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SAMIZDAT

www.revistasamizdat.com

Saiba como o camelo


ganhou sua corcova
20
setembro
2009
ano II

ficina

Textos de Rudyard Kipling, Monteiro Lobato e vários outros de literatura infanto-juvenil


SAMIZDAT 20
setembro de 2009

Edição, Capa e Diagramação: Editorial


Henry Alfred Bugalho

Revisão Geral Reclama-se muito que o brasileiro não lê.


Caio Rudá Este é um problema muito complexo, enraigado em um
longo processo histórico de dominação e exclusão cultu-
Assessoria de Imprensa ral. O brasileiro não lê porque o livro não pertence a seu
Mariana Valle universo de entretenimento, não faz parte de seus hábitos
cotidianos, como assistir a um jogo de futebol ou ir ao baile
Autores funk.
Barbara Duffles A escrita e a literatura são formas de cultura ainda reser-
Carlos Alberto Barros
vadas a uma elite, que muitas vezes se considera superior aos
demais por causa disto.
Eder Ferreira
Como modificar este cenário?
Giselle Natsu Sato
Inevitavelmente, incentivar a leitura passa por várias medi-
Guilherme Rodrigues
das governamentais, como criação de bibliotecas, redução de
Henry Alfred Bugalho impostos para venda de livros, eventos literários em escolas,
Joaquim Bispo autores que saibam desenvolver um vínculo com quem os lê,
José Espírito Santo mas, o mais importante, é criar uma nova geração de leito-
Jú Blasina res, que estabeleçam uma relação íntima e prazeirosa com a
Léo Borges leitura e que carreguem este hábito através da idade adulta.
Marcia Szajnbok O futuro da literatura em língua portuguesa depende dos
Mariana Valle novos leitores, destes jovens que hoje se vêem obrigados a
dividir o tempo entre a TV, a internet, o videogame e, quem
Maristela Scheuer Deves
sabe, um livro.
Simone Santana
Esta edição da SAMIZDAT fala para estes novos leitores.
Sheyla Smanioto Macedo
Volmar Camargo Junior
Henry Alfred Bugalho
Wellington Souza

Autores Convidados
José Guilherme Vereza
Tatyanny Nascimento Obra Licenciada pela Atribuição-Uso Não-Comercial-Vedada
a Criação de Obras Derivadas 2.5 Brasil Creative Commons.
Textos de:
Todas as imagens publicadas são de domínio público, royalty
Monteiro Lobato
free ou sob licença Creative Commons.
Rudyard Kipling
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Imagem da capa: ou autorização prévia dos autores, sob licença Creative Com-
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As idéias expressas são de inteira ­responsabilidade de seus
www.revistasamizdat.com autores. A aceitação da revisão proposta depende da vontade
expressa dos colaboradores da revista.
Sumário
Por que Samizdat? 6
Henry Alfred Bugalho

COMUNICADO
SAMIZDAT Especial de Mistério e Suspense 8

ENTREVISTA
Selène D’Aquitaine 10

RECOMENDAÇÕES DE LEITURA
Como me tornei estúpido 14
Guilherme Augusto Rodrigues

AUTOR EM LÍNGUA PORTUGUESA


A cigarra e as duas formigas 16
Monteiro Lobato

MICROCONTOS
Eder Ferreira 20

CONTOS
Jey Fyu e a floresta das almas tortas 22
Carlos Alberto Barros
O coelhinho medroso 26
Joaquim Bispo
Voz da consciência 28
Wellington Souza
A menina que não queria crescer 32
Jú Blasina
O pé de macaca 35
Jú Blasina
Ursinho Joca e os pardais 36
Volmar Camargo Junior
A última fada 38
Volmar Camargo Junior

O pergaminho esquecido 42
Henry Alfred Bugalho
Do reino da carochinha 44
Simone Santana

Arrependimentos 46
Guilherme Augusto Rodrigues

Esmeralda, Jade e Rubi 48


José Espírito Santo

As Amaranthas 52
Sheyla Smanioto Macedo

Um lugar para viver 54


Léo Borges
Casal Moderno 59
Mariana Valle
Remorso 60
Barbara Duffles
Um conto de fadas 62
Giselle Sato

Autor Convidado
Ensaboando a minha cabeça 66
José Guilherme Vereza
Poemas 70
Tatyanny Nascimento

TRADUÇÃO
Como o camelo ganhou sua corcova 72
Rudyard Kipling

TEORIA LITERÁRIA
Os desafios da autopublicação 78
Henry Alfred Bugalho

CRÔNICA
A faixa branca 84
Joaquim Bispo
Brasiléiros e brasiléiras 87
Volmar Camargo Junior

Repaginando as Havaianas 88
Henry Alfred Bugalho

Criança tem cada uma... 90


Maristela Deves

Adolescentes (não) leem 92


Marcia Szajnbok e Amanda Szajbok de Faria

POESIA
Laboratório Poético: Limericks 94
Volmar Camargo Junior
Poesias bestas 96
Ju Blasina
Asas 98
Marcia Szajnbok
Noé em sua arca 100
Wellington Souza

SOBRE OS AUTORES DA SAMIZDAT 102


Por que Samizdat?
“Eu mesmo crio, edito, censuro, publico,
­distribuo e posso ser preso por causa disto”
Vladimir Bukovsky

Henry Alfred Bugalho Inclusão e Exclusão se converte em uma ditadu-


henrybugalho@hotmail.com ra como qualquer outra. É a
microfísica do poder.
Nas relações humanas,
sempre há uma dinâmica de Em reação, aqueles que
inclusão e exclusão. se acreditavam como livres-
pensadores, que não que-
O grupo dominante, pela
riam, ou não conseguiam,
própria natureza restritiva
fazer parte da máquina
do poder, costuma excluir ou
­administrativa - que esti-
ignorar tudo aquilo que não
pulava como deveria ser a
pertença a seu projeto, ou
cultura, a informação, a voz
que esteja contra seus prin-
do povo -, encontraram na
cípios.
autopublicação clandestina
Em regimes autoritários, um meio de expressão.
esta exclusão é muito eviden-
Datilografando, mimeo-
te, sob forma de perseguição,
grafando, ou simplesmente
censura, exílio. Qualquer um
manuscrevendo, tais autores
que se interponha no cami-
russos disseminavam suas
nho dos dirigentes é afastado
idéias. E ao leitor era incum-
e ostracizado.
bida a tarefa de continuar
As razões disto são muito esta cadeia, reproduzindo tais
simples de se compreender: obras e também as p ­ assando
o diferente, o dissidente é adiante. Este processo foi
perigoso, pois apresenta designado "samizdat", que
alternativas, às vezes, muito nada mais significa do que
melhores do que o estabe- "autopublicado", em oposição
lecido. Por isto, é necessário às publicações oficiais do
suprimir, esconder, banir. regime soviético.

A União Soviética não


foi muito diferente de de-
mais regimes autocráticos.
­Origina-se como uma forma
de governo humanitária,
igualitária, mas
Foto: exemplo dum samizdat. Corte- logo
sia do Gulag Museum em Perm-36.

6
E por que Samizdat? revistas, jornais - onde ele des tiragens que substituam
possa divulgar seu trabalho. o prazer de ouvir o respal-
O único aspecto que conta é do de leitores sinceros, que
A indústria cultural - e o
o prazer que a obra causa no não estão atrás de grandes
mercado literário faz parte
leitor. autores populares, que não
dela - também realiza um
perseguem ansiosos os 10
processo de exclusão, base- Enquanto que este é um mais vendidos.
ado no que se julga não ter trabalho difícil, por outro
valor mercadológico. Inex- lado, concede ao criador uma Os autores que compõem
plicavelmente, estabeleceu-se liberdade e uma autonomia este projeto não fazem parte
que contos, poemas, autores total: ele é dono de sua pala- de nenhum ­movimento
desconhecidos não podem vra, é o responsável pelo que literário organizado, não
ser comercializados, que não diz, o culpado por seus erros, são modernistas, pós-
vale a pena investir neles, é quem recebe os louros por ­modernistas, vanguardistas
pois os gastos seriam maio- seus acertos. ou q­ ualquer outra definição
res do que o lucro. que vise rotular e definir a
E, com a internet, os au- orientação dum grupo. São
A indústria deseja o pro- tores possuem acesso direto apenas escritores ­interessados
duto pronto e com consumi- e imediato a seus leitores. A em trocar experiências e
dores. Não basta qualidade, repercussão do que escreve sofisticarem suas escritas. A
não basta competência; se (quando há) surge em ques- qualidade deles não é uma
houver quem compre, mes- tão de minutos. orientação de estilo, mas sim
mo o lixo possui prioridades
a heterogeneidade.
na hora de ser absorvido A serem obrigados a
pelo mercado. burlar a indústria cultural, Enfim, “Samizdat” porque a
os autores conquistaram algo internet é um meio de auto-
E a autopublicação, como que jamais conseguiriam de publicação, mas “Samizdat”
em qualquer regime exclu- outro modo, o contato qua- porque também é um modo
dente, torna-se a via para se pessoal com os leitores, de contornar um processo
produtores culturais atingi- od­ iálogo capaz de tornar a de exclusão e de atingir o
rem o público. obra melhor, a rede de conta- ­objetivo fundamental da
tos que, se não é tão influen- ­escrita: ser lido por alguém.
Este é um processo soli-
te quanto a da ­grande mídia,
tário e gradativo. O autor
faz do leitor um colaborador,
precisa conquistar leitor a
um co-autor da obra que lê.
leitor. Não há grandes apa-
Não há sucesso, não há gran-
ratos midiáticos - como TV,

SAMIZDAT é uma revista eletrônica


­ ensal, escrita, editada e publicada pelos
m
­integrantes da Oficina de Escritores e Teoria
Literária. Diariamente são incluídos novos
textos de autores consagrados e de jovens
­escritores amadores, entusiastas e profis-
sionais. Contos, crônicas, poemas, resenhas
literárias e muito mais.

www.revistasamizdat.com

www.revistasamizdat.com 7
Comunicado

SAMIZDAT Especial
Mistério e Suspense
http://www.flickr.com/photos/ericmorse/454379200/sizes/l/

8 SAMIZDAT setembro de 2009


Estamos preparan- 5 - Por se tratar duma
do a quinta edição do obra de divulgação, não
­SAMIZDAT Especial, serão pagos direitos
contemplando o gênero autorais. A publicação e
Mistério e Suspense. a distribuição do E-Zine
não acarretará, tampouco,
1 - Todos os colabora- em custos para os autores
dores fixos do E-Zine po- participantes.
dem participar e sugerir
autores colaboradores; 6 - O SAMIZDAT Espe-
cial - Mistério e Suspen-
2 - Também serão se será publicado durante
aceitos textos enviados o mês de setembro no
voluntariamente por blog, e na edição em
autores externos, para as .PDF em 1 de outubro.
seguintes seções do E- Por isto, solicita-se aos
Zine: autores interessados que
entrem em contato até o
a - Resenha de Livros; final de agosto, através do
e-mail
b - Teoria Literária ou
de Mistério e Suspense;

c - Autor convidado revistasamizdat@hotmail.com


(prosa ou poesia);

d - Traduções;
Indicando, no assunto
e - Crônicas; do e-mail, SAMIZDAT
Especial 5, e em qual se-
3 - Serão seleciona- ção o texto se enquadra
dos, ao todo, entre 3 e (ver item 2).
5 textos para cada uma
das seções acima, mas a
edição do E-Zine possui o
direito de selecionar mais
ou menos obras.
Abraços a todos,
4 - Não há limites
de palavras, mas como Equipe da SAMIZDAT
se trata duma publica-
ção voltada para o meio www.revistasamizdat.com
digital, solicita-se que
não sejam enviados tex-
tos mais extensos do que
umas 2500 palavras.

www.revistasamizdat.com 9
Entrevista

Selène D’Aquitaine
Nascida no dia 20 de maio de 1992
na cidade Amparo, interior de São
Paulo.
Seu nome de batismo é Adriana
­Barbosa Ferreira, mas prefire seu
nome literário, Selène.
Descobriu sua paixão pela escrita
quando estava com quase doze
anos. Nessa idade, começou a
escrever um livro de aventura, mas
seu computador pegou um vírus e
acabou perdendo a maquina inteira.
Tentou mais uma vez com treze
anos, bolou outro livro e mais uma
vez seu computador pegou vírus e
ela perdeu tudo. Com catorze anos,
decidiu escrever um livro a mão. Até
hoje, Selène não sabe onde foi parar
o caderno onde estava escrevendo

foto: Arquivo pessoal


o livro.
Aos quinze anos, finalmente con-
seguiu concluir seu primeiro livro.
Sua mãe, que não acreditava que ela
fosse conseguir acabá-lo, havia se
proposto a enviá-lo para as editoras
quando concluído. O original foi nelli, se apaixonou pela protagonista
Selène D’Aquitaine é um
remetido para quase 12 editoras. da obra, Samantha, e concordou em
pseudônimo ou um he-
publicá-la. O lançamento do livro
À princípio, não foi fácil conseguir terônimo? É a criadora,
“O Jardim das Rosas Negras” foi dia
uma editora. Selène não sabia pre- ou uma criatura?
parar o manuscrito e acabou fazendo 23 de maio de 2009. A escrita deste
segundo livro tomou quase oito ou Selène - Selène
muitas coisas erradas. Algumas
dez meses, enquanto o primeiro D’Aquitaine é um heterô-
editoras chegaram a devolver o
havia sido escrito em seis meses. nimo criado especialmen-
manuscrito por estar fora do padrão.
Selène também escreve contos e te para eu assinar meus
Mesmo assim, foi aceita em 4
crônicas. livros. Eu escolhi esse
editoras.
nome, pois gosto muito da
Acabou fechando contrato com a Atualmente, trabalha em uma
sua sonoridade e da sua
Ícone Editora e lançou seu primeiro trilogia sobre dimensões paralelas.
escrita. Eu também esco-
livro, “ Diário de Rabiscos” no dia O primeiro volume está pronto.
lhi esse nome, pois queria
1º de Dezembro de 2008. Neta épo- No momento, escreve o segundo.
algo que combinasse com
ca, já havia começado a escrever o Possui também dois outros projetos
os meus livros.
segundo livro, “ O Jardim das Rosas parcialmente elaborados para depois
de concluída esta trilogia. Você tem se dedicado
Negras”. Seu editor, Luis Carlos Fa-

10 SAMIZDAT setembro de 2009


ao gênero de Fantasia. nativo, em que os perso- corda, quem são os es-
Como você percebe a nagens não tem contato critores que a inspiram
influência do cinema, de com o “nosso mundo”, - e que, indiretamente,
filmes como “O Senhor como a Terra-Média, ajudam-na a escrever?
dos Anéis” e “Crônicas ou um mundo paralelo, SD - Sim, acho que as
de Nárnia” naquilo que como Nárnia, em que os vezes um escritor nova-
você escreve? personagens viajam “des- to acaba imitanto seus
Você acredita que o te mundo” para “aquele autores preferidos. Eu,
cinema contribui para mundo”? por exemplo, tenho meus
também nos aproximar SD - Em “O Jardim das autores favoritos: J.K Ro-
dos livros que deram Rosas Negras” a história wling, C.S Lewis, Philip
origem ao filme? O que se passa em um mundo Pullman, Juliet Marillier.
a levou para a literatura alternativo. Lá há seres O mais favorito de todos
de Fantasia? como fadas, bruxas, gno- é o Philip Pullman. Adoro
SD - “As Crônicas de Nár- mos, e até mesmo huma- o modo como ele desen-
nia” é das séries de livros nos. Eles convivem juntos, volve a narrativa, descreve
que eu mais amo. Nárnia seres mágicos e seres um certo ambiente e as
já me serviu de inspiração não-mágicos, porém eles emoções dos personagens.
para criar um novo mun- não possuem um conta-
do, um mundo de criatu- to íntimo com o “nosso
mundo”. Qual tem sido a maior
ras mágicas e seres supe- dificuldade na sua car-
riores. O cinema ajuda a reira literária? Quais são
gente a “visualizar” a his- Como é o processo cria- os seus projetos futuros?
tória do livro, e sim, acre- tivo de seus romances? Você tem algum projeto
dito que as vezes o cinema Você cria primeiro o literário em outros gêne-
nos aproxima dos livros. cenário e depois narra ros que não sejam Fan-
Porém, o livro sempre é as histórias ambientadas tasia? Caso sim, como
melhor que o filme, contu- nele, ou cria-os à medida você se prepara para ele
do é legal quando você leu que a narrativa progri- (leituras, autores, ofici-
um livro, imaginou toda de? nas literárias)?
a história na sua mente
e depois você assiste no SD - Primeiro a ideia vem SD - A maior dificuldade
cinema a tudo aquilo que na minha mente. Depois tem sido a divulgação.
você leu e imaginou. eu faço um pequeno resu- Muitas pessoas vão nas
mo com os pontos princi- livrarias e não encontram
Desde pequena, eu sou pais da história. A partir os meus livros expostos
fascinada pelo mundos disso eu escrevo a história nas lojas, apenas por enco-
mágicos, seres místicos e propriamente dita. Porém, menda. Os livreiros, acre-
sempre sonhei em criar as a maior parte da história dito, só estão aceitando
minhas próprias histórias. eu vou criando a medida expor os livros dos auto-
Às vezes, eu me imaginava que a narrativa progride. res conhecido e, em geral,
nesses mundos. A Fantasia O resumo que eu faço estrangeiros.
explora nossa imaginação é uma base. Eu também
de um jeito muito louco. Meus projetos futuros:
faço uma lista de nomes estou trabalhando em
Uma coisa é você imagi- dos personagens para cada
nar um gato preto, outra uma trilogia sobre mun-
livro que eu escrevo. Isso dos paralelos. O primeiro
coisa é você imaginar um ajuda muito.
gato rosa, esquelético, com volume já está pronto, es-
rabo de coelho e olhos de tou escrevendo o segundo
água. Dizem que, no início volume. Eu também penso
da carreira de escritor, em fazer contos que de
é natural imitarmos o romance, não necessaria-
Como é o mundo de O estilo de nossos autores mente Fantasia. Também
Jardim das Rosas Ne- preferidos. Você concor- penso em trabalhar com
gras? É um mundo alter- da com isso? E, se con- roteiros de teatro, novela e

www.revistasamizdat.com 11
pesquisas históricas. autorais, pirataria: este é jovens, pelo menos pelo
um assunto que a preo- que eu observo, possuem
cupa? Como você vê o certas preferências em
Como é sua relação com futuro da literatura na relação a literatura. Acho
as editoras? era digital? que os jovens de hoje em
SD - A relação é muito SD - Sim, roubo de textos dia não costumam ler o
boa, eu e o meu editor, me preocupa um pouco, suficiente, ou então ficam
Luís Carlos Fanelli somos afinal é o meu trabalho, apenas com os livros que
muito amigos. Ele foi a a minha ideia, minha estão na moda. Muitas ve-
primeira pessoa a acre- vida. Se um texto não zes um jovem lê um livro
ditar e apostar nos meus está registrado, protegido de qualquer jeito, apenas
livros e no meu talento. e alguém o roubar... fica passando os olhos pelas
difícil para o autor ori- páginas. Ele não compre-
ginal provar sua autoria. ende, de fato, a história,
Você considera o fato Não sei se a literatura o contexto, o conflito das
de ser escritora uma tem futuro na era digital... personagens... Lê sem
habilidade que faz parte talvez sim, afinal hoje em realmente prestar atenção.
de sua vida, ou será este dia o mundo esta ficando Porém há jovens que são
o seu ofício, a sua pro- cada vez mais informati- amantes dos livros. E são
fissão? Qual o papel da zado. Livros são eternos, até muitos esses jovens, eu
literatura em sua vida? na minha opinião. É mui- acho. No meu grupo de
SD - Ser escritora é tudo to bom tocar na capa de amigo tem gente que lê
para mim, é trabalho, um livro, virar as páginas, muito e tem gente que lê
compromisso, dedicação, e apertá-lo junto ao peito pouco, assim como na mi-
sim, profissão. A literatura e poder levá-lo na bolsa nha escola. Tem gente que
é a minha vida, a minha para qualquer canto. gosta de ler e tem gente
arte, meu ofício. A litera- que não gosta de ler.
tura também é o modo
pelo qual eu procuro Também em seu blog,
você menciona as suas Nós, da Revista SAMI-
ajudar as pessoas, através ZDAT, agradecemos a
dos meus livros, dos meus amigas como sendo
a fonte de inspiração Selène D’Aquitaine pela
personagens. entrevista.
para as personagens de
Diário de Rabiscos. O
O fato de começar a que elas, as suas amigas,
escrever - e publicar - acharam de se “verem”
tão cedo lhe dá maior em uma obra de ficção?
segurança na hora de SD - Elas adoraram!
preparar um livro? Ou Sentiram-se lisonjeadas
você sente uma pressão pelo homenagem! Minhas
maior? Sua precocidade amigas sentiram-se impor-
literária é um atrativo tantes e amadas.
na hora de divulgar seu
trabalho? Coordenação da entrevista:
SD - Na verdade, o fato de Costuma-se afirmar que Henry Alfred Bugalho
ser precoce não me inti- os brasileiros, especial-
mida muito; aliás ajuda, mente os jovens, não
ainda mais na hora da possuem o hábito da Perguntas feitas por:
divulgação. leitura. Você, como uma
jovem escritora, com- Henry Alfred Bugalho
partilha desta opinião?
Em seu blog, há a ex- Qual é a relação de seus Volmar Camargo Junior
pressa proibição para amigos ou colegas de
aqueles que quiserem escola com a leitura?
copiar seus textos. Plá- SD - Isso depende. Os
gio, violação de direitos

12 SAMIZDAT setembro de 2009


O lugar onde
a boa Literatura
é fabricada
http://www.flickr.com/photos/32912172@N00/2959583359/sizes/o/

ficina
www.samizdat-pt.blogspot.com
www.revistasamizdat.com 13

www.oficinaeditora.com
Recomendação de Leitura

Como me Tornei Estúpido


Guilherme Augusto Rodrigues

Como me Tornei Estúpido


Autor: Martin Page
Editora: Rocco
Ano: 2003

14 SAMIZDAT setembro de 2009


O lugar onde
Como me Tornei Estúpi- uma criatura vulnerável de a boa Literatura
do conta a história de An- sua inteligência e espírito
toine, um jovem de 25 anos crítico, e a volta à vida de é fabricada
que leva uma vida modesta, antes se dá num momento
gosta de filosofia, artes e mágico, inspirador e surre-
tem amigos que o adoram. alista.
Desiludido e sabendo que O escritor francês Martin
admirar a simplicidade, a Page escreveu o livro após
amizade e as artes não trará ter lido o Eclesiastes – cuja
nada de vantajoso para si, autoria é atribuída a Salo-
resolve investir em sua mão por muitos relatos se
idiotice. corresponderem aos da sua
Depois de fracassar ao vida – que conta a história
tentar o alcoolismo e o de um filósofo em conflito
suicídio, para finalmente existencial, comenta sobre
curar-se da doença: a in- suas desilusões e do mate-
teligência; tem a brilhan- rialismo epicureu de que
te ideia de ganhar muito não há nada melhor que o

http://www.flickr.com/photos/ooocha/2630360492/sizes/l/
dinheiro. Determinado, gozo carnal dos prazeres
consegue um excelente mundanos.
emprego na empresa de O livro de uma leitu-
um velho amigo do tempo ra agradável nos induz a
de escola, o Raphi, e com profunda reflexão sobre a
ele aprende as artimanhas superficialidade da socie-
do mundo dos negócios. dade, dos sentimentos e da
Simplesmente, esquece-se vida que levamos. Aparen-
dos livros, do cinema, da temente simples, irônico
filosofia que tanto adorava e e recheado de piadas que
era profundo conhecedor e produzem inúmeras risadas,
dos queridos amigos: Ganja, é na verdade uma grande
Charlotte, Aslee e Rodol- bofetada na cara ao mostrar
phe. Ganha muito dinheiro, que o verdadeiro valor é
aprende a investir na Bolsa saber apreciar as minúcias
http://www.flickr.com/photos/dborman2/3258378233/sizes/l/

para duplicar sua fortuna, do cotidiano, coisas que não


compra carro importado e damos valor, como um dia
muitos utensílios de última de outono, os pássaros, as
moda que nunca usará. An- flores ou um amor simples
toine vira um exemplo, um e verdadeiro, que para tal
homem de sucesso, invejado efeito, Page em certos mo-
e, enfim, aceito pela socie- mentos abusa dos detalhes.
dade. Porém, entre doses

ficina
de Felizac, remédio para
deixá-lo na estupidez, e a
realidade, Antoine se torna

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15
Autor em Língua Portuguesa

Monteiro Lobato

A cigarra e as
duas formigas
16 SAMIZDAT setembro de 2009
A cigarra e a formiga boa - Ah! ... exclamou a Desesperada, bateu à porta
formiga recordando-se. Era da formiga e implorou -
Houve uma jovem ci- você então quem cantava emprestado, notem! - uns
garra que tinha o costume nessa árvore enquanto nós miseráveis restos de comi-
de chiar ao pé dum formi- labutávamos para encher as da. Pagaria com juros altos
gueiro. Só parava quando tulhas? aquela comida de emprés-
cansadinha; e seu diverti- timo, logo que o tempo o
- Isso mesmo, era eu...
mento então era observar permitisse. Mas a formiga
as formigas na eterna faina - Pois entre, amiguinha!
era uma usuária sem entra-
de abastecer as tulhas. Mas Nunca poderemos esque-
nhas. Além disso, invejosa.
o bom tempo afinal pas- cer as boas horas que sua
Como não soubesse cantar,
sou e vieram as chuvas. Os cantoria nos proporcionou.
tinha ódio à cigarra por vê-
animais todos, arrepiados, Aquele chiado nos distraía
la querida de todos os seres.
passavam o dia cochilando e aliviava o trabalho. Dizía-
mos sempre: que felicidade - Que fazia você durante
nas tocas. A pobre cigarra,
ter como vizinha tão gentil o bom tempo?
sem abrigo em seu galhinho
seco e metida em grandes cantora! Entre, amiga, que - Eu... eu cantava!...
apuros, deliberou socorrer- aqui terá cama e mesa du- - Cantava? Pois dance
se de alguém. Manquitolan- rante todo o mau tempo. agora... - e fechou-lhe a por-
do, com uma asa a arrastar, A cigarra entrou, sarou ta no nariz.
lá se dirigiu para o formi- da tosse e voltou a ser a Resultado: a cigarra ali
gueiro. Bateu - tique, tique, alegre cantora dos dias de morreu estanguidinha; e
tique... Aparece uma formi- sol. quando voltou a primavera
ga, friorenta, embrulhada o mundo apresentava um
num xalinho de paina. aspecto mais triste. É que
A cigarra e a formiga má
- Que quer? - perguntou, faltava na música do mun-
examinando a triste mendi- do o som estridente daquela
Já houve, entretanto, uma
ga suja de lama e a tossir. cigarra morta por causa da
formiga má que não soube
- Venho em busca de um avareza da formiga. Mas se
compreender a cigarra e
agasalho. O mau tempo não a usurária morresse, quem
com dureza a repeliu de
cessa e eu... daria pela falta dela?
sua porta. Foi isso na Euro-
A formiga olhou-a de pa, em pleno inverno, quan- Os artistas - poetas,
http://www.flickr.com/photos/kwazar/2494808551/sizes/l/

alto a baixo. do a neve recobria o mun- pintores e músicos - são as


do com o seu cruel manto cigarras da humanidade.
- E o que fez durante o
de gelo. A cigarra, como
bom tempo, que não cons-
de costume, havia cantado
truiu sua casa? Fonte: http://br.geocities.
sem parar o estio inteiro, e
A pobre cigarra, toda com/turmadajuli/historias.
o inverno veio encontrá-la
tremendo, respondeu depois htm#lobato
desprovida de tudo, sem
de um acesso de tosse: casa onde abrigar-se, nem
- Eu cantava, bem sabe... folhinhas que comesse.

www.revistasamizdat.com 17
Monteiro Lobato Juca era assim chamado – brin- gio. Leu tudo o que havia para
A 18 de abril de 1882 em Tauba- cava com suas irmãs menores crianças em língua portuguesa.
té, estado de São Paulo, nasce Ester e Judite. Naquele tempo Em dezembro de 1896, presta
o filho de José Bento Marcon- não havia tantos brinquedos; exames em São Paulo, das maté-
des Lobato e Olímpia Augusta eram toscos, feitos de sabugos rias estudadas em Taubaté. Aos
Monteiro Lobato. Recebe o nome de milho, chuchus, mamão verde, 15 anos perde seu pai, vítima de
de José Renato Monteiro Lobato, etc... congestão pulmonar e aos 16
que por decisão própria modifica Adorava os livros de seu avô ma- anos sua mãe. No colégio funda
mais tarde para José Bento Mon- terno, o Visconde de Tremembé. vários jornais, escrevendo sob
teiro Lobato desejando usar uma pseudônimo. Aos 18 anos entra
Sua mãe o alfabetizou, teve
bengala do pai gravada com as para a Faculdade de Direito por
depois um professor particular e
iniciais J. B. M. L. imposição do avô, pois preferia a
aos sete anos entrou num colé-
Escola de Belas-Artes. É anti-

18 SAMIZDAT setembro de 2009


convencional por excelência, diz mento editorial brasileiro. Em amanhã, abertas a tudo, que-
sempre o que pensa, agrade ou 1931, volta dos Estados Unidos rendo ser felizes, confrontando
não. Defende a sua verdade com da América do Norte, pregando suas experiências com o que os
unhas e dentes, contra tudo e to- a redenção do Brasil pela ex- mais velhos dizem, mas sempre

http://guisalla.files.wordpress.com/2008/09/machado1.jpg
dos, quaisquer que sejam as con- ploração do ferro e do petróleo. acreditando no futuro. E assim, o
seqüências. Em 1904 diploma-se Começa a luta que o deixará po- Pó de Pirlimpimpim continuará
Bacharel em Direito, em maio bre, doente e desgostoso. Havia a transportar crianças do mundo
de 1907 é nomeado promotor em interesse oficial em se dizer que inteiro ao Sítio do Pica-pau
Areias, casando-se no ano se- no Brasil não havia petróleo. Amarelo, onde não há horizontes
guinte com Maria Pureza da Na- Foi perseguido, preso e criticado limitados por muros de concreto
tividade (Purezinha), com quem porque teimava em dizer que no e de idéias tacanhas.
teve os filhos Edgar, Guilherme, Brasil havia petróleo e que era Em 5 de julho de 1948, perde-se
Marta e Rute. Vive no interior, preciso explorá-lo para dar ao esse grande homem, vítima de
nas cidades pequenas sempre es- seu povo um padrão de vida à colapso, na Capital de São Pau-
crevendo para jornais e revistas, altura de suas necessidades. Já lo. Mas o que tinha de essencial,
Tribuna de Santos, Gazeta de em 1921, dedicou-se à literatura seu espírito jovem, sua coragem,
Notícias do Rio e Fon-Fon para infantil. Retorna a ela, desgosto- está vivo no coração de cada
onde também manda caricaturas so dos adultos que o perseguem criança.
e desenhos. Em 1911, morre seu injustamente. Em 1945, passou a
Viverá sempre, enquanto estiver
avô, o Visconde de Tremembé, e ser editado pela Brasiliense onde
presente a palavra inconfundível
dele herda a fazenda de Buquira, publica suas obras completas,
“Emília”.
passando de promotor a fazen- reformulando inclusive diversos
deiro. A geada, as dificuldades, livros infantis. Biografia do Livro O Saci de
levam-no a vender a fazenda em Monteiro Lobato, publicada no
Com Narizinho Arrebitado lança
1917 e a transferir-se para São boletim Circulação Cultural,
o Sítio do Pica-pau Amarelo e
Paulo. Mas na fazenda escre- Ano I, n. 13, ago. 1999.
seus célebres personagens.
veu Jeca Tatu, símbolo nacio- Fonte: http://kplus.cos-
Através de Emília diz tudo o que
nal. Compra a Revista Brasil e mo.com.br/materia.
pensa; na figura do Visconde de
começa a editar seus livros para asp?co=32&rv=Literatura
Sabugosa critica o sábio que só
adultos. Urupês inicia a fila, em
acredita nos livros já escritos.
1918.
Dona Benta é o personagem
Surge a primeira editora nacio-
adulto que aceita a imaginação
nal Monteiro Lobato & Cia, que
criadora das crianças, admitindo
se liquidou transformando-se
as novidades que vão modifi-
depois em Companhia Editora
cando o mundo, Tia Nastácia
Nacional sem sua participação.
é o adulto sem cultura, que vê
Antes de Lobato os livros no
no que é desconhecido o mal, o
Brasil eram impressos em Portu-
pecado. Narizinho e Pedrinho
gal; com ele inicia-se o movi-
são as crianças de ontem, hoje e

www.revistasamizdat.com 19
Contos

Eder Ferreira

Minicontos
20 SAMIZDAT setembro de 2009
Assistente de mágico

Era uma profissional tão dedicada que passou a levar trabalho para casa. Tru-
que preferido: desaparecimento. O marido, compreensivo, entendeu.

A honra acima de tudo

Devendo até o único par de meias que tinha, toda manhã estufava o peito e
dizia para sua mulher: “O dever me chama!”

Esquizofrenia animal

A vaca foi pro brejo. Achava que era um porco.

Chavesmaníaco

Sua vida se resumia em um único lema: “Deus ajuda quem assiste o madruga”.

http://www.flickr.com/photos/hidden_treasure/2474163220/sizes/l/
O lugar onde
a boa Literatura
http://www.flickr.com/photos/brotherxii/3256884471/sizes/l/


é fabricada

ficina
www.revistasamizdat.com 21
www.oficinaeditora.com
Contos

Jey Fyu e
a Floresta das
Almas Tortas
Carlos Alberto Barros

22 SAMIZDAT setembro de 2009


O Guerreiro das Nuvens Uma forte tempestade en- por suas entranhas, e Jey Fyu
charcou a floresta de tristeza era um deles.
Jey Fyu era um exímio – eram as lágrimas angustia- O grande guerreiro tinha
Guerreiro das Nuvens. Com das do guerreiro por ter que um objetivo: destronar o Im-
sua lâmina escarlate, cortava abandonar o povo que tanto perador Pai-pai. Só assim po-
céus e mares feito vespa rai- amava. deria continuar zelando por
nha em mato-de-alvarenga. Jey Fyu visitou as almas, suas amadas almas. Seguiu
Em noites de três sóis e duas uma a uma, fazendo questão pelo Caminho das Penúrias,
luas, chamadas Noites Quin- de se alimentar com leite e em direção ao portal de
cas, era impossível não se ver tacho de todas elas. As visitas entrada da Nuvem Cinzen-
no horizonte sua armadura aumentaram-lhe a tristeza e ta. Enquanto avançava entre
alada bailando com cabeça deixaram claro que ele não as árvores colossais, ouvia o
de dragão. O bravo com- podia abandonar o lugar. Na som macabro dos espíritos
batente era o protetor das verdade, não conseguiria ir. perdidos e via o tom escarla-
almas tortas da Terra do Fim, Decidiu-se por não aceitar te de sua espada ser abraça-
um dos reinados do grande a oferta do Imperador, já do pelas sombras.
Pai-pai. sabendo das consequências Jey Fyu seguia atento,
Quando não estava medi- irreversíveis em que isso im- punho preparado, visão de
tando em sua nuvem colossal plicaria. Ele ou Pai-pai teria dragão. Percebeu que, além
ou desfilando pelos ares, Jey que morrer. Estava disposto a da lamúria dos espíritos,
Fyu descia à Floresta das enfrentar seu destino. havia um ruído diferente
Almas Tortas para tomar O Imperador recebeu a surgindo. Parecia o rugir de
leite de anta e comer lascas notícia com naturalidade, uma grande fera. Aos pou-
de tacho azul – os alimentos como se já previsse que cos, ficava mais estrondoso.
principais da região. assim seria. Convocou seus Segurou com as duas mãos
O guerreiro conhecia dois maiores lutadores, sua espada, postura de luta.
todos que ali habitavam e, a Len Lan e Shouryo Ken, e Estava preparado.
cada um, oferecia amor ini- mandou-os ao caminho da
gualável. Sempre que estava Floresta das Almas Tortas. As
na floresta, sentia seu espí- ordens foram claras: lutar no Len Lan
rito engrandecer. E as almas, Caminho, sem a presença das
quando recebiam sua visita, almas da Floresta; matar Jey Jey Fyu notou que a
brilhavam como mosquitos- Fyu sem piedade; trazer sua penumbra do ambiente se
de-fogo. armadura de volta à Nuvem transformava em trevas infin-
Cinzenta. dáveis. O rugir, mais alto, era
Assim era em todos os
reinados do Imperador insuportável. Estava numa
Pai-pai. Cada Guerreiro das completa escuridão quando
Nuvens ficava responsável O Caminho das Penúrias foi atingido. Não era nenhum
por um deles, fazendo preva- monstro: uma das árvores foi
Jey Fyu seguiu para o atirada sobre ele. O enorme
http://www.flickr.com/photos/24443965@N08/2351811408/sizes/l/

lecer a harmonia do Império.


Jey Fyu era responsável pela Caminho sem tristeza nem tronco, de diâmetro gigan-
Floresta das Almas Tortas, remorsos. Lutaria até suas tesco,, bloqueou a entrada
protegendo-as no caminho energias se findarem e, caso da pouca luz que alcançava
de volta à Terra do Início. tivesse que sucumbir, seria o Caminho das Penúrias.
em razão de seu amor pelas O som bestial provinha da
Após infinitas eras ser- almas tortas. incrível velocidade com que
vindo a Pai-pai, Jey Fyu teve a árvore cortava o vento.
sua honra e coragem reco- O Caminho das Penúrias
era a única via de acesso en- O impacto foi como uma
nhecidas, sendo convidado explosão dos deuses. Jey Fyu
a tornar-se chefe da guarda tre qualquer dos reinados de
Pai-pai. Árvores com troncos fora atingido. Sobre o tronco,
da Nuvem Cinzenta, a mo- a imagem de um guerreiro
rada do Imperador. As almas imensos atingiam as nuvens
e faziam da estrada uma com cabeça de lagarto sorria.
tortas, então, viram o grande Era Len Lan.
dragão dançar no céu, mes- eterna penumbra. Apenas os
mo não sendo Noite Quinca. merecedores podiam trilhar O inimigo recém-chegado

www.revistasamizdat.com 23
mal teve tempo de se alegrar nianos na fera. Não podia de Guerreiro das Nuvens”,
com o ataque bem sucedido. errar, não podia errar. disse Shouryu Ken a Jey Fyu.
Sentiu um arrepio nas costas Ao longe, Shouryu Ken “Há tempos Pai-pai levava o
e viu um fio de luz vermelha via sua mascote decepar o Grande Império à decadên-
riscar seu corpo, dividindo braço esquerdo de Jey Fyu cia. Não podíamos permitir
seu sorriso ao meio e se e, em seguida, perder todos que continuasse por mais
estendendo por toda a árvore seus dez membros. A lâmina tempo. Alguém deveria agir.
sob seus pés. A luz se liber- escarlate penetrou lentamen- Assumirei o trono e preten-
tou com violência de dentro te o coração do gorila. Shiva do contar com sua ajuda em
do tronco que, partindo-se Kung estava morto. meu Império”, continuou.
em dois pedaços, levava con- A confusão tomou conta
sigo cada metade do corpo de Jey Fyu. Não esperava por
de Len Lan.
O Imperador Pai-pai aquilo. Achava que teria que
lutar até a morte. “E o que
Apesar de perder um deseja de mim neste novo
Shiva Kung Império?”, perguntou.
braço, o protetor das almas
tortas não se abateu. Sentia- “Volte para a Floresta das
Jey Fyu continuou sua se mais poderoso a cada Almas Tortas. Lá sempre foi
jornada pelo Caminho das vitória. Sem clemência, iria seu lugar. As almas precisam
Penúrias fortalecido. A pri- até o fim. de você”, falou Shouryu Ken.
meira vitória aumentou sua
convicção, no entanto, sabia Jey Fyu avançou em fúria Jey Fyu paralisara, pen-
que maiores provações ainda sobre seu adversário. Shou- sativo. Pai-pai estava morto
estavam por vir. ryu Ken aguardava estático, à sua frente, não fazia mais
parecendo não querer lutar. sentido continuar lutando.
Não demorou muito para
Quando os dois estavam Voltaria para o seu povo e
avistar seu próximo obstá-
frente a frente, ouviram uma continuaria a viver em sua
culo. A uma distância que
voz de trovão: “Parem”. O Im- nuvem. Era o que deseja-
não enganavam os olhos,
perador Pai-pai chegara. “Não va desde o início. Decidiu,
avistou Shouryu Ken. Como
quero perder meus maiores assim, devolver sua espada
já imaginava, o novo oponen-
guerreiros”, disse ele, “Deve- escarlate à bainha. Havia
te não estava sozinho: trazia
mos seguir os preceitos da perdido um braço, mas tinha
seu animal de estimação,
Lei dos Ancis e restabelecer a suas almas de volta, e isso
Shiva Kung, o Gorila de Dez
harmonia de nosso reino”. era o que importava.
Membros.
Jey Fyu sabia que aquilo O grande Guerreiro das
A luta não seria fácil. Em
não era possível. Se parasse Nuvens retornou pelo Cami-
cada um dos membros, Shiva
ali, teria que abdicar da Flo- nho das Penúrias satisfeito.
Kung trazia uma Lâmina do
resta das Almas Tortas, e isso, Chegou à sua Floresta sendo
Sol. Jey Fyu sabia que, contra
nunca faria. recebido com grandes feste-
aquilo, sua armadura de nada
jos. A primeira atitude que
serviria. Teria que ser preciso “Meu Imperador, sabemos teve foi sentar-se junto às
nos golpes. o que a Lei diz. A morte é suas amadas almas para to-
O gorila avançou em a recompensa dos que não mar leite de anta com tachos
saltos frenéticos. Mesmo seguem as ordens superio- azuis.
com todo seu tamanho, era res. Mas...” – Jey Fyu não
incrivelmente veloz. Jey Fyu conseguiu terminar a frase.
invocou a alma de sua espa- Enquanto falava, uma lâmi-
da, transformando-a em duas. na veloz atravessou o corpo
Tendo uma em cada mão, de Pai-pai. Shouryu Ken o
esperou a fera se aproximar. assassinara.
Os espíritos perdidos prosse-
guiam com a melodia funes-
ta. A penumbra fazia Shiva Retorno às almas
Kung ainda mais negro. Jey
Fyu fixou seus olhos draco- “Não desejo lutar, gran-

24 SAMIZDAT setembro de 2009


Ele tinha diante de si
a mais difícil das missões:
cumprir a vontade de Deus ficina
www.oficinaeditora.com

Henry Alfred Bugalho


http://www.lostseed.com/extras/free-graphics/images/jesus-pictures/jesus-crucified.jpg

O Rei dos
Judeus
do www.revistasamizdat.com 25
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Contos

O coelhinho medroso
Joaquim Bispo

26 SAMIZDAT setembro
agosto de de
2009
2009
Era uma vez um coe- E assim, durante a tarde
lhinho cinzento que vivia inteira, com muita paci-
num campo de beringelas. ência e ternura, ensinou o Um detetive...
Durante o dia, corria e coelhinho a preparar uma
saltava feliz, comia e dor- toca, para que ela não lhe
Uma loira gostosa...
mia à sombra das plantas; caísse em cima. Ensinou-o
à noite tremia de frio, e de a escolher um bom local Um assassinato...
medo de ser apanhado e meio escondido pelas ervas,
comido por algum monstro. a afastar a terra, a abrir
Dormia ao relento, porque caminho com as patinhas, E o pau comendo entre
jamais entrara numa toca, a alisar as paredes com pe-
as máfias italiana e
com medo que ela lhe caís- quenas marradinhas. Quan-
se em cima e o esmagasse. do a toca já estava de bom chinesa.
­
Até a vista de um buraco tamanho e com aspecto
numa árvore o assustava, confortável, disse a menina:
por não saber o que tinha — Agora, coragem co-
lá dentro. elhinho! Esta toca está
Certa vez, passou por
aquele lugar uma menina
muito bem preparada e de
certeza que não vai cair-te
O Covil
de vestido branco e lon- em cima. Entra à vontade,
gos caracóis castanhos, que
andava a passear, porque se
coelhinho! dos
E dava-lhe palmadinhas
aborrecia de estar em casa,
e encontrou o coelhinho,
de encorajamento. O coe-
lhinho, vendo como a toca
Inocentes
com cara infeliz, aninhado parecia segura e acolhe-
entre dois troncos. dora, e cheio de confiança www.covildosinocentes.blogspot.com
— Por que estás triste, pelo incentivo da menina,
coelhinho cinzento? — per- esticou o peito, em atitude
guntou ela. resoluta, e entrou.
— Gostava de ter uma Na verdade, a toca era
toca para me recolher, o local mais confortável e
como os outros coelhinhos, seguro onde alguma vez já
mas tenho medo que a tinha estado. Apetecia-lhe
toca me caia em cima e me ficar lá dentro para sem-
esmague — respondeu o pre. Nem acreditava como
coelhinho, timidamente. tinha passado tantas noites
— Por que é que havia de a tiritar de frio e de medo.
Quando saiu para agrade-
http://www.flickr.com/photos/tambako/854256078/sizes/o/

te cair em cima, coelhinho?


Sê corajoso! — animou a cer à menina, esta pegou
menina — Não sabes prepa- nele ao colo, e despediu-se
rar uma toca? com um abraço apertado.
O coelhinho, comovido, não
— Não — lamentou-se o pôde evitar uma lágrima de
coelhinho cinzento — nun- ternura e gratidão. Desde
ca ninguém me ensinou. então, todas as noites se
— Oh! — condoeu-se a recolhe à toca, confiante e
menina, fazendo-lhe uma feliz. do
w
festinha na cabeça — eu
gr nl
ensino-te. át
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Contos

VOZ DA CONSCIÊNCIA
Wellington Souza

28 SAMIZDAT setembro de 2009


- Sabe o que é... Acho nuar o calvário, então não afogados, juntos.
que não estou mais te fa- faria sentido interromper Grande parte do drama
zendo bem. assim o curso das coisas: humano vem das nossas
Nunca soube terminar, está ruim e só pode é pio- relações, é fruto delas. Por
acho que é porque nunca rar. Estou bem aqui. Sempre isso que os orientais que
gostei de terminar nada. me ensinaram que se for querem atingir o enten-
Mas não pelo fim em si – para mudar, que seja para dimento se refugiam dos
logo arrumo outra coisa melhor! e é isso que prendo outros. E os sábios são
para fazer... – e sim pela fazer. Acho. Zaratustras, que descem em
triste saudade que virá. Ele não me olhava, nem corpo, mas mantêm suas
Existem as saudades alegres. de relance nem de soslaio. almas lá no cume da mon-
Aquelas coisas que a gente Parecia que mirava uma tanha à prova de questiona-
fez bem desde o começo formiga ou contava quantos mentos inúteis ao seu saber.
dão uma saudade alegre. pés passavam por ali e se À prova de questionamen-
Sorrio ao me lembrar que concentrava neste cálculo tos inerentes aos homens,
era boa jogadora de hande- mental. acho até que o nosso nome
bol durante o ensino fun- - Acho que não te peguei científico deveria ser homo-
damental e, quando acertei de surpresa, né? Não estou quaestonis. Assim eles
uma bolada no rosto da bem com o meu ‘eu’, e acho podem viver em paz na
rouba-namorado de propó- que, parte disso é por divi- realidade que criaram, sem
sito, não senti – nem sinto – di-lo assim, todo. Não sei esses choques-de-mundos
remorso em ver seus lábios mais o que ‘eu quero’, existe que nos dão a sensação de
sangrarem e seu aparelho o que ‘queremos’, o ‘nós’, e que o que fazemos, inde-
dentário sendo desgrudado só. Sinto falta de pensar ‘eu’ pendente de como fizemos,
deles. Mas há a saudade e de ouvir ‘você’. está errado.
ruim também, de coisas que Continua parado, parece
poderíamos ter feito melho- Pauso, respiro.
que esse discursinho sem-
res, mas fomos displicentes Respira. vergonha que fiz não lhe
e saiu tudo porco, sujo, e - Todos chamam “ve- abalou em nada. Talvez
essa sujeira volta de novo nham cá em casa” ou per- esteja pensando em algu-
pra gente, em ressacas que guntam “viram tal filme”? ma pergunta em que não
não escolhem lua. Ontem minha tia pergun- irá se humilhar. Sei quanto
No fim, a tristeza é mais tou se “gostávamos de uva- de orgulho e fragilidade
pela saudade ruim do que passa na maionese”. Res- há ai dentro. Ainda assim
pelo recomeço. pondi mal pra ela, falei que esperava, da parte dele,
Estamos lado a lado eu não era você, daí ela me resistência, luta, diálogo,
num banco-de-praça no retrucou indignada por eu revolta, até grito, apesar do
http://www.flickr.com/photos/s-t-r-a-n-g-e/3666661910/sizes/o/

shopping. As pessoas que não saber se você gostava lugar público. Talvez só isto
passam são tão sem-poesia. da merda das uvas-passsas colocasse razão nisso que
A única arte daqui está nos na maionese! estou fazendo. Mas como
bancos-de-praça. Pauso. ele aparentemente hasteou
a bandeira-branca, tenho
Isso não está mais me Continuo. que criar uma justificativa
fazendo bem. Mas não é - Não é possível que você para o nosso futuro que
por isto também que es- esteja feliz assim. Um leão evaporou como se, sob a
tou aqui, prestes a por um necessita de mais de mil minha guarda, a chama se
fim, mudar de parágrafo. quilômetros quadrados para apagasse por vento ou falta
Tem coisas que são ruins e se sentir à vontade. Acho de combustível, tanto faz.
irremediáveis: se terminar que não estamos respiran- Resta um esclarecimento
fosse pior ainda que conti- do. Vamos acabar morrendo de minha parte, e talvez um

www.revistasamizdat.com 29
“Perdão” por todos os peca- Assume postura ereta, Hoje sejamos nós, apenas.
dos do mundo e por ser, em mas olhando para frente. Sem lembrarmo-nos de
vez de anjo, mulher. “Acho que você era o um futuro
Vira-se sem retirar os meu futuro, meu sonho. em que certamente lem-
cotovelos dos joelhos e Imaginei-te grávida e ve- braremos
olha-me não diretamente, lha.” “Mas agora está ai, fria,
mira algo que está atrás dizendo coisas que deveria das noites perdidas destes
de mim, mas o suficiente estar gestando há meses”. dias
para ver que a inaptidão “Não tenho mais nada a fa- em que nele não pensá-
de amante está pintada em lar. Seu pai não vai ligar em vamos,
minha face. Depois desce vir te buscar de carro, né?” e vivíamos feito bichos
um pouco e percebe que, “Adeus.” “Tenho um futuro
com as unhas de uma mão, para editar.” nos cativeiros de nós
eu lasco uma da oposta. mesmos.
Fala isso tudo olhando
“Você nunca fez isso”, diz. para os meus joelhos, que
Tenho a impressão que agora tremem. Hoje, estejamos nós
meus músculos faciais se Não quero mais ficar cientes apenas deste
contorcem, como se eu sozinha, enjoei. Já me perdi tempo
quisesse sumir diminuindo na vastidão fria da unidade, e um da persona do
o rosto. Gelo e interrompo infinita e vaga. Uma reta outro
a ação, deixando a unha não é nada além de um
por terminar de ser aparada traço, m esboço. Somente que como num palco
junta à carne. forma-se – formam – um amam-se ardentemente,
- Nunca me deparei com plano e deste plano, formas. mas são estéreis.
o fim, assim, tendo que Levanta-se.
executá-lo. Perdão. Seguro em sua mão com Sem lembrarmo-nos do
“Digo, isto com a unha, as minhas duas. Entrelaço futuro que fantasiávamos.
sempre foram tão bem as três num nó-de-mari-
feitas.” Relaxo e rio. Uma nheiro.
amarelidão me toma por Ele desata-se e some en- Amasso e jogo no ces-
completa. Ah, a unha. tre as crianças que sorvem to ao lado. Confirmei que
“Não queria te sufocar, sorvetes e saltos-altos que uma ruptura nunca é suave.
não era essa minha inten- olham vitrinas. Transição é eufemismo,
ção.” Não há como contro- mudança é mudança. Ele
Minha mãe me disse nem olhou por uma última
lar a reação em cadeia que que namorar meninos mais
nossas explosões causam. vez nos meus olhos.
velhos é diferente de meni-
“Não entendo isso que você nos da minha idade. Estes, Vou dar uma volta, de-
sente, não me sinto assim. eu apenas beijava e nossos pois ligo pro papai vir me
”É que você é materialista, planos não iam além do buscar.
Estou para você como o fu- fim de semana. Começar Queria pensar como
tebol ou o seu carro. “Você a beijar outras pessoas era uma menina de quinze
não é o meu mundo, ou um sinal de que o relacio- anos novamente. É difícil ter
não era, mas era o mundo namento não ai bem. quinze anos, mas ser pre-
para aonde eu ia me refu-
Desdobro o papel que coce. Antes ser precoce que
giar do mundo.” Mas você é
tenho em mãos, e que não ser póstuma. Nossa! Nada a
o meu, e tenho que abdicar
consegui passar para a dele. ver isso.
do mundo para evoluir. ‘En-
terre seus pais’, Buda disse e Leio.
coloquei no meu Orkut. PLURAIS

30 SAMIZDAT setembro de 2009


O lugar onde
a boa Literatura ficina
é fabricada
www.oficinaeditora.com

http://www.flickr.com/photos/27235917@N02/2788169879/sizes/l/
A Oficina Editora é uma utopia, um não-
lugar. Apenas no século XXI uma ­vintena
de autores, que jamais se ­encontraram
­fisicamente, poderia conceber um projeto
semelhante.
O livro, sempre tido em conta como uma
das principais fontes de cultura, ­tornou-se
apenas um bem de ­consumo, ­tornou-se um
elemento de exclusão ­cultural.
A proposta da Oficina Editora é ­resgatar o
valor natural e primeiro da ­Literatura: de bem
cultural. ­Disponibilizando ­gratuitamente
­e-books e com o ­custo ­mínimo para ­livros
impressos, nossos ­autores ­apresentam
a ­demonstração ­máxima de respeito à
­Literatura e aos ­leitores.

www.revistasamizdat.com 31
Contos

A menina que
não queria crescer
Ju Blasina

http://www.flickr.com/photos/kohler/2076235814/sizes/l/

32 SAMIZDAT setembro de 2009


Aninha não queria cres- — Melhor do que ter que não prestar muita atenção.
cer. ficar de olho na moça do A professora não lhe deixa-
Estava decidida e firme telefone — “moça do telefo- va contar em aula e os ami-
nesta decisão, já não era de ne” era como chamava sua guinhos só queriam fazer
hoje. Todos que a conhe- antiga babá — Eca, babás coisas de rua. Contava para
ciam, conheciam também são para bebês! — Aninha as bonecas — seu público
seus planos, quase que queria ser criança para mais atento.
simultaneamente. Aninha sempre, mas não um bebê, Aninha gostava de ser
definitivamente não era “bebês fedem”. alegre, de suas sardas, suas
uma menina silenciosa. Era Havia vantagens e des- maria-chiquinhas e de fazer
aquilo que os adultos cha- vantagens na companhia da desenhos coloridos, mas
mam de “tagarelas” — pala- vovó surda. Vantagem: ela nem sempre tinha vonta-
vra divertida — pensava ela, nunca interrompia os deva- de de sorrir. Sabia que no
sorrindo encantada cada neios de Aninha e ainda fa- mundo havia dois tipos
vez que a ouvia. E a ouvia zia ótimos biscoitos e coisas de “gentes e coisas”: As “do
muito! de lã. Desvantagem: ela não bem” e as “do mal”. Ela não
Sua mãe era, a seu ver, al- contava estórias e Aninha era uma menina medrosa,
gum tipo de super-heroína. adorava estórias. Como só não gostava dos “do mal”,
Daquelas que saem à noite solução, começou a contar afinal eram eles que davam
para combater as forças estórias para si mesma. No tanto trabalho para sua mãe
do mal. E ultimamente as início lia livros em voz alta, e provavelmente tinham
forças do mal já não res- embora não conhecesse to- sido eles que roubaram os
peitavam mais nada — não das as palavras, afinal tinha ouvidos da vovó.
tinham hora para roubar- seis anos e queria ficar com Precisava fazer alguma
lhe a mãe: era noite, dia e nove para sempre, não com coisa a respeito. Algo que
até nos feriados — o telefo- seis: só uma criança poderia
ne tocava e lá ia sua mãe, — Com seis não se pode fazer para mudar o mun-
salvar o mundo outra vez. andar em quase nada no do e definitivamente não
— Quantas vezes será Parquinho. É um absurdo! era crescer — disso tinha
que o mundo precisa ser Para tudo ela tinha solu- certeza. Viu muito bem o
salvo? — pensava Ana, ao ção: Quando não entendia que aconteceu a sua prima,
ver a mãe correndo pra cá, a palavra, inventava uma Silvinha, quando resolveu
correndo pra lá. nova ou um novo signi- crescer: Antes, era uma
ficado para aquele grupo menina meiga e feliz, ago-
Por ironia ou sabedoria ra virou uma tal de “Silvia
do destino, quem lhe fazia de letras desconhecido. Às
vezes apenas lia os dese- Maria” que não tem tempo
companhia na maior parte para abraços e ainda anda
do tempo era a vovó: com- nhos. Com o tempo, passou
a inventar novas estórias com meninos! — Ah, adul-
pletamente surda! Não era tos!
sua avó de verdade, mas e desenhar seus próprios
a julgar pela idade e algo livros. Chamavam-se: “As Existiam outras razões
no seu cheiro de biscoitos, fantásticas estórias secretas para que Aninha não qui-
certamente, devia ser a avó de Aninha” — que de se- sesse crescer — razões
de alguém — era sua “avó cretas só tinham o nome, secretas que ela só revelava
de aluguel”, mas tudo bem pois ela contava para todo em suas estórias — e como
— Aninha não se importava mundo. até hoje ninguém havia per-
em cuidar de vovozinhas: Infelizmente a vovó pa- guntado, ela não sabia ex-
recia não ouvir e a mamãe plicar direito, só desenhar.

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Sentia uma coisa estranha e seriam felizes para sem- ao peito, ela não disse “que
no peito toda vez que pen- pre... lindo”. Não dessa vez.
sava nisso, então, fazia um ... Até mesmo no dia dos Pegou-o, sentou-se e
desenho e mostrava para a pais, quando os coleguinhas olhou cada detalhe com a
mãe. A mãe sempre dizia entregavam os presentes atenção que nunca antes
algo como “Que lindo, filha” feitos na escola, enquanto havia dado a nenhum dos
e Aninha não entendia ela levava mais um daque- inúmeros desenhos da filha
bem o porquê. Achava que les “presentes idiotas” para — era mesmo um desenho
a mãe tinha um estranho casa, aumentando a coleção especial — lágrimas rola-
gosto para desenhos e saia sobre a estante, à espera de ram enquanto seus olhos
resmungando: um pai que nunca vinha... percorriam cada traço do
— Adultos não entendem Era isso: faria um pai “desenho secreto de Ani-
“nadica de nada” mesmo. imaginário! O mais perfeito nha”:
A mãe respondia: — dos pais, que combatesse Ele trazia flores e pás-
Olha a língua! — e ela até as forças do mal e ainda saros e, como sempre, era
tentava obedecer, mas olhar ouvisse suas estórias. Me- muito colorido. Trazia
a própria língua era uma lhor que isso: ele contaria também, no centro, três bo-
tarefa difícil! Acabava guar- novas e incríveis aventuras necas de mãos dadas: uma
dando o papel junto aos e nunca se esqueceria do menina de sardas e maria-
outros desenhos secretos e seu próprio dia. chiquinhas; uma maior, de
se emburrando pelo resto E assim Aninha começou pijamas, chinelos e longos
do dia. o mais lindo desenho que cabelos soltos e uma menor,
Até que um dia surgiu a alguém já havia criado. Um encurvada, de óculos, em-
ideia. Uma ideia brilhante! desenho feito de sonhos, bora sem orelhas. Sob elas
Outra delas, afinal, tinha esperanças e fantasia: um havia plaquinhas identifi-
muitas ideias brilhantes, desenho mágico! cadoras dizendo, respecti-
mas esta parecia realmente vamente: “aninha, mamãe e
Levou uma eternidade vovó” e sobre elas voava um
especial: terminando o tal desenho, homem de rosto borrado.
— O que é que só uma escolhendo as cores certas, Ele apresentava vastos bigo-
criança pode fazer para fazendo pássaros e flores ao des e capa. Carregava um
mudar o mundo? Imaginar! redor e quando, enfim, ter- par de orelhas em uma das
Precisava imaginar algu- minou, correu para mostrar mãos tinha e um bolo de
ma coisa que combatesse as a todo mundo, começando dinheiro na outra. Na capa
forças do mal. Assim, pode- pela mãe: estava escrito em letras
ria deixar sua mãe em casa — O desenho secreto de grandes e coloridas “meu
e trazer os ouvidos da vovó Aninha. superpai”.
de volta. Se sua mãe ficasse Pena que naquele dia A mãe a abraçou for-
em casa, poderia abraçá-la sua mãe demorou tanto te, acordando-a e naquele
com bastante força e, as- para chegar, que ela aca- momento Aninha soube: “o
sim, nunca mais precisaria bou adormecendo no sofá desenho funciona!”
crescer! Se não crescesse, a sua espera, agarrada ao
a mamãe não viraria uma Sentiu-se muito feliz nos
desenho. Não viu a chegada braços da mãe. Foi como se
vovó e a vovó não iria à da mãe, mas se visse, não
parte alguma! Contariam o tempo parasse.
entenderia a sua reação: Ao
estórias o dia todo e todos ver o desenho que a filha Agora, ela nunca mais
os dias. Comeriam biscoitos segurava, já amassado, junto precisaria crescer...

34 SAMIZDAT setembro de 2009


Homenagem à Luana e
Stela, amigas macacas.

http://www.flickr.com/photos/def110/2823385328/sizes/l/
Ju Blasina

O pé de macaca
Era uma vez... tentava persuadir a maca- disso.
Uma menina loirinha, ca a deixá-la em paz, até Muitos anos se passa-
um pouco sardenta, outro porque, cá pra nós, devia ter ram e a menininha, — que
pouco tímida e “um tan- um bocado de micróbios, já deixou de ser "inha" há
tinho" medrosa. Tá bom, não na mãe, na macaca! A mais tempo do que gosta
bastante medrosa. Temia mãe era paranóica com mi- de admitir — até hoje, não
até as moscas — paradas! cróbios. Paranóico é como pode ver um pé de unhas
Até que num belo dia de se chama alguém que cisma vermelhas que logo sente
sol foi levada por sua mãe com uma coisa sem sentido. um arrepio e pensa:
para um passeio especial: O E assim a menina tornou- — Pé de macaca: Ahhhh-
circo... se paranóica. Não com ma- hhhh!
— E seria esta uma estó- cacos de forma geral, mas
quanto a unhas vermelhas, *baseado em uma história
ria feliz, não fosse por ela: real. Os nomes das persona-
a macaca das unhas verme- independente do pé em que
se encontrem. gens envolvidas foram troca-
lhas. dos para proteger a identida-
A garota viu a macaca —A macaca do pé ver- de das vítimas. A macaca se
e a macaca viu a garota. melho me pediu um beijo. chama Xita. Bem, na verdade
Não só a viu, como gamou. Macaca... Pediu... Pé... Pé de eu não lembro, inventei este
Queria um beijo, a qual- macaca! agora. Vou perguntar para a
quer preço! A menina lá, O trauma não foi beijar minha mãe!
toda encolhida no banco a macaca, foi ver bicho ves-
do circo, enquanto sua mãe tido de gente e convencido

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Contos

(dedicado a Marcia
­Szajnbok, pela parceria,
e a Joaquim Bispo, o ver-
dadeiro Ursinho Joca).

Volmar Camargo Junior

Ursinho Joca
e os Pardais
36 SAMIZDAT setembro de 2009
Era um tempo difícil limpos e penteados para, como os passarinhos, que
para os habitantes da flo- só então, abocanhá-los. E finalmente ficaram quietos.
resta. Os Pardais enfiaram ainda, se chegava o inverno, Assim que percebeu que
na cabeça que eram os me- o Urso Joca tinha de dormir estavam prestando atenção,
lhores cantores do mundo, os exatos noventa dias, nem o Urso parou de cantar e
e, querendo convencer mais um dia a mais ou a menos. entregou a cada um deles
alguém além deles próprios, Foi justamente num in- um caderno de partituras.
resolveram começar a can- verno desses que os Pardais Como aprendeu bem o par-
tar nas portas das tocas dos empoleiraram-se à entrada dalês, ensinou aos Pardais
outros bichos. Alguns nem da caverna do Ursinho Joca, tintin-por-tintin a notação
prestavam atenção, outros quando ainda lhe restavam musical, todas as escalas e
se chateavam um pouco, vários dias até a primavera. os acordes maiores, meno-
outros ainda até achavam Obviamente, o metódico res, em sétima dominante
bonito aquela cantoria – Urso saiu de lá muito, mui- e em sétima diminuta.
sobretudo os gatos-do-mato, to contrariado. Sem perder Arriscou-se até a organizar
que tinham uma simpatia, a compostura, porque era com os pardais um coral de
digamos, ancestral pelos um ursinho muito polido, três vozes. Assim, Joca pode
passarinhos. Os Pardais, parou diante dos Pardais, voltar para sua caminha, e
coitados, até que tinham ta- endireitando os óculos na dormir os tantos dias que
lento. Mas todos cantavam ponta do focinho redondo ainda faltavam à hiberna-
cada um em seu tom, com e preto. Em um instante, ção daquele ano.
seu timbre particular, e al- arquitetou um plano para Joca não ficou menos
guns, tentando atingir notas voltar a ter paz. irritadiço com as imperfei-
mais altas que os outros, ções alheias, nem com as
esqueciam completamente a Como não sabia falar
pardalês, nem se deu ao suas. Mas, quando a pri-
noção de harmonia. Po- mavera chegou e ele saiu
rém, um dos moradores da trabalho de falar com os
cantadores. Foi direto até o para dar o primeiro passeio
floresta ficou extremamente depois dum longo sono, se
irritado com a nova mania oco de árvore onde morava
a Professora Coruja, para bem que interrompido no
dos Pardais: o Ursinho Joca. meio de um sonho, sentiu-
tomar umas aulas do dito
Dentro de sua toca, o idioma. Depois de aprender se muito bem quando ouviu
Ursinho Joca não fazia o suficiente para se co- os Pardais se arriscando a
outra coisa senão dedicar- municar, era um cursinho compor umas músicas eles
se à perfeição, em tudo o instrumental de sessenta mesmos a partir das pre-
que fizesse. Se colhia frutas, horas, o Urso Joca foi tomar ciosas dicas que ele trouxe
todas eram idênticas, ou no umas lições, imaginem só, do Maestro Cigarra. A vida
http://www.flickr.com/photos/rick_leche/571461525/sizes/l/

mínimo, muito parecidas. de canto e teoria musical dos habitantes da floresta


Se roubava mel, tinha o com o Maestro Cigarra. não ficou menos difícil, mas
cuidado de escolher a col- Como o assunto era demais certamente ficou bem mais
méia que dava o mel mais interessante, deixou o curso suportável: os Pardais agora,
transparente e sem aqueles trancado para voltar assim queriam mostrar a todos
pedacinhos de abelha. Se que resolvesse um assunto que, além de serem os me-
caçava animaizinhos as- com uns certos passarinhos. lhores do mundo, também
sustados, e esses tinham tinham muita noção de
motivos de sobra para Retornou à sua toca. Para teoria. E a música deles até
morrerem de medo, Joca os chamar a atenção dos Par- que ficou bem melhor.
preparava com muito zelo, dais cantadores, Joca pôs-se
deixava-os impecavelmente a cantarolar e a assoviar,

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Contos

Volmar Camargo Junior

A última fada
38 SAMIZDAT setembro de 2009
dedicado ao Henry, à Denise e por muitos anos, mas desde
especialmente que abandonou sua terra
natal, fugindo como uma
à Bia, a última fada criminosa pelas formidáveis
muralhas mágicas da Cidade
A fuga das fadas da Cida- Argêntea, suas premonições
de Argêntea deixou a popula- não eram mais as mesmas.
ção em pânico. Sabia-se que O sol já se pusera, mas
tempos difíceis viriam; era um fiapo de luz baça ainda
inevitável. Nenhum dos cris- entrava pela ampla porta
tais mágicos restou na Torre de pedra. Os braços nus
do Tempo. As tempestades, a arrepiaram-se ao toque da
fome, as feras, a discórdia e a brisa. Sabia que permanece-
morte, coisas desconhecidas ra naquele lugar por tempo
do Povo de Prata, atingiriam demais. A relva que cobria
aquele fabuloso país-cidade. como um manto as costas
Sem as fadas, que eram as da colina baixa onde ficava
únicas capazes de ouvir e o edifício decrépito ainda
interpretar os cristais, mesmo estava molhada – e caminhar
os habilidosos Senhores do no barro é como traçar uma
Tempo não passavam de fa- linha entre o perseguido e o
zedores de truques. A última perseguidor. Uma última vez,
esperança dos poderosos era antes que a claridade acabas-
em uma criança-fada cha- se por completo, desenrolou
mada Anaxya. Mas um dia, o pequeno embrulho que
como seria de imaginar se os trazia oculto na faixa em sua
Senhores da Torre do Tempo cintura. Assim que Anaxya
fossem dados à imaginação, descobriu a minúscula esfera
sua última esperança fugiu. de cristal, ouviu o canto que
Se ela não fosse encontra- lhe era tão familiar, audível
da, a Cidade Argêntea pas- somente aos de sua raça.
saria a ser um lugar como A memória de sua infân-
todos os outros. cia, da infância de seu espí-
*** rito, de todas as suas vidas e
das vidas de todas as criatu-
Anaxya acordou-se de um
ras estavam naquela canção.
sono estranho, e percebeu
Admirou-a, e desejou ficar
que anoitecia. As ruínas onde
presa naquele instante para
se refugiara foram uma pro-
sempre, deleitar-se com a
teção segura para a tempes-
aurora do mundo e a dança
tade daqueles dias, mas não
dos sons do Universo em sua
seria em hipótese alguma
cabeça. Mas a jovem sabia
empecilho para o faro de
que esse era um dos muitos
seus perseguidores. Sua intui-
prodígios da pedra, que não
ção fora uma guia confiável
Foto: Henry Alfred Bugalho

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era boa nem má, mas era pe- ruínas. Era um lugar agou- que eles chamam aniversário.
rigosa. Teve de impor a sua rento, proibido às pessoas Eles dizem que até eu tenho
vontade à da jóia para não comuns pelos Senhores do um, mas eu nunca entendi
ser fascinada. O que preci- Tempo, mas proibido sobre- isso direito. Eu, ele e a chefa
sava naquele momento era a tudo às fadas. Era uma sede vamos tirar umas fotos. Quer
visão do caminho que deve- dos cultos antigos, quando o dizer... Eles vão tirar fotos, e
ria seguir, e só conseguiria Tempo não existia e as fadas eu vou junto. Querem vir?
tal visão se dominasse a jóia. eram as soberanas. Mesmo — Não, não. Gracias. A
E isso ela sabia fazer com amedrontados, os dois caça- gente vai ficar por aqui
alguma proficiência. dores seguiram colina aci- mesmo. Daqui a pouco vai
O que Anaxya não sabia ma e viram o grande domo, passar o carro do correio, e
era a importância do lugar chamuscado como que por a gente quer desempatar isso
onde estava. um incêndio arrasador. Bem hoje.
no centro, encontraram os
Assim que proferiu as — Ok. Até.
poucos pertences de Anaxya,
palavras secretas que abri- — Tchau, Bia. Adorei a
carbonizados. E, junto deles,
riam os olhos de sua mente, coleira nova.
as duas metades de um pe-
e isso dependia mais dela
queno globo de cristal. Depois que o trio com-
própria que do cristal má-
*** posto por Bia e o casal de
gico, Anaxya percebeu uma
humanos que a acompanha-
ligeira modificação no ar, nas — Essa é uma história
va se afastou, Tom e Rocky
paredes, no teto, em um cír- muito bonita, Tom.
voltaram a confabular.
culo do qual ela era o centro. — Gostou? E você não vai
Era como se estivesse mer- — Será que ela esqueceu
me perguntar o que aconte-
gulhada em um fluido. Podia tudo mesmo?
ceu com a fadinha fujona?
se mover, mas não era como — Olha. Não sei. Mas
— Hmmmmm... deixa eu
antes. Sentiu-se lenta como enquanto isso, a gente fica de
adivinhar: o caminho que
num sonho, irresistivelmente olho nela.
ela devia seguir não era no
letárgica, e sustentar-se em
Mundo Mágico, mas na Ter- — Eu, por mim, preferia
pé ficou impossível. Sentiu-se
ra. Então, seu espírito de fada que ela não lembrasse de
caindo, mas era como se flu-
caiu na Terra, e ela renasceu nada, nunca mais.
tuasse, ficando mais e mais
em uma linda cachorrinha — Eu também. Até tenho
na horizontal, e os olhos
que mora em South Harlem. saudades de casa. Mas... pô,
fecharam muito devagar. A
Pelo latão do McDonnald’s! eu adoro Nova Iorque.
esfera de cristal escapou-lhe
Você já contou essa história
pelo vão dos dedos e caiu no — Olha! É o carteiro!
um zilhão de vezes!
chão como uma gota na su-
— Pega! Pega!
perfície intacta de uma bacia — Você fala como se não
cheia d’água. Com a queda, gostasse de ouvir...
tudo dentro das ruínas se — Ei! Quieto! Ela tá vindo
consumiu num clarão. aí! – cochicha Rocky, disfar-
Os perseguidores da çando-se todo. – Oi, Bia! Vai
criança-fada encontraram passear?
com alguma facilidade a — Oi, pulguentos! O chefe
trilha deixada por ela até as tá de folga hoje, uma coisa

40 SAMIZDAT setembro de 2009


O lugar onde
a boa Literatura
é fabricada
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ficina
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Contos

O Pergaminho Esquecido
Henry Alfred Bugalho

Para Denis da Cruz

42 SAMIZDAT setembro de 2009


Kzar parou diante da Esta era a pergunta que conforto. No entanto, todas
bifurcação na trilha da ele se fazia desde o pri- as noites, após seus filhos
montanha e refletiu. meiro dia em que partiu terem ido dormir, após ter
Por doze meses, ele per- em viagem. Não sabia qual amado sua companhei-
correu o mundo em busca era o conteúdo do perga- ra, Kzar subia ao sótão e
do pergaminho esquecido: minho, mas os boatos di- narrava suas histórias em
havia enfrentado bandidos, ziam que quem o possuís- pergaminhos que seriam
gigantes, dragões, feiticei- se dominaria céus e terra, encerrados num baú.
ras e necromantes. Or- seria louvado pelas nações, Numa destas histórias,
ganizando as peças deste sua fama seria eterna. ele narrou a decisão dian-
quebra-cabeça sem fim, — Vale a pena? — Kzar te da bifurcação na mon-
tentando encontrar a pista repetiu, e sua voz retornou tanha, mas, apenas desta
definitiva, que lhe indicas- em ecos pela imensidão. vez, ele optou pela trilha
se o paradeiro da relíquia. Veio-lhe à mente o rosto do topo e dos perigos que
O último adversário da esposa e dos filhos: guardavam o pergaminho
— um elfo negro — só Lívia faria aniversário em esquecido, dos monstros
revelou o que sabia após poucas semanas e Kalel já que enfrentou lá em cima
tortura. Kzar, sempre um deveria estar aprendendo e da grande glória obtida.
nobre combatente, não o manejo do arco com O que Kzar não poderia
se reconhecia nos méto- o avô. Recordou-se dos esperar é que, um dia, du-
dos que tinha de utilizar. anos que se refugiou nos rante uma faxina, sua es-
Para alcançar seu objetivo, pastoreio, para escapar de posa encontraria o manus-
tinha de jogar o jogo dos seu destino de guerreiro. crito e, impressionada com
inimigos. Mas não se pode fugir de a história, a mostraria ao
sua natureza, ele concluiu, sábio da cidade, que leva-
— No cimo da monta- e viu mais sangue nestes
nha... — o elfo murmu- ria ao Duque, que, por sua
últimos meses do que em vez, ordenaria a impressão
rou, enquanto sua vida toda sua vida pretérita.
se esvaía junto ao sangue e encadernação daquela
Mesmo que eu jamais ob- história em códices.
que jorrava dos membros tenha o pergaminho, meus
decepados — É lá que está feitos serão cantados pelos Kzar jamais havia visto
o que busca. vates. Derrotei os mais te- ou conquistado o perga-
Mas agora Kzar estava midos oponentes, pisei nos minho esquecido, mas a
diante dum impasse — a territórios mais longín- história que ele escreveu
bifurcação na trilha da quos, vi coisas que outros conquistou os ouvidos e
montanha. Um dos ca- olhos não sobreviveriam corações de todos os po-
http://farm1.static.flickr.com/26/58422505_ae7945b41d_o.jpg

minhos levava para cima, para ver — Basta! — Kzar vos e, hoje, ela é até mais
para o cume, para onde ja- se decidiu — Voltarei para conhecida do que a lenda
zia o pergaminho, o outro os meus. do pergaminho: as aventu-
levava para o vale, para a ras de Kzar são contadas
O herói desceu a mon- nas praças públicas, para
cidadela, para onde mora- tanha e chegou à cidadela.
vam sua família e amigos. crianças antes de elas irem
Foi saudado com festivi- dormir, nos teatros e nos
— Doze meses! — Kzar dades nunca vista antes salões da corte.
arfava — Doze meses longe naquela região.
dos que amo! Vale a pena A imaginação venceu
Kzar retornou à vida o pior dos inimigos — a
tanto esforço por causa pacata, dos dias sem sur-
dum mero rolo de papel? realidade.
presa, mas de afeto e

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Contos

Do Reino da Carochinha
Simone Santana

44 SAMIZDAT setembro de 2009


Havia uma menina que catava afli- que fazia estrelas, jornais em que colhia
ções em jornais e esperanças em pape- angústias. O senhor Sonho, de bom ou
lões. Nestes, ela reciclava estrelas que mal, foi fenecendo. Cabelinhos brancos,
lhes pousavam escondidas durante a já nem suspiro à noite. Soninho pesado
noite, e enfeitavam as paredes de zin- de dar dó. Boquinha aberta. A menina
co, seu dossel de caixote, sua cama de dos olhos verdes, que tudo via, se enrai-
plástico. Havia essa menina e havia veceu do Sonho, e o acordou com um
nela, menina, muitos sonhos, catados safanão. Fez de novo sonhar a menina,
aqui e acolá, que aprendera em frente mesmo que ela já não fizesse questão.
à TV que via na loja de eletrodomés- Sonhou então o senhor Sonho no cere-
ticos, nos livros velhos que encontrava, brinho dela e ela cogitou na idéia de
nas luzes vivas que a fitavam. De pés uma casa grande, espaçosa, onde pudes-
descalços menina. Sem ter que ter, sem se gozar seu vestidinho, seu sapatinho.
ter que vestir e comer. Sonhava com Bateu na porta uma mulher cheirosa,
sapatinhos, um vestidinho, com uma em um dia de chuva, e a convidou con-
rendinha só, um bordadinho, o teci- sigo levando. Em troca a menina teria
do podendo ser de chita. Essa menina que ser muito carinhosa. Tanto carinho
sonhava. O Sonho se compadeceu dela dava e recebia que a menina já não se
e sonhou dia e noite sem parar até vi- dava conta de que crescia, e de que já
rar realidade. Desceu um homenzinho não era menina. Era só flor murchan-
muitas léguas e subiu outras tantas até do dia a dia sufocada de tanto cheiro
o reino da Carrocinha onde a menina estranho, apertos de noite e de dia. A
catava aflições em jornais e esperanças menina dos olhos verdes se enraiveceu
em papelões. Comprou seus pés descal- novamente, resgatou o sonho que fugia.
ços por duas centenas de notas reais lá A menina moça florinha desceu léguas,
do reino da Carochinha, e, puxando-a subiu algumas, e chegou sozinha ao
pela mãozinha, subiu léguas, desceu reino da Carrocinha, onde voltou a co-
http://www.flickr.com/photos/cuppini/2291627023/sizes/o/

algumas, e chegou até onde os pés se lher angústias em jornais e esperanças


confortam. Fez-lhe festa, na menina. em papelões, dia, noite, noite, dia.
O homem grande, a mulher grande, o
menino, outra menina. Que tinha que
lavar, passar, cozinhar, sem provar. Em
troca um sapatinho, um vestidinho com
um bordadinho, sendo o tecido de chi-
ta. A menina já não catava papelões em

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Contos

http://www.flickr.com/photos/blackbutterfly/3347334602/sizes/l/
Guilherme Augusto Rodrigues

Arrependimentos
Foram certeiros, assim raiva, exaurida, já se en- casa se tornarem insu-
tudo retomou a paz e contrava na chácara com portáveis.
alegria de outras épocas. os dois filhos, um casal.
Bateu a porta e saiu... Resolveu subir ao
O marido sozinho em sótão, lugar em que guar-
Ele estava arrasado, casa pensativo. Refletiu daram durantes anos as
havia acabado de brigar sobre suas atitudes, como lembranças, objetos de
com a mulher. O casa- tem agido. Não tem sido valor pessoal de todos e
mento não ia bem. Per- bom nem para a mulher, outras velharias. O apo-
deu a beleza, a alegria e a nem para os filhos e nem sento estava empoeira-
vida. E vieram sucessivas para si. Durante esses do, cheirando a mofo e
brigas, sem explicações, últimos anos acumu- muito bagunçado. Numa
sem soluções. lou coisas desagradáveis rude mesinha de madeira
e que em outra época pegou um porta-retrato,
Devia ser o começo do condenava. Fez a vida da tirou a sujeira e desa-
fim. A mulher furiosa de família e o ambiente em cobertou uma foto de

46 SAMIZDAT setembro de 2009


quando eles ainda namo- deixou de ser aquele me- go estável, um bom carro.
ravam. Esqueceu-se de nino tão angelical e cheio Foram conquistando tudo
como o sorriso e olhos de vida. Outrora poderia com muito esforço, mas,
dela eram lindos e que se ver beleza nas menores o que significa? Algum
mantêm até hoje. Ainda coisas. O mundo era valor? Quantas vezes
pode lembrar do dia em sempre novo, o seu quin- teve de se segurar. Não
que os viu pela primei- tal e vivia brincando por era mesmo o que tinha
ra vez como se fossem todas as partes. Adorava sonhado. E um enorme
ontem; foi na fila do o bosque a alguns minu- vazio tomou conta de si.
cinema, encantado com tos da sua casa de infân-
a beleza e o jeito dela, cia e ali se perdia na sua Estava amargamente
apostou com os amigos imaginação e sonhos. arrependida. Não haverá
que a beijaria. Costuma- mais tristezas. Deixou os
va dizer que os olhos e o Num armário encon- filhos e voltou para casa
sorriso foram a fagulha trou, esquecido, o álbum para encontrar seu mari-
que acendeu esta grande de casamento. Como do.
chama que agora luta aquele dia foi feliz para
ele. Os dois estavam sor- Ele já estava pronto
para se manter. para ir para a chácara e
ridentes e cheios de vida.
Perto da janela, em Cida mantinha a mesma recomeçar. Já fazia planos
uma estante, encontrou beleza de quando casou, para uma viagem, uma
o Juvenal, um ursinho de porém, ele deixou de férias em família. Dispos-
pelúcia, que há algumas perceber. to a mudar.
semanas costumava ficar -Que bom que volta-
no quarto, na penteadeira. Continuou a vasculhar
o cômodo. Cada lem- ram! Ia atrás de vocês.
Foi o primeiro presente Desculpe, querida, estou
que deu a ela. Mudado brança, uma agulhada no
coração. Pensou que não muito arrependido -disse
de lugar há pouco tempo com lágrimas no rosto,
e já se esquecera. Tam- valia nada. Traiu a famí-
lia e enganou a si. O que visivelmente abatido.
bém nem lembrava que
foi o primeiro presente. estava fazendo? -Eu também estou!
Cida mantinha um cari- Cida e as crianças
nho especial com ele que Deu dois tiros de es-
estavam na chácara. Os pingarda no peito dele.
hoje está sujo. pequeninos, que antes Agora sim abatido. Ela
Abriu algumas gave- não escondiam o desa- não podia dizer que
tas da estante, encontrou pontamento, já descon- nunca o amou, mas esta-
alguns brinquedos da sua traídos brincavam com va arrependida. Cansada
infância: soldadinhos de os animais. Cida veio dessa vida.
chumbo, índios, caubóis, pensando pelo caminho
carrinhos e mais uma na sua adolescência, o Sorria.
porção. Achou sua cole- primeiro e único namo-
rado, momentos felizes, Dois tiros certeiros, as-
ção de selos e de moedas sim tudo retomou a paz e
que começou a colecio- brigas e tristezas. Logo, o
casamento. alegria de outras épocas.
ná-los desde pequeno e Bateu a porta e saiu...
agora estão bagunçadas, Olhou ainda pensativa
sem o menor cuidado. para os filhos brincando,
Uma lágrima escorreu a chácara, o jardim, o po-
de um olho ao ver que mar, a casa, tinha empre-

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Contos

Esmeralda, Jade e Rubi


José Espírito Santo

48 SAMIZDAT setembro de 2009


Em tempos que já lá “ão, ão”, o gato corria para enchia de alegria toda a
vão, num país que fica esconder-se e o papagaio casa. Rubi, a mais nova
muito, muito longe, vivia gritava alto e bom som e preferida do pai, tinha
o homem que sabia qua- “Ó da casa, ó da casa”. cabelo vermelho e olhos
se tudo. Como ele sabia pequenos azuis claros.
Nesses tempos que
muitas coisas, as pessoas
já lá vão e país que fica O tempo passou e as
faziam-lhe imensas per-
muito, muito longe vivia princesas mais velhas
guntas. E ele respondia
também um Rei forte casaram – primeiro Es-
sempre com as respos-
e poderoso. Ele habita- meralda, depois Jade. Só
tas certas. As pessoas
va um palácio belo e faltava a mais nova. Por
ficavam muito admira-
grande no cimo de uma fim, a vez dela iria chegar
das com tal sabedoria -
alta montanha. E era tão e marcou-se o baile para
chamavam-lhe o Senhor
grande, mas tão grande o o primeiro dia de Verão.
SABE TUDO.
Palácio, que tinha (ima- Viriam pretendentes dos
Sabia quantos são dois ginem) dez mil e uma mais variados pontos do
mais dois e quarenta salas. mundo. Todos estavam
mais sessenta e até mil entusiasmados ocupando-
Existiam salas para as
milhões mais mil mi- se com os preparativos.
várias estações, e a da
lhões. Sabia os nomes de
Primavera, bem colorida Era noite e chovia
todos os rios e aves e pei-
e alegre, destacava-se pela muito lá fora. Ao longe
xes e animais. Conhecia
sua beleza. Existiam as ouviam-se os sons dos
todas as terras, todos os
salas dos sentimentos e a trovões e podiam ver-se
príncipes e reis e rainhas
da Amizade era de todas os relâmpagos. De repen-
e princesas.
a mais bonita. Existiam te, bateram à porta: Toc,
Ele vivia numa peque- também salas para a toc, toc. Era uma velhinha
na casa feita de pedra maior parte dos animais vestida com um manto
que ficava no cimo do e plantas conhecidos. cinzento. E estava molha-
monte e tinha para com- da. Debaixo do capuz, os
Apesar de serem mui-
panhia um gato branco olhos eram negros como
tas as riquezas e mara-
de longos bigodes, um duas grandes azeitonas. A
vilhas, a maior alegria
cão pequeno de pelo cur- pele era enrugada. Pediu
do velho Rei eram as
to, castanho e um papa- que lhe dessem uma sopa
http://www.flickr.com/photos/gagilas/1669499737/sizes/l/

suas três filhas, às quais


gaio amarelo. Era peque- e um pouco de pão e a
tinham sido dados no-
nino, com cara redonda, abrigassem ali até ser de
mes de pedras preciosas.
barba comprida e um manhã.
Esmeralda, a mais velha
grande nariz. Falava baixo
possuía olhos verdes e O Rei, que não esta-
e estava sempre sorriden-
longos cabelos negros e va muito bem disposto
te, parecia muito feliz.
era como o silêncio da nesse dia porque a sua
Quando as pessoas noite e a elegância da equipa de futebol tinha
chegavam para fazer per- garça. Jade, a do meio, perdido, recusou a ajuda.
guntas o cão dava saltos, pequenina, de cara re- Ora, acontece que a velha
erguia as orelhas e dizia donda e olhos brilhantes, era nem mais nem me-

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nos que uma bruxa má e a bruxa e fez saber que a rir, acompanhado do
poderosa. E logo ali fez o estava ali para as pergun- pássaro, do cão e do gato,
seu feitiço: tas. Quando o rei chegou perguntou ao conselheiro
e não conseguiu respon- se tinha a certeza, se era
“Como não quiseste
der, ela não quis saber mesmo aquele o sábio.
ajudar-me, vou tirar-te
dos choros e pedidos.
aquilo que mais gos- Mas acalmou-se quan-
Disse: “Para o ano que
tas. Mas irei dar-te uma do soube do plano que
vem estarei outra vez. Por
oportunidade: Todos os iriam seguir. Passaram-se
isso, prepara-te”
anos, no primeiro dia vi- os dias e o Rei já não
rei aqui à tua porta fazer O Rei, não sabendo estava tão triste pois
três perguntas. Se conse- bem o que fazer, man- acreditava que a ideia iria
guires responder certo a dou chamar todos os funcionar. Finalmente,
todas elas, então devolve- seus conselheiros. Mas as chegou a altura, a noite
rei a tua filha querida.” ideias que eles apresen- das perguntas e, quando
tavam eram más. Deses- a velha tocou, o Sabichão,
E, dizendo isto, largou
perado, mandou chamar vestido com vestes de
uma risada e desapare-
o Bobo da Corte. Como criado foi abrir a porta.
ceu. O Rei mandou cha-
toda a gente achava que
mar Rubi mas, por mais “Onde está o teu se-
o bobo era muito burro,
que procurassem em nhor?” disse a bruxa
ele era o único que ainda
todas as dez mil e uma
não tinha sido consulta- “O meu senhor está na
salas, não conseguiram
do. cama, doente. Mas man-
encontrar a princesa.
dou que viesse eu respon-
“Senhor, uma prima
Ficou inconsolável e der às perguntas. Se não
da minha mulher ouviu
mandou arautos a to- te importares…” disse
falar de um homenzinho
dos os pontos do reino. o Sabichão
muito sábio. Lá na ter-
Quem soubesse onde se
ra todos lhe chamam o A bruxa desconfiou
encontrava a princesa
Sabichão. Talvez ele possa um pouco mas olhou
receberia dez mil moedas
ajudar” para o aspecto do ho-
de ouro. Ao fim de dois
mem. Com o cão e o
meses, todos voltaram O Rei, que já tinha
gato e o papagaio empo-
sem novidades. O baile tentado tudo o que podia,
leirado no ombro. Parecia
foi cancelado e o velho decidiu que não custava
um boneco. De certeza
rei passou a viver quase nada tentar mais aquela
que não ia conseguir
não saindo da sala da solução. Enviou os emis-
responder. Então mostrou
Tristeza. sários para trazer o sá-
um pequeno saco e fez a
bio. Dois dias depois, ele
O tempo passou até primeira pergunta
chegou.
que chegou a primeira
“Estás a ver este saco?
noite de inverno. O som Esperava um senhor de
Quero que me digas
forte da chuva foi inter- lunetas e ar importan-
quantos grãos de areia
rompido pelo bater no te. Por isso, quando viu
estão dentro dele”
portão: Toc, toc, toc. Era o anão de cara rosada

50 SAMIZDAT setembro de 2009


O Sabichão olhou para próxima questão. Então
ela e disse: “Está bem. disse
Mas para isso vou ter
“Se me responderes
de lhe pegar”. Tirou o
certo a esta última per-
saco das mãos da velha
gunta, liberto a Princesa.
e abriu-o. Então, encheu
E a pergunta é… O que
a mão uma, duas, três
é que eu estou a pensar?”
vezes, atirando a areia
para o chão. Finalmente, Aí o sabichão deu uma
virou o saco ao contrário, gargalhada e disse
despejando toda a areia
restante. Respondeu “Ora. Essa é muito
fácil. Estás a pensar que
“O teu saco tinha eu sou um criado do Rei.
exactamente quatro mãos Mas não sou. Eu sou o
cheias de grãos de areia”. sabichão do reino”
A bruxa fez uma ca- Nesse mesmo momen-
reta. Estava contrariada. to, a bruxa desapareceu
Era a primeira vez que como que por artes má-
alguém conseguia res- gicas e apareceu no seu
ponder aquela pergunta. lugar a princesa. Estava
Mas à próxima questão mais bela que nunca e
ele não iria conseguir muito feliz porque tinha
responder. Perguntou sido salva ainda a tempo
de ver a novela das sete.
“O que é que existe
quando é escondido e O sabichão foi premia-
desaparece quando o do com um baú cheio de
mostram?” moedas de ouro e foi no-
meado “Conselheiro Mor”
O sabichão ergueu o
do Reino, o que significa
nariz e fez um ar pensa-
“conselheiro mais impor-
tivo. Pensou, pensou até
tante do reino”.
que disse
O baile realizou-se
“Já sei. É fácil. É o
exactamente no primeiro
segredo. Quando mos-
dia do verão e a princesa
tramos um segredo ele
conheceu o príncipe dos
deixa de ser segredo”
seus sonhos. Seis meses
Desta vez a bruxa fez depois, casaram e foram
uma cara ainda mais feia. de lua-de-mel para as
Estava mesmo arreliada. Caraíbas.
Mas sabia que era quase
impossível responder à

51
Contos

As Amaranthas
Sheyla Smanioto Macedo

http://www.flickr.com/photos/xlight/828445191/sizes/o/

52 SAMIZDAT setembro de 2009


Quando ainda não sos os limites entre-coi- e escolhidos pelo próprio
nos preocupávamos em sas, mergulham o mundo Conselho Supremo, au-
conter o tempo em am- numa correnteza sem- toridade maior entre os
pulhetas, caos e ordem se tempo em que as coisas elfos; quatro, um da cada
imbricavam na tessitura se confundem, indefiní- Raça Maior élfica, para
do mundo que, por isso, veis, para com sua força guardar, controlar e utili-
ainda cabia na Poética- defini-las. zar, caso fosse preciso, as
palavra do Primeiro Amaranthas.
Criador. Hoje, porém, as Dizem, em palavras
palavras sussurram entre que só o vento pode levar, Eis que fora criada ‘A
si, segredando, a falibili- que são quatro as ampu- Ordem das Amaranthas’:
dade da pretensa Ordem lhetas que, com sua força, de 49 em 49 anos, os re-
imposta pelos aparatos são capazes de mover o presentantes sacerdotais
tecnocratas dos Elfos Me- tempo: chamamo-las de de cada uma das quatro
nores e eu, que as ouço Amaranthas. Quatro para grandes linhagens élficas
dizer, devo contar a você. um equilíbrio perfeito; se encontrariam para
quatro para que se mude atualizar o tempo divino
Elfos Menores têm o tempo sem deixar me- no mundo pela apresen-
um vazio em forma de mória... tação dos escolhidos para
sensatez: toda vez que os os Endeusados e para os
dentes de um Vampiro Na ausência de uma demais sacerdotes.
cravam em um pescoço das ampulhetas, falhas
élfico, para levá-lo da se espalham pelo plano, Deixaríamos os anos
vida à não-vida, nosso e ele pode ser percebido, passarem sem que os
mundo se confunde com tal qual o vidro-trincado demais habitantes de Nea
o dos Vampiros – per- que se deixa perceber. conhecessem a existência
demos um Nobre para Três ampulhetas dese- dessas ampulhetas, por-
ganhar um nobre-amaldi- quilibram um círculo que poderiam ambicioná-
çoado. cuidadosamente plane- las, ou enlouquecer sobre
jado e arquitetado. Duas a idéia incontestável de
Criaturas feitas do caos ampulhetas nada fazem que não passavam de
na união de extremos sem que os olhos Maio- fagulhas de caos ordena-
dicotômicos, valeram-se res os vejam. E uma das ao sabor de quem as
dessa intimidade para ampulheta nada mais é pode dominar.
controlá-lo pela ordena- do que uma ampulheta.
ção em tempo-palavra: Quatro ampulhetas: uma Fechou-se, então, um
diz-se que, escondido para cada Raça Maior, contrato entre os céus
no espaço que há entre ou as quatro para um e os sábios Elfos, que se
as palavras e as coisas, único Elfo Menor. O que comprometeram a con-
construiu pequenas má- as Amaranthas mudam, trolar essa maldição.
quinas capazes de sonhar uma Amarantha retoma. Esconderíamos as quatro
uma ordem e impô-la ao Se são quatro, a ampu- ampulhetas, para que aos
mundo. lheta maior. Se forem Elfos Maiores coubesse
três, a ampulheta errante. usá-las; e torceríamos
São ampulhetas cujos Se forem duas, a errante para que as usassem com
grãos, que na inércia se maior. sabedoria, ou que, com
ordenam, retornam ao mais sabedoria ainda, não
caos e se reorganizam Resolvemos confiar as usassem. Mas não foi
conforme a dança de as Amaranthas a almas bem assim que as coisas
quem as sacode: suspen- boas de elfos preparados fluíram...

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Contos

Léo Borges

Um lugar para viver


O silêncio de uma noite e perspicaz não encontrava das colinas era um pouco

http://www.flickr.com/photos/brianscott/1465695576/sizes/o/
amena no Monte Kofa, sudo- defesa contra armas de fogo mais de pânico para suas
este do Arizona, Estados Uni- de cruéis caçadores e seus asas carregarem. Seu porte
dos, era novamente cortado cães farejadores. Os pares nobre e magnânimo cedia
por estampidos penetrantes. da linhagem accipitridae já lugar a um semblante de
Com as folhagens das árvo- haviam sido dizimados e de ave comum, e isso a irritou
res próximas sacudidas pelos sua espécie ela era uma das profundamente.
tiros, o terror mais uma vez únicas em Sonora.
entrava pelos ouvidos sensí- Lembrou-se do que certa
veis daquela criatura. Voou. Um voo longo e vez um camaleão, que fora
sem rumo. Não sabia para uma de suas refeições, lhe
Outrora caçadora de onde ir, apenas queria fugir, havia dito pouco antes de
subsistência, a onipotente encontrar um lugar que a virar almoço: “Você não pas-
aquila chrysaetos se via agora acolhesse. Sentia-se agora sa de um pombo rupestre!
encurralada por assassinos como uma de suas presas, Queria ver se manteria essa
frios, que a desejavam apenas perdizes ou pequenos lagar- pompa numa cidade como
como um portentoso troféu tos, que corriam assustados Nova York! Lá você morreria
empalhado, da mesma forma quando viam a sombra ágil de fome, pois na Big Apple
como já haviam feito com planando por perto. O mer- as aves comem pipoca dos
outros de sua família. Ainda gulho da ave de rapina era turistas e você não teria
que aquele fosse seu habitat, uma morte quase certa para uma única lagartixa para se
um lugar de paisagens belas, qualquer um desses seres. No servir!”. De certo foram as
não obstante considerado entanto, agora era ela quem últimas palavras do réptil
hostil pelos invasores, lhe es- experimentava a sensação audacioso, mas que feriram
capava motivos para perma- de fragilidade e medo. Cada fundo a ave de garbosa penu-
necer. Seu espírito guerreiro quilômetro que se afastava gem amarronzada.

54 SAMIZDAT setembro de 2009


“Ora! Comparar-me com parques, indústrias, shoppin- – Uma águia perdida no
um pombo! Uma ave repug- gs, fumaça e barulho. Tudo centro de Chicago! – comen-
nante, primo em sexto grau lhe parecia muito estranho, tou um surpreso pardal com
que vive à mendicância nas ainda mais quando viu mul- outro de maneira brincalho-
metrópoles!”. Aquela pito- tidões de humanos andando na.
resca conversa com o bicho de um lado para o outro,
gelado voltou com força em como formigas operárias. – Aqui não é Nova York?
sua mente. Se pássaros tão Enfurnados em veículos em – perguntou a ave, tentando
inferiores se adequaram a autovias ou entalados dentro manter o ar majestoso.
tal situação desfavorável, de trens e ônibus, eles fer- Eles riram da pergunta e,
por que ela não conseguiria vilhavam no solo; foi nessa antes de se debandarem em
passar por semelhante mime- hora que a ave agradeceu a clara fuga, escarneceram:
tismo? natureza por suas asas. “De-
vem estar felizes”, pensou a – Claro que não! E nem
Decidiu que iria voar águia, sem muito crer. “Mas, pense em ir para Nova York!
milhares de quilômetros em se vivem bem nesse caos, por Com esse senso direcional,
direção à costa do Atlântico que alguns se desgarram e se não morrer de fome por
e que se estabeleceria exa- vão nos matar lá nas monta- lá vai virar bibelô em zooló-
tamente na chamada Capi- nhas?”. Viu letreiros lumino- gico!
tal do Mundo. Não sabe se sos com as palavras coloridas
seria algo inédito em termos “burguer” e “grill” e estas Essa declaração só ser-
ecológicos, mas se os homens informações a fizeram juntar viu para deixar a águia real
invadiam seu território para as peças: “então, essas pessoas ainda mais decidida em sua
caçar indiscriminadamente, comem vacas e bois assados, jornada. Iria não apenas
por que ela não poderia fazer mas não águias”. migrar à Grande Maçã como
o inverso? O caminho era conquistaria seu espaço na
longo e extenuante, porém, O pensamento intrigou a metrópole. Talvez não fosse
a águia real estava disposta águia por duas razões: enten- uma entre tantos, conforme
a provar que poderia vencer deu que sua carne não era apregoava a cunhagem nas
o desafio e, para isso, teria tão especial como alimento moedas – e pluribus unum
de utilizar uma caracterís- e, assim sendo, as mortes –, onde sua imagem apare-
tica com a qual monitorava de seus familiares no Kofa cia vistosa como o grande
suas vítimas: a paciência. Em seriam mesmo para fins de símbolo yankee que era, mas
alguns trechos ponderou se diversão. “Um reles camaleão certamente já era vitoriosa
não seria melhor tentar viver tem carne mais nobre que a apenas por ambicionar algo
caçando pequenos mamíferos minha na escala de preda- tão desafiador. Com o tempo,
no Texas ou em Oklahoma, dores. Ele serve para minha acreditava que homenagens
mas ela estava obstinada subsistência e eu sirvo ape- seriam rendidas como fatos
pelos ares do extremo Leste, nas para embelezar ambien- que se sucedem e, então, sua
lugares que só conhecia pelas tes. Coisa mais fútil eu sou!”. pequena ação migratória
conversas das gaivotas anda- Antes que uma crise exis- teria efeitos fortíssimos em
rilhas. tencial se instalasse defini- outras áreas no país, quem
tivamente na cabeça da ave, sabe no mundo. A partir daí,
Frio e calor intensos não e ela acabasse por encontrar viveria bem e sem muitos
perturbaram a ave solitária um ponto em comum com esforços para alcançar outras
tanto quanto o que ela viu. os renegados pombos nova- de suas metas. Por enquan-
Seu aguçado mecanismo iorquinos, resolveu arrumar to, o que ela estava sentindo
visual passou a enxergar um canto para descansar, mesmo naquele instante era
fatos e objetos que antes ela achando que, pela enorme fome. Muita fome.
não percebia (ou que ela nem quantidade de arranha-céus,
sabia que existiam). Casas, já houvesse chegado ao seu ***
fazendas, estradas, prédios, destino.
Aquela pequena sacola

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estava mesmo difícil de abrir. torcendo o bico ao ouvir do Empire State, deslumbrou-
Já encontrara outras assim, nova comparação com pom- se com a Estátua da Liberda-
mas normalmente suas pre- bos. O insólito encontro aca- de, deu rasantes pela elegante
sas não demoravam muito bou marcando uma amizade Fifth Avenue, brincou com
para rasgar o lixo. Quando entre ambos. o touro de bronze na Wall
finalmente conseguiu, viu Street e se impressionou com
uma sombra agigantando- – Qual seu nome, pássaro? as luzes de Times Square.
se e do céu um pássaro se – Samiz. E o seu? Enquanto curtia os endereços
engalfinhou com ele na luta que Beethoven apresentava,
pela comida. – Não tenho. Mas, algu- Samiz percebeu, do alto, que
mas pessoas me chamam de a vida de seu amigo era feliz
– Ei, o que é isso?? – per- Beethoven. Enquanto alguns apenas em aparência. Num
guntou o vira-lata, ainda sem cachorros ficavam parados dos rasantes, viu quando
saber bem quem era seu em restaurantes finos, es- um menino, com uma saco-
rival. perando sobras da janta, eu la com comida, atirou um
preferia ficar na porta de objeto na direção do cão, que
O pássaro, faminto e sujo,
saída da Broadway! empinava o focinho, tentando
pulava e tentava bicar o que
captar algum aroma agradá-
encontrava dentro da sacola. – Hum... você é mesmo vel.
– Eu que pergunto. Que um cão sofisticado, hein? –
disse Samiz, lembrando dos Vendo aquilo, a águia, des-
comida é essa? – disse a ave
agradáveis sons agudos que o ceu como um raio e inferni-
referindo-se ao que encon-
vento fazia quando zunia pe- zou o garoto que, ao correr,
trara.
las fileiras de cactos no Kofa. abandonou a sacola no chão.
Quando viu se tratar de
– Apenas leio jornais, – Os pássaros estão me
uma águia real, o cão de rua
livros e revistas rasgados e atacando! – vociferou, desper-
ficou perplexo.
amassados que as pessoas tando olhares curiosos para
– Uma águia em plena jogam fora. Não sou nenhum a águia, que, então, pousou
Madison Square?! beagle, chow chow, poodle sobre a haste de uma bandei-
ou schnauzer, mas nem por ra americana, aprumando as
– Sim. Sou uma legítima isso fico fora do que aconte- penas.
aquila chrysaetos linnaeus e ce no mundo. Viver na rua
vim de longe conhecer, com tem algum charme – disse o Beethoven, apesar de não
pretensões de morar, em cachorro com uma melan- ter aprovado o ataque, apro-
Nova York – disse o pássaro colia disfarçada. – Venha, veitou para rasgar a embala-
procurando mostrar nobreza Samiz, serei seu guia aqui. gem largada. Para sua alegria,
no falar. Vou mostrar-lhe as melhores encontrou batatas-fritas em
partes de Nova York sem profusão, além de uma fina
– Já vi falcões no Central barra de chocolate.
Park, mas não uma águia gastar nada além de penas e
real. Seu porte é mesmo patas. Samiz quis crer que aquele
nobre, mas essa sua penugem Beethoven sabia que a ave garoto iria passar a respeitar
empoeirada e esse seu ataque real poderia visitar os pontos os animais depois de sua
esfomeado à minha sacola turísticos por vários ângulos firme atuação, que lembrava
lembrou-me mais um desses justamente por sua condição até alguns de seus pares no
pombos de marquise. alada, mas mesmo assim gos- célebre filme de Hitchcock.

– Cheguei há pouco tou da possibilidade de ser – Sabe, Samiz, o que eu


tempo e ainda não encontrei um anfitrião. Samiz admirava mais queria na minha vida
nada para comer. Desculpe- aquele mundo novo que se era encontrar um dono. Al-
me pela possível falta de descortinava em sua frente. guém que gostasse de mim,
educação – retrucou a ave, Conheceu Manhattan, voou como acontece com esses
e pousou no ponto mais alto

56 SAMIZDAT setembro de 2009


cachorros de raça. Eles saem, Zero”. pouco tempo. Ao invés de
passeiam, andam pelas ruas tentar responder, a ave pediu
com bonitas coleiras, voltam – Sei quem é essa crian- apenas que o cão lhe dissesse
para suas casas e não são ça – disse o cachorro. – Seus onde ficava esse monumento
apedrejados. avós vieram do Brasil, traba- conhecido como Esfera.
lharam no World Trade Cen-
– É, mas também não ter e sobreviveram ao aten- O cão apontou e Samiz
devem comer Hershey’s com tado quando o garoto ainda voou na frente:
avelã em seus lares... – brin- tinha dois anos. A família
cou a ave, tentando suavizar dele foi solidária todo o tem- – Agora sou eu que serei o
a prostração de Beethoven. po com as vítimas e, desde cicerone. Come with me!
então, ele aparece no Espaço Ao tempo em que corria,
– Nossa amizade não deve Zero. No local há uma es-
durar muito. Como não Beethoven se sentia cada
cultura provisória chamada vez mais feliz. Samiz era o
tenho um lugar para viver, Monumento da Paz, pertinen-
logo serei recolhido pelo primeiro ser a se preocupar
te aos acontecimentos com o com ele, a participar com ele
serviço sanitário da cidade WTC. Este garoto é incrível,
e você terá de ir morar na de alguma coisa, ainda que
pois produz belos versos e fosse um pequeno evento de
copa das árvores mais altas escreve ótimos e reflexivos
do Central Park, se quiser ga- um desconhecido garoto que
textos, além de conversar surpreendia as pessoas com
rantir uma vida por aqui. com as pessoas sobre seu sua arte.
A águia se entristeceu método criativo. Nenhuma
com os dizeres de seu amigo, editora ainda se interessou Ao chegarem perto da
pois sabia que aquilo sig- em publicar, pois acham que obra de Koenig, se surpreen-
nificava o que ela também é um material que não ven- deram com a canção que a
achava, mas tinha medo de de, que são apenas inócuas envolvia.
admitir. mensagens de perseverança.
Preferem algo que contenha – Que música é essa? –
Andavam já pensando no violência, como os livros perguntou a águia, também
fim da bonita amizade entre sobre os acontecimentos que estimulada pelo som pene-
uma águia real e um cão vitimaram as pessoas do trante e ao mesmo tempo
de rua, quando Beethoven onze de setembro. Mas, por suave.
chamou sua atenção para que isto te criou tanto inte-
– Não reconhece? É uma
uma pequena matéria no resse?
das sonatas do meu xará
The New York Times, ainda menos ilustre: Waldstein! –
fechado dentro de um da- – Está dito, nas letrinhas
menores sob a manchete, que exclamou Beethoven, ex-
queles newspaper dispensers plicando para Samiz que o
na calçada. ele está à procura de um cão
para ser seu companheiro! nome daquele menino era H.
– Olhe, Samiz! “Governo Datson, mas que praticamen-
do Arizona proíbe caça em – Um cão?! E você acha te todos só o chamavam de
Sonora”! mesmo que ele iria escolher Dat.
um vira-lata como eu? Claro
A ave pousou sobre a má- que não! E isso é tudo brin- O som guiou-os até o
quina e pôs-se a ler, interes- cadeira sua, águia piadista. menino. As pessoas que
sadíssima, a matéria que lhe Afinal, como você consegui- sabiam do evento ofereciam
era de total importância. Ao ria ler letras tão minúscu- akitas, collies, chiuauas, todos
final, ao invés de comentar las?? Ainda mais através do muito bonitos e bem nutri-
sobre ela com Beethoven, vidro! dos. E a todos ele acariciava
chamou seu amigo e indicou e brincava com sinceridade.
outra, ainda menor, logo ao Não daria para Samiz Mas, quando viu o vira-lata
lado: “Garoto prodígio pro- explicar o quão perfeito era Beethoven ao longe, mistu-
move hoje oficina no Ground seu mecanismo visual em tão rado às pernas dos curiosos,

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tentando ali permanecer sem cão com o acessório. Bee- ainda naquela noite, rumo ao
ser enxotado, não teve dúvi- thoven mesclava felicidade e seu habitat natural no oeste
das: era aquele cão que ele incredulidade, pois sempre do país.
queria ter! apreciou o menino e sua ofi-
cina mambembe, mas nunca Beethoven lembrou-se da
Pediu que todos abrissem imaginou que pudesse tê-lo história contada por Samiz
passagem para o cachorro como dono um dia. sobre escolhas e decisões.
que, em princípio, não en- “Um entre tantos”: o escolhi-
tendeu que era com ele. Mas, O garoto abriu passagem do entre vários fora ele. Mas,
quando viu que não havia entre as pessoas que ali esta- e o amigo de penas que o
mais ninguém atrás de si, vam sob aplausos destas para acompanhara em toda aquela
tomou um susto. Será mesmo o cão escolhido. Beethoven jornada? Onde estava? Pre-
que o menino queria tocá-lo? estava mesmo impressionado ocupou-se. Não o viu mais
Queria conhecê-lo? Queria se com os elogios que agora lhe desde que estivera em transe
tornar seu dono? eram dirigidos e se esqueceu com o ocorrido. Começou
momentaneamente de Samiz. a olhar para todos os lados,
Beethoven caminhou com A ave, pousada sobre o mo- para o topo dos edifícios,
receio, olhando as pessoas a numento, acompanhava com mas já era praticamente noite
sua volta, pessoas que antes satisfação o desenrolar do e, como não possuía a mes-
eram sérias e, agora, afaga- episódio. Seu amigo encon- ma incrível visão da águia, só
vam sua cabeça e mexiam trara um companheiro e ela o que enxergava era a esplen-
em seu focinho. Ao chegar considerou ser melhor não dorosa iluminação da Ro-
próximo, recebeu um re- romper aquele laço harmôni- ckefeller Park. Dat percebeu
pentino, agradável e hones- co entre ambos. o agito do amigo e parou o
to abraço do menino, que passeio para confortá-lo. A
fechou os olhos ao envolvê- Viu que seu jeito, outrora criança era detentora de uma
lo. Beethoven sentiu algo que prepotente, havia muda- sensibilidade nata na com-
nunca sentira antes, um cari- do com Beethoven e toda preensão de animais.
nho especial que lhe trouxe aquela saga. A humildade
profunda felicidade e, então, do cão havia lhe tocado. Os – Sei que está aflito um
retribuiu com uma lambida momentos alegres ao lado amigo seu. Mas acredite que
no rosto. de um cachorro vira-lata ele está bem, pois sabe que
lhe deram nova perspectiva você está feliz agora. Estare-
– Qual será o nome dele? e, agora, mesmo os basset mos em casa em breve e logo
– alguém perguntou. hounds farejadores do Kofa ele também vai estar.
– Ele possui nome desde não lhe pareciam ameaça-
dores. Aquela aventura havia Beethoven impressionou-
sempre: Beethoven. se com Dat. Viu nos olhos
sido mesmo muito boa,
talvez o “marco zero” de sua do garoto o mesmo brilho
O cão levou um susto:
vida, como o nome daquela flamejante que havia nos de
“como ele sabe meu nome?!”.
bela escultura sugeria. Gos- Samiz. O cãozinho estava
Mas, lembrou-se que aquele
tara enormemente de Nova não apenas intimamente feliz
era um menino especial e
York, mas era hora de voltar. como teve certeza de que
que provavelmente já havia
Lembrou-se da notícia sobre naquele entardecer ocorrera
depreendido, de alguma for-
Sonora, de que não haveria alguma simbiose entre Samiz
ma, que seu nome só poderia
mais caça na região, e re- e Dat. E que isso, de alguma
estar relacionado com o mes-
solveu que iria partir. Deu forma, foi provocado por sua
tre da música que ali servia
um último giro pela ilha de perseverança, e a do amigo
como fundo.
Manhattan, observando pela alado, em querer encontrar
Dat, que já havia inclusive última vez seu amigo canino um lugar para viver.
arrumado uma coleira para e, com a saudade já apertan-
o seu novo companheiro, do seu coraçãozinho, seguiu,
levantou-se e paramentou o

58 SAMIZDAT setembro de 2009


Contos

Mariana Valle

Casal moderno

Eles se viram pela comentários nos mesmos Quebrou o gelo na hora.


primeira vez no Orkut da posts, eram seguidores
Marcinha. Vasculharam dos mesmos blogs. Se en- Mas, no dia seguinte,
os álbuns um do outro. contraram até no Twitter. mais uma briga. Dessa
Ele ficou doido ao ver a Partilharam linkedins, vez, via torpedo. Foi fatal.
foto dela na piscina. Ela facebooks, fotologs, mys- Ela bloqueou o MSN dele
gamou no “quem sou eu” paces e afins. e excluiu o nome dele no
dele. Ele a adicionou e Orkut. Estava definitiva-
vice-versa. A primeira briga acon- mente acabada a relação
teceu no MSN. E a recon- dos dois. Uma pena. Ti-
Passaram a participar ciliação veio no Youtube. nha tudo para dar certo.
de algumas comunidades Ele publicou um lindo Se eles pelo menos tives-
em comum. Publicavam vídeo com fotos dela. sem se tocado...

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60
Contos

SAMIZDAT setembro de 2009


Remorso
Barbara Duffles
http://www.flickr.com/photos/reggiefun/2558629215/sizes/l/
Saiu da festa transtor- chorro e traiu a mulher,
Henry Alfred Bugalho
A
GUI
nado, álcool no sangue e no mesmo dia, na mesma
remorso no peito. Pegou
o carro feito doido que
noite. Estacionou o carro
no acostamento, pegou Nova York
para Mãos-de-VAca
nem viu. Aquela maldi- o animal no colo. Estava
ta, por que ela fez isso, inerte, não se mexia, ele
ele estava tão bem. Mas o havia matado, assim
O Guia do Viajante Inteligente
acabou deixando a festa como matou o respeito
alucinado, tão doído ele pela mulher, tudo por www.maosdevaca.com

estava que pegou a es- uma desfrutável que não


trada febril. O cachorro valia um centavo. Aquele
veio distraído, cachorro cachorro era ele mes-
bobo, de família. Freou mo, morto por um car-
com força, mas era tarde. ro desgovernado, morto
Sentiu o baque, o carro pelo inesperado, pela
passou em cima do bi- vagabunda insaciável.
chinho. Que merda, ele Resolveu enterrar com o
chorou. “Matei o cachor- cão aquela noite inútil, o
ro, sou um criminoso, sou sentimento doloroso foi
um assassino”. Tão trans- junto para a cova, feita
tornado ele estava quan- sob lágrimas no matagal
do saiu da festa, aquela ao lado de casa.
putinha tanto fez que o
levou para o banheiro. ****

Sorte que ele despertou


Textos publicados no
antes do fim, mas foi o
blog Não Clique
suficiente pra sentir cul-
pa, ele tinha tanto amor e
não era por aquela vaga-
bunda. Cheio de remor-
so, pegou o carro, e aí
veio o cachorro, por que
aquele bicho atravessou
a rua justo naquela hora?
Bandido, matou um ca-

www.revistasamizdat.com 61
Contos

Giselle Sato

Um conto de fadas
62 SAMIZDAT setembro de 2009
Amanda estava triste. Na tivo verdadeiro. reu para casa sem se des-
hora do recreio ia para o pedir da coleguinha. Entrou
balanço, longe das outras -Está bem querida. As apressada, beijou a mãe e
meninas. Não brincava de professoras estão observando subiu as escadas do segundo
pular corda ou amarelinha. com atenção, vamos redo- pavimento da casa.
Esqueceu as bonecas e a tro- brar as atenções e aguardar
ca de figurinhas. um pouco mais. O quarto da menina era
um sonho, bonecas lindas
Tudo começou duas se- A piscina na casa de enfeitavam a cama e várias
manas após o início do ano Amanda era o ponto de prateleiras. Muitos jogos e
letivo. Apesar dos esforços encontro das amiguinhas brinquedos. Amanda es-
dos professores, a pequena nos finais de semana. Todas piou pela fresta da janela da
aluna não contava o motivo adoravam as brincadeiras casinha de bonecas. Uma luz
da mudança de comporta- com Chocolate, o alegre piscou várias vezes e a me-
mento. Os pais de Aman- ‘’labrador’’, que amava água nina sorriu:-Oi Agnes, como
da estavam preocupados. e bagunça. Agora andavam você está?
Eram médicos e trabalham todas com saudades do cão-
no Hospital Municipal da zinho levado: A luz rosada brilhou su-
pequena cidade do interior, avemente na forma de uma
-Amanda, podemos visitar fadinha. Tão pequena que
cercada de montanhas e o Chocolate?
lagos. caberia na palma da mão da
-Vou sair com mamãe, menina.
Sempre revezavam os vamos ver uma tia doente.
turnos para que a menina Uma fadinha com asas
não ficasse sozinha na casa -Que tia? transparentes e longos cabe-
grande: los azuis caminhou pela sala
-Você não conhece . repleta de móveis em mi-
-Querido, o que esta niatura, sentou-se na mesa e
-Conheço toda sua famí-
menina tem? Está calada piscou para Amanda:
lia, sou sua melhor amiga,
demais
que tia é essa? -Olá amiguinha, como foi
-Pode ser ciúmes do bebê na escola?
-Esqueci o nome, que coi-
a caminho, já conversamos
sa, Julinha. - Tudo bem. Ainda não
sobre isto com ela mas
quem sabe está com receio acredito que você está aqui,
- O que está acontecendo?
parece uma história do livro
http://www.flickr.com/photos/bittersweet_memories/3570258102/sizes/l/

perder as atenções? Não somos mais amigas?


que a mamãe conta todas as
-Não acredito, ela esta- -Não é nada. O ônibus noites.
va tão contente e animada. chegou. Vamos embora?
Amanda escolheu a decora- - Estou aqui porque perdi
ção, as roupinhas da irmãzi- Amanda sentou no último meus poderes e não consigo
nha, fez questão de partici- banco do transporte. Antes voar. Ainda bem que caí na
par de cada detalhe. dividiam a carteira na sala casa de uma menina boazi-
de aula e voltavam juntas nha.
-Querida, ela só tem cinco para casa conversando lado
anos, é normal sentir um -Obrigada fadinha Agnes,
a lado.
pouco de ciúmes. mas precisamos descobrir
Eram vizinhas e estavam uma maneira de trazer seus
-Não é o caso querido, sempre juntas. Mal desceu poderes de volta.
precisamos descobrir o mo- do transporte, Amanda cor-
-É verdade, o tempo está

www.revistasamizdat.com 63
passando e ainda não encon- direções. Um sorriso sur- seus pais.
trei a solução. giu no rostinho da menina
adormecida. Acordou reno- - E se for verdade? Tenho
- Vou até a biblioteca do vada, cheia de idéias e muito medo.
meu pai, ele sempre diz que inspirada. Encontrou Agnes
tudo está nos livros. Volto -Medo? O amor é mais
sentada em uma caixa de forte que o medo Amanda,
logo, fique escondida. Cuida- lenços perfumados:- tive
do com Chocolate, ele come você tem muito amor, preci-
um sonho lindo, parecia de sa confiar no seu coração.
fadinhas verdade.
As estantes repletas de li- Amanda saiu do quarto
-Querida menina, sonhos correndo, acabou tropeçando
vros exalavam um cheirinho podem ser recadinhos espe-
gostoso. no tapete e sofrendo uma
ciais. O que sonhou? queda em frente ao quarto
O sofá confortável, pare- -Que estávamos juntos, dos pais. Os dois correram
des inteiras repletas de obras fadas e crianças. Havia mui- para acudir a menina:
de todos os lugares do mun- tas luzes e o mundo inteiro
do. Amanda nunca se cansa- - Filha, você está bem?
participava. E as luzes acen- Onde está doendo?
va de olhar as prateleiras. diam e brilhavam....
Havia muitos livros de Amanda deixou-se abra-
- Amanda, encontrou a çar pela mãe e começou a
Contos de Fada, cada um solução. Podemos juntar
mais bonito que o outro. chorar
suas amiguinhas?
Folheou alguns, o tempo foi Tão surpresa quanto o
passando, acabou pegando - Não quero festas, estou marido, a mãe ficou longo
no sono. muito triste Agnes. tempo ninando e acalmando
Sonhou com Agnes vo- -Porque querida? a garotinha. Sentiu saudades
ando livre no mundo de faz daquele carinho:- Filhinha
de conta com outras fadi- - Não percebeu que meus querida, está tudo bem, foi
nhas. Havia alegria, como se pais não são meus pais de só um susto, estamos aqui
uma grande festa estivesse verdade? meu bem.
acontecendo,muitas crianças -Como assim? Eles não -Mamãezinha.
brincando e rindo. cuidam bem de você? Não
te amam? -O que está acontecendo
Conforme a garota- Amanda? Porque está cho-
da brincava e as fadinhas -Cuidam sim, mas sou rando assim?
ganhavam brilho, muitas adotada. Sou negra, eles são
luzes piscavam no ar, for- brancos e eles terão um A menina contou pela
mando desenhos em torno bebê em breve. primeira vez o motivo da
do parque do bairro. Aos sua tristeza. Um menino
poucos, tomavam conta da -Amanda, seus pais te soube que ela era adotada
cidade. Mais adiante e o país adotaram e te amam muito. e para implicar passou a
inteirinho vibrava em tons contar histórias de pais que
-Não sei, o Pedro contou mandavam crianças embora
alternados.
que quando o bebê chegar, quando tinham outros filhos.
Finalmente o planeta tudo será diferente.
transformou-se em milhares O que antes era motivo
-Querida, você precisa de alegria transformou-se
de cores fortes, lançando
decidir se acredita no Pedro em um enorme pesadelo
jatos de luz em todas as
ou pergunta a verdade para

64 SAMIZDAT setembro de 2009


para a menina:- Filha, nós te período em que estiveram mentira amiguinha
amamos muito, foram dias afastadas:- Jú, venha depres-
muito difíceis, vê-la tão tris- sa, preciso te contar um -Então porque ficou comi-
te sem saber a razão. segredo. go tanto tempo?

-Eu queria contar mamãe, Julinha estava contente -Não adivinha? Precisa-
não tive coragem... outra vez, era a melhor ami- mos de você para existir.
ga de Amanda e partilhavam É a menina mais alegre da
-Filha, de agora em dian- segredos. Juntas olharam a cidade, está sempre animada
te, se surgir alguma dúvida, casinha de bonecas que os e de alto astral. Sua energia
pergunte à sua família. E pais da menina haviam colo- é maravilhosa querida...
você precisa ensinar tudo cado no gramado, a fadinha
isto para Agnes. - Oba! Que bom. Sou a
havia sumido:- Não entendo, menina mais feliz do mundo
- O nome que eu escolhi onde ela está?
venceu? Que maravilha!!! Os pais de Amanda abra-
-Quem? Alguma boneca çados na varanda admira-
- Isto mesmo! nova? vam a alegria das meninas:-
-Não, minha amiguinha O mundo da imaginação
-Papai, vamos terminar a não é maravilhoso? Olhe
arrumação do quartinho da Agnes, ela é uma fada.
como estão rindo com aque-
minha irmã? -Amanda, fadas não exis- les insetinhos.
-Claro filha, mãos à obra tem...
-Querido, são pirilampos
garotinha. -Olhem bem, estão che- coloridos piscando em pleno
Agnes, que tudo obser- gando, são muitas, milhares... sol de meio-dia.
vava, parecia feliz com o Mal havia terminado a -Um pequeno milagre da
desfecho da situação. frase e mil pontinhos co- natureza. Que dia esplêndi-
O dia amanheceu ensola- meçaram a brilhar em volta do, há muito não me sentia
rado e a mãe de Amanda fez das duas meninas, todas tão feliz.
algumas ligações. correram para admirar o es-
petáculo das luzes, eram tão Amanda, Julinha, Camila,
Chocolate parecia adi- pequeninas e lindas. Brinca- Aninha e Isabel assistiram
vinhar que alguma coisa lhonas, faziam mil piruetas a despedida das fadinhas e
estava para acontecer porque para encanto das crianças. a coroação de Agnes. Dora-
não parava de correr e fazer vante uma fada madrinha.
todos os truques que conhe- Flutuando e pousando no
nariz de cada uma delas. As Enquanto existir alegria
cia. e felicidade nos corações
meninas cantavam e riam,
A cozinheira preparou batiam palmas e dançavam puros das crianças, as fadas
delícias e o cheirinho bom como se ouvissem uma mú- estarão sempre próximas.
de cachorro-quente e bolo sica especial: Mesmo que não possam
encheu a casa. ser vistas, são sentidas em
-Agnes, como você está
Logo as meninas chega- linda! sentimentos felizes e inexpli-
ram, rindo e correndo pelo cáveis que acontecem o tem-
gramado. Cinco amiguinhas -Obrigada querida, você po todo e mal nos damos
vestindo maiôs coloridos também está radiante, preci- conta.
pularam na piscina, falando so confessar que nunca per-
sem parar, esquecidas do di meus poderes, desculpe a

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Autor Convidado

Ensaboando a minha cabeça


José Guilherme Vereza

http://www.flickr.com/photos/extranoise/161266331/sizes/l/
Chato foi encarar os senhor sabe, aquela parte do Quando a campainha
olhos do inspetor depois de colégio é um mistério. Mas soou, seis horas, fim das
ter visto coisa tão linda pela juro que não vi nada além aulas. Dei um tempo. Corri
janela quebrada. de chuveiros e ladrilhos. para a escada dos fundos.
- Mas eu não fiz nada, seu - Mentira! Pulei a corrente e me aco-
Mota. corei no alto, latões sobre
Mentira mesmo. O banho latões, de olho no buraco
- Mentira. Você violou de Bernadete não saía da da janela. Ouvi as meninas
uma norma disciplinar do minha cabeça. Foi de caso chegando, fazendo barulho,
colégio. Mais importante pensado. Naquela tarde não falando alto, conversando
que isso só um manda- fui embora com os meni- sacanagem. E não sabia que
mento bíblico. E se você nos, fiquei perambulando elas também falavam saca-
não confessar, sofrerá uma pelo colégio até que termi- nagem. Só consegui enxer-
suspensão de dez dias, sem nasse a ginástica das garo- gar um chuveiro na minha
direito a segunda chamada tas. Tinha que pegar pelo frente e fiquei preocupa-
dos exames. Ouviu bem? menos uma delas. Já não do pensando que alguma
Dezzzzzz diassssss! tinha graça ficar imaginan- baranga fosse tomar banho
Dez dias que me enche- do o que havia por dentro logo ali, no meu alvo calcu-
ram de perdigotos. A boca das saias pregueadas, justas, lado. Estava tenso. Dessa vez
porca estava a um centíme- coladinhas nas coxas. Estava não chupei picolé. Fumei
tro do meu nariz. Não pude nervoso, com medo que des- meu primeiro cigarro. Tossi
resistir. cobrissem que eu tinha que- pra dentro, um horror, tosse
brado o vidro da janela na escondida, fumaça infeliz
- Foi só uma espiadinha, noite anterior. Andava pra que quase acaba com a
Seu Mota. Estava subindo lá e pra cá, roía as unhas, festa.
a escada e vi um buraco suava as mãos. Chupei dois
na janela quebrada. Subi e picolés de côco. Um atrás Foi aí que apareceu a Ber-
olhei. Curiosidade pura. O do outro. nadete. Na mosca. A melhor

66 SAMIZDAT setembro de 2009


da escola. Nua, nuinha, Bernadete no portão do se resolver naquela hora
como eu nunca tinha visto colégio. Logo ela. A melhor mesmo, com um beijo
nada tão nu antes. Quase da escola. Com seus cabe- profundo de “até amanhã,
morri. Aquele corpo more- los longos, pretos, dezesseis meu amor”. Mas o ônibus
no, desenhado com marcas anos moldados na saia justa, chegou antes e atrapalhou
do maiô, cabelos longos, peitinhos durinhos presos tudo. Perdi a coragem. Hu-
pretos, cheios de shampoo, na blusa branca. Olhando milhado, fracassado, sub-
16 anos ensaboados, peitos para mim como se me re- misso, assisti, inerte, minha
durinhos. E aquela coisa conhecesse de algum lugar esperança desaparecer cha-
peluda igual à minha coisa estranho. coalhante pelo lusco-fusco
peluda. Só que sem pinto Fingiu que não me viu da curva.
nem bagos. Tudo que eu a sacana. Entrou na sala ***
mais queria na vida. Uma apressada, sentou-se na
mulher que não fosse de Passei uma noite de cão.
penúltima fila e cruzou as Pinto duro saindo pelo
foto de revista a menos de pernas. De propósito, mos-
um metro de mim. E não pijama. Todas as dúvidas
trou o liso da pele cor de do mundo resolveram
teve grito de socorro coisa jambo e a beiradinha da
nenhuma, como afirmou o aparecer. Que diabo. É ou
calcinha de renda. Saí do não é. Está ou não está.
porco do Seu Mota. A saca- meu lugar sem fazer ba-
na até que me viu e gostou. Pode ou não pode. Quer
rulho e sentei bem atrás, ou não quer. Dá ou não dá.
Filha da puta. Depois de na última fileira, quase
ensaboar bastante aquele Fracasso contra esperança.
cheirando os cabelos lon- Turno e returno. Briga feia.
rabo na minha frente, fazer gos, que invadiam a minha
espuminha com os pente- Jogo duro. Ainda por cima,
carteira. Deu vontade de aquele banho alucinante
lhos e bater lingüinha pras sussurrar: “Quem-é-ca-gu-
minhas fuças, teve coragem aparecia em qualquer lugar
ê-te-me-re-ce-ca-ce-te”. Mas do quarto. No armário, na
de me dedurar para a Che- achei que aqueles cabelos
fia de Disciplina. Sonsa. parede, no teto, no chão,
pretos iam me fazer cóce- na cortina. Ensaboando a
*** gas no nariz e espirraria minha cabeça, esfregando
Os dez dias de suspen- fazendo alvoroço. Mesmo a Bernadete na minha cara.
são, sem direito a segunda sem fazer nada, ela sentiu Só consegui pegar no sono
chamada dos exames, foram a minha presença. Virou o quando o dia estava claro.
transformados numa ano- rosto e me sorriu um sor-
riso lindo, tímido e ousado, ***
tação na caderneta, que me
valeu um fim de semana como se estivesse pedindo Mãe é mãe:
inteiro trancado dentro do perdão, e não me perdoan-
- Esse menino está aba-
quarto. do ao mesmo tempo. Por
tido, com olheiras. Dona
alguns instantes, pensei que
- Ora, onde já se viu, um Marina, faz um mingauzi-
ela estava a fim de mim. E
menino tão bem criado! nho com gema pra ele ficar
continuei pensando o dia
forte.
Passei o sábado e o do- inteiro, até que no fim da
mingo com aquele banho tarde saímos juntos do colé- Cheguei no colégio atrasa-
no teto. Quando fechava os gio. E juntos, seguimos a pé do, suado, arrotando min-
olhos, Bernadete aparecia pela rua sem trocar meia gau.
no preto das minhas pálpe- palavra. Nenhum oi, ne- A primeira visão: Berna-
bras. Sempre se ensaboando, nhum ai, nada. Minha mão dete perguntando por que
se esfregando, se ensa- insistente e suada encostava não tinha tomado o ônibus
boando, se esfregando, se na dela, buscando alguma com ela. Queria que lhe
ensaboando, se esfregando. definição. Nada feito. Cada fizesse companhia até o fim
Fazendo espuminha entre as vez mais tenso, fumei meu da linha. Desgraçada. E bur-
pernas, batendo lingüinha. segundo cigarro. ro. Perdi uma noite inteira
A segunda-feira custou - Lá vem o meu ônibus. duvidando de uma coisa
a chegar. E como custou a Amanhã a gente se vê, tá? tão certa. Não soube o que
chegar. Mas, quando che- responder à Bernadete, mas
Um banho de água fria.
gou, chegou triunfante. jurei que nunca mais ia
Estava certo que a gente ia

www.revistasamizdat.com 67
perder a chance. Deixá-la a gente pode pedir uma ra. Mamãe está tendo um
sozinha no ônibus, nunca bagaceira. chilique.
mais. Boa idéia. Papai bebia E me mordia a orelha.
Quando a campainha bagaceira no frio, e a brisa - O que você vai dizer
soou, seis horas, fim das fresquinha pedia uma baga- quando chegar em casa,
aulas, saímos juntos de ceira, embora nunca tivesse hein, menino levado? Vai
colégio. E juntos seguimos passado pela minha cabeça levar um surra daquelas,
pela rua sem trocar uma que diabo de gosto tinha menininho desobediente.
palavra, mas houve um pro- uma bagaceira.
gresso: mãos coladinhas e E me lambia o pescoço.
Um garçom mal-encarado
os dedos embaralhados uns apareceu e foi logo dizendo: - Não precisa tremer. Seu
nos outros, esfregando-se e Papai tenente coronel vai
espalhando gostosas sensa- - Maneira, mocinha. Vê se ficar orgulhoso. Você está
ções pelo corpo. Pegamos não dá vexame de novo, que muito bem-acompanhado,
o ônibus sem desgrudes. tu é de menor. numa praça mal-iluminada.
Perguntei o que havia no Estufei o peito. Merda. Por que fui enfiar
fim da linha e ela me res-
- Se incomode não, seu o olho no buraco da jane-
pondeu que nunca tinha
moço. A moça tá comigo. la quebrada? Como é que
passado do terceiro ponto
- O cara de fedelho é de eu fui cair nessa? Pronto.
depois do colégio. Cínica.
maior? Bernadete bêbada com duas
Senti medo. Um medo gos-
bagaceiras. Me lambendo,
toso, que me dava coragem. - Não importa. Meu pai é me chupando, me babando.
Dá pra entender? Medo e tenente-coronel. E eu querendo ir embora,
coragem. Uma mistureba
Bernadete riu de mim. mas com vergonha de ir
tão gostosa quanto a mão
Fiquei vermelho. Tentei embora. Até meu pinto me
que me apertava, me alisa-
disfarçar, mas, que merda, abandonou. Só pensava na
va, me apertava, me alisava.
o que eu poderia ter dito? hora de chegar em casa,
Lá embaixo, o pinto sentia
Que estava me borrando de entrar correndo sem falar
o recado. Embolado, mas
medo de o garçom cismar com ninguém, me trancar
sentia.
com a nossa cara e não ser- no quarto e nunca, nunca
*** vir a gente? Além do mais, mais, acordar praquele co-
O fim da linha era uma lá em casa sempre diziam légio miserável, que só me
praça mal-iluminada. Um que filho de militar manda- fazia passar vergonha.
bar na esquina rodeado de va nesse país. - Me dá um beijo de
mesinhas amarelas, algumas É claro que ele trouxe a língua.
árvores, alguns bancos e bagaceira. Com um milíme- - Agora não, o garçom tá
no meio, bem no meio, um tro de língua, entre o copo olhando...
mastro de uns dez metros e e os dentes, senti um gosto
pouco se via na escuridão. forte de queimar as entra- - Um beijinho só. Língua
Aquilo parecia uma gávea nhas e formigar o couro com língua. Cê vai gostar.
das caravelas antigas, onde cabeludo. - Eu sei como é. Mas
os marinheiros subiam agora não. É melhor a gente
para descobrir coisas novas. Bernadete bebeu num
gole só, para mostrar que ir se arrancando. Tá ficando
Tinha uns ganchinhos, que tarde. Vai ver que nem tem
deviam estar ali para aju- já era veterana em bebidas
violentas. No segundo copo, mais ônibus.
dar alguém a subir, e, lá no
alto, uma bandeira encardi- começou a dizer besteiras. - Se você não me der um
da pouco se mexia de tão Me sussurrava aos ouvidos beijo na boca, vou subir
velha. as maiores sandices, com naquele mastro e só saio se
hálito de bêbada e a voz você me buscar.
Lembrei dos romances da fora de rotação.
televisão. Sentamos no bar e - Tá doida, menina? Vem
ofereci um drinque à Ber- - Papai tenente-coronel cá, vem cá.
nadete. deve estar preocupado. O Bernadete saiu correndo
filhotinho soldadinho não pela praça. Escalou os gan-
- Sou de menor, mas aqui apareceu em casa até ago-

68 SAMIZDAT setembro de 2009


chinhos do mastro e num subiam e desciam pelo esô- branca saindo da saia azul,
instante estava lá em cima. fago, me doía o pescoço de os peitos esparramados, os
Deixou aparecer, entre um tanto olhar pra cima. Pen- cabelos embaraçados, 16
facho e outro de luz que sava no papai preocupado, anos espatifados. E o sangue
vinham dos carros que olhando o relógio de mi- manchando aos pouquinhos
passavam longe, as pernas nuto em minuto, a mamãe as pedrinhas portuguesas
morenas cor de jambo que chorando pelos cantos da da calçada.
terminavam numa calcinha casa, pelos ombros de Dona Saí correndo pela linha
branca, quase transparente, Marina, telefonando para as do ônibus, com medo que o
que mexia e remexia, no amigas, tias, mães dos ami- garçom viesse atrás cobrar
ritmo das besteiras que ela gos. Que vergonha. Pensava as bagaceiras. Ainda ouvi os
cantava lá de cima. que podia ter agido que gritos de alguém que não
- Desce daí, Bernadete. Tá nem ontem, não tomando o pude identificar.
maluca. ônibus. Pensava que aquela
maluca, que me deixou doi- - Não mexe no corpo,
Meu estômago dava do por causa de um banho nem se mete nisso! Ela tava
cambalhotas. Nem beijo na pela janela, pudesse cair lá com filho de milico. Não
boca eu queria dar. Olhei de cima e, aí sim, ia ser a vi nada, não vimos nada,
em volta para ver se al- merda total. ninguém viu nada!
guém ria da minha vergo- Entrei em casa sem falar
nha. Mas tudo era deserto. E ela caiu.
com ninguém. Me tranquei
No bar, o garçom mal-enca- Sem gritar, sem cantar, no quarto e vomitei a noite
rado dormia com a cabeça sem gemer. inteira.
recostada no balcão. Nem E como caiu, ficou. De
aí para os gritinhos daquela bruços, braços e pernas
doida. abertas, fazendo um xis no
“Se você vier aqui eu te mosaico da calçada. A blusa
dô, meu amô
Se você ficar aí, não saio José Guilherme Vereza é publicitário, professor e escritor.
mais daqui”. Tem livro publicado, peça de teatro encenada, roteiros de
E cantava e dançava, re- TV produzidos e centenas de comerciais criados. É colunista
bolava e gritava, levantava do www.bolsademulher.com.br, colaborador do www.mun-
a saia, mostrava as pernas, domundano.com.br e tem o blog www.30segundos.blog.com.
ameaçava descer as calci- Pela terceira vez é convidado pela Samizdat. Pela terceira vez
nhas. aceita com o maior prazer e um baita frio na barriga.
O pavor e a bagaceira

http://www.flickr.com/photos/hidden_treasure/2474163220/sizes/l/
O lugar onde
a boa Literatura
é fabricada

ficina
www.revistasamizdat.com 69
www.oficinaeditora.com
Autor Convidado

Poemas Tatyanny Nascimento

Pleno Sereno

Saio em Pleno Sereno,


Não disfarço
Enquanto portas se fecham
Portas de vidro, grades de aço.

Vejo pingos sob a chuva


Sou solo de minha geada,
Terra molhada, adubada.

Oh chuva: banha-me plena,


Lava-me, leva-me tarde,
Sou breve, sou parte
Sou do elenco
Magnífica ‘tempestade’

Grito como raios


Vivo como raros
Sou louca?
Tão rouca, de fato!

Oh lágrimas dos céus: Lavai a angústia


Desses mansos que se escondem
Dos que têm medo de si, do bicho, do homem
Que em casa encarcerados...
Vivem a tempestade de tudo que os consomem.

70 SAMIZDAT setembro de 2009


Amor e Paz

Amor recíproco e imponderável,


Ovacionado pelas impossibilidades
E encarcerado no recanto mais puro das angústias.
Amar-te é negar-me à felicidade para dar-te paz.
Fundamental é fazer-te possuir tudo que se faz ausente em mim.
Amamos-nos no desejo do beijo nunca apreciado,
Na troca de olhares nem sequer disfarçados,
Na angústia, no medo de soltar o que parece controlável.
Amar-te-ei ainda que desnecessário.

http://www.flickr.com/photos/wenzday01/3315532566/sizes/o/

Tatyanny Nascimento, poetisa potiguar de 19 anos, mora em Nova Parnami-


rim, região metropolitana da Natal-RN. Publica regularmente no blog Minuciosa
Formiga (http://assimdeveraeuser.blogspot.com), e no site Espaço de Escrita (http://
www.espacodeescrita.web2logy.com/index.php?option=com_comprofiler&task=use
rProfile&user=84&Itemid=51).

www.revistasamizdat.com 71
Tradução

Como o camelo
ganhou sua corcova
Rudyard Kipling
tradução: Henry Alfred Bugalho

72 SAMIZDAT agosto de de
setembro 2009
2009
Agora esta é a próxima ele, com um graveto na circunlóquio, e uma inda-
história, de como o ca- boca, e disse: ba, e um punchayet, e um
melo ganhou sua grande pow-wow num canto do
— Camelo, ó camelo,
corcova. deserto; e o Camelo veio,
venha, apanhe o graveto e
mascando asclépia na
No começo dos anos, o carregue como o resto
mais excruciante ociosi-
quando o mundo era de nós.
dade, e riu deles. Então,
ainda novinho em folha,
— Uma ova! — disse o ele disse “Uma ova!” e foi
e os animais ainda estava
camelo; e o cão foi embo- embora de novo.
começando a trabalhar
ra e contou ao Homem.
para o Homem, havia Depois, apareceu o
o camelo, e ele vivia no Depois, veio o boi até gênio encarregado de
meio de um uivante ele, com o jugo em seu todos os desertos, desli-
deserto, porque ele não pescoço e disse: zando sobre uma nuvem
queria trabalhar; e, além de poeira (gênios sempre
— Camelo, ó camelo,
disto, ele próprio berrava. viajam deste jeito, porque
venha e lavre como o
Então, ele comia grave- é mágica), e parou para
resto de nós.
tos, espinhos, tamariscos, circunloquiar e pow-po-
asclépias e acúleos, numa — Uma ova! — disse o war com os três.
excruciante ociosidade; camelo; e o boi foi embo- — Gênio de Todos os
e quando alguém falava ra e contou ao Homem. Desertos — disse o Cava-
com ele, simplesmente
No final do dia, o Ho- lo — é correto alguém ser
respondia “Uma ova!”
mem chamou o Cavalo, o ocioso, com o mundo tão
Apenas “Uma ova!”, e
Cão e o Boi e disse: novinho em folha?
nada mais.
— Os três, ó vocês três, — Certamente que não
Depois, o cavalo veio
sinto muito por vocês — disse o Gênio.
até ele, numa manhã de
segunda-feira, com uma (com o mundo tão no- — Bem, — disse o
sela sobre suas costas e vinho em folha), mas Cavalo — há uma coisa
com um freio na boca e aquela coisa-de-uma-ova no meio de seu Deserto
disse: no deserto não consegue Uivante (e ele próprio
http://www.flickr.com/photos/misteraitch/2302386855/sizes/o/

trabalhar, ou ele já esta- berra) com um pesco-


— Camelo, ó Camelo, ria por aqui, então vou ço longo e com pernas
venha e trote como o deixá-lo em paz, e vocês longas, e ele não fez uma
resto de nós. devem fazer hora-extra tentativa de trabalhar
para compensá-lo.
— Uma ova! — disse desde a manhã de segun-
o camelo; e o cavalo foi Isto deixou os três da-feira. Ele não trota.
embora e contou ao Ho- muito bravos (com o — Uau! — disse o Gê-
mem. mundo tão novinho em nio, assoviando — este é
folha), tiveram um longo
Depois, o cão veio até o meu Camelo, por todo

www.revistasamizdat.com 73
o ouro da Arábia! O que
ele responde?

— Ele diz “Uma ova!”


disse o Cão; e ele não
apanha o graveto nem o
carrega.

— Ele diz alguma coisa


a mais?

— Apenas “Uma ova!”;


e ele não lavra — disse o
Boi.

— Muito bem — disse


o Gênio. Vou ová-lo, se
vocês gentilmente aguar-
darem um minuto.
Esta é a imagem do Gênio fazendo o princípio da Mágica que trouxe a
O Gênio subiu na sua corcova para o Camelo. Primeiro, ele desenhou no ar uma linha com seu
manta de poeira, atraves- dedo, e ela se tornou sólida: E então ele fez uma nuvem, e então ele fez um
sou o deserto e encon- ovo — você pode ver a ambos na parte inferior da figura — e então uma

trou o Camelo na mais abóbora mágica que virou uma grande chama branca. Então o Gênio
pegou seu leque mágico e abanou a chama, até que a ela se tornasse uma
excruciante ociosidade,
mágica por conta própria. Era uma mágica boa e, na verdade, era uma
fitando o próprio reflexo
mágica muito gentil, apesar de ela ter dado ao camelo uma corcova porque
numa poça d’água.
o camelo era preguiçoso. O Gênio encarregado de todos os desertos era um

— Meu amigo compri- dos gênios mais legais, então ele nunca faria algo realmente cruel.

do e ruminante — disse poça d’água. novamente se fosse você


o Gênio — o que é isto — falou o Gênio — você
de não querer trabalhar, — Você deu trabalho
já disse isto demais. Ru-
com o mundo novinho extra aos três desde a
minante, quero que você
em folha? manhã de segunda-feira,
trabalhe.
tudo por causa da sua
— Uma ova! — disse o excruciante ociosidade E o Camelo disse “Uma
Camelo. — disse o Gênio; e ele ova!” de novo; mas assim
O Gênio se sentou, continuou pensando em que o disse, ele viu suas
com o queixo apoiado na mágicas, com seu queixo costas, das quais tinha
mão, e começou a pensar apoiado na mão. muito orgulho, inchar e
numa Grande Mágica, inchar numa grandessís-
— Uma ova! — disse o
enquanto o Camelo fitava sima ova saliente.
Camelo.
o próprio reflexo numa — Você vê isto — disse
— Eu não diria isto

74 SAMIZDAT setembro de 2009


o Gênio — Esta é a sua
própria ova que você
trouxe sobre si mesmo
por não trabalhar. Hoje
é quinta-feira, e você não
fez trabalho algum desde
segunda, quando o traba-
lho começa. Agora vamos
trabalhar.

— Como posso — disse


o camelo — com esta ova
nas minhas costas?

— Isto é de propósito
— disse o gênio — tudo
porque você perdeu os
outros três dias. Você
poderá trabalhar agora
por três dias sem comer,
porque você pode viver
da sua ova; e não diga
que nunca fiz nada por
você. Saia do deserto e vá
até os três, e se comporte.
Mexa-se!

E o camelo se mexeu,
ova e tudo o mais, e foi Esta é a imagem do Gênio encarregado de todos os desertos, condu-
se juntar aos três. E des- zindo a mágica com seu leque mágico. O camelo está comendo um ramo
de aquele dia, o Camelo de acácia, e ele havia acabado de dizer “uma ova” vezes demais (como
sempre carregar uma ova Gênio o havia dito), e assim a ova está surgindo. A longa coisa entoalhada
(nós chamamos “corco- crescendo da coisa como uma cebola é a mágica, e você pode ver a ova

va” agora, para não ferir sobre o ombro dele. A ova se encaixa na parte plana das costas do camelo.
E camelo está ocupado demais fitando sua própria beleza na poça d’água
seus sentimentos); mas ele
para saber o que está acontecendo com ele.
nunca conseguiu recu-
perar aqueles três dias Sob a imagem verdadeira está a imagem do mundo novinho em folha.
perdidos no começo do Há dois vulcões fumegantes nele, algumas outras montanhas e algumas
mundo, e ainda não con- pedras, um lago, uma ilha negra, um rio sinuoso e um monte outras coisas,

seguiu aprender como se bem como uma Arca de Noé. Não pude desenhar todos os desertos dos
quais o Gênio era encarregado, então só desenhei um, mas este é o deserto
comportar.
mais desértico.

www.revistasamizdat.com 75
A corcova do camelo é um feio calombo Preta e azul corcova!

Que no zoológico você pode bem ver;

Mas mais feia ainda é a corcova A cura pra todo o mal é não ficar parado.

Que ganhamos por pouco fazer. Ou descansar com um livro diante da larei-
ra;

Mas pegar um rastelo e uma pá também;


Crianças e gente grande também
E cavar até você gentilmente transpirar;
Se pra fazer nada tem,

Ganham uma corcova —


E então você descobrirá que o sol e o vento,
Camélica corcova —
E o gênio do jardim também,
Preta e azul corcova!
Retiraram a corcova —

A horrível corcova —
Levantamo-nos da cama com os cabelos
despenteados A preta e azul corcova!

E com uma voz desafinada. Eu ganho uma também, assim como você —

Trememos, emburramos, resmungamos, ros- Se eu não tiver o bastante pra fazer —


namos
Todos ganhamos uma corcova —
Para nosso banho, nossas botas, nossos brin-
Camélica corcova —
quedos.
Crianças e gente grande também!

E deve haver um limite para mim


Fonte: http://www.boop.org/jan/justso/
(E sei que para você também)
camel.htm
Quando ganhamos uma corcova —

Camélica corcova —

76 SAMIZDAT setembro de 2009


Joseph Rudyard Kipling (Bom- versátil e brilhante. sobre esses temas em sua obra
baim, 30 de dezembro de 1865 — Foi um dos escritores mais popu- perdurou por muito tempo ainda
Londres, 18 de janeiro de 1936) lares da Inglaterra, em prosa e no século XX. De acordo com o
foi um autor e poeta britânico. poema, no final do século XIX e crítico Douglas Kerr: “Ele ainda
É mais conhecido por seus livros início do XX. O autor Henry Ja- é um autor que pode inspirar
“O Livro das Selvas” (1894), mes referiu: “Kipling me impres- discordâncias apaixonadas e seu
“The Second Jungle Book” siona pessoalmente como o mais lugar na história da literatura
(1895), “Just So Stories” (1902), completo homem de gênio (o que e da cultura ainda está longe
e “Puck of Pook’s Hill” (1906); difere de inteligência refinada) de ser definido. Mas à medida
sua novela, “Kim” (1901); seus que eu jamais conheci.” Em que a era dos impérios europeus
poemas, incluindo “Mandalay” 1907, foi laureado com o Prêmio retrocede, ele é reconhecido
(1890), “Gunga Din” (1890), Nobel de Literatura, tornando- como um intérprete incompará-
“If” (1910) e “Ulster 1912” se o primeiro autor de língua vel, ainda que controverso, de
(1912); e seus muitos contos inglesa a receber esse prêmio e, como o império era vivido. Isso,
curtos, incluindo “The Man até hoje, o mais jovem a recebê- e um reconhecimento crescente
Who Would Be King” (1888) e lo. Entre outras distinções, foi de seus extraordinários talentos
as compilações “Life’s Handi- sondado em diversas ocasiões narrativos, faz dele uma força a
cap” (1891), “The Day’s Work” para receber a Láurea de Poeta ser respeitada”.
(1898), e “Plain Tales from the Britânico e um título de Cava- Fonte: http://pt.wikipedia.org/
Hills” (1888). lheiro, as quais rejeitou. Ainda wiki/Rudyard_Kipling
É considerado o maior “inova- assim, Kipling tornou-se conhe-
dor na arte do conto curto”; os cido (nas palavras de George
seus livros para crianças são Orwell) como um “profeta do
clássicos da literatura infan- imperialismo britânico”. Muitos
til; e o seu melhor trabalho dá viam preconceito e militarismo
mostras de um talento narrativo em suas obras, e a controvérsia

www.revistasamizdat.com 77
Teoria Literária

Os desafios
da autopublicação
Henry Alfred Bugalho

78 SAMIZDAT setembro de 2009


(Este é o segundo artigo de uma de autores que, como eu, mais óbvias, restou-me de-
série sobre publicação indepen- também enviavam seus dicar ao que me parecia ser
dente na era digital) livros para serem avaliados. o mais promissor: o blog.
Aliás, até hoje duvido que
a leitura de manuscritos
Frustrações iniciais seja o principal processo de A internet como forma de
seleção de novos autores; autopublicação
Assim como a maioria
pode até acontecer, mas as
dos escritores, o meu sonho Publicar significa “tornar
chances devem ser muito
também já foi o de ser pu- público”. Neste sentido, pou-
pequenas para valer a pena
blicado comercialmente. Ao ca diferença faz em ter um
o tempo e o dinheiro inves-
concluir o meu segundo ro- livro publicado, um blog, ou
tidos.
mance, “O Rei dos Judeus”, um distribuir na esquina os
perfiz a via crucis do autor O que me restava então?
textos impressos em folha
iniciante: imprimi suas 200 Eu mesmo publicar meus sulfite; tudo isto são formas
páginas, tirei 3 fotocópias, livros. Fiz orçamentos com de publicação, de tornar
pus num envelope e mandei várias gráficas, mas o cus- público o seu trabalho lite-
para quatro editoras. to era surreal. Para uma rário.
Três responderam ra- tiragem de mil exemplares,
Poucos autores darão
pidamente, recusando o seria necessário desembol-
valor a outras formas de
original. A Cia das Letras, sar três mil reais. Conve-
publicação se desconside-
por exemplo, conseguiu a nhamos que, para um in-
rarem o princípio básico
proeza de responder-me em vestimento sem perspectivas
da literatura — ser lida por
uma semana, ou seja, das de retorno, isto é queimar
alguém.
200 páginas, não devem ter dinheiro.
Desde os primórdios da
lido nem dez. Por sua vez, a Seria necessário vender
civilização ocidental, o im-
Rocco demorou onze meses 100 livros a R$ 30 para
portante para os narradores
para enviar uma resposta, recuperar o dinheiro gasto.
era chegar a seu público,
igualmente negativa. Para um autor iniciante,
estivesse ele num anfiteatro
As rejeições, que para vender 100 livros é tão
na Grécia Antiga, estivesse
alguns autores podem che- insólito quanto vender 100
ele na sala duma família
http://www.flickr.com/photos/flyzipper/342012313/sizes/o/

gar às centenas, fazem parte mil. Se ninguém conhece


burguesa, estivesse ele dian-
desta etapa inicial de inser- o seu talento, ninguém se
te da tela dum computador.
ção no mercado. Daquele interessará em conhecer; é
A remuneração foi, por
momento em diante, con- o ciclo oposto do sucesso,
muito tempo, um problema
fesso que fiquei um pouco no qual, quem vende mais,
periférico. Vários escrito-
descrente com a possibi- vende mais porque vende
res tiveram de dividir seu
lidade de ser “descoberto” mais.
tempo entre uma outra
em meio a outros milhares Excluídas as duas opções
ocupação e a Literatura; em

www.revistasamizdat.com 79
alguns casos, até consegui- cinematográficas —, sem maneira espontânea e inu-
ram sobreviver das Letras, a mínima necessidade de sitada, o blog se tornou um
mas sob extrema penúria, me enquadrar em parâme- sucesso e, um ano depois,
enquanto alguns poucos, tros mercadológicos, sem o virou um livro.
especialmente durante o compromisso de produzir Nenhuma outra obra
século XX, chegaram a fazer algo vendável. literária minha chegou nem
fortuna com a escrita. No No entanto, o número de perto da repercussão deste
Brasil, o primeiro a autor leitores era relativamente blog, nem antes, e, por en-
a viver exclusivamente de pequeno, isto até 2007. quanto, nem depois.
direitos autorais foi Érico
Foi mais ou menos nes-
Veríssimo, isto apenas na
ta época que conheci a
década de 1930.
lulu.com, uma editora sob
Ficção X não-ficção
Este fato nunca com- demanda que caiu como
prometeu a qualidade da uma luva para minhas
Sempre Sempre ouvi
escrita, nunca significou necessidades como autor.
relatos de que obras de
um demérito para os au- Nesta editora, bastava você
não-ficção costumam fazer
tores — inclusive, alguns carregar os arquivos com o
mais sucesso do que de fic-
dos mais influentes escri- texto que o seu livro estava
ção. As razões para isto me
tores da modernidade não publicado. Não há estoques,
parecem evidentes: vivemos
obtinham renda alguma não há tiragens iniciais,
numa era utilitária, tudo
da escrita, tais quais Franz não há gasto algum para o
precisa ter uma serventia,
Kafka e Fernando Pessoa —; autor. Simplesmente, o leitor
o conhecimento precisa ser
apenas recentemente que acessa o sítio, encomenda
aplicado em alguma função.
viver da escrita, ou enrique- o livro, eles imprimem e
A ficção é inútil por sua
cer através dela, se tornou mandam pelo correio para
própria natureza. Por mais
uma meta, uma proposta de a casa do comprador. Me-
que retrate a realidade, ou
carreira. lhor, impossível!
apresente problemas sociais,
A existência do “escri- E o mais surpreendente
ou instigue mudanças, pelo
tor profissional” é recente, para mim foi que, apesar de
fato de não ser verídica, ela
e aparentemente terá vida todo o conteúdo do livro
não tem a mesma serventia
breve, se depender da inter- estar disponível de graça
que uma obra de não-fic-
net. no blog, em um ano o guia
ção, que visa estar de acor-
Por isto, que o retorno do com a verdade. havia vendido mil exempla-
a uma escrita descompro- res, sendo que 70% ou 80%
Em 2007, criei o blog
missada, livre da necessi- deles haviam sido de exem-
“Nova York para Mãos-de-
dade monetária me atraiu. plares digitais (e-books).
Vaca” (http://www.maos-
Através do blog, eu poderia “Se houve tanta procura,
devaca.com), para falar de
tornar públicos meus textos não teria sido melhor tê-lo
coisas baratas na cidade. De
— contos, crônicas, críticas

80 SAMIZDAT setembro de 2009


publicado por uma editora editora comercial, eu pre- Topo, à esquerda: “Guia Nova

http://www.flickr.com/photos/davidw/1244497565/sizes/m/
comercial?”, você me pergun- cisaria vender 4 mil exem- York para Mãos-de-Vaca”. Obra
de sucesso, apesar da publicação
ta. plares, o que é um número independente.
Talvez, e até houve um considerável. Topo: Livraria El Atheneo, em
editor que se mostrou Por fim, ao estar à frente Buenos Aires. O maior problema
da literatura independente: distri-
interessado. Todavia, numa da publicação, fica a meu buição.
editora comercial, o autor critério quando atualizar o
la, a dinâmica do mercado
ganha 10% do preço de livro, quando aumentar ou
editorial.
capa, ou seja, se um livro reduzir o preço, quanto do
custa 30 reais, o autor conteúdo eu posso distri- Quase todos os meus
ganha 3 reais, sendo que o buir gratuitamente, ou seja, romances estão publica-
restante do valor se esvai na tudo relacionado ao meu dos independentemente, do
distribuição, para a livra- livro está sob meu poder de mesmo modo que o meu
ria, em impostos e para a decisão. guia de viagem, porém as
editora. tentativas de torná-los ren-
E este modelo pode ser
táveis não deram certo e,
Já no caso do autor in- reproduzido para ficção?
atualmente, todos eles estão
dependente, e este é o meu Possivelmente, mesmo disponíveis de graça na
caso, o lucro inteiro é meu, que eu ainda não tenhate- internet.
já que fui eu quem prepa- nho conseguido. Até o ao
rou a diagramação do livro A não-ficção envolve a
momento, na minha experi-
e sou eu quem negocia, às questão de credibilidade do
ência pessoal, a repercussão
vezes, com o comprador. O autor, no entanto, isto não
e o sucesso do meu livro de
e-book do guia é vendido é tão fácil de se estabelecer
não-ficção, em comparação
a 12 reais, ou seja, para ter para a ficção. Para saber
às minhas obras de ficção,
o mesmo lucro por uma se um autor duma obra de
reproduziu, em menor esca-

www.revistasamizdat.com 81
referência sabe do que está editor independente não te tem de fazer da internet
falando, basta investigar sua tem, como livrarias, bancas não apenas a sua livraria,
formação e de onde ele está de jornais e revistas, super- mas a sua vitrine. É através
falando, mas para se certi- mercados, etc. Além disto, dela que ele pode vender
ficar se um autor de fic- a mídia costuma acolher seus livros, mas também é
ção possui competência, é com maior descrença obras através dela que ele estabe-
preciso ler a obra inteira, às independentes, principal- lecerá sua reputação como
vezes, várias de suas obras, mente porque por detrás escritor e criará vínculos
e este é um esforço que duma editora comercial com seus leitores.
poucos leitores estão dis- há uma equipe interessada O que eu percebo é que
postos a empreender para em promover seus livros, ainda há um certo menos-
um autor desconhecido. assessores de imprensa e de prezo quanto a à capacida-
marketing. de de um blog cativar lei-
As dificuldades (e A dificuldade de dis- tores, mas já temos alguns
algumas soluções) da tribuição é o calcanhar exemplos de autores que se
publicação independente de Aquiles da publicação lançaram na internet para
independente. Se a obra não depois chegarem ao merca-
Assim, a publicação inde-
chega ao comprador, é mui- do editorial.
pendente reflete exatamente
to improvável que consiga Já no meu caso, o grande
o que ocorre na publicação
atrair atenção para si. problema é encontrar o ca-
comercial: não-ficção de
autores com credibilidade É neste ponto que a in- minho para me estabelecer
costuma vender muito mais ternet acaba servindo como como autor independente,
do que ficção; e ficção de a maior aliada do autor sem a necessidade de con-
autores desconhecidos tende autopublicado. siderar uma editora comer-
a encalhar nas prateleiras, As editoras comerciais cial como Meca literária.
isto até estes autores atin- utilizam a internet de “É possível consolidar
girem determinado grau de maneira pouco eficaz, por uma carreira literária in-
notoriedade. enquanto. Para estas edi- dependentemente do mer-
Perceba que não estamos toras, a internet possui o cado?”, é a pergunta que
realizando nenhum juízo papel simples e único de proponho, ainda sem ter
de valor, como se publica- uma livraria virtual. Você, muita certeza de qual é a
ção comercial fosse melhor leitor, acessa o catálogo resposta.
do que a independente, ou online da editora, procura
vice-versa; estamos apenas seu livro de interesse e o
falando em magnitude. compra, repetindo quase o
Uma grande editora comer- mesmo procedimento que
cial tem acesso a canais de faria numa editora física.
distribuição que o autor- Mas o autor independen-

82 SAMIZDAT setembro de 2009


O lugar onde
a boa Literatura ficina
é fabricada
www.oficinaeditora.com

http://www.flickr.com/photos/27235917@N02/2788169879/sizes/l/
A Oficina Editora é uma utopia, um não-
lugar. Apenas no século XXI uma ­vintena
de autores, que jamais se ­encontraram
­fisicamente, poderia conceber um projeto
semelhante.
O livro, sempre tido em conta como uma
das principais fontes de cultura, ­tornou-se
apenas um bem de ­consumo, ­tornou-se um
elemento de exclusão ­cultural.
A proposta da Oficina Editora é ­resgatar o
valor natural e primeiro da ­Literatura: de bem
cultural. ­Disponibilizando ­gratuitamente
­e-books e com o ­custo ­mínimo para ­livros
impressos, nossos ­autores ­apresentam
a ­demonstração ­máxima de respeito à
­Literatura e aos ­leitores.

www.revistasamizdat.com 83
Crônica

Joaquim Bispo

A faixa branca
84 SAMIZDAT setembro de 2009
Ah, a Irlanda! – a ilha e a vida fora dos espaços cor límpida dos olhos, a
que tem o permanente religiosos. Refugiaram-se forma germinante dum
verde dos campos na nas instituições católicas corpo a meio caminho
bandeira. Há quem diga pelas mais variadas ra- da floração; recorda o
que a faixa alaranjada no zões, quase nunca para seu próprio corpo e as
outro extremo da bandei- renunciarem ao apelo das emoções perturbadoras
ra é a cor do uísque. Ah, sensações lúbricas. Nem da puberdade, às vezes,
os pubs, a festa, a herança tal lhes é exigido. Mes- como um adulto o ini-
celta. E a faixa branca, a mo aos padres, a Igreja ciou nessas emoções. Aos
meio, significa o quê – proíbe-lhes o casamento, poucos, sobrevém a opor-
pureza? não pela subjacente im- tunidade de masturbar a
Um relatório agora plicação de mais difícil criança. Quer desvendar-
divulgado revela que du- acesso ao sexo mas – diz- lhe esse mundo maravi-
rante sessenta anos – des- se – por um mais pro- lhoso, que o seu corpo
de 1930 até 1990 –, pelo saico programa de evitar encerra, onde reside
menos duas mil crianças o forçoso sorvedouro de um prazer insuspeito.
carenciadas, que tinham bens, necessários para ali- Ele próprio segue o que
sido acolhidas por insti- mentar e vestir cônjuge e entende como o desejo
tuições religiosas católi- filhos. da criança, que chega a
cas, foram objecto de vio- Não é a Igreja que faz perceber como uma pro-
lência e abusos sexuais. os pedófilos; também vocação ao gozo mútuo.
O facto choca, sobretudo nas instituições governa- Desencadeia e deixa-se
porque os acontecimentos mentais sucede o abuso. enredar, consciente e
tiveram lugar em abrigos O ambiente colectivo maliciosamente, numa
infantis, reformatórios nos locais de acolhimen- crónica teia de relacio-
e orfanatos geridos pela to, onde os mais velhos namento furtivo, sabendo
Igreja Católica, largamen- dispõem de ascendente que é um comportamen-
te maioritária no país. sobre aqueles que estão à to censurável, a esconder,
Pensamos sempre que os sua guarda, proporciona um segredo para dois.
homens e as mulheres da a oportunidade adequada Sente na criança uma
Igreja estão, tendencial- às práticas do pedófilo. A aceitação e uma ausên-
http://www.flickr.com/photos/boldorak/3188013773/sizes/o/

mente, acima dos «peca- proximidade, o espírito cia de reprovação que,


dos» da carne, só porque de ajuda, de protecção, apenas em algumas raras
o potentado religioso cria, por vezes, aquela vezes, julgou encontrar
que os enquadra a isso intimidade perturbadora na aproximação a outros
aspira, ou pelo menos a que o pedófilo não re- adultos, mas que sempre
apregoa. Grave erro: as siste. A evolução é pro- redundou em rejeição e
pessoas que o integram gressiva. Um dia, ajuda a dor. Chega ao sexo oral e
são da mesma carne e criança a vestir-se, sente- à penetração.
pulsam com o mesmo lhe o morno da pele, A criança gosta de
desatino hormonal que a suavidade do cabelo; quem mostra querer-lhe
as que festejam o corpo outro dia, observa-lhe a bem, de quem a defende

www.revistasamizdat.com 85
nas inúmeras situações ram ter sofrido abusos de formam em abusadores.
de controlo e poder que vários tipos. Outras terão Há pedófilos violentos,
surgem numa institui- já morrido, certamente. mas, a maior parte das
ção com muitas crianças «Ah, o horror! Inacei- vezes, são apenas o que
desenraizadas. Às vezes, tável!», dirão alguns, alar- a palavra indica: gostam
encontra nesse adulto o mados com os números. mesmo de crianças. Não
amigo que a ouve e lhe «Danos colaterais. Inevitá- aceitam que o que fazem
afasta as inquietações. veis.», dirão outros, argu- é prejudicial à criança,
Fica perturbada com as mentando que se fossem que representa um abuso,
sensações que o adulto só estas 2000, estaríamos uma humilhação que a
ensinou o seu corpo a a falar do valor «confor- vai acompanhar pela vida
proporcionar-lhe, acei- tável» de apenas 2 ou 3 inteira. Se tiverem opor-
ta responder às carícias crianças abusadas, por tunidade – e é impressio-
como retribuição pedida instituição, por ano. nante como são atraídos
e justamente merecida. Há tanta coisa inacei- por relações, actividades
Não domina o jogo das tável que temos de en- e profissões que os apro-
relações sociais; mesmo golir, infelizmente, desde ximem das crianças – vão
quando se sente descon- a miséria nos bairros repetir comportamentos
fortável, evita denunciar periféricos das grandes pedófilos, Pelas crianças,
quem sempre parece cidades, à invasão arrasa- que serão adultos ma-
querer-lhe bem. Afinal, dora de países soberanos. goados, a sociedade tem
os outros adultos estão Em todas essas situações, o dever de tentar mino-
emocionalmente muito há inocentes apanhados rar as oportunidades de
mais afastados. Sente que nas redes da animalidade acesso dos pedófilos às
é culpada de ter ido tão humana e traídos pelo crianças, seleccionando
longe, tem dificuldade em bocejo da indiferença criteriosamente quem
dizer «não». Envergonha- social ou internacional. lida com elas e mantendo
se; sabe como tais situ- É tão difícil alertar as uma observação activa
ações, quando reveladas, pessoas, embrenhadas nos sobre o funcionamento
são motivo de escárnio. seus pequenos problemas. dessas instituições. Para
Isola-se e tenta sobreviver E, mesmo quando alguém que as Irlandas deste
até um dia sair da insti- para para pensar, o má- mundo sejam apontadas
tuição. ximo que sente é uma apenas pelos bons mo-
Vamos a contas: no re- sensação angustiante de tivos: belas paisagens e
ferido período, passaram impotência. E vai desfor- bom uísque.
pelas 250 instituições rar-se no frigorífico…
em causa, entre 30000 Não se sabe o que
e 40000 crianças. No desencadeia as tendências
inquérito realizado nos pedófilas. Nem sempre
últimos dez anos, 2000, os abusadores foram
algumas com mais de abusados, nem sempre
cinquenta anos, declara- os abusados se trans-

86 SAMIZDAT setembro de 2009


Volmar Camargo Junior

Brasiléiros e Brasiléiras
— Qual é a melhor — Troquei o carnê — Ah! Claro. Lembro
recordação que você tem com um cabo eleitoral do do dia que ele virou pre-

http://golpedecabeca.files.wordpress.com/2009/02/jose-sarney-tribuna.jpg
do tempo em que o Sar- Collor. sidente.
ney foi presidente?
— E você votou nele? — Virou?
— Da poupança que
eu tinha no Bamerin- — Claro que não. Votei — Sim. Lembro do
dus. Cheguei a ter cento no Lula. Antônio Britto, porta voz
e cinquenta milhões de do governo, veio dizer
— Você não tinha que o presidente eleito, o
cruzados. medo da “ameaça socia- Tancredo, não ia poder
— Nossa! Tudo isso? E lista”? comparecer à cerimônia
o que fez com esse di- — Até tinha, mas eu de posse teve a infelicida-
nheiro todo? ficava tão emocionado de de morrer antes. Aí, o
com aquela musiquinha... vice, Sarney, virou presi-
— Dei de entrada num dente. Depois disso, nun-
par de chuteiras Kichute. “Brilha uma estrela... Lula
lá!”... ca duvidei de mais nada.
Terminei de pagar no dia
que o Ulysses anunciou — Tá, mas e o Sarney?
que ia se candidatar, em
89. O que eu devia na — Que tem ele?
loja de calçados dava
para comprar um Fusca. — Não lembra de nada
do governo dele?
— E pagou como?

www.revistasamizdat.com 87
Crônica

Repaginando
as Havaianas
Henry Alfred Bugalho

88 SAMIZDAT setembro de 2009


Havaianas eram coisa de lodaçal era o fim definitivo milhares, quiçá milhões
pobre, na época em que eu do chinelo, mas logo ele apa- de diferentes tonalidades e
era criança. receria com o pé de outro estampas. Não basta mais
tamanho ou cor, emprestado ter apenas um chinelo, tem
Todo menininho de pe- do pai, da irmã, ou encon- de combinar com o resto da
riferia ou do interior usava trado esquecido na beira (ou roupa.
umas, quando mais detona- boiando) num córrego.
das, melhor. Para muitas pes- Amanhã será aniversário
soas, era o único calçado na Pois Havaiana era quase de uma amiga americana e,
vida: pedreiros, lavradores, um bem coletivo, passava de sem hesitação, minha esposa
camelôs, todos caminhavam pés em pés, usava-se para to- decidiu por comprar umas
sobre Havaianas. mar banho e evitar o choque Havaianas para ela. Não há
no registro do chuveiro, para erro! É um dos símbolos do
Lembro-me muito bem ir à praia, e se encontrava Brasil.
de quando corríamos — e em qualquer lojinha popular.
criança sempre está cor- No entanto, cuidado! As
rendo, mesmo que não haja Eram tão queridas, que Havaianas não são para qual-
razão — e, subitamente, surgiram as imitações, a quer um...
algum de nós ficava para ponto que foi preciso criar o
trás. Era a tira da Havaiana slogan: “Havaianas, as Legí- Se é um menininho raquí-
que havia se soltado, então, o timas. Não deformam, não tico ou uma modelo esquelé-
piá agarrava a chinela e, com soltam as tiras e não têm tica, tudo bem, mas, no verão
uma maestria de anos de cheiro”, o que era uma baita passado, apareceram algumas
experiência, reinseria a tira e de uma mentira, pois eu já reportagens nos EUA sobre o
voltava a correr. tive amigo cujo chulé em- perigo de se usar Havaianas:
pesteava até as Havaianas. é que uma gorda america-
Isto quando a tira já não na havia passeado a tarde
havia se rompido muito tem- Mas os tempos muda- inteira sob sol escaldante e,
po antes, e fora substituída ram e as modelos brasileiras no fim do dia, estava com os
por uma de outra cor, pro- levaram este patrimônio pés todos assados.
vavelmente de algum outro nacional para o “estrangeiro”.
par que, talvez, havia se Estarrecidos, os gringos ad- Os telejornais advertiam
arrebentado pela metade na miraram a tecnologia sim- sobre os riscos destes chine-
sola, outro problema comuns ples e eficaz das Havaianas e los.
comum com tais chinelos. se tornou uma febre. E é neste momento que
As Havaianas também As Havaianas foram “repa- surjesurge o maior dos pa-
eram um sucesso nas parti- ginadas” (para acompanhar a radoxos: o americano almeja
http://www.flickr.com/photos/manuelmartensen/3768468629/sizes/l/

das de futebol. palavra da moda) e dos pés socar seu pé gorducho numa
da piazada e do chão batido Havaiana a qualquer custo,
Quem precisa de uma passaram para os das cele- enquanto que o sonho de
luva de goleiro quando tem bridades e lojas da Quinta muito brasileiro é ter um
um par de Havaianas? Avenida. Nike, que é tão barato nos
EUA que até os mendigos
Bastava encaixar o chinelo Hoje, ter umas Havaianas usam um.
nos dedos da mão e se jogar é uma necessidade, é um
para agarrar a bola sem artigo da moda, é in, é cool. Pelo menos, o Nike real-
medo das espalmadas. mente nunca solta as tiras,
Se antes as Havaianas só e você nunca verá um rapa-
E qual moleque no inte- tinham 8 cores (porém, eu zinho do Harlem tendo de
rior nunca perdeu uma de só me lembro de três, da parar de correr para arru-
suas Havaianas ao saltar azul marinho, da vermelha mar seu tênis, nem perderá
um riacho ou se enfiar no e da preta), hoje elas têem seu Nike no banhado...
banhado? Meter o pé num

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Crônica

Criança tem
cada uma...
Maristela Scheuer Deves

90 SAMIZDAT setembro de 2009


Fofinhas, bonitinhas, Mesmo com a bronca, Aliás, quando o Rafa
sapecas, espertas... Vive- nada de ele dizer o que era pequeno, cheguei a
mos rotulando as crian- fazia ali. No outro dia, o fazer um “dicionário”
ças que conhecemos, pequeno foi passear na de suas palavras. ‘Vavau’
sem nos darmos conta, avó, e de repente largou: era cachorro (afinal, eles
no entanto, de que não “Ontem peguei o ônibus fazem ‘vau-vau’...). ‘Teta’
as conhecemos tão bem para ir na tia Téia.” Esta- era mamadeira, mas tam-
assim - quando menos va explicado: depois de bém servia para designar
esperamos, lá vêm elas a me acompanhar várias a avó onde ele buscava
nos surpreenderem. vezes à rodoviária, ele leite e a priminha que
Tomo como exemplo sabia que eu entrava num ali morava (e que odiava
os meus sobrinhos, Rafa- ônibus para ir a Santa ser chamada assim). Mas
el e André. Rafa, o mais Maria, e julgou que, em- o mais engraçado foi
velho, agora já tem 17 barcando em um, chega- quando ele resolveu falar
anos, mas quando peque- ria até mim! apenas a primeira sílaba
no sempre teve tiradas Anos depois foi a vez de cada palavra. ‘Prato’
de deixar a todos com a do André, hoje com 14 virava ‘pra’, ‘mesa’ virava
boca aberta. Certa vez, e na época com seis ‘me’, e assim por diante. E
quando eu fazia facul- anos, fazer algo parecido. nós que adivinhássemos
dade em Santa Maria Quando fui me despe- o que ele queria dizer.
ele devia estar com seus dir dele para viajar, no Um dia, quando o
quatro ou cinco anos , final das férias, nem me André era bebê, chegou
liguei para minha mãe deu bola, emburrado. o Rafa lá em casa. “E o
e ela me contou a mais Meu pai, que me acom- maninho?”, indagou mi-
recente aventura do neto: panharia, teve o mesmo nha mãe. “O pá tá fá pê
enquanto meu cunhado tratamento. Uma semana dô”, respondeu ele. “O
fazia compras em um depois, soube que, depois quê?”, espantou-se minha
mercado, ele pediu licen- de o carro já ter dobrado mãe. “O pá tá fá pê dô”,
ça para brincar com a a esquina, ele caminhou tornou. Somente depois
priminha que morava ao até a casa próxima, olhou de repetir várias vezes e
lado. Quando o Alemão para trás, onde estavam ver que não tinha jeito
foi buscá-lo, surpresa, o minha mãe, minha irmã de a avó entender, é que
http://www.flickr.com/photos/martynr/8182526/sizes/o/

Rafael não tinha sequer e o Rafa, e desatou numa ele resolveu explicar,
aparecido lá. corrida desenfreada pela ressaltando as sílabas:
Procura daqui, procu- rua. Ao ser alcançado, “Mas vovó, eu já disse
ra dali, de repente teve três quadras adiante, que o pa(i) tá fa(zendo) o
a inspiração de olhar contou que “estava indo pe(queno) do(rmir)!”
dentro de um ônibus que buscar o vovô e a tia Téia
saía rumo ao interior do de volta.”
município. E lá estava, O vocabulário desses
sentado quietinho no danadinhos também é
último banco, o Rafael. algo digno de análise.

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Crônica

http://www.flickr.com/photos/adwriter/255230682/sizes/o/
Marcia Szajnbok
e Amanda Szajnbok de Faria

Adolescentes (não) leem


Adolescentes não lêem. esse tipo de afirmação, timos anos, a literatura
Essa frase feita era repe- “adolescentes não lêem”, mundial conheceu um
tida há trinta anos, quan- sempre me pergunto de fenômeno chamado Har-
do a suposta culpa pelo quais adolescentes, afinal, ry Potter que, a despeito
afastamento dos jovens das estão falando. Por que nós de quaisquer discussões
páginas literárias era a te- todos, adultos que agora que questionem seu valor
levisão. As décadas foram escrevemos e lemos esta e como obra literária em
passando e a tecnologia outras revistas literárias, e si, teve o grande mérito
se sofisticou. Hoje, quem que produzimos blogs ou de conduzir milhares de
está no banco dos réus participamos de oficinas, jovens em todo mundo às
são os jogos eletrônicos, o nós já fomos também, há portas das livrarias para,
computador, a internet, os mais ou menos tempo, ávidos, comprarem o mais
chats. adolescentes. E líamos. novo volume da série. Esse
Quando me deparo com Além disso, nos úl- fenômeno, pude observá-lo

92 SAMIZDAT setembro de 2009


de perto, não como leitora, roto normal, mas venceu o que seus próprios problemas
mas como mãe de leitores. mal com ele. tenham solução, ; é um tipo
E, a propósito do tema, Por outro lado, Crepús- de terapia.
dei a palavra a uma des- culo e seus sucessores têm O último dos livros juve-
sas milhares de criaturas a linha entre Bbem e Mmal nis que vale a pena comen-
sub-vinte que, contrarian- bastante clara, até que se tar é a coleção Desventuras
do preconceitos, lê sim, lê apresenta um vampiro que em Série. O livro é divertido
bastante, aliás, e tem o que se apaixona por uma huma- de ler, é escrito como se
dizer acerca do que lê. Em na. A história cativou várias um pesquisador contasse a
resposta à minha pergun- garotas ao redor do mundo história infeliz dos três ór-
ta, “o que é que te faz ficar por causa do romance im- fãos; mas, de alguma forma,
interessada num livro?”, possível e do conflito inter- ele está relacionado com o
minha filha me entregou no de Edward, o ser aparen- que acontece, e quando se
um texto, que reproduzo temente perfeito. Stephanie lê, se começa a questionar
aqui: Meyer colocou um pouco a relação entre Lemony
de aventura, mas o assunto Snicket e a história exage-
que mais arrecadou fãs foi, radamente trágica dos três
Quando se trata de com certeza, o vampiro que irmãos, como se o escritor
literatura juvenil, o primeiro queria ser bom. Milhares fosse um dos personagens.
livro que me vem à cabeça de garotas se apaixonaram No meio das aventuras há
é o famoso Harry Potter. O por Edward e não perderam memórias e alguns delírios
bruxinho tem sua história um livro da saga. A histó- do personagem-escritor, e
contada em sete livros e ria prende porque a autora só mais perto do fim é que
conquistou fãs no mundo soube trabalhar o mistério se consegue conectar tudo.
todo. Um dos aspectos mais e a sensualidade em sua Os onze livros prendem a
interessantes do personagem história, muito bem. atenção, e cada vez que um
é que Harry não é o Mmo- Existem também os acaba não se pode esperar
cinho, tem suas falhas e vários diários que atraem para ler o próximo. Nesses
seus lados obscuros e isso o outras outros milhares de livros, o aspecto de Moci-
torna mais real. Além disso, garotas que de alguma nhos versus Bandidos, assim
J.K. Rowling soube equili- forma se identificam com a como em Harry Potter, não
brar romance e experiên- personagem que relata sua é tão claro. É mais fácil
cias adolescentes comuns vida para as leitoras. Em acreditar e se envolver em
com um pouco de aventura, Diário da Princesa, Diário histórias onde não há a per-
que nos deixa com vontade de Débora, Diário de Tati feição, onde existem os dois
de saber o que vai acontecer etc., durante toda a histó- lados da moeda, e é prin-
com o bruxinho e seus ami- ria, a personagem principal cipalmente por isso que o
gos. E é possível interpretar passa por momentos desa- livro dá aquela sensação de
o texto de inúmeras manei- gradáveis, comuns a todas que não se consegue largá-
ras, escolhendo pra quem as jovens, mas no final ela lolargar dele, e só se percebe
torcer: Harry ou Voldemort. acabará encontrando uma que horas são ao ver o sol
É interessante o fato de que solução, cresce, amadurece e bater na janela!
o Bem e o Mal não estejam aí o livro acaba. Para to-
tão fortemente separados. das que fazem essa leitura,
J.K. Rowling criou um ga- existe aquela esperança de

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Poesia

Laboratório Poético:

Limericks
Volmar Camargo Junior

Game Over

Que luxo o que se pode achar no lixo


Maravilha de botões e de rabichos
Fico só imaginando
Os burros ruminando
“Por que foi que joguei fora meu Playstation?”

94 SAMIZDAT setembro de 2009


http://www.flickr.com/photos/myklroventine/3210068573/sizes/o/
A mãe do árbitro

Corre e voa, e o voleio é por um triz


Corre e apita, e não perdoa o seu juiz
“Tá impedido!” diz de novo
“Tá roubando!” berra o povo
E a mamãezinha dele virou meretriz.

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Poesia

Poesias Bestas
Ju Blasina

Lesmiando

Lesmas me deixam rastros de gosma.


Ontem os li – PS: Estive aqui!
Lesmas só lesmeiam quando estou olhando.
A velocidade da lesmitude me fascina!

Anelar

Anel para selar, para unir, para carimbar


Anel para adornar, para agradar, anel para beijar
Anel do rei, do bispo, do capitão
Anel para anelar, para o que mais então?
Anel pra tanto dedo: anel pra mão, anel pro pé
Anel pra quem é homem, anel pra quem é mulher
Anel também pra quem não é - anel pra bicho
Anel pra gente, anel pra quem se quer bem
Anel pra quem tem dedo, corrente pra quem não tem!
Anel pra quem tem dinheiro, dinheiro pra quem não tem

96 SAMIZDAT setembro de 2009


Sapatos

Sapatos para serem usados


Sapatos para serem trocados
Sapato apertado, amarrado
Sapato furado
Sapatos que protegem o pé
Sapatos que exalam chulé
Triste vida a de um sapato é
Largado, mofado, amarrado
Tem a moda, o número, o solado
A estação, a ocasião, a liquidação
Sapatos que pisam o chão
Que passam e passeiam em vão
Felizes os que dançam no salão
Girando feito pião. Sapato bobão!
Pisam na lama, limpam na grama
Sapatos não sobem na cama
Pisam o pé de quem ama
Escorregam em banana
Sapato para quem não tem grana
Sapato sacana, sapato bacana

Antenado

A antena fica em cima da Tv


Também fica na telha
E também fica em você
A antena ajuda quem quer ver mais do que vê.
http://www.flickr.com/photos/banabila/2457921936/sizes/o/

Já não bastar estar ligado para saber


Dizem que a antena serve para perceber
Serve para doar, captar e receber
Se até o siri tem antena, a globo pega no mar?
Borboleta sem antena não poderia voar?
E o que fizeram com a antena do antigo celular?
Se antenas fossem chifres, Tvs seriam animais
E se chifre fosse antena, cervo tinha uns 100 canais!
Se eu tivesse uma antena eu saberia bem mais
Se cada um tivesse uma, não faria o mal que faz

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Asas
Poesia

Marcia Szajnbok

Vivia um lindo pássaro em confortável gaiola.


Pelas manhãs espalhava no vento canções de paz e alegria.
E assim ia vivendo, a seu modo feliz, em seu lugar, com seu alpiste.
Para além dos limites da gaiola, de nada sabia.
Nem sequer supunha que fora do alcance dos olhos um pouco mais de mundo existia.
Certa vez, com boa intenção, quis alguém mostrar-lhe o horizonte.
Puseram-no junto à janela para que se alegrasse.
O que todos esperavam era que, ali posto, ele ainda mais cantasse.
No entanto, surpresa geral, calou-se o pássaro, tornou-se mudo.
Nem um pio sequer de canto, nem bater de asas, nada.
Não comia, não bebia.
Qual estátua, petrificado, simplesmente olhava.
E quanto mais olhava, menos compreendia.
O que era, afinal, tudo aquilo?
Céu, plantas, montanhas ao longe...
O sol laranja a iluminar auroras...
Luar e estrelas brilhando na noite...
E os pequenos olhos mal piscavam. Olhavam, olhavam, olhavam.
Como se fosse possível pelo olhar absorver a infinitude do mundo.

98 SAMIZDAT setembro de 2009


Como se fosse possível pelo olhar chegar ao fim do espaço que não tinha fim.
E assim ficou, calado, estático, por incontável tempo.

Num final de tarde, de repente, deu-se o suposto milagre.


Ninguém mais se lembrava de como era doce seu canto,
Por isso, demoraram a descobrir a origem de tão divina musicamúsica.
Um de cada vez, em silêncio, pé ante pé, se aproximaram de onde a gaiola estava.
Perplexos confirmaram: era ele mesmo que cantava.
Mas foram apenas os olhos argutos de um menino pequeno
Que naquela cena viram o que ninguém mais viu.

http://www.flickr.com/photos/kimonomania/3180273288/sizes/o/
No parapeito da janela, suspensa em puro enlevo, outra ave lá pousara.
Mal se movia, escutava, entendia, a canção mais bela – poesia! –
Que aquele pássaro jamais cantara.
Era uma ave apaixonada.
Não durou muito -– uma pena! – aquele idílio de melodia e olhares.
A tarde findava, escurecia, e a visitante voou -–
Não sem antes hesitar, como quem fizesse um convite.
Calou-se novamente o cativo.
E foi mais uma vez pelos humanos esquecido.
Mas não por todos, uma exceção:
Na madrugada, o menino que desvendara o mistério foi lhe fazer companhia.
Chegando junto à gaiola viu o que depois contou, mas entre os adultos ninguém acreditou.
O lindo pássaro, mudo, chorava.
Lágrimas silenciosas nos pequenos olhos atentos.
Quem já viu passarinho chorar? Nunca! Imaginação de criança...
Mas o que ficou mal explicado foi o ainda mais estranho fato:
No dia seguinte, gaiola intacta e pássaro ausente.
Como saiu? Ninguém jamais soube...
Todo o cenário intacto...
Seria preciso olhar bem de perto o garoto, e ser muito observador
Para notar-lhe no canto do lábio um sorriso discreto,
A expressão muito viva, o orgulho disfarçado.

Desse dia em diante, quem quer que chegasse à janela


Ouviria, ao sol poente, um canto ao longe, inspirado,
Um dueto de pássaros livres, uma canção de amor.

www.revistasamizdat.com 99
Poesia

Noé em sua arca


Wellington Souza

100 SAMIZDAT setembro de 2009


O leve efeito etílico
começa a deixá-lo mais apaixonado
mesmo sem ter a personificação
para o seu amor.
O gole lhe refresca a garganta
O gole a trinta e oito graus celsius...

Vive novamente momentos


como que escrevendo um conto:
Traça um desfecho
apaga
enche o copo novamente
enquanto imagina outro.
Brinca de Deus
montando seu próprio palco

Pintura: Jacopo Bassano


com personagens que só existem em retratos.

Ao final, deseja
outras ações em dias perdidos,
porque o realizado
agora
lhe parece o mais triste dos finais...

Sempre soube estar designado a isso,


queria, somente, ter vivido mais...
algo mais.

www.revistasamizdat.com 101
SOBRE OS AUTORES DA

SAMIZDAT
Edição, diagramação e capa

Henry Alfred Bugalho


Formado em Filosofia pela UFPR, com ênfase em
Estética. Especialista em Literatura e História. Autor
de quatro romances e de duas coletâneas de contos.
Editor da Revista SAMIZDAT e um dos fundadores
da Oficina Editora. Autor do livro best-selling “Guia
Nova York para Mãos-de-Vaca”. Mora, atualmente, em
Nova York, com sua esposa Denise e Bia, sua cachor-
rinha.
henrybugalho@gmail.com
www.maosdevaca.com

Revisão
Caio Rudá
Bahiano do interior, hoje mora na capital. Estuda
Psicologia na Universidade Federal da Bahia e espera
um dia entender o ser humano. Enquanto isso não
acontece, vai escrevendo a vida, decodificando o enig-
ma da existência. Não tem livro publicado, prêmio,
reconhecimento e sequer duas décadas de vida. Mas
como consolo, um potencial asseverado pela mãe.

102 SAMIZDAT setembro de 2009


Assessoria de imprensa

Mariana Valle
Por um amor não correspondido, a carioca de
Copacabana começou a poetar aos 12 anos. Veio o
beijo e o príncipe virou sapo. Mas a poesia virou sua
amante. Fez oficina literária e deu pra encharcar o
papel com erotismo. E também com seu choro. Em
reação à hipocrisia e ao machismo da sociedade.
Atuou como jornalista em várias empresas, mas foi
na TV Globo onde aprimorou as técnicas de reda-
ção e ficção. E hoje as usa para contar suas próprias
histórias. Algumas publicadas em seu primeiro livro
e outras divulgadas nos links listados em seu blog
pessoal: www.marianavalle.com

Colaboração

Joaquim Bispo
Ex-técnico de televisão, xadrezista e pintor ama-
dor, licenciado recente em História da Arte, experi-
menta agora o prazer da escrita, em Lisboa.

episcopum@hotmail.com

Barbara Duffles
Jornalista, escritora e roteirista, é autora do livro
“Não Abra” e do blog “Não Clique”. Apesar das nega-
tivas, esta carioca quer, sim, ser lida - como todo es-
critor. Tem dias de conto, de crônica e de pílulas sem
sentido. Suas paixões: cinema e livros com cheiro de
novo - se bem que adora se perder nos sebos da vida.

www.revistasamizdat.com 103
Carlos Barros
Paulistano, filho de nordestinos, desenhista desde
sempre, artista plástico formado, escritor. Começou
sua vida profissional como educador e, desde então,
já deixou seu rastro por ONG’s, Escolas e Centros
Culturais, através de trabalhos artísticos e pedagó-
gicos – experiências que têm forte influência sobre
seus escritos. Atualmente, organiza oficinas de ilus-
tração para crianças, estuda pós-graduação em Histó-
ria da Arte e escreve para publicações na internet.
carloseducador@hotmail.com
http://desnome.blogspot.com

Eder Ferreira
Nasceu em Siqueira Campos, no dia 27 de dezem-
bro de 1980. Formou-se no curso de Matemática,
na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Jaca-
rezinho (FAFIJA). Funcionário público municipal na
cidade de Siqueira Campos, trabalha junto ao Depar-
tamento de Cultura, coordenando projetos de incen-
tivo à leitura e à criação literária. Também exerce
a função de professor de informática e secretariado
administrativo no Centro Educacional Integrado
Plovas Informática (CEIPI). Trabalha ainda, de forma
autônoma, com livros personalizados para presentes.
Sua ligação com a literatura já é de longa data.

Giselle Sato
Autora de Meninas Malvadas, A Pequena Baila-
rina e Contos de Terror Selecionados. Se autodefine
apenas como uma contadora de histórias carioca.
Estudou Belas Artes, Psicologia e foi comissária de
bordo. Gosta de retratar a realidade, dedicando-se
a textos fortes que chegam a chocar pelos detalhes,
funcionando como um eficiente panorama da socie-
dade em que vivemos.

104
104 SAMIZDAT setembro de 2009
http://www.photoshoptalent.com/images/contests/spider%20web/fullsize/sourceimage.jpg
Guilherme Rodrigues
Estudante de Letras na Universidade do Sagrado
Coração, em Bauru, onde sempre morou. Procura
reinventar o mundo a seu modo, seja belo ou grotes-
co, e assim mostrar um novo caminho. Admirador
das coisas mais simples e belas do mundo e da vida,
busca expressar essas sublimes minúcias em suas
poesias. Não dispensa o café da tarde com pãezinhos.
Apaixonado por Línguas, Literatura e Linguística.

José Espírito Santo


Informático com licenciatura e pós graduação na
Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa,
trabalha há largos anos em formação e consultoria,
sendo especialista em Bases de Dados, Sistemas de
Gestão Transaccional e Middleware de “Messaging”.
A paixão pela escrita surgiu recentemente, tendo no
ano de 2007 produzido os livros “Esboços” (contos) e
“Onde termina esta praia” (poesia). Vive com a fa-
mília em Alverca, uma pequena cidade um pouco a
norte de Lisboa, Portugal.

Jú Blasina
Gaúcha de Porto Alegre. Não gosta de mensurar
a vida em números (idade, peso, altura, salário). Não
se julga muito sã e coleciona papéis - alguns afir-
mam que é bióloga, mestre em fisiologia animal e
etc, mas ela os nega dizendo-se escritora e ponto fi-
nal. Disso não resta dúvida, mas como nem sempre
uma palavra sincera basta, voltou à faculdade como
estudante de letras, de onde obterá mais papéis para
aumentar a sua pilha. É cronista do Caderno Mulher
(Jornal Agora - Rio Grande - RS), mantém atualiza-
do seu blog “P+ 2 T” e participa de fóruns e oficinas
virtuais, além de projetos secretos sustentados à base
de chocolate e vinho, nas madrugadas da vida.

www.revistasamizdat.com 105
Léo Borges
Nasceu em setembro de 1974, é carioca, servidor
público e amante da literatura. Formado em Comu-
nicação Social pela FACHA - Faculdades Integradas
Hélio Alonso, participou da antologia de crônicas
“Retratos Urbanos” em 2008 pela Editora Andross.

Marcia Szajnbok
Médica formada pela Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo, trabalha como psiquiatra
e psicanalista. Apaixonada por literatura e línguas
estrangeiras, lê sempre que pode e brinca de escrever
de vez em quando. Paulistana convicta, vive desde
sempre em São Paulo.

Maristela Deves
Gaúcha nascida na pequena cidade de Pirapó, co-
meçou a sonhar em ser escritora tão logo aprendeu
a ler. Escreve principalmente contos nos gêneros mis-
tério, suspense e terror, além de crônicas. Mantém
ainda o blog Palavra Escrita, sobre livros e literatura
(www.pioneiro.com/palavraescrita).

Sheyla Smanioto Macedo


Sempre em busca de escritas que façam desfun-
cionar a máquina do mundo, de experiências do caos
e experimentações pela palavra - convicta de que o
mundo vale a pena em poesia. Mantém o blog http://
sheylas.wordpress.com , cursa Estudos Literários
(Unicamp), e atualmente pesquisa sobre escrita ex-
perimental no Laboratório de Estudos Avançados em
Jornalismo (Labjor-Unicamp).

106
106 SAMIZDAT setembro de 2009
http://www.photoshoptalent.com/images/contests/spider%20web/fullsize/sourceimage.jpg
Simone Santana
Ouro Preto – MG, 1981). Professora de Língua
Portuguesa e Literatura em escolas estaduais. Escreve
já há algum tempo, é inédita em livro e edita o blo-
gue A Parede Lá de Casa. Possui textos publicados na
revista Germina, participa do site Escritoras Suicidas,
e colaborou com o conto Rosário de Lágrimas na
edição de aniversário de sessenta anos do Suplemento
literário Correio das Artes. Escrever é uma necessida-
de.

Volmar Camargo Junior


Inconformado com a própria inaptidão para di-
zer algo sem ser através de subterfúgios, abdicou de
parte de suas horas diárias de sono, tentando domar
a sintaxe e adestrar a semântica. Depois de perambu-
lar pelo Rio Grande do Sul, acampou-se na brumosa,
fria, úmida, às vezes assustadora – mas cercada por
um cenário natural de extrema beleza – Canela, na
Serra Gaúcha. Amargo e frio, cálido e doce, descen-
dente de judeus poloneses, ciganos uruguaios, indí-
genas missioneiros, pêlos-duros do Planalto Médio,
é brasileiro, gaúcho, e, quando ninguém está vendo,
torcedor do Grêmio Futebol Porto-alegrense. Autor
dos blogs “Um resto de café frio” e “Bah!”.
v.camargo.junior@gmail.com
http://recantodasletras.uol.com.br/autores/vcj

Wellington Souza
Paulistano, mas morou também em Ribeirão Preto,
onde cursou economia na Universidade de São Pau-
lo. Hoje, reside novamente no bairro em que nasceu.
Participou das antologias do concurso Nacional de
Contos da Cidade de Porto Seguro e do Poetas de Ga-
veta/USP. Escreve poemas, contos, crônicas e ensaios
literários em um blog (Hiper-link), na revista digital
SAMIZDAT e no portal Sociedade Literária. “Escrever
é um modo de ser outro ser”.

www.revistasamizdat.com 107
Também nesta edição, textos de

Barbara Duffles Léo Borges

Carlos Alberto Barros Marcia Szajnbok

Eder Ferreira Mariana Valle

Giselle Natsu Sato Maristela Scheuer Deves

Guilherme Rodrigues Simone Santana


http://www.flickr.com/photos/quitelucid/114146272/sizes/l/

Henry Alfred Bugalho Sheyla Smanioto Macedo

Joaquim Bispo Volmar Camargo Junior

José Espírito Santo Wellington Souza

Jú Blasina
108 SAMIZDAT setembro de 2009

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