europa Descarrilada 62
João Paulo Hergesel
POESIA
A fila 64
Volmar Camargo Junior
#18 66
Rafael Zen
Rito 67
Anna Apolinário
Olhos de distância 68
Daniel Moreira
Sagrado 70
Luiza Oliveira
Senilidade 71
Valmir Luis Saldanha
Nº 1 72
Douglas Batalha
Missão 73
Mariana Valle
7
Por que Samizdat?
“Eu mesmo crio, edito, censuro, publico,
distribuo e posso ser preso por causa disto”
Vladimir Bukovsky
8
E por que Samizdat? revistas, jornais - onde ele des tiragens que substituam
possa divulgar seu trabalho. o prazer de ouvir o respal-
O único aspecto que conta é do de leitores sinceros, que
A indústria cultural - e o
o prazer que a obra causa no não estão atrás de grandes
mercado literário faz parte
leitor. autores populares, que não
dela - também realiza um
perseguem ansiosos os 10
processo de exclusão, base- Enquanto que este é um mais vendidos.
ado no que se julga não ter trabalho difícil, por outro
valor mercadológico. Inex- lado, concede ao criador uma Os autores que compõem
plicavelmente, estabeleceu-se liberdade e uma autonomia este projeto não fazem parte
que contos, poemas, autores total: ele é dono de sua pala- de nenhum movimento
desconhecidos não podem vra, é o responsável pelo que literário organizado, não
ser comercializados, que não diz, o culpado por seus erros, são modernistas, pós-
vale a pena investir neles, é quem recebe os louros por modernistas, vanguardistas
pois os gastos seriam maio- seus acertos. ou q ualquer outra definição
res do que o lucro. que vise rotular e definir a
E, com a internet, os au- orientação dum grupo. São
A indústria deseja o pro- tores possuem acesso direto apenas escritores interessados
duto pronto e com consumi- e imediato a seus leitores. A em trocar experiências e
dores. Não basta qualidade, repercussão do que escreve sofisticarem suas escritas. A
não basta competência; se (quando há) surge em ques- qualidade deles não é uma
houver quem compre, mes- tão de minutos. orientação de estilo, mas sim
mo o lixo possui prioridades
a heterogeneidade.
na hora de ser absorvido A serem obrigados a
pelo mercado. burlar a indústria cultural, Enfim, “Samizdat” porque a
os autores conquistaram algo internet é um meio de auto-
E a autopublicação, como que jamais conseguiriam de publicação, mas “Samizdat”
em qualquer regime exclu- outro modo, o contato qua- porque também é um modo
dente, torna-se a via para se pessoal com os leitores, de contornar um processo
produtores culturais atingi- od iálogo capaz de tornar a de exclusão e de atingir o
rem o público. obra melhor, a rede de conta- objetivo fundamental da
tos que, se não é tão influen- escrita: ser lido por alguém.
Este é um processo soli-
te quanto a da grande mídia,
tário e gradativo. O autor
faz do leitor um colaborador,
precisa conquistar leitor a
um co-autor da obra que lê.
leitor. Não há grandes apa-
Não há sucesso, não há gran-
ratos midiáticos - como TV,
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Recomendação de Leitura
EM NOME DO FILHO
Edelson Nagues
http://www.cristovaotezza.com.br/Fotografias/Web/web16.jpg
(Resenha do livro O filho eterno – TE- “nossa culpa”. Essa constatação nos intimida,
ZZA, Cristovão. Rio de Janeiro: Record, nos estremece. Se somos seres incompletos
2007.) por natureza, em constante e interminável
formação, como poderemos formar outros
seres?
O nascimento de um filho, principalmen-
te o primogênito, é sempre um momento E quando o nascimento de um filho, o
de muita emoção. Para os pais, avós, tios, primogênito, revela uma criança estranha,
primos... “o nascimento é uma felicidade diferente, “anormal”?! (“Um filho é a ideia
coletiva” (obra citada, 7ª edição, p. 25). É de um filho; uma mulher é uma ideia de
um importante marco na vida do casal. E à uma mulher. Às vezes as coisas coincidem
alegria desse acontecimento mescla-se um com as ideias que fazemos delas; às vezes
receio, um certo temor, ainda que não assu- não.” – idem, p. 14 – atualizamos pela nova
mido, dissimulado. É que, de um momento ortografia.)
para o outro, nos encontramos frente ao de- Aos 28 anos, projeto de escritor (“pen-
safio de sermos responsáveis pela formação so que sou escritor, mas ainda não escrevi
de um ser humano posto neste mundo por nada”), desempregado, sustentado pela espo-
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avance para a Comédia humana de Balzac, ideia de filho, a desenhar-lhe uma hipótese”
chegue a Dostoiévski, nem este comenta, (p. 68), “o que ele quer é que aquela criança
sempre atendo aos humilhados e ofendidos; trissômica conquiste o papel de filho” (p.
os mongoloides não existem” (p. 36). 95), como observa o narrador (o romance
Cabe então a esse escritor, a quem foi é escrito em falsa terceira pessoa – pois, de
propiciado o convívio com um desses seres fato, o é em primeira –, com flashbacks que
diferenciados, preencher tal lacuna. E ele o vão compondo o tempo e o espaço em que
faz com sentimento, com entrega, com dor os fatos ocorrem).
mesmo, sem jamais perder o domínio técni- Assim, depois de perambular com o filho,
co da narrativa (pois se trata de um profes- na companhia da então esposa (a quem
sor universitário, um doutor em literatura dedica o livro), por consultórios dos mais
“apaixonado pela técnica”). variados especialistas, com resultados pouco
Não há pieguice nem ressentimentos. Há animadores, aprende finalmente a aceitar e
revolta, sim, presente na crueza com que se conviver com as limitações desse ser espe-
refere ao seu primogênito: “criança horrí- cial. Descobre, por exemplo, que “o mundo
vel”, “pequeno leproso”, “pequeno monstro”, dos afetos é o talento dessa criança” (e uma
“filho lesado”, “filho pela metade”, “um não- das características mais marcantes de todas
filho”, entre outras expressões igualmente as pessoas portadoras de tal síndrome), e
reprováveis, considerando-se a sua condição aprende que “a afetividade é um modo de
de pai. E essa exposição de repulsa paterna compreensão”. Um outro talento de Felipe,
provoca o leitor, tenta chocá-lo de forma a pintura (ainda que de forma rústica, tendo
proposital, para que este – assim como o em vista sua dificuldade para assimilar téc-
escritor se p ermitiu – seja confrontado com nicas minimamente complexas), é percebido
sua hipocrisia, esse câncer social, que faz e incentivado com envolvimento, para não
com que reprovemos nos outros tais atitu- dizer paixão.
des enquanto adotamos inconscientemente E uma outra paixão – esta também da
postura semelhante (como os pais que, há maioria dos brasileiros, como se sabe –, o
pouco tempo, em um shopping em São Pau- futebol, acaba por unir pai e filho em uma
lo, impediram que uma criança com Sín- relação que sempre souberam ser eterna.
drome de Down continuasse brincando na Ainda que apresente aspectos fugazes, o ato
piscina de bolinhas de uma brinquedoteca, de assistirem juntos, devidamente unifor-
pois estaria incomodando seus filhos “sãos”). mizados, a um jogo do time favorito – no
E a revolta do escritor vai, aos poucos, estádio ou na frente da televisão, com a im-
cedendo lugar à aceitação, deixando fluir o prescindível pipoca – revela que a história
amor oculto nas camadas da vergonha im- de ambos não teve um fim, mas está sendo
posta pelo “teatro do verniz civilizador”. “O escrita no eterno retorno do dia a dia. As-
pai ainda não sabe, mas começa a ter uma sim como a história de todos nós, aliás.
EDELSON NAGUES
(nome literário de Edelson Rodrigues Nascimento) é natural de Rondonópolis/MT
e radicado em Brasília/DF. Poeta, escritor, revisor de textos e servidor público. Estudou
Direito e Filosofia, com pós-graduação em Língua Portuguesa. Tem vários trabalhos
premiados e/ou selecionados para coletâneas de concursos nacionais, destacando-se:
XXXIII Concurso “Fellipe d’Oliveira” (Santa Maria/RS), XXI Concurso Nacional de Con-
tos “José Cândido de Carvalho” (Campos dos Goytacazes/RJ), IV Concurso Nacional de
Contos do SESC-Amazonas (Manaus/AM), Concurso Novo Milênio de Literatura (Vila
Velha/ES), VI Desafio dos Escritores (Brasília/DF), XL Concurso Literário “Escriba” (Pi-
racicaba/SP) e Concurso Nacional de Contos de Porto Seguro/BA, entre outros. É au-
tor dos livros “Demasiado humano” (contos) e “Águas de clausura” (poemas), a serem
publicados brevemente.
ficina
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www.oficinaeditora.com
Humor
http://www.flickr.com/photos/reallyterriblephotographer/5618087763/
Joaquim Bispo
Breve Dissertação
sobre o Palavrão
Caros circunjacentes: Então, nos píncaros da exaltação, aquilo
A minha preleção de hoje versa o pa- que primeiro acode aos lábios, sem se
lavrão, em todas as suas aceções, o qual, subordinar a uma triagem nas circunvo-
segundo o dicionário Houaiss, pode ser luções da racionalidade, são considera-
considerado em três aspectos semânticos. ções sobre as caraterísticas ou os hábitos
excretais ou sexuais do pretenso agressor
O mais popular, imediato e dissemi- ou de algum membro da sua família. São
nado é o turpilóquio. Nesta forma torpe, expressões belicosas cuja significação
geralmente, explode boca fora, espontâ- pretende provocar algum constrangimen-
neo e veemente, quando se é vilipendia- to na autoestima do interlocutor aciden-
do de maneira inopinada ou prepotente tal. Por exemplo: – Rastilho curto! – que,
nas interações sociais. Sobrevém, amiúde, como calculam, também achincalha o
nas acrimónias do trânsito citadino, onde tamanho do autocontrolo dele.
a peleja pelo espaço essencial do asfal-
to, faz colidir os interesses particulares. No entanto, para atingir o adversário
de maneira cruenta e implacável, o vitu-
Joaquim Bispo
Português, reformado, ex-técnico de televisão, xadrezista e pintor amador, licencia-
do tardio em História da Arte. Alimenta um blogue antiamericano desde o assalto ao
Iraque e experimenta a escrita de ficção desde 2007. Produziu em quantidade e ga-
nhou destreza nas oficinas virtuais de Henry Bugalho e de Marco Antunes. Enquanto
não consegue publicação, entretém-se a enviar textos para concursos literários em que
obteve uma meia dúzia de prémios vários.
Contacto: episcopum@hotmail.com
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Contos
O Moedor de Café
Henry Alfred Bugalho
http://www.flickr.com/photos/sirwiseowl/206004154/
Não gosto de café. Não bebo. Nem — Também não toma?
uma única gota. E não se trata apenas — Só com Nescau — eu respondia, o
do gosto, até o cheiro me causa aversão. que as forçava a procurar no fundo de
Isto vem de longa data; lembro-me algum armário, resmungando, por aque-
de quando eu era criança e, na casa de le pote de Nescau ou Toddy já vencido
amigos, na hora do lanchinho da tarde, de tão velho.
as mães deles preparavam a mesa e nos Este fato também me trazia emba-
serviam, e da minha cara quando elas raços durante o tempo que morei na
enchiam meu copo com café. Europa. Toda vez que eu recusava uma
— Não toma? xícara de café colombiano — dizem
E eu negava com a cabeça. Então, que é excelente — ou um cappuccino,
elas rapidamente trocavam meu copo imediatamente fulminavam-me com
por um outro, enchiam-no com leite e os olhos, como se eu houvesse proferi-
novamente aquela expressão de repulsa do alguma heresia e o papa Bento XVI
na minha cara. estivesse prestes a me excomungar por
isto.
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— É hoje que vou me dar bem! — lugar mais calmo não havia.
cada um dizia para si, mesmo que mui- Foi naquele canto escuro, úmido,
tos não tivessem coragem de se aproxi- teias de aranhas — quiçá, piolhos! —,
mar delas. Por outro lado, eu ainda me atrás das sacas de café, que meu suor se
sentia o mais inexperiente de todos ali, misturou com o de Rafinha, que pela
apesar de ser um pouco mais velho do primeira vez me senti dentro duma
que eles. Quase todos os meus primos mulher.
já haviam perdido a virgindade, alguns
com menininhas do sítio, outros com Há momentos que mudam a vida
putas mesmo, encorajados por seus pais. duma pessoa: de alguns deles não nos
Apenas os mais novos, menores de doze lembramos, nem temos como: a data
anos, e eu é que ainda estávamos na fila de nosso nascimento, nossas primeiras
para sermos descabaçados. palavras ditas, a primeira vez que nos
espantamos diante do nascer do sol, e
O aniversariante veio até mim e me talvez o dia de nossa morte, pois não
disse: sabemos se há algo para além ou se
— Está vendo aquela ali? Diz que viu é meramente o fim; mas há também
você na missa ontem. Vai lá, rapaz, que aqueles inesquecíveis: o primeiro dia na
ela é facinha. escola, aquele Natal no qual descobri-
— Sério? mos que Papai Noel não existe, o dia
em que passamos no vestibular, a aqui-
— Sim. Todo mundo já traçou a Rafi- sição do primeiro carro, o nascimento
nha. É só chegar que ela dá. dos filhos, a morte de nossos pais... Eu
E esta última frase foi fatal para e Rafinha, corpos nus entrelaçados, é
mim. Minhas pernas começaram a tre- uma destas lembranças.
mer e eu fiquei tão aterrorizado de que Eu me apaixonei por ela, adoeci de
aquela noite poderia ser a minha vez, amor. Voltei para minha cidade e tudo
que eu passei a vagar pelos cantos da me trazia a memória daquela noite.
festa, só me expondo para ir catar uns Ao chegar em casa, depois da aula, eu
salgadinhos. me jogava na cama, punha um CD de
Foi numa destas oportunidades que Johnny Rivers, e sonhava acordado, an-
Rafinha me abordou. gustiado, aborrecido, oprimido pela sau-
— Oi? — ela molhou os lábios e me- dade. À noite, antes de dormir, o desejo
xeu no cabelo. me consumia. As horas se arrastavam.
Tinha de acordar cedo e o relógio na
Não me lembro o que respondi, mas cabeceira indicava três horas da manhã.
gaguejei e ela riu. Batia uma punheta assistindo aqueles
— Você é tão bonitinho — ela disse. filmes eróticos da madrugada e, por
Quando percebi, já nos atracávamos mais aquele dia, eu vivia sem Rafinha.
atrás duma árvore no quintal. Eu não O passar dos meses foi uma eterni-
era o rapaz mais experiente do mundo, dade. Só retornaria à casa de minha avó
mas já havia pegado nuns peitinhos an- para as férias do fim de ano. De julho a
tes. No entanto, logo estes meus poucos dezembro, um, dois, três, quatro meses.
truques se esgotaram. Eu estava muito Mas o tempo simplesmente havia para-
excitado, mas não tinha muita certeza do e, no meu peito, uma paixão como
de até onde poderia ir. eu nunca sentira antes.
Novamente, a iniciativa foi de Rafi- Minha mãe comprou as passagens de
nha: ônibus e pude respirar aliviado, falta-
— Vamos pr’um lugar mais calmo? vam apenas mais alguns dias.
E, num reflexo, pensei no depósito: Chegamos à minha vó de manhã
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Contos
CRIANÇA PRODÍGIO
Sempre foi a criança mais inteli- centes iam para as festas; cursava uma
http://www.flickr.com/photos/22326055@N06/4751249463/
gente da turma. Alimentava-se sozinha faculdade quando as demais estavam
enquanto as demais comiam giz; apren- no Ensino Médio; preferia trabalhar a
deu a ler antes que as outras pudessem perder tempo em namoro.
soletrar; amarrava os próprios cadarços Encontrou a tão sonhada estabilidade
quando o restante não sabia andar de financeira; dividia uma mansão com a
sandálias sem elástico no calcanhar. sua própria sombra; contava as tristezas
Já usava brincos e maquiagem en- e alegrias para as atentas paredes; tinha
quanto as outras garotas furavam as pavor de qualquer coisa que pudes-
orelhas e descobriam as revistas de se atrapalhar o seu emprego; possuía
moda; abandonou as bonecas quando tocofobia...
as demais costuravam vestidinhos de Deixou de viver intensamente.
princesas; beijava garotos antes que o
... e “abortou” a criança... que havia
restante deixasse de brincar de pique-
dentro de si!
esconde.
Estudava enquanto as outras adoles-
http://www.flickr.com/photos/delafuente/3230692585/
Ela era torneada. Mulata. Escrava Quando amanhece, uma criança
pós-moderna. De dia, filhinho no colo. perambula com as fraldas sujas por um
De noite, bolsinha a tiracolo. Era lin- loft qualquer bem decorado da Rambla.
da. Morena da grife brasileña. Chiclete – Mamã... Mamã... Teta...
provocativo. Madeixas de molejo sexy.
Olhar de lua. Sorriso de avenida. Beijo Na hora de reassumir a maternida-
de beco sem saída. Nudez de mini-saia de nacionalista, a prostituta desapareceu.
levantada (sem calcinha) na orla escura Nunca mais voltou. Ela não conseguira
da Barceloneta. vencer a dor aberta do buraco fundo, frio
e estreito, que deitou sangue no passeio
– O ponto é meu, traveco da porra! público daquela última noite, antes do
– ¡No más! Muere perra! retorno ao Brasil. Seria aquela, realmente,
Um grito tremido depois do estalo a sua última noite de sacrilégio, mas o
doído de um triste tapa na cara. destino é um comboio cego... E atropela
quem dá mole pela frente.
Silêncio na madrugada...
Marcelo Soriano
Nascido em 11 de agosto de 1967, em Santa Maria – Rio Grande do Sul – Brasil.
Engenheiro Mecânico graduado pela Universidade Federal de Santa Maria (2004) e pós-
graduado em Engenharia de Produção e Manufatura pela Universidade de Passo Fundo
(2010). Autor do Livro “CANTOPOEMAS: SOBRE MENINOS E PÁSSAROS”, juntamente com a
escritora moçambicana Isabel Gil (Alcance Editores. Maputo-MZ, 2011). Cronista das Revis-
tas Tempo e Literatas (Maputo-MZ, 2011).
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Contos
Vez em quando
Cinthia Kriemler
http://www.flickr.com/photos/stopthegears/2428574441/
mim. Um perfume, talvez um aro- matéria sólida, como as lajes e os
ma de pele. Não dá mais tempo de granitos. Sem os rompantes, sem a
impedir a memória, nem de punir histeria da partida. Nenhum sofri-
a sentinela da razão que se atrasou mento à superfície, nenhuma tristeza
por uns segundos. Já estou impreg- deslocada. Apenas o suficiente para
nada desse vento de passado que me prosseguir humana.
força companhia. Não consigo fixar seu rosto nos
O cheiro de café torrado insiste meus pensamentos. Foi assim tam-
em fazer cócegas no meu cérebro, bém na primeira vez em que nos
me dizendo que não vai ser fácil encontramos. As pessoas eram
me livrar da sua lembrança. Pois sempre pontos distorcidos em mi-
que seja. Não sou mais alguém em nhas fugas de álcool fácil e carnes
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revelou, vaidoso. — Como é o seu e vidros embaçados de chuveiro. Fiz
nome? passeios de mãos dadas, desconcertei
— Aimée. olhares. Dei gargalhadas no cinema,
fiz sexo na escada e me senti bonita
— Aimée! Amada... Significa ama-
de cara lavada.
da, em francês, você sabia? Minha
família é de origem francesa. Que Então, numa data sem aviso, an-
coincidência! É um nome lindo. tes que a terceira chuva pudesse me
trazer mais um ano, tomou conta de
Pedi a Deus que me tirasse de lá,
mim uma antiga sensação de ausên-
porque meus pés não ofereciam essa
cias. Não sei se foi um gesto dife-
opção! O rapaz estava flertando co-
rente, um jeito de respirar acelerado,
migo, se exibindo para mim! E, mes-
uma desatenção proposital. Sei que
mo assim, o que ele dizia entrava
os fogos de artifício se tornaram, de
em meus ouvidos como uma escala
repente, fósforos usados.
afinada. Esperei realmente por um
pequeno empurrão, uma lucidez Talvez, se Fernand tivesse morrido,
acanhada. Mas tudo falhou. A divin- talvez se ele tivesse amado alguém
dade, os pés, a vontade. mais jovem que eu, com menos ca-
minhadas, eu teria podido me agar-
Eu mesma derrubei as cercas, des-
rar ao consolo do plausível. Mas não
lembrada de que as cercas existem
foi assim. Fernand só queria mesmo
para guardar ou impedir. Fiz como
ir embora.
o predador que fareja carne tenra:
desprezei as armadilhas, até ser co- Eu ainda não estava pronta para
lhida pela dor das estacas. me encontrar com a mulher vazia
que morava dentro de mim, mas a
Fernand e eu fomos felizes por
solidão me alcançou inflexível numa
duas chuvas. Ele se fez caber por
noite sem forças. E eu me cedi a ela.
inteiro em meus espaços vazios.
Com o tempo, acertamos uma tré-
Afastou minhas urgências, ofereceu-
gua. Vez em quando, colho nas ruas
me outras, me emprestou o riso, o
um cheiro de saudade. Apenas o
colo, os olhos brilhantes. E eu me
suficiente para prosseguir humana.
completei dele. Ganhei abraços de
tirar o fôlego, brinquei sem pressa
sobre a cama desfeita, escrevi pala-
vras bobas, sem sentido, em bilhetes
Cinthia Kriemler
É contista e cronista. É autora do livro de contos “Para enfim me deitar na minha
alma”, pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crôni-
cas “Do todo que me cerca”. Finalista de concursos literários, participa de duas cole-
tâneas de poesia e uma de contos. É jurada dos Desafios dos Escritores e da Revista
Literária. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escri-
toras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos.
Relicário
Tatiana Alves
http://www.flickr.com/photos/mrbeck/1981387615/
Maria abriu cuidadosamente o reli- fria que vinha de fora. Cheiro de gente,
cário, mirando os olhos da imagem que de rua, de vida. Calçou os chinelos gastos
ali ficava guardada. Ajoelhou, como fora e pôs-se a ler.
ensinada a fazer, e principiou a entoar Época de novena era assim mesmo. As
mecanicamente mais uma de suas pre- outras vinham à sua casa rezar o terço
ces. Emendava uma oração na outra, sem durante vários dias. O motivo agora era
jamais obter o alívio desejado. A santa a candidatura do pai de uma delas, pre-
olhava, impassível, nada podendo fazer feito da cidade. A novena, contudo, não
diante daquela situação. Seu olhar conti- parecia ajudar na reeleição do sujeito,
nha uma espécie de tristeza, uma quase cuja popularidade caíra vertiginosamente
resignação, que não ajudava muito a con- desde que fora visto saindo de uma casa
fortar a devota que a ela se dirigia. de tolerância na cidade vizinha. Era caso
“Mulher só sai de casa três vezes na perdido. E eleição também.
vida: para ser batizada, para casar e para Pediram, então, a imagem da santa.
o próprio enterro”. As palavras da avó Que percorreria a cidade, numa procis-
ainda ecoavam em seus ouvidos. Bendi- são improvisada e direcionada. Depois,
ta sois vós entre as mulheres. Por que, passaria alguns dias na casa de cada de-
então, tantas renúncias, ó mãe? vota integrante do grupo de oração, para
Persignou-se, acendeu uma vela e saiu recuperar a nódoa na imagem do sujeito.
do cômodo. Em alguns segundos retor- Maria, que não se interessava por polí-
nou, e trancou o relicário, evitando o tica mas não podia negar o favor, cedeu,
olhar da santa. Em seguida, cerrou as embora a contragosto.
janelas, não sem antes respirar a brisa No dia seguinte, bateram à porta
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bem cedo. Duas mulheres pertencen- infortúnio. Adoecera na semana em que
tes ao grupo vinham buscar a Virgem, a Virgem sumira. Febres inexplicáveis
padroeira de Santa Maria da Renúncia. atormentavam-na dia e noite. Certa vez,
Dirigindo-se vagarosamente ao quarto, na foi encontrada vagando perto da cachoei-
tentativa de protelar a retirada da ima- ra, roupa molhada colada ao corpo. Delí-
gem de sua casa, pegou cuidadosamente rio, dizia o médico. Pecado, dizia o padre.
o relicário. O grito foi uníssono. A santa E havia um moço que nada dizia, mas o
havia desaparecido. Como podia uma sorriso em seus olhos fazia a maior prece
coisa dessas? Como ela podia ser tão jamais entoada em louvor à santa. Ou ao
desalmada e ingrata a ponto de forjar o roubo.
roubo da imagem em vez de cedê-la para Os ardores de Maria eram agora
tão nobre propósito? As beatas do luga- conhecidos e tolerados por todos no
rejo saíram, indignadas. lugarejo. As beatas benziam-se: tadinha.
Os dias escoavam-se sem que a ima- Uma alma pura que se perdera longe da
gem aparecesse. O relicário aberto asse- proteção da santa. Bebia o vinho do pai,
melhava-se a uma casca sem noz, a uma brindando à santa ausente. Rodopiava
caixa sem presente. E Maria adoeceu como se não soubesse mais o que era
com a falta da santinha. Ninguém mais linha reta, e sua saia alçava voos de ser-
a essa altura duvidava que a santa tivesse pente alada. Gargalhava como se nunca
sido de fato roubada, embora nenhum houvesse frequentado colégio de freiras, e
forasteiro tivesse sido visto nos arredores deitava-se no chão, mirando inexistentes
na semana do desaparecimento. estrelas que cintilavam proibidos latejos
De resto, tudo parecia normal em em sua cabeça. Em seu peito. Em seu
Santa Maria da Renúncia. Ou até melhor. ventre.
Nem parecia inverno. As rosas desabro- Dois meses depois, Maria foi desperta-
charam antes do tempo, o gado – sem- da pelo olhar da santa, dentro do relicá-
pre tão passivo – ficou mais agitado, e a rio. Incrédula, abriu-o, indagando, mental-
brisa que soprava no fim da tarde trazia mente, quem a havia roubado. Nenhuma
agora um ardor inesperado. O frio, mar- resposta. Havia fugido, então? Um meio
ca característica do lugar, fora repenti- sorriso pareceu se desenhar no rosto da
namente substituído por um calor sem imagem. Devia estar mesmo louca, como
precedentes, como se uma espécie de todos julgavam. Tinha de anunciar o
sezão assolasse o local. As mulheres, que retorno da Virgem. Gritar. Sua protetora
antes permaneciam em casa, aquecidas, voltara. Abriu a janela, sentindo o ven-
queriam agora sair. Joelhos ofereciam-se, to frio de sempre agredir-lhe o rosto. A
não mais ao milho, mas à contemplação imagem, trancada no relicário, assumira
alheia. Ombros e decotes foram vistos o tom triste de antes.
por ali, e madonas renascentistas sur- Não pensou duas vezes. Abriu o re-
giam a cada beco. licário, piscando levemente, e voltou a
Maria mirava o relicário, agora um dormir. Ambas sabiam que a santa não
santuário de ausência, e pranteava a sau- mais estaria ali quando Maria acordasse.
dade que sentia de sua companheira de Nem ela.
Tatiana Alves
É poeta, contista e ensaísta. Participou de diversos concursos literários, tendo obtido vários prêmios.
É colaboradora da Coluna Momento Lítero-Cultural, dos sites Cronópios, Anjos de Prata, Germina Lite-
ratura e Escritoras Suicidas. É filiada à APPERJ e à Academia Cachoeirense de Letras. Possui seis livros
publicados. É Doutora em Letras e leciona Língua Portuguesa e Literatura no CEFET / RJ.
A deusa da chuva
José Guilherme Vereza
http://www.flickr.com/photos/lightknight/949116165/
E choveu o ano inteiro em 21 minutos. ga lenga que é para tanta gente assinar um
Enquanto o ônibus não chega, perambulo documento.
os olhos pela rua, cantarolando as águas de Cristina não é um nome que defina idade.
Tom Jobim, e encontro Cristina num canti- Mas não me parece uma pós-adolescente,
nho de paus, pedras, restos de toco, um toco considerando que o CPF é daqueles beges e
sozinho. grandões, anteriores aos cartões azuis magne-
Não uma Cristina gente, morta ou viva, tizados que dormem com cartões de créditos
carente ou determinada, enérgica ou entre- nas carteiras ricas.
gue à sorte impiedosa do verão, da natureza Vidal, o nome do meio, insinua que a
e do descaso. Mas uma Cristina de papel, dona do documento perdido possa trazer
plastificada, enlameada, materializada por raízes ibéricas, remotamente francesas, mas a
um CPF sem rosto, discreto e sujo, que me dá preguiça mental me leva a encurtar caminho
pistas sobre sua pessoa. da história e admitir que seja descendente de
De cara, descubro que é uma mulher. Está uma sinhá de além-mar, que deu com os na-
escrito em letras gagas de uma Remington: vios nas costas da Bahia, tendo envergonhado
Cristina Vidal Sotero, ao lado um número a família ao se enrabichar por um cafuso tí-
borrado, e no verso uma assinatura legível e pico, indolente por parte de pai e fogoso por
inspiradora. parte de mãe. E saíram, colonizado e coloni-
zadora, às cópulas pelas alcovas a povoar a
Decifra-me, diz o garrancho. Sou traço cidade de São Salvador da Bahia de Todos os
tosco de vítima do desprezo histórico que Santos. Na enésima geração, nasceu Cristina.
se tem pela educação dos pobres. Trata-se, Claro que está tudo explicado: seu último
então, de alguém que rala na vida, que não sobrenome é Sotero, ó, ó, ó, digo isso meio
veio ao mundo a passeio. As maiúsculas girando repetidamente a mão direita com o
tentando arabescos eruditos e as minúsculas polegar e o indicador em curva formando
finais apressadas tentando acabar com a len-
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uma pinça, o gesto vulgar que denota ligação para morar comigo nas terras dos bons vi-
infame, ó, ó, Sotero de salvador, polis de cida- nhos, da culinária soberba e das vacas pre-
de, sacou? – adoro palavras cruzadas: nascido miadas.
em Salvador, vertical, 14 letras. Mas eu não cozinho em francês, seu dotô.
Pronto. Definida a origem da criatura. Vai como minha mulher, há quem obede-
Resta agora o quesito “o que faz na vida, ça a suas ordens naquela vida boa.
além de explicar que perdeu documentos na
chuva”. A caligrafia me cochicha: talvez seja E se eu sentir saudade do tempero da
diarista, talvez costureira, talvez balconista, Bahia?
caixa de supermercado. Pode ser faxineira, Mando trazer de avião.
trocadora, a moça do café, a rainha dos servi-
E se painho der por minha falta?
ços gerais numa empresa próspera e social-
mente responsável. Vem de avião também.
Nada disso. Que seja uma cozinheira, E como fica o calor da nossa terra?
de forno e fogão, de panelas de ferro e de Te aqueço, minha deusa, nos meus braços,
barro, uma Gabriela de cravo e canela, uma nos meus abraços.
Dona Flor sem maridos aparentes. Decidi.
Mas não tenho CPF para tirar passaporte,
Sua moqueca é de arrasar, seu xinxim é de
moço, esse não presta mais.
se lamber os beiços, seu vatapá é um manjar
de deus e do diabo, honra e glória dos Vidal Danou-se. Olho o documento encardido
Sotero, que fizeram história nos sobrados do e inútil. Penso em entregar a um Guarda
Pelourinho, manera no dendê, minha filha, Municipal – deve haver uma porta escrita
minhas entranhas não aguentam mais ta- Achados e Perdidos em alguma repartição da
manha perdição, já basta o acarajé que me Prefeitura. Imagino carregá-la no bolso, para
ofertaste e a pimenta que me ardeste. sempre comigo, tenho tia abastada nada, sou
um impostor, mas ofereço minha gaveta de
Cristina Vidal Sotero já é íntima. Juro que
moradia, meu quarto e sala é a Bahia, minha
descubro seu paradeiro. Vou de rua em rua
cama é o Pelourinho, me açoita, morena, vem,
nas redondezas, de soleira em soleira, curioso
morena, vem seguir os desígnios dos santos
tenaz, encontro enfim a dona de história tão
do acaso, dos anjos dos sonhos, dos deuses da
rica, dotes tão saborosos, sorriso generoso e
chuva.
um corpo surpreendente, esculpido por Jorge
Amado. E me esvai a fala, aflauto a voz. Para tudo. Quem vem vindo agora é o
ônibus lotado de realidade e juízo. Escapando
Você é Cristina Vidal Sotero?
entre meus dedos, deixo Cristina carinho-
Sim, senhor. samente no meio fio de onde veio. No pau,
Estou mais perdido que seu documento. na pedra, no resto de toco, no toco sozinho.
E sigo, e subo, e suspiro, e sento no último
O senhor achou?
banco. Estico meus olhos àquele documento,
O destino achou. que, acho, me olha também. Fecha o sinal da
Então entra, tem recompensa, vem provar esquina, providência para um teimoso raio
o gosto que a baiana tem. de olhar. Vejo na rua que ficou para trás
um gari de perna fina, moroso e indiferente,
E diante de tantos encantos noite adentro, passando a chuva a limpo, parando e olhan-
ouso retribuir com um mimo. do para um reles CPF jogado no chão. Antes
Cristina, sou herdeiro único de uma tia da vassourada de misericórdia, ele se abaixa,
abastada, que me deixou um domaine na pega e lê: Cristina Vidal Sotero.
Normandia. Tenho vontade de botar a cabeça pra fora
Um quê, moço? da janela: tira a mão daí, moleque!
Um castelo na França, entendeu agora?
Pois prossiga, senhorinho formoso.
Indo direto ao ponto: quero levar você
http://www.flickr.com/photos/fiverweed/5265610106/
Otávio Martins
O CATAVENTO MALUCO
Nunca perguntou ao pai porque a es- Morocho, como era carinhosamente chama-
colha de um tango argentino. Sua mãe, do pelos porteños, logo começaria a contar
ele bem o sabia, aquiescia a todos os seus a história de um grande amor, na inesquecí-
caprichos, e era de fazer-lhe companhia pelo vel gravação de 1923.
simples hábito de permanecerem juntos em Quase encostada na parede do lado de
quase todos os momentos de lazer. dentro da grande varanda, a eletrola, instala-
À tardinha, o seu pai costumava colocar da num lindo móvel de três compartimen-
na eletrola sempre o mesmo disco de Gar- tos, todo em madeira envernizada, ganhava
del – “uma relíquia!”, como costumava dizer um toque colorido por uma tela aveludada,
– para, em seguida, sentar-se na sua pol- verde-escuro; o tecido, pespontado por fios
trona preferida. Tudo parecendo mais uma dourados, servia para cobrir o nicho onde
encenação da primeira vez em que escutou estavam instalados os alto-falantes. Dali
– junto com sua mãe, supunha – a belíssima surgiriam os sons que impregnariam todo
composição de Gardel, Razzano e Celedonio o ambiente com uma das mais conhecidas
Flores. músicas do cancioneiro argentino.
A iluminação da varanda, que tinha todo
Nem lembrava direito desde quando os um lado envidraçado, era proporcionada
acompanhava naquele ritual – quase um pelas réstias que escapavam do sol a se pôr
culto à nostalgia. Enquanto o vinil era, cui- detrás do quintal, atravessando por entre os
dadosamente, colocado no prato da eletrola, galhos e as folhagens das enormes figueiras
sua mãe e ele tomavam assento nas outras e um imponente abacateiro. Não se atinava
duas poltronas e, sem qualquer palavra, para outros detalhes, como se todo o am-
aguardavam os primeiros acordes da intro- biente fosse preenchido apenas pelo som
dução do Mano a Mano. Carlos Gardel, El que vinha da eletrola e por aqueles tênues
raios de sol, além dos três personagens
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que permaneciam imóveis um vazio de aspecto triste, ainda acompanhava o seu
e silentes durante toda a talvez pela ausência da ve- pai nas audições do tango
audição. getação e de algumas flores de Gardel, as quais continu-
Logo após a última nota que só voltariam na próxi- aram acontecendo por todas
do Mano a Mano, o tem- ma primavera. as tardinhas.
po retomava ao seu curso Do lado de fora, nada, ou Em algumas manhãs, era
e cada qual ia para o seu quase nada, se ouvia depois de transpor os limites do
canto. Enquanto seus pais que ele trancava-se no quar- quintal para ficar próximo
encaminhavam-se vagaro- to. Espalhados pelo pequeno à plantação de trigo e dos
samente para o interior da cômodo, enormes bonecos canteiros de girassóis que a
casa, ele, num gesto quase traziam entre as mãos cada circundavam e ali permane-
autômato, dirigia-se ao seu um o seu instrumento: violi- cer, por longo tempo, imóvel,
quarto, que também lhe ser- nos, violas, celo, postando-se, na feição de um espantalho,
via de estúdio. Localizado do assim, como uma orquestra hipnotizado pelo espetáculo
lado esquerdo da varanda, de câmara. Todos vestidos de luz e movimento.
quase chegando aos fundos ao rigor de uma grande Com o mesmo entusias-
da casa, a porta permanecia apresentação. Somente ele mo que regia a pequena
quase sempre fechada. Nem ouviria, através dos fones, orquestra, dedicava-se à
mesmo a senhora, que ainda a música que passaria por construção do seu catavento,
vinha de vez em quando um amplificador de alta- de grandes dimensões, que
para dar um jeito na casa, fidelidade, trajando o melhor ele chamava de circuladô
entrava em seu quarto. Ele de seus figurinos para a de fulô, nome que apren-
mesmo se encarregava de ocasião; tinha caídos, sobre dera numa das canções de
arrumá-lo. Não obstante, era os ombros, os cabelos soltos Caetano Veloso. Acreditava
de fazer-lhe algumas confi- e desalinhados, precocemen- que a sua engenhoca ainda o
dências. te grisalhos. Após alguns levaria, como as asas de um
De sua janela ele po- instantes de concentrado beija-flor, em meio a uma
dia estender a vista além silêncio, com a voz baixa, noite estrelada, muito além
do quintal, até alcançar os dirigia-se aos outros compo- dos trigais e dos canteiros de
trigais que o sol – recém nentes da pequena orquestra, girassóis.
passada a primavera e já nos iniciando a contagem que
primeiros dias de calor – ba- definiria a divisão e o an-
nhava com uma luz intensa, damento para os compassos No dia em que não
já ao tempo da colheita, que surgiriam ao erguer a mais precisou fazer com-
dando-lhes a aparência de batuta, num gesto de extre- panhia ao seu pai, para
pequenas ondas douradas ma delicadeza e elegância, ouvirem o francês Charles
que corriam em direção ao iniciando a regência de uma Romuald Gardés – o verda-
horizonte. Durante o outo- das mais belas músicas de deiro nome de Carlos Gardel
no e o inverno, boa parte Mozart. – numa de suas mais belas
da terra ficava em descanso Depois que a mãe mor- interpretações, trancou-se na
para outras safras, deixando reu, talvez por costume, velha casa e nunca mais foi
visto pela vizinhança.
Otávio Martins
68 anos, fotógrafo, mantém um jornaleco eletrônico, O Spam. Trabalhou na TV Tupi, TV Cultura
de SPaulo, produção de shows (Adoniran, Paulinho Nogueira, Eduardo Gudin, Márcia, Roberto Riberti,
Tom Zé e outros); Festival de Verão do Guarujá, 1980 e Festival MPB Universitário, TV Cultura 1979,
assistente de produção. Cozinheiro profissional, compositor MPB, música e letra.
DEPURAÇÃO
Silvana Michele Ramos
http://www.flickr.com/photos/merlin1487/5518280677/
ção acadêmica passado numa academia passado efetivamente forneceu aquilo de
consistiu no seguinte: requisitou-se que que estava de posse sobre esse crime de
a academia onde o crime de corrupção corrupção acadêmica nela passado, in-
acadêmica se tinha passado forneces- clusive prontamente, e como aquilo de
se aquilo de que estava de posse sobre que ela estava de posse sobre esse crime
esse crime de corrupção acadêmica de corrupção acadêmica nela passado
nela passado, o que a academia onde não constituiu convicção suficiente de
o crime de corrupção acadêmica se que se tinha passado crime de corrup-
tinha passado efetivamente fez, inclusi- ção acadêmica nessa academia, a apu-
ve prontamente, fornecendo justamente ração foi finalizada, o caso em comento
aquilo de que estava de posse sobre esse tendo sofrido arquivamento.
crime de corrupção acadêmica nela
passado, e como a academia onde o
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Contos
Adivinho,
detetive
ou fofoqueiro
Roberto Klotz
http://www.flickr.com/photos/anabadili/551898740/
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vS — Sim. Você está usando a mesma frio.
camisa há vários dias. J — O senhor é adivinho, detetive ou
J — Ela está cheirando? fofoqueiro? O que mais andou reparan-
vS — Não. — respondeu sério — Ela do?
não foi passada e está manchada. vS — Que agora é pedestre, sem car-
J — Isto não quer dizer nada. ro. Só anda a pé ou de ônibus.
Roberto Klotz
autor dos contos e crônicas de Pepino e farofa, Quase pisei! e Cara de crachá. Com linguajar leve,
dinâmico, bem-humorado e finais surpreendentes foi premiado em mais de 20 concursos literários.
Promove oficinas e palestras sobre a escrita. Jurado de concursos literários. É conselheiro de cultura em
literatura da Secretaria de Cultura do DF. Participa do Núcleo de Literatura da Câmara dos Depu-
tados. Recebeu elogios de Moacyr Scliar e Ignácio Loyola Brandão. Produziu 40 crônicas semanais
ininterruptas sobre notícias publicadas no jornal.
Está em robertoklotz.blogspot.com
Avessa ( o )
Sara Meynard
Parecia que aquela seria mais uma covardia. Mas é que depois de tantas
http://www.flickr.com/photos/josephstory/5908033496/
das noites em que se vai dormir com feridas o corpo quer é sossego. Mesmo
quase quatro mil coisas na cabeça. que eu fosse covarde e me tendesse
Deitei-me ainda cedo, com o objetivo para as pessoas, aquilo era muito mais
que o sono fosse mais proveitoso do forte, era conforto.
que enfrentar a madrugada fria. Mas não importava o meu conforto;
Aquilo já era de costume, os sons dos as feridas ainda estavam lá, mesmo que
carros e motos na avenida invadindo o não ousasse nem pronunciá-las. Igno-
meu quarto me embalavam e me fa- rei. Segurei o ar com uma das mãos,
ziam companhia. As luzes penetravam e movi a outra misteriosamente, como
inquietas pelas grades da janela, fazendo se não soubesse onde fosse parar, até
com que minha escuridão fosse menor. que as duas se encontraram e se visita-
Todo aquele barulho me fazia sentir ram por dentro. Meu próprio calor me
mais em casa do que se eu estivesse no aquecia, o corpo se repartia em dois,
silêncio de mim. Talvez fosse medo; ou transformando a solidão em duas, que
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se ligavam. Que fosse só um disfarce, A sombra dançava; os pés esticavam
não importava. e encurvavam; tinha a habilidade de
Quando criei coragem para fechar os uma bailarina. Não me lembro que rou-
olhos e ver todos aqueles pesos, e mi- pa usava, e nem se usava. Mas ela veio e
nhas pálpebras começaram a se fechar se sentou ao meu lado. Agarrou minhas
na mesma lentidão do pôr do sol, com mãos, e as segurou assim como esta-
todos os raios indo embora, o corpo se vam: juntas. E sem falar nada, veio me
preparando para a noite, a vida recuan- pegando, me passando, me aninhando,
do como se tivesse medo, nada veio. Eu com o mesmo calor do ventre mater-
até me assustei, mas já cansada, achei no e o mesmo prazer das mais fiéis ou
agradável e afundei na cama com a for- infiéis amantes.
ça de um lutador. Eu não pensei muito aquela noite. Na
Foi quando ela entrou. A porta do verdade não pensei nada. Por isso não
quarto se abriu devagar, e embora tive medo da respiração pesada no meu
nenhum feixe de luz a acompanhasse, ouvido, das mãos que me rodeavam. E
via sua silhueta claramente. Eu poderia não deveria mesmo ter. Era tudo o que
falar que fiquei com medo, mas a verda- eu esperava, meu avesso estava ali: e
de é que eu não reconhecia perigo em me segurando, apalpou meus arranhões,
uma companhia para a noite. Mesmo minhas marcas, meus vermelhões, roxos
que fosse estrangeira; eu não poderia e tudo mais que um dia houvera me
saber o motivo de temer aquilo, era ferido .
estranho demais para mim. Só sentia minhas gargalhadas agora.
Meus olhos no começo se arrega- Gargalhávamos juntas. Aquela sombra e
laram; mas logo foram se fechando, à eu. Rindo alto da vida que passava, do
medida que ela ia chegando mais perto, tempo indecoroso, das ruas inacessíveis,
e era tudo tão devagar que parecia ter das roupas desnecessárias... era tudo e
todo tempo do mundo. Ao contrário muito mais. Era eu, e o avesso. A avessa.
dos dias corridos que se passavam em Não me lembro quando dormi, e
sufoco, naquela noite os acontecimen- nem sei mesmo se dormi. Sei que quan-
tos foram se entrelaçando de maneira do abri os olhos, estava sozinha de
tão lenta, que era possível ver e sentir novo. Mas já não me sentia assim. Era
todos os fios soltos, e todos os fios que como se ela ainda estivesse ali, comi-
se uniam na construção do que agora go, como se tivesse se tornado parte de
narro nesse conto póstumo. Póstumo mim. Não; já era parte de mim antes.
sim, pois alguma coisa morreu aquela Eu só a achei.
noite. E no riso fugido da noite, eu acordei
Meus lençóis eram brancos, mas eu ainda com os dentes de fora. A sen-
juro que acordaram vermelhos. Não sação de luto me tomava ao mesmo
me lembro em momento algum de tempo em que o sol raiava forte. Nun-
haver sangue; nem dor. Pelo contrário, ca soube o que morreu aquela noite, e
era uma paz tão grande que eu fechei nunca nem procurei saber. Só sei que
mesmo os olhos – mas tenho certeza se perderam na sua inutilidade todas
que não dormi, pois os abria sempre as quatro mil coisas, e eu tinha lençóis
– e até comecei a gargalhar de prazer novos.
com aquela coisa se movendo em meu
quarto.
http://www.flickr.com/photos/kdemetras/5816398/
Edweine Loureiro
COLETIVO
Toca o buzão motorista, esse ônibus Pode baixar o som cumpadi, tu num tá
passa no Largo, licença dona, tô indo pro no ônibus sozinho, qual é seu mané, vai
trabalho… encarar, Deus do céu, ele tá armado…
Sentou-se no banco de trás, o olhar Tudo o que sabia é que, não im-
perdido. E agora, o que faria? Demitido, portando o que acontecesse, precisava
endividado e três filhos para criar… seguir vivendo. Amanhã mesmo…
Menina tu tá grávida, esse Botafogo Escapou pela janela o desgraçado, toca
não tá mais com nada, viu o jogo ontem, pro hospital motorista, meu Deus, o tiro
passa na praça sim senhor… pegou no peito, tá morto, não, ele tá ten-
O que diria à esposa? Como reagiria tando dizer alguma coisa, silêncio gente,
Mariana a uma notícia assim? Temeu pobre do homem, não tinha nada a ver
possíveis discussões; até mesmo a sepa- com a briga…
ração. — Mariana…
Edweine Loureiro
Nasceu no Brasil em 20 de Setembro de 1975. É advogado, professor e reside no Japão desde
2001. Prêmios literários incluem: Primeiro Lugar na Categoria Crônica do 6º Desafio dos Escrito-
res (2010) e o Primeiro Lugar no V Concurso Crônica e Literatura – Prêmio Ferreira Gullar (Mi-
nas Gerais, 2011). É membro correspondente da Academia Cabista de Letras, Artes e Ciências (Rio
de Janeiro). Autor dos livros: Sonhador Sim Senhor! (Editora Litteris, 2000) e Clandestinos [e outras
crônicas] (Clube de Autores e Agbook, 2011).
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Contos
http://www.flickr.com/photos/thejhop/117055834/
Zulmar Lopes
Purgatório
Está se vendo que você nunca se apai- de garrafas e copos, sempre comandada aos
xonou, não é, meu caro? Dizem que paixão berros por aquela senhora de maus modos
é uma coisa avassaladora, uma fábrica de que tudo fiscalizava por detrás da balança
loucuras. O Frejat ilustrou bem isso naquela onde os pratos eram pesados. “Lívia, não
música, como era mesmo a letra? Deixa pra esqueça o refrigerante do moço lá no fundo!
lá. Isto não deve ser do seu interesse, não é Vamos logo, menina, deixa de preguiça! Você
mesmo? é uma estabanada mesmo, não serve pra
Apesar de estar apaixonado, julgo que, o nada!” Elogios daquela mulher, eu creio que
que fiz por Lívia, não foi uma loucura de minha amada nunca tenha ouvido.
amor, pensei inclusive estar agindo da ma- Compunha o resto da família um sujeito
neira correta e olha o que me aconteceu? mal-encarado que ficava na caixa, invariavel-
Aonde vim parar? Caso houvesse cometido mente trajando a camisa do Botafogo. Pouco
um desatino amoroso, certamente a história falava, muito grunhia para os clientes ao
teria sido outra e hoje estaríamos juntos e devolver o troco.
felizes curtindo o nosso amor. A comida não era grande coisa, mas por
Confesso que a primeira vez que eu a vi, aquele ser o restaurante mais próximo do
Lívia não me despertou a mínima atenção. trabalho, tornei-me seu habitué e, pouco a
Mal a notei, diluída naquele vai e vem de pouco, fui reparando na beleza rústica de
gente transitando dentro do restaurante de Lívia. Tinha o meu amor o rosto redondo,
comida a quilo da sua família. Na verdade, sardentinho, decorado com dois olhos cha-
eu estava faminto e os predicados do sexo mativos, nunca soube ao certo serem verdes
feminino me interessavam menos do que um ou azuis, e um cabelo cacheado, ruivo e há
suculento prato de comida, baratinha, como tempos longe de um cabeleireiro. Seu cor-
mostrava o cartaz do lado de fora do estabe- po era de uma leve obesidade disfarçada
lecimento. por uma coleção de calças jeans que mo-
Ela era a encarregada de servir as bebidas delavam sensualmente os quadris. O busto,
do restaurante. Ficava de um lado para o farto, se escondia atrás das camisetas t-shirt
outro zanzando com uma bandeja apinhada de algodão em cores e estampas berrantes.
Zulmar Lopes
Carioca, jornalista, contista e aspirante a romancista, Zulmar Lopes tem diversos prêmios
literários com destaque para as menções honrosas no 11º Concurso Nacional de Contos Josué
Guimarães, 7º Concurso de Contos Luis Jardim e 23º Concurso de Contos Cidade de Araçatuba.
Vencedor do 33º Concurso Literário Felippe D’Oliveira na modalidade conto. Membro correspon-
dente da Academia Cachoeirense de Letras (ACL). Roteirista do curta de animação “Chapeuzinho
Adolescente”. Em 2011 lançou o livro de contos “O Cheiro da Carne Queimada”.
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Contos
Doa-se um helicóptero.
Tratar aqui.
Leandro Luiz
http://www.flickr.com/photos/hamsteren/2714583070/
Doei minha casa, meu carro, meu iate, a para dormir. Tive que lutar contra tudo e
pousada do interior e a minha coleção de se- contra todos e, para piorar a situação, en-
los raros por uma boa causa, ou melhor, para frentando uma série crise pela falta de caviar
realizar um sonho: eu queria ser pobre. Olha, toda manhã.
foi um investimento a curto prazo que deu Mas valeu a pena. Hoje estou realizado e
muito certo, de dar inveja a qualquer econo- cheguei onde queria. Sou pobre e confesso
mista de plantão. que, para chegar até aqui, foi um grande de-
Desde a minha infância, não aguentava a safio. Duvida? Então, escuta essa: têm muitos
vida que levava. Piscina, spa toda quinta-feira, por aí que fazem mil promessas se ficarem
polo com o Clube dos Investidores de Petró- milionários. Dizem que vão fazer isso, com-
leo, ah não, cansei. A minha vida era muito prar aquilo, largar o emprego, viajar e mais
chata, sempre regada a vinhos importados e um monte de blá-blá-blá. Agora, confesse:
queijos caros. Troquei a escolta armada pela você já viu alguém fazendo promessas caso
liberdade, o condomínio de luxo por uma fique pobre? Tá vendo? Eu estou no per-
modesta moradia e os restaurantes chiques, rengue e já tenho os meus projetos para o
ou chiquérrimo, como diz a minha tia-avó, futuro.
pelo delicioso churrasco grego do centro. Quero apenas ser feliz. Vou seguir a vida
Com o suco grátis, diga-se de passagem. cheio de alegria, cantando e, entre um cha-
Estou agora com amigos verdadeiros, par- ruto e outro, pedindo alguns trocados. Ué,
ceiros para todas as ocasiões e “manos” (uma por que não? Afinal, eu podia tá comprando
gíria que aprendi na pelada aqui do bairro, empresas, gastando fortunas em joias, mas
que prometo saber o que significa) incríveis. estou aqui, na maior humildade, mano.
Chega de polo aos sábados, leilão aos
domingos, mocassim e roupa engomada até
Leandro Luiz
29 anos, é redator publicitário e, nas horas vagas, adora escrever sobre tudo e todos. Entre os
seus trabalhos literários, obteve três menções honrosas e, em 2011, foi destaque nacional no XVI
Concurso Literário Internacional de Poesias, Contos e Crônicas com a crônica “Chega de Au-Au”.
Rugas do Tempo
Juliano Ramos de Oliveira
Saiu. A noite quente não lhe dava sossego, viajavam naquela hora. Reparou que um jovem
mas ânsias de partir. Partiu. O ar inflou-lhe o muito próximo chorava em silêncio. Notando
peito repleto de liberdade. Afastou-se da casa. o olhar do velho, o rapaz controlou-se e ex-
Engraçado! Não voltaria. A certeza conduzia- plicou-se sem que lhe perguntasse: “Desculpe-
http://www.flickr.com/photos/bcmom/98545348/
lhe os passos. Engraçado! Imaginara-se sempre me... minha esposa teve um parto difícil esta
tomando esta atitude num momento de angús- noite... a criança se foi... a mãe também está
tias, mágoas. Mas não. Encontrava-se brando, morrendo... me avisaram há pouco... e eu aqui,
os filhos com filhos e famílias a mais para se preso nesta rodoviária. Não há ninguém para
dedicarem. A esposa aposentada do professo- se pedir ajuda, este é o último ônibus para a
rado exercido com triunfo. Dona Glória de minha cidade a tempo do enterro da criança e,
geografia sentiria sua falta, todavia toda dor talvez, ver Maria viva... Entende minha aflição?
ameniza-se no todo dia. Mesmo que saia pedindo... não há gente obas-
Partiu. No bolso algum dinheiro e o cartão tante para juntar o dinheiro...
da “previdência” faziam-se suficientes. Buscava – Espere! – o velho vasculhou na carteira;
motivos para a fuga. Não há causas concretas? o dinheiro que trouxera não seria suficiente.
Há? Acordara no meio da noite com o suor Resolveu. Entregou-lhe a passagem que com-
que cobria-lhe o corpo. Levantou-se, observou prara. – Vá você!
o sono da esposa na semiclaridade vinda da – Mas... senhor!?!?
fenda da porta. Ainda amava o vestígio da bela
mulher de outrora. Deixou o cômodo. Apron- – Pego o próximo, não importa se me atra-
tou-se ligeiro. Fitou-se no espelho. Setenta e sar. Vá! Você tem mais pressa. Vá!
dois anos, envelhecera: as rugas do tempo cra- O rapaz resplendeceu, apertou-lhe vigoro-
vadas na face avançada, os fios brancos doma- samente a mão agradecendo-o e correu para o
vam as têmporas... Seria a causa? As rugas do veículo.
tempo?
O velho pensou com saudade súbita na sua
Sentou-se, a passagem no bolso. Para onde? vida de sempre, na família bem viva, criada, se-
Não importava, escolhera um nome qualquer gura, na sua glória: Dona Glória de geografia...
na placa da cabine da empresa... “O ônibus
– Deus lhe abençoe! – disse o jovem da
está atrasado”, disseram. O atraso do carro
janela, acenando expansivamente.
arrastou-se na madrugada semideserta da
rodoviária. O sono grosso empurrou-o sobre o – Amém! – murmurou o velho apiedado
banco convidativo, entregou-se... do jovem em quem as rugas da vida se faziam
profundas e prematuras no tempo.
Acordou. Leu no ônibus o nome da cidade-
destino. Não o perdera. Olhou a volta. Poucos
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Contos
Minha vida,
meu pesadelo
Sonia Regina Rocha Rodrigues
http://www.flickr.com/photos/jen_lipp/5185981815/
nasceu em 1955 no Brasil, em Santos, cidade histórica, espremida entre o mar e a serra, de
clima instável, onde todas as estações do ano podem ocorrer no mesmo dia, e ocorrem. A partir
de 1993 começou a divulgar seus textos, em vários periódicos nacionais e informativos de gru-
pos literários. Participou do grupo editorial Um Dedo de Prosa e é autora dos livros: os romances
Rosa, A fantástica experiência de Carolina Helena, Viagem ao Canadá, Dias de Outono, Encontro
com a Deusa; Uma casa no interior – infantil; Dias de Verão – contos e crônicas.
Na internet, foi considerada uma das melhores prosadoras do site Blocos Online em 2004.
página pessoal - http://alegriadeler.blogspot.com
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Contos
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Parou o carro e olhou-se pelo retrovisor. Estavam em pessoas nove no bar. Ela
Ela esqueceu de pentear o cabelo. Mas não sorriu da piada que o Alexandre contou,
fazia tanta diferença. O cabelo liso e pesado, mas virou delicadamente o rosto. Ao menos
bagunçado desse jeito, ia parecer só char- sorria.
me – ponderou. E olhando os próprios olhos
orientais (irritados e sem maquiagem) mur- Por todo o tempo, escorregava casual-
murou: charme de merda. mente os dedos pelo copo. E sorria, sempre
suave.
Seria justo tirar da boca aquele batom
roxo (seu preferido), que passara às pressas. Estavam em nove pessoas, não consegui-
Mas desistiu da ideia. ram mesa. Estavam amontoados ali, junto
ao balcão. Ela, sentada na banqueta (sempre
Subitamente, se apressou: jogou os óculos sorrindo, simpática e delicada) tinha uma
e as chaves de casa de qualquer jeito dentro visão privilegiada de Marta, no meio da roda
da bolsa e saiu com rapidez do carro. Char- de amigos.
me de merda.
Marta insegura, tapada e mal resolvida.
Entrou no bar.
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Tradução
http://www.flickr.com/photos/biggreymare/5513025399/
Horacio Quiroga
trad.: Henry Alfred Bugalho
A Galinha Degolada
46 SAMIZDAT fevereiro de 2012
Todo o dia, sentados no pátio em um não conhecia mais seus pais. O médico o
banco, estavam os quatro filhos idiotas do examinou com esta atenção profissional
casal Mazzini-Ferraz. Tinham a língua en- que está visivelmente buscando as causas
tre os lábios, os olhos estúpidos e viravam do mal nas enfermidades dos pais.
a cabeça com a boca aberta. Depois de alguns dias, os membros
O pátio era de terra, fechado a oeste por paralisados recobraram o movimento; mas
um muro de tijolos. O banco ficava parale- a inteligência, a alma, até o instinto, se
lo a ele, a cinco metros, e ali eles se man- haviam ido de todo; havia ficado profunda-
tinham imóveis, fixos os olhos nos tijolos. mente idiota, baboso, suspenso, morto para
Como o sol se ocultava atrás do muro, ao sempre sobre os joelhos de sua mãe.
declinar os idiotas faziam festa. A luz que — Filho, meu filho querido! — soluçava
cegava chamava a atenção deles, a princí- esta sobre aquela espantosa ruína de seu
pio, pouco a pouco seus olhos se anima- primogênito.
vam; riam-se, por fim, estrepitosamente,
congestionados pela mesma hilariância O pai, desolado, acompanhou o médico
ansiosa, olhando o sol com alegria bestial, até afora.
como se fosse comida. — A você se pode dizê-lo: creio ser um
Outras vezes, alinhados no banco, zum- caso perdido. Poderá melhorar, educar-se
biam por horas inteiras, imitando o bonde em tudo que lhe permita seu idiotismo,
elétrico. Os ruídos fortes sacudiam assim mas nada mais além.
a inércia deles, e então corriam, morden- — Sim! Sim! — assentia Mazzini — Mas,
do a língua e mugindo ao redor do pátio. diga-me: o senhor acredita que é herdado,
Mas quase sempre ficavam apagados numa que...?
sombria letargia de idiotismo, e passavam — Quanto a herança paterna, já lhe
todo o dia sentados em seu banco, com as disse o que acredito quando vi seu filho. A
pernas suspensas e quietas, empapando de respeito da mãe, há ali um pulmão que não
glutinosa saliva a calça. sopra bem. Não vejo nada mais, mas há um
O maior tinha doze anos e o menor, oito. sopro um pouco áspero. Faça-a examinar
Em todo o aspecto sujo e desvalido deles, detidamente.
notava-se a falta absoluta de um pouco de Com a alma destroçada pelo remorso,
cuidado maternal. Mazzini redobrou o amor por seu filho, o
No entanto, estes quatro idiotas haviam pequeno idiota que pagava os excessos do
sido um dia o encanto de seus pais. Aos avô. Teve ainda que consolar, apoiar sem
três meses de casados, Mazzini e Berta trégua Berta, ferida profundamente por
orientaram seu estreito amor de marido e aquele fracasso de sua jovem maternidade.
mulher, e mulher e marido, para um por- Como é natural, o casal pôs todo seu
vir muito mais vital: um filho. Que maior amor na esperança de outro filho. Nasceu
benção para dois enamorados do que esta este, e sua saúde e limpidez de riso reacen-
honrada consagração de seu carinho, li- deram o porvir extinto. Mas aos dezoito
bertado agora do vil egoísmo de um amor meses, as convulsões do primogênito se re-
mútuo sem finalidade alguma e, o que é petiram, e no dia seguinte, o segundo filho
pior do que o amor mesmo, sem esperan- amanhecia idiota.
ças possíveis de renovação?
Desta vez, os pais caíram em profundo
Assim o sentiram Mazzini e Berta, e desespero. Portanto seu sangue, seu amor
quando o filho chegou, aos quatorze meses estavam malditos! Seu amor, sobretudo!
de matrimônio, acreditaram cumprida a Vinte e oito anos ele, vinte e dois ela, e
felicidade. A criatura cresceu bela e radian- toda sua apaixonada ternura não conseguia
te, até que completou um ano e meio. Mas, criar um átomo de vida normal. Já não
no vigésimo mês, sacudiram-no uma noite pediam mais beleza e inteligência como
convulsões terríveis, e na manhã seguinte
http://samizdat.oficinaeditora.com 47
para o primogênito, mas um filho, um filho Berta continuou lendo como se não hou-
como todos! vesse ouvido.
Do novo desastre brotaram novas labare- — É a primeira vez — retrucou depois
das do dolorido amor, uma louca ânsia de de um tempo — que vejo você inquietar-se
redimir de uma vez para sempre a santida- pelo estado de seus filhos.
de de sua ternura. Sobrevieram gêmeos, e Mazzini voltou um pouco o rosto para
ponto por ponto repetiu-se o processo dos ela com um sorriso forçado:
dois maiores.
— De nossos filhos, parece-me?
Mas, por sobre sua imensa amargura
havia em Mazzini e Berta uma grande — Bem, de nossos filhos. Prefere assim?
compaixão por seus quatro filhos. Tiveram — ergueu ela os olhos.
de arrancar do limbo da mais profunda Desta vez, Mazzini se expressou clara-
animalidade, não mais suas almas, senão o mente:
instinto mesmo, abolido. Não sabiam deglu- — Creio que não vai dizer que eu tenha
tir, mudar de lugar, nem mesmo sentar- a culpa, não é?
se. Aprenderam enfim a caminhar, mas
chocavam-se contra tudo, por não se darem — Ah, não! — sorriu Berta, muito páli-
conta dos obstáculos. Quando os lavavam, da — mas eu também não, suponho! Não
mugiam até injetarem de sangue o rosto. faltava mais! — murmurou.
Animavam-se apenas ao comer, ou quando — O que não faltava mais?
viam cores brilhantes ou ouviam estrondos. — Que se alguém tem a culpa, não sou
Riam-se, então, pondo para fora a língua eu, entenda-o bem! É o que eu queria lhe
e rios de baba, radiantes de frenesi bestial. dizer.
Tinham, em troca, certa faculdade imitati-
va; mas não se podia obter nada mais. Seu marido a olhou por um momento,
com brutal desejo de insultá-la.
Com os gêmeos pareceu haverem con-
cluído a aterradora descendência. Mas pas- — Deixe estar! — articulou, secando en-
sados três anos desejaram de novo arden- fim as mãos.
temente outro filho, confiando que o longo — Como quiser; mas se quer dizer....
tempo transcorrido houvesse aplacado a
— Berta!
fatalidade.
— Como quiser!
Não satisfaziam suas esperanças. E neste
ardente anseio que se exasperava em razão Este foi o primeiro choque e se sucede-
de sua infrutuosidade, azedaram. Até este ram outros. Mas nas inevitáveis reconcilia-
momento cada qual havia tomado sobre ções, suas almas se uniam com redobrado
si a parte que lhe correspondia na des- arrebatamento e loucura por outro filho.
graça de seus filhos; mas a desesperança Nasceu assim uma menina. Viveram dois
de redenção perante as quatro bestas que anos com a angústia à flor da pele, espe-
haviam nascido deles pôs para fora esta rando sempre outro desastre. Nada ocorreu,
imperiosa necessidade de culpar os outros, no entanto, e os pais puseram nela toda sua
que é patrimônio específico dos corações complacência, que a pequena os levava aos
inferiores. mais extremos limites do mimo e da má
Iniciaram com a mudança de pronome: criação.
seus filhos. E como além do insulto havia a Se nos últimos tempos Berta ainda
insídia, a atmosfera se carregava. cuidava de seus filhos, ao nascer Bertita se
— Parece-me — disse-lhe uma noite esqueceu quase de todo dos outros. Só a
Mazzini, que acabava de entrar e lavava as recordação deles a horrorizava, como algo
mãos — que podia manter mais limpos os atroz que a houvessem obrigado a cometer.
meninos. Com Mazzini, se bem que em menor grau,
— Sim, eu ouvi algo! Olhe: não sei o que — Senhora! Os meninos estão aqui, na
você disse; mas lhe juro que prefiro qual- cozinha.
quer coisa a ter um pai como o que você Berta chegou; não queria que jamais
teve! pisassem ali. E nem mesmo nestas horas
Mazzini ficou pálido. de pleno perdão, esquecimento e felicidade
http://samizdat.oficinaeditora.com 49
reconquistada, podia evitar esta horrível — Soltem-me! Deixem-me! — gritou sacu-
visão! Porque, naturalmente, quanto mais dindo a perna. Mas foi puxada.
intensos eram os arroubos de amor a seu — Mamãe! Ai, mamãe! Mamãe, papai!
marido e filha, mas irritado era seu humor — chorou imperiosamente. Tentou ainda
com os monstros. segurar-se à borda, mas foi arrancada e
— Que saiam, Maria! Tire-os! Tire-os, eu caiu.
lhe digo! — Mamãe, ai! Ma... — não pôde gritar
As quatro pobres bestas, sacudidas, mais. Um deles lhe apertou o pescoço,
brutalmente empurradas, foram dar a seu apartando os cabelo como se fossem plu-
banco. mas, e os outros a arrastaram por uma só
Depois de almoçar, saíram todos. A perna até a cozinha, onde essa manhã se
empregada foi a Buenos Aires e o casal a havia sangrado a galinha, bem presa, arran-
passear pelas quintas. Ao baixar o sol volta- cando-lhe a vida segundo por segundo.
ram; mas Berta quis saudar por um mo- Mazzini, na casa em frente, pensou ouvir
mento as suas vizinhas da frente. Sua filha a voz de sua filha.
escapou-se em seguida para casa. — Me parece que a chama — ele disse a
Entretanto, os idiotas não haviam se Berta.
movido durante todo o dia de seu banco. Prestaram atenção, inquietos, mas não
O sol havia transposto já o muro, começa- ouviram mais. Contudo, um momento
va a baixar, e eles continuavam olhando os depois se despediram, e enquanto Berta ia
tijolos, mais inertes do que nunca. tirar seu chapéu, Mazzini avançou para o
De súbito, algo se interpôs entre seus pátio.
olhares e o muro. Sua irmã, cansada de — Bertita!
cinco horas paternais, queria observar por
sua conta. Parada ao pé do muro, mirava Ninguém respondeu.
pensativa o topo. Queria trepar, disto não — Bertita! — ergueu mais a voz, já altera-
havia dúvida. Por fim, decidiu-se por uma da.
cadeira sem fundo, mas ainda não alcança- E o silêncio foi tão fúnebre para seu co-
va. Recorreu então a um galão de querose- ração sempre amedrontado, que subiu um
ne, e seu instinto topográfico fez-lhe colo- calafrio pela espinha por causa do horrível
cá-lo verticalmente, com o qual triunfou. pressentimento.
Os quatro idiotas, o olhar indiferente, — Minha filha, minha filha! — correu já
viram como sua irmã conseguia pacien- desesperado para o fundo. Mas ao passar
temente dominar o equilíbrio, e como em frente à cozinha viu no chão um mar de
pontas de pé apoiava a garganta sobre o sangue. Empurrou violentamente a porta
topo do muro, entre suas mãos tensas. encostada e lançou um grito de horror.
Viram-na olhar para todos os lados, e bus-
car apoio com o pé para subir mais. Berta, que já se havia lançado correndo
por sua vez ao ouvir o angustiado chamado
Mas o olhar dos idiotas havia se anima- do pai, escutou o grito e respondeu com
do; uma mesma luz insistente estava fixa outro. Mas ao precipitar-se para a cozinha,
em suas pupilas. Não apartavam os olhos Mazzini, lívido como a morte, se interpôs,
de sua irmã enquanto crescente sensação contendo-a:
de gula bestial ia mudando cada linha de
seus rostos. Lentamente avançaram até o — Não entre! Não entre!
muro. A pequena, que tendo conseguido Berta chegou a ver o piso inundado de
apoiar o pé, ia já montar e cair para o ou- sangue. Apenas pôde levar os braços sobre
tro lado, seguramente, sentiu-se pega pela a cabeça e cair sobre ele com um rouco
perna. Debaixo dela, os oito olhos cravados suspiro.
nos seus lhe deram medo.
Decálogo
do perfeito contista
Horacio Quiroga
trad.: Henry Alfred Bugalho
I
Creia em um mestre — Poe, Maupassant, Kipling, Tchekov — como
em Deus mesmo.
II
Creia que sua arte é um cume inacessível. Não sonhe em domá-la.
Quando puder fazê-lo, você o conseguirá sem mesmo sabê-lo.
III
Resista o quanto puder à imitação, mas imite se o influxo for forte
demais. Mais do que qualquer outra coisa, o desenvolvimento da
personalidade é uma grande paciência.
http://www.flickr.com/photos/27805557@N08/4959155096/
IV
Tenha fé cega não em sua capacidade para o triunfo, senão no
ardor com que o deseja. Ame a sua arte como à sua namorada,
dando-lhe todo seu coração.
V
Não comece a escrever sem saber desde a primeira palavra aonde
vai. Em um conto bem realizado, as três primeiras linhas têm quase a
importância das três últimas.
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VI
Se quer expressar com exatidão esta circunstância: “Do rio sopra-
va o vento frio”, não há em língua humana mais palavras do que as
apontadas para expressá-la. Uma vez dono de suas palavras, não se
preocupe em observar se são consoantes ou assonantes entre si.
VII
Não adjetive sem necessidade. Inúteis serão quantas notas de cor
adicionar a um substantivo débil. Se achar aquele que é necessário,
apenas ele terá uma cor incomparável. Mas tem de achá-lo.
VIII
Tome seus personagens pela mão e conduza-os firmemente até o
final, sem ver outra coisa além do caminho que lhes traçou. Não se
distraia vendo o que eles podem ou não lhes importa ver. Não abuse
do leitor. Um conto é um romance depurado de cascalho. Tenha isto
como uma verdade absoluta, mesmo que não seja.
IX
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Não escreva sob o império da emoção. Deixe-a morrer, e evoque-
a depois. Se for capaz então de revivê-la tal qual foi, terá chegado à
metade do caminho na arte.
X
Não pense em seus amigos ao escrever, nem na impressão que
causará sua história. Conte como se seu relato não tivesse mais im-
portância do que para o pequeno ambiente de seus personagens, dos
quais você poderia ter sido um. De nenhum outro modo se obtém a
vida do conto.
Horacio Silvestre
uiroga Forteza (Salto, 31
Q
de dezembro de 1879 —
Buenos Aires, 31 de dezem-
bro de 1937) foi um escritor
uruguaio famoso por seus
contos, que geralmente
tratavam de eventos fantás-
ticos e macabros na linha de
Edgar Allan Poe e de temas
relacionados à selva, sobre-
tudo da região de Misiones,
na Argentina, onde Quiroga
passou parte da vida.
Sua obra mais famosa
são os Cuentos de amor de
locura y de muerte (1917;
título sem vírgula no origi-
nal), na qual se encontra
o célebre conto A Galinha
Degolada.
Em 1937, após ter sido
diagnosticado com câncer,
Quiroga cometeu suicídio,
ingerindo uma dose letal de
cianureto.
http://samizdat.oficinaeditora.com 53
Teoria Literária
A Criação
Henry Alfred Bugalho
http://uploads1.wikipaintings.org/images/gustave-moreau/hesiod-and-the-muses-1860.jpg
http://samizdat.oficinaeditora.com 55
mundo estão tentando descobrir. Gêneros literários podem estar presentes
nos mais diversos meios de comunicação.
No entanto, os meios de comunicação
Ser escritor é tentar convencer os também possuem linguagens específicas.
demais que suas obras são originais e Ser um bom jornalista não significa que o
criativas, mesmo que não sejam. sujeito será um bom romancista, do mes-
mo modo que ser um blogueiro de sucesso
Pense numa história... Imagine um per-
não o tornará um bom contista ou poeta.
sonagem... Conceba uma ambientação...
Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra
coisa.
Agora, tenha certeza que alguém, em al- E o mesmo vale no interior dos próprios
gum lugar do planeta, em algum momento gêneros literários. Ser um contista não o
da história da humanidade, já escreveu esta tornará um bom romancista, são estruturas
mesma história, com este mesmo perso- literárias diferentes com exigências dis-
nagem nesta mesma ambientação. E pior! tintas. Entre prosa e poesia há um imenso
Provavelmente melhor do que você. abismo, que a maioria dos escritores não
Desanimador, não? consegue transpor com competência.
Primeiro, porque o repertório de histó- Isto não quer dizer que você não deva se
rias e enredo é limitado. Segundo, porque arriscar, mas esteja preparado. Ser bom em
todo o mundo pensa que existe um escri- um gênero, ou em uma mídia, não quer di-
tor dentro de si. Por fim, somos humanos, e zer que você terá competência nos demais.
as histórias que contamos, via de regra, se
espelham no mundo em que vivemos, que
é o mesmo de outros bilhões de pessoas.
Você aprenderá muito mais com as
críticas do que com os elogios.
Então, a sua tarefa de escritor, além de
escrever sua obra da melhor maneira pos- Todo jovem escritor precisa de elogios
sível, é também de convencer os demais de como uma flor necessita de sol e água. No
que ninguém mais poderia tê-la escrito. E começo, qualquer estímulo, por mais par-
isto não é fácil! cial e vago que seja, já é um enorme incen-
tivo para escrevermos as próximas linhas.
No entanto, elogios não tornarão sua es-
Romance é romance, conto é conto,
crita melhor. Elogios lhe darão a ilusão que
poesia é poesia, blog é blog. Se você
tudo está ótimo e que não há mais necessi-
é bom escrevendo um, não quer
dade de se aperfeiçoar.
dizer que você também será bom
escrevendo os outros. A escrita é uma estrada sem fim, você
nunca terá descanso e nunca chegará ao
Romance, conto e poesia são gêneros destino. E você só saberá se pegou a rota
literários. Jornais, livros, revistas, TV, rádio errada quando alguém lhe enfiar o dedo
e blogs são meios de comunicação. na cara e for sincero com você.
E todos nós temos um modernista den- São raríssimos os casos de escritores li-
tro da gente – aquele escritor que não está dos por públicos imensos e admirados pela
nem aí para os leitores, que deseja escrever crítica. Ou você vende muito, ou é lido nas
romances sem parágrafos, sem pontuação, universidades. Nem sempre se pode ter
com páginas de cabeça para baixo, narrati- tudo na vida.
vas não lineares, sem personagens, ou com
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Teoria Literária
CASTILLO E MODERN:
DOIS POETAS ARGENTINOS
Elias Antunes
Quando se pensa na literatura argentina, dissolve
logo vêm a nossa mente os nomes de Jorge Luis o mundo
Borges e de Ernesto Sábato, escritores de uma
importância monumental para a Literatura, en- em puro
tretanto esquecemos que existem outros escri- pranto.
tores e poetas excelentes nas letras argentinas.
Prova disso está nas figuras de Horacio Rodolfo Modern tornou-se ao longo do tem-
Castillo e Rodolfo Modern, ambos eminentes po um poeta refinado, lembrando os clássicos,
poetas e tradutores renomados, com diversos utilizando uma linguagem concisa, como um
livros publicados, mas, infelizmente, pouco bloco, ou monólito que em cada poema traz a
conhecidos fora do rincão argentino, ao menos marca da emoção e da inteligência.
no Brasil.
Seus poemas são curtos, porém de grande
Rodolfo Modern consiste em ser um poeta densidade poética e não é por acaso que con-
conciso, adepto do poema sintético, que conse- seguiu levantar importantes prêmios nesse país
gue expressar uma gama enorme de sentidos excepcional que é a Argentina.
em poucos versos, como no poema em que
Nascido em 1922, em Buenos Aires, doutor
presta homenagem a Paul Celan, poeta judeu
http://minisdelcuento.files.wordpress.com/2011/10/rodolfomodern.jpg?w=549
de expressão alemã:
SEGUNDO GALO
A aurora vem e venderão seus olhos, a em-
purrões
Tropeçando até as largas mesas de pescados,
Elias Antunes
Professor, escritor e servidor público. Autor de mais de uma dezena de livros. Ga-
nhador de mais de 140 prêmios literários. Seu romance “Suposta biografia do poeta
da morte” ganhou os prêmios Hugo de Carvalho Ramos (2008), Prêmio Jabuti de 2011
(finalista) e Prêmio Il Convívio, na Itália, 2011 (1º lugar).
Contato: jeliasantunes@bol.com.br
http://samizdat.oficinaeditora.com 59
Teoria Literária
http://www.revistacriterio.com.ar/bloginst/wp-content/uploads/2011/08/kovadloff-guimaraes20rosa204.jpg
Alessa Bertazzo
Formada em Letras e pós-graduada em Teoria Literária pela Uniandrade –
PR, atua como professora particular e, poeta nas horas vagas, participando de
diversos concursos literários pelo Brasil. Tem participações em algumas antolo-
gias, frutos destes concursos, alguns e-books publicados na Internet, além do blog
de Poesias: http://transversu.blogspost.com e página no Recanto das Letras (http://
www.recantodasletras.com.br/autores/alebertazzo).
http://samizdat.oficinaeditora.com 61
Crônica
Europa Descarrilada
João Paulo Hergesel
http://www.flickr.com/photos/antonis/986676625/
al e tradicionalíssimo chá matinal; os queria divulgar seus versos metrificados
portugueses assistiam ao programa de e fazer uma autopromoção; uma senhora
culinária exibido na televisão; os taiwa- de cabelos grisalhos que falava sozinha,
neses comemoravam o dia da juventude; em busca de alguém que ouvisse suas
os brasileiros festejavam o aniversário loucuras. Algumas vidas entre muitas
de duas metrópoles, Curitiba e Salvador; outras.
os sumérios homenageavam Ishtar, deusa O rapaz de quinze anos estava cansado
mitológica. Era 29 de março e os russos de sua vida. Sabia que os dias seguintes
andavam de trem. seriam iguais aos dias passados. Sentia-
Um vagão superlotado, gente de Mos- se entediado de uma semana que apenas
cou, cada qual com seu objetivo trilha- começava. Para se distrair da rotina, fazia
do. Uma mulher grávida com consulta algo também rotineiro: escutava música
marcada no obstetra; um estudante moderna em seu celular moderno. O
adolescente rumo à aula de ciências que alto-falante ligado, o suposto desejo de
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A fila
Poesia
[os filósofos
http://www.flickr.com/photos/16879141@N05/5601890824/
[as moças que confabulam por isso o homem te pisa
[a senhora no fiat apalpando os peitos por isso quase cai como cairia o banco do
brasil
[a senhora à porta do restaurante que
nos chama “vamos chegar para o almoço” por isso quase morreste esmagado e tives-
te de sair chorando teu choro de dor de cão
[e a ti, cão
porque és cão e ele é homem
e a carne nos move a todos pelas tripas
nem eu estaria olhando
nenhuma das caras na fila veria
e a fila andou
ninguém veria
é uma e meia
nada nada nada faria diferença
lá vamos nós
nunca mais se ouviria falar de mim ou de
ti ou dessa gente toda com os dedos pinta-
dos de preto
não, não foi dessa vez que o banco desa-
bou
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Poesia
#18.
Rafael Zen
mãe,
se é de deus que sejamos
tristes,
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se um dia vou acordar na
metade de uma linha incompleta,
se vou acordar seu filho
filho DELE
procurando algas
no chão do céu.
Rafael Zen
Poeta, contista e artista gráfico, Rafael Zen mora em Brusque, Santa Cata-
rina. Trabalha como publicitário e organizador de projetos educacionais e
artísticos.
Mordo a maçã
pura da Musa
Depois me deito
no leito mais lírico
E me embriago
de Infinito.
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Anna Apolinário
Natural de João Pessoa, Paraíba, poetisa e graduanda em Pedagogia pela Universidade
Federal da Paraíba. Participou de várias antologias nacionais. Foi premiada com o 4° Lu-
gar no VI Festival de Poesia Encenada do Sesc Paraíba em 2010 com o poema “Dédalo”,
no mesmo ano publicou seu primeiro livro, “Solfejo de Eros” pela Câmara Brasileira de
Jovens Escritores (Rio de Janeiro - RJ). Prepara seu segundo livro de poemas com título
provisório SAPHIRA.
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Poesia
Olhos de distância
Daniel Moreira
Enquanto a ausência
Encher meus olhos de distância
Teu sorriso de extrema relevância
Tomará várias formas
Até a lua crescente
Finalmente nos encontrar
Daniel Moreira
Foto: Raul Garré
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Poesia
SENILIDADE
Valmir Luis Saldanha
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ele me aceita como seu guia e eu o habitual,
a espalhar jatos de uma urina já rala mas cada passo traz, sempre, a mesma per-
gunta:
demarcando todo um território,
e quem nos guia, a ambos?
erguendo, trêmulo, a espada contra os pira-
tas.
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Poesia
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- Estou aprendendo a existir!
Jogada na água sem muita esperança,
À noite, em outro mundo, a minhoca contorce de metal por dentro.
Tarsila sonhava em nadar. Da terra ao azul, torce: - Quero viver!
Mas não tinha tempo para a vida. Vem a boca, com instinto de fome, ferrar-se a si
Quando ia para cama, imaginava o mundo própria.
no ritmo da sua braçada.
Pobre animal, vamos todos morrer.
Na rua, se se importasse o Jacarandá...
Para seiva: bruta e fina. Fim. Todo sonho é vontade de memória.
Douglas Batalha
Estudante do último ano de filosofia (UNIMEP/Piracicaba) é leitor entusiasmado da litera-
tura brasileira, em especial poesia. Professor temporário da rede pública, estuda para o ves-
tibular de letras, desencantado com o exagerado otimismo dos filósofos niilistas. Desde 2010
escreve em verso e participa de saraus e concursos de poesia (sem muito sucesso). A terceira
pessoa lhe cai muito bem, apesar dos recentes fracassos vividos.
Contato: mofxwalla@hotmail.com e/ou douglasbatalhafilo@gmail.com
Missão
(para João do Corujão da Poesia)
Mariana Valle
Todo dia essa página me olha com cara de E pra quem não sente o mesmo, nem adian-
nada. E começo a escrever besteiras, aluci- ta explicar. Escreviver o poema me é como
nada. inspirar o ar.
Não, mentira. Vira e mexe e escrevo coisas Inspirada, inspirando, por vezes pirando
que prestam. Com calma. com essa mistura. É vício e ao mesmo tem-
Quando as palavras, num ai, me emprestam po cura.
suas almas.
Depois que a poesia se impôs em minha
Nessas horas, a inspiração é genuína e vida, virei prisioneira, fanática, fiel, daquelas
pareço uma menina deslumbrada com as bem lunáticas, sabe? E isso não é problema:
descobertas. é poema. Não é inferno: é céu. Os poetas
moram na lua mesmo.
Porque a poesia me desperta pra vida. É ela
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que cura as feridas e me mostra o caminho, Agora, não ando mais a esmo. Tenho desti-
compreende? no certo: perder-me na vida. Para depois me
achar nas palavras e dizer: missão cumpri-
Sem poesia, minha vida não rende. da.
Mariana Valle
Poeta desde os 12 anos, Mariana Valle vive como publicitária, é jornalista, roteirista
e investe cada vez mais na literatura. Seus assuntos? A vida, seus encontros e desen-
contros, sempre de um ponto de vista muito íntimo. Seu primeiro livro, “SORRIA,
VOCÊ ESTÁ NA BARRA e outras histórias” (Editora Multifoco), foi lançado em de-
zembro de 2008 e seu segundo livro está em fase de revisão.
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Também nesta edição, textos de