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Autores Convidados
José Guilherme Vereza
Tatyanny Nascimento Obra Licenciada pela Atribuição-Uso Não-Comercial-Vedada
a Criação de Obras Derivadas 2.5 Brasil Creative Commons.
Textos de:
Todas as imagens publicadas são de domínio público, royalty
Monteiro Lobato
free ou sob licença Creative Commons.
Rudyard Kipling
Os textos publicados são de domínio público, com consenso
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As idéias expressas são de inteira responsabilidade de seus
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expressa dos colaboradores da revista.
Sumário
Por que Samizdat? 6
Henry Alfred Bugalho
COMUNICADO
SAMIZDAT Especial de Mistério e Suspense 8
ENTREVISTA
Selène D’Aquitaine 10
RECOMENDAÇÕES DE LEITURA
Como me tornei estúpido 14
Guilherme Augusto Rodrigues
MICROCONTOS
Eder Ferreira 20
CONTOS
Jey Fyu e a floresta das almas tortas 22
Carlos Alberto Barros
O coelhinho medroso 26
Joaquim Bispo
Voz da consciência 28
Wellington Souza
A menina que não queria crescer 32
Jú Blasina
O pé de macaca 35
Jú Blasina
Ursinho Joca e os pardais 36
Volmar Camargo Junior
A última fada 38
Volmar Camargo Junior
O pergaminho esquecido 42
Henry Alfred Bugalho
Do reino da carochinha 44
Simone Santana
Arrependimentos 46
Guilherme Augusto Rodrigues
As Amaranthas 52
Sheyla Smanioto Macedo
Autor Convidado
Ensaboando a minha cabeça 66
José Guilherme Vereza
Poemas 70
Tatyanny Nascimento
TRADUÇÃO
Como o camelo ganhou sua corcova 72
Rudyard Kipling
TEORIA LITERÁRIA
Os desafios da autopublicação 78
Henry Alfred Bugalho
CRÔNICA
A faixa branca 84
Joaquim Bispo
Brasiléiros e brasiléiras 87
Volmar Camargo Junior
Repaginando as Havaianas 88
Henry Alfred Bugalho
POESIA
Laboratório Poético: Limericks 94
Volmar Camargo Junior
Poesias bestas 96
Ju Blasina
Asas 98
Marcia Szajnbok
Noé em sua arca 100
Wellington Souza
6
E por que Samizdat? revistas, jornais - onde ele des tiragens que substituam
possa divulgar seu trabalho. o prazer de ouvir o respal-
O único aspecto que conta é do de leitores sinceros, que
A indústria cultural - e o
o prazer que a obra causa no não estão atrás de grandes
mercado literário faz parte
leitor. autores populares, que não
dela - também realiza um
perseguem ansiosos os 10
processo de exclusão, base- Enquanto que este é um mais vendidos.
ado no que se julga não ter trabalho difícil, por outro
valor mercadológico. Inex- lado, concede ao criador uma Os autores que compõem
plicavelmente, estabeleceu-se liberdade e uma autonomia este projeto não fazem parte
que contos, poemas, autores total: ele é dono de sua pala- de nenhum movimento
desconhecidos não podem vra, é o responsável pelo que literário organizado, não
ser comercializados, que não diz, o culpado por seus erros, são modernistas, pós-
vale a pena investir neles, é quem recebe os louros por modernistas, vanguardistas
pois os gastos seriam maio- seus acertos. ou q ualquer outra definição
res do que o lucro. que vise rotular e definir a
E, com a internet, os au- orientação dum grupo. São
A indústria deseja o pro- tores possuem acesso direto apenas escritores interessados
duto pronto e com consumi- e imediato a seus leitores. A em trocar experiências e
dores. Não basta qualidade, repercussão do que escreve sofisticarem suas escritas. A
não basta competência; se (quando há) surge em ques- qualidade deles não é uma
houver quem compre, mes- tão de minutos. orientação de estilo, mas sim
mo o lixo possui prioridades
a heterogeneidade.
na hora de ser absorvido A serem obrigados a
pelo mercado. burlar a indústria cultural, Enfim, “Samizdat” porque a
os autores conquistaram algo internet é um meio de auto-
E a autopublicação, como que jamais conseguiriam de publicação, mas “Samizdat”
em qualquer regime exclu- outro modo, o contato qua- porque também é um modo
dente, torna-se a via para se pessoal com os leitores, de contornar um processo
produtores culturais atingi- od iálogo capaz de tornar a de exclusão e de atingir o
rem o público. obra melhor, a rede de conta- objetivo fundamental da
tos que, se não é tão influen- escrita: ser lido por alguém.
Este é um processo soli-
te quanto a da grande mídia,
tário e gradativo. O autor
faz do leitor um colaborador,
precisa conquistar leitor a
um co-autor da obra que lê.
leitor. Não há grandes apa-
Não há sucesso, não há gran-
ratos midiáticos - como TV,
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Comunicado
SAMIZDAT Especial
Mistério e Suspense
http://www.flickr.com/photos/ericmorse/454379200/sizes/l/
d - Traduções;
Indicando, no assunto
e - Crônicas; do e-mail, SAMIZDAT
Especial 5, e em qual se-
3 - Serão seleciona- ção o texto se enquadra
dos, ao todo, entre 3 e (ver item 2).
5 textos para cada uma
das seções acima, mas a
edição do E-Zine possui o
direito de selecionar mais
ou menos obras.
Abraços a todos,
4 - Não há limites
de palavras, mas como Equipe da SAMIZDAT
se trata duma publica-
ção voltada para o meio www.revistasamizdat.com
digital, solicita-se que
não sejam enviados tex-
tos mais extensos do que
umas 2500 palavras.
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Entrevista
Selène D’Aquitaine
Nascida no dia 20 de maio de 1992
na cidade Amparo, interior de São
Paulo.
Seu nome de batismo é Adriana
Barbosa Ferreira, mas prefire seu
nome literário, Selène.
Descobriu sua paixão pela escrita
quando estava com quase doze
anos. Nessa idade, começou a
escrever um livro de aventura, mas
seu computador pegou um vírus e
acabou perdendo a maquina inteira.
Tentou mais uma vez com treze
anos, bolou outro livro e mais uma
vez seu computador pegou vírus e
ela perdeu tudo. Com catorze anos,
decidiu escrever um livro a mão. Até
hoje, Selène não sabe onde foi parar
o caderno onde estava escrevendo
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pesquisas históricas. autorais, pirataria: este é jovens, pelo menos pelo
um assunto que a preo- que eu observo, possuem
cupa? Como você vê o certas preferências em
Como é sua relação com futuro da literatura na relação a literatura. Acho
as editoras? era digital? que os jovens de hoje em
SD - A relação é muito SD - Sim, roubo de textos dia não costumam ler o
boa, eu e o meu editor, me preocupa um pouco, suficiente, ou então ficam
Luís Carlos Fanelli somos afinal é o meu trabalho, apenas com os livros que
muito amigos. Ele foi a a minha ideia, minha estão na moda. Muitas ve-
primeira pessoa a acre- vida. Se um texto não zes um jovem lê um livro
ditar e apostar nos meus está registrado, protegido de qualquer jeito, apenas
livros e no meu talento. e alguém o roubar... fica passando os olhos pelas
difícil para o autor ori- páginas. Ele não compre-
ginal provar sua autoria. ende, de fato, a história,
Você considera o fato Não sei se a literatura o contexto, o conflito das
de ser escritora uma tem futuro na era digital... personagens... Lê sem
habilidade que faz parte talvez sim, afinal hoje em realmente prestar atenção.
de sua vida, ou será este dia o mundo esta ficando Porém há jovens que são
o seu ofício, a sua pro- cada vez mais informati- amantes dos livros. E são
fissão? Qual o papel da zado. Livros são eternos, até muitos esses jovens, eu
literatura em sua vida? na minha opinião. É mui- acho. No meu grupo de
SD - Ser escritora é tudo to bom tocar na capa de amigo tem gente que lê
para mim, é trabalho, um livro, virar as páginas, muito e tem gente que lê
compromisso, dedicação, e apertá-lo junto ao peito pouco, assim como na mi-
sim, profissão. A literatura e poder levá-lo na bolsa nha escola. Tem gente que
é a minha vida, a minha para qualquer canto. gosta de ler e tem gente
arte, meu ofício. A litera- que não gosta de ler.
tura também é o modo
pelo qual eu procuro Também em seu blog,
você menciona as suas Nós, da Revista SAMI-
ajudar as pessoas, através ZDAT, agradecemos a
dos meus livros, dos meus amigas como sendo
a fonte de inspiração Selène D’Aquitaine pela
personagens. entrevista.
para as personagens de
Diário de Rabiscos. O
O fato de começar a que elas, as suas amigas,
escrever - e publicar - acharam de se “verem”
tão cedo lhe dá maior em uma obra de ficção?
segurança na hora de SD - Elas adoraram!
preparar um livro? Ou Sentiram-se lisonjeadas
você sente uma pressão pelo homenagem! Minhas
maior? Sua precocidade amigas sentiram-se impor-
literária é um atrativo tantes e amadas.
na hora de divulgar seu
trabalho? Coordenação da entrevista:
SD - Na verdade, o fato de Costuma-se afirmar que Henry Alfred Bugalho
ser precoce não me inti- os brasileiros, especial-
mida muito; aliás ajuda, mente os jovens, não
ainda mais na hora da possuem o hábito da Perguntas feitas por:
divulgação. leitura. Você, como uma
jovem escritora, com- Henry Alfred Bugalho
partilha desta opinião?
Em seu blog, há a ex- Qual é a relação de seus Volmar Camargo Junior
pressa proibição para amigos ou colegas de
aqueles que quiserem escola com a leitura?
copiar seus textos. Plá- SD - Isso depende. Os
gio, violação de direitos
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Recomendação de Leitura
http://www.flickr.com/photos/ooocha/2630360492/sizes/l/
dinheiro. Determinado, gozo carnal dos prazeres
consegue um excelente mundanos.
emprego na empresa de O livro de uma leitu-
um velho amigo do tempo ra agradável nos induz a
de escola, o Raphi, e com profunda reflexão sobre a
ele aprende as artimanhas superficialidade da socie-
do mundo dos negócios. dade, dos sentimentos e da
Simplesmente, esquece-se vida que levamos. Aparen-
dos livros, do cinema, da temente simples, irônico
filosofia que tanto adorava e e recheado de piadas que
era profundo conhecedor e produzem inúmeras risadas,
dos queridos amigos: Ganja, é na verdade uma grande
Charlotte, Aslee e Rodol- bofetada na cara ao mostrar
phe. Ganha muito dinheiro, que o verdadeiro valor é
aprende a investir na Bolsa saber apreciar as minúcias
http://www.flickr.com/photos/dborman2/3258378233/sizes/l/
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de Felizac, remédio para
deixá-lo na estupidez, e a
realidade, Antoine se torna
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Autor em Língua Portuguesa
Monteiro Lobato
A cigarra e as
duas formigas
16 SAMIZDAT setembro de 2009
A cigarra e a formiga boa - Ah! ... exclamou a Desesperada, bateu à porta
formiga recordando-se. Era da formiga e implorou -
Houve uma jovem ci- você então quem cantava emprestado, notem! - uns
garra que tinha o costume nessa árvore enquanto nós miseráveis restos de comi-
de chiar ao pé dum formi- labutávamos para encher as da. Pagaria com juros altos
gueiro. Só parava quando tulhas? aquela comida de emprés-
cansadinha; e seu diverti- timo, logo que o tempo o
- Isso mesmo, era eu...
mento então era observar permitisse. Mas a formiga
as formigas na eterna faina - Pois entre, amiguinha!
era uma usuária sem entra-
de abastecer as tulhas. Mas Nunca poderemos esque-
nhas. Além disso, invejosa.
o bom tempo afinal pas- cer as boas horas que sua
Como não soubesse cantar,
sou e vieram as chuvas. Os cantoria nos proporcionou.
tinha ódio à cigarra por vê-
animais todos, arrepiados, Aquele chiado nos distraía
la querida de todos os seres.
passavam o dia cochilando e aliviava o trabalho. Dizía-
mos sempre: que felicidade - Que fazia você durante
nas tocas. A pobre cigarra,
ter como vizinha tão gentil o bom tempo?
sem abrigo em seu galhinho
seco e metida em grandes cantora! Entre, amiga, que - Eu... eu cantava!...
apuros, deliberou socorrer- aqui terá cama e mesa du- - Cantava? Pois dance
se de alguém. Manquitolan- rante todo o mau tempo. agora... - e fechou-lhe a por-
do, com uma asa a arrastar, A cigarra entrou, sarou ta no nariz.
lá se dirigiu para o formi- da tosse e voltou a ser a Resultado: a cigarra ali
gueiro. Bateu - tique, tique, alegre cantora dos dias de morreu estanguidinha; e
tique... Aparece uma formi- sol. quando voltou a primavera
ga, friorenta, embrulhada o mundo apresentava um
num xalinho de paina. aspecto mais triste. É que
A cigarra e a formiga má
- Que quer? - perguntou, faltava na música do mun-
examinando a triste mendi- do o som estridente daquela
Já houve, entretanto, uma
ga suja de lama e a tossir. cigarra morta por causa da
formiga má que não soube
- Venho em busca de um avareza da formiga. Mas se
compreender a cigarra e
agasalho. O mau tempo não a usurária morresse, quem
com dureza a repeliu de
cessa e eu... daria pela falta dela?
sua porta. Foi isso na Euro-
A formiga olhou-a de pa, em pleno inverno, quan- Os artistas - poetas,
http://www.flickr.com/photos/kwazar/2494808551/sizes/l/
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Monteiro Lobato Juca era assim chamado – brin- gio. Leu tudo o que havia para
A 18 de abril de 1882 em Tauba- cava com suas irmãs menores crianças em língua portuguesa.
té, estado de São Paulo, nasce Ester e Judite. Naquele tempo Em dezembro de 1896, presta
o filho de José Bento Marcon- não havia tantos brinquedos; exames em São Paulo, das maté-
des Lobato e Olímpia Augusta eram toscos, feitos de sabugos rias estudadas em Taubaté. Aos
Monteiro Lobato. Recebe o nome de milho, chuchus, mamão verde, 15 anos perde seu pai, vítima de
de José Renato Monteiro Lobato, etc... congestão pulmonar e aos 16
que por decisão própria modifica Adorava os livros de seu avô ma- anos sua mãe. No colégio funda
mais tarde para José Bento Mon- terno, o Visconde de Tremembé. vários jornais, escrevendo sob
teiro Lobato desejando usar uma pseudônimo. Aos 18 anos entra
Sua mãe o alfabetizou, teve
bengala do pai gravada com as para a Faculdade de Direito por
depois um professor particular e
iniciais J. B. M. L. imposição do avô, pois preferia a
aos sete anos entrou num colé-
Escola de Belas-Artes. É anti-
http://guisalla.files.wordpress.com/2008/09/machado1.jpg
dos, quaisquer que sejam as con- ploração do ferro e do petróleo. acreditando no futuro. E assim, o
seqüências. Em 1904 diploma-se Começa a luta que o deixará po- Pó de Pirlimpimpim continuará
Bacharel em Direito, em maio bre, doente e desgostoso. Havia a transportar crianças do mundo
de 1907 é nomeado promotor em interesse oficial em se dizer que inteiro ao Sítio do Pica-pau
Areias, casando-se no ano se- no Brasil não havia petróleo. Amarelo, onde não há horizontes
guinte com Maria Pureza da Na- Foi perseguido, preso e criticado limitados por muros de concreto
tividade (Purezinha), com quem porque teimava em dizer que no e de idéias tacanhas.
teve os filhos Edgar, Guilherme, Brasil havia petróleo e que era Em 5 de julho de 1948, perde-se
Marta e Rute. Vive no interior, preciso explorá-lo para dar ao esse grande homem, vítima de
nas cidades pequenas sempre es- seu povo um padrão de vida à colapso, na Capital de São Pau-
crevendo para jornais e revistas, altura de suas necessidades. Já lo. Mas o que tinha de essencial,
Tribuna de Santos, Gazeta de em 1921, dedicou-se à literatura seu espírito jovem, sua coragem,
Notícias do Rio e Fon-Fon para infantil. Retorna a ela, desgosto- está vivo no coração de cada
onde também manda caricaturas so dos adultos que o perseguem criança.
e desenhos. Em 1911, morre seu injustamente. Em 1945, passou a
Viverá sempre, enquanto estiver
avô, o Visconde de Tremembé, e ser editado pela Brasiliense onde
presente a palavra inconfundível
dele herda a fazenda de Buquira, publica suas obras completas,
“Emília”.
passando de promotor a fazen- reformulando inclusive diversos
deiro. A geada, as dificuldades, livros infantis. Biografia do Livro O Saci de
levam-no a vender a fazenda em Monteiro Lobato, publicada no
Com Narizinho Arrebitado lança
1917 e a transferir-se para São boletim Circulação Cultural,
o Sítio do Pica-pau Amarelo e
Paulo. Mas na fazenda escre- Ano I, n. 13, ago. 1999.
seus célebres personagens.
veu Jeca Tatu, símbolo nacio- Fonte: http://kplus.cos-
Através de Emília diz tudo o que
nal. Compra a Revista Brasil e mo.com.br/materia.
pensa; na figura do Visconde de
começa a editar seus livros para asp?co=32&rv=Literatura
Sabugosa critica o sábio que só
adultos. Urupês inicia a fila, em
acredita nos livros já escritos.
1918.
Dona Benta é o personagem
Surge a primeira editora nacio-
adulto que aceita a imaginação
nal Monteiro Lobato & Cia, que
criadora das crianças, admitindo
se liquidou transformando-se
as novidades que vão modifi-
depois em Companhia Editora
cando o mundo, Tia Nastácia
Nacional sem sua participação.
é o adulto sem cultura, que vê
Antes de Lobato os livros no
no que é desconhecido o mal, o
Brasil eram impressos em Portu-
pecado. Narizinho e Pedrinho
gal; com ele inicia-se o movi-
são as crianças de ontem, hoje e
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Contos
Eder Ferreira
Minicontos
20 SAMIZDAT setembro de 2009
Assistente de mágico
Era uma profissional tão dedicada que passou a levar trabalho para casa. Tru-
que preferido: desaparecimento. O marido, compreensivo, entendeu.
Devendo até o único par de meias que tinha, toda manhã estufava o peito e
dizia para sua mulher: “O dever me chama!”
Esquizofrenia animal
Chavesmaníaco
Sua vida se resumia em um único lema: “Deus ajuda quem assiste o madruga”.
http://www.flickr.com/photos/hidden_treasure/2474163220/sizes/l/
O lugar onde
a boa Literatura
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é fabricada
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Contos
Jey Fyu e
a Floresta das
Almas Tortas
Carlos Alberto Barros
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mal teve tempo de se alegrar nianos na fera. Não podia de Guerreiro das Nuvens”,
com o ataque bem sucedido. errar, não podia errar. disse Shouryu Ken a Jey Fyu.
Sentiu um arrepio nas costas Ao longe, Shouryu Ken “Há tempos Pai-pai levava o
e viu um fio de luz vermelha via sua mascote decepar o Grande Império à decadên-
riscar seu corpo, dividindo braço esquerdo de Jey Fyu cia. Não podíamos permitir
seu sorriso ao meio e se e, em seguida, perder todos que continuasse por mais
estendendo por toda a árvore seus dez membros. A lâmina tempo. Alguém deveria agir.
sob seus pés. A luz se liber- escarlate penetrou lentamen- Assumirei o trono e preten-
tou com violência de dentro te o coração do gorila. Shiva do contar com sua ajuda em
do tronco que, partindo-se Kung estava morto. meu Império”, continuou.
em dois pedaços, levava con- A confusão tomou conta
sigo cada metade do corpo de Jey Fyu. Não esperava por
de Len Lan.
O Imperador Pai-pai aquilo. Achava que teria que
lutar até a morte. “E o que
Apesar de perder um deseja de mim neste novo
Shiva Kung Império?”, perguntou.
braço, o protetor das almas
tortas não se abateu. Sentia- “Volte para a Floresta das
Jey Fyu continuou sua se mais poderoso a cada Almas Tortas. Lá sempre foi
jornada pelo Caminho das vitória. Sem clemência, iria seu lugar. As almas precisam
Penúrias fortalecido. A pri- até o fim. de você”, falou Shouryu Ken.
meira vitória aumentou sua
convicção, no entanto, sabia Jey Fyu avançou em fúria Jey Fyu paralisara, pen-
que maiores provações ainda sobre seu adversário. Shou- sativo. Pai-pai estava morto
estavam por vir. ryu Ken aguardava estático, à sua frente, não fazia mais
parecendo não querer lutar. sentido continuar lutando.
Não demorou muito para
Quando os dois estavam Voltaria para o seu povo e
avistar seu próximo obstá-
frente a frente, ouviram uma continuaria a viver em sua
culo. A uma distância que
voz de trovão: “Parem”. O Im- nuvem. Era o que deseja-
não enganavam os olhos,
perador Pai-pai chegara. “Não va desde o início. Decidiu,
avistou Shouryu Ken. Como
quero perder meus maiores assim, devolver sua espada
já imaginava, o novo oponen-
guerreiros”, disse ele, “Deve- escarlate à bainha. Havia
te não estava sozinho: trazia
mos seguir os preceitos da perdido um braço, mas tinha
seu animal de estimação,
Lei dos Ancis e restabelecer a suas almas de volta, e isso
Shiva Kung, o Gorila de Dez
harmonia de nosso reino”. era o que importava.
Membros.
Jey Fyu sabia que aquilo O grande Guerreiro das
A luta não seria fácil. Em
não era possível. Se parasse Nuvens retornou pelo Cami-
cada um dos membros, Shiva
ali, teria que abdicar da Flo- nho das Penúrias satisfeito.
Kung trazia uma Lâmina do
resta das Almas Tortas, e isso, Chegou à sua Floresta sendo
Sol. Jey Fyu sabia que, contra
nunca faria. recebido com grandes feste-
aquilo, sua armadura de nada
jos. A primeira atitude que
serviria. Teria que ser preciso “Meu Imperador, sabemos teve foi sentar-se junto às
nos golpes. o que a Lei diz. A morte é suas amadas almas para to-
O gorila avançou em a recompensa dos que não mar leite de anta com tachos
saltos frenéticos. Mesmo seguem as ordens superio- azuis.
com todo seu tamanho, era res. Mas...” – Jey Fyu não
incrivelmente veloz. Jey Fyu conseguiu terminar a frase.
invocou a alma de sua espa- Enquanto falava, uma lâmi-
da, transformando-a em duas. na veloz atravessou o corpo
Tendo uma em cada mão, de Pai-pai. Shouryu Ken o
esperou a fera se aproximar. assassinara.
Os espíritos perdidos prosse-
guiam com a melodia funes-
ta. A penumbra fazia Shiva Retorno às almas
Kung ainda mais negro. Jey
Fyu fixou seus olhos draco- “Não desejo lutar, gran-
O Rei dos
Judeus
do www.revistasamizdat.com 25
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Contos
O coelhinho medroso
Joaquim Bispo
26 SAMIZDAT setembro
agosto de de
2009
2009
Era uma vez um coe- E assim, durante a tarde
lhinho cinzento que vivia inteira, com muita paci-
num campo de beringelas. ência e ternura, ensinou o Um detetive...
Durante o dia, corria e coelhinho a preparar uma
saltava feliz, comia e dor- toca, para que ela não lhe
Uma loira gostosa...
mia à sombra das plantas; caísse em cima. Ensinou-o
à noite tremia de frio, e de a escolher um bom local Um assassinato...
medo de ser apanhado e meio escondido pelas ervas,
comido por algum monstro. a afastar a terra, a abrir
Dormia ao relento, porque caminho com as patinhas, E o pau comendo entre
jamais entrara numa toca, a alisar as paredes com pe-
as máfias italiana e
com medo que ela lhe caís- quenas marradinhas. Quan-
se em cima e o esmagasse. do a toca já estava de bom chinesa.
Até a vista de um buraco tamanho e com aspecto
numa árvore o assustava, confortável, disse a menina:
por não saber o que tinha — Agora, coragem co-
lá dentro. elhinho! Esta toca está
Certa vez, passou por
aquele lugar uma menina
muito bem preparada e de
certeza que não vai cair-te
O Covil
de vestido branco e lon- em cima. Entra à vontade,
gos caracóis castanhos, que
andava a passear, porque se
coelhinho! dos
E dava-lhe palmadinhas
aborrecia de estar em casa,
e encontrou o coelhinho,
de encorajamento. O coe-
lhinho, vendo como a toca
Inocentes
com cara infeliz, aninhado parecia segura e acolhe-
entre dois troncos. dora, e cheio de confiança www.covildosinocentes.blogspot.com
— Por que estás triste, pelo incentivo da menina,
coelhinho cinzento? — per- esticou o peito, em atitude
guntou ela. resoluta, e entrou.
— Gostava de ter uma Na verdade, a toca era
toca para me recolher, o local mais confortável e
como os outros coelhinhos, seguro onde alguma vez já
mas tenho medo que a tinha estado. Apetecia-lhe
toca me caia em cima e me ficar lá dentro para sem-
esmague — respondeu o pre. Nem acreditava como
coelhinho, timidamente. tinha passado tantas noites
— Por que é que havia de a tiritar de frio e de medo.
Quando saiu para agrade-
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Contos
VOZ DA CONSCIÊNCIA
Wellington Souza
shopping. As pessoas que não saber se você gostava lugar público. Talvez só isto
passam são tão sem-poesia. da merda das uvas-passsas colocasse razão nisso que
A única arte daqui está nos na maionese! estou fazendo. Mas como
bancos-de-praça. Pauso. ele aparentemente hasteou
a bandeira-branca, tenho
Isso não está mais me Continuo. que criar uma justificativa
fazendo bem. Mas não é - Não é possível que você para o nosso futuro que
por isto também que es- esteja feliz assim. Um leão evaporou como se, sob a
tou aqui, prestes a por um necessita de mais de mil minha guarda, a chama se
fim, mudar de parágrafo. quilômetros quadrados para apagasse por vento ou falta
Tem coisas que são ruins e se sentir à vontade. Acho de combustível, tanto faz.
irremediáveis: se terminar que não estamos respiran- Resta um esclarecimento
fosse pior ainda que conti- do. Vamos acabar morrendo de minha parte, e talvez um
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“Perdão” por todos os peca- Assume postura ereta, Hoje sejamos nós, apenas.
dos do mundo e por ser, em mas olhando para frente. Sem lembrarmo-nos de
vez de anjo, mulher. “Acho que você era o um futuro
Vira-se sem retirar os meu futuro, meu sonho. em que certamente lem-
cotovelos dos joelhos e Imaginei-te grávida e ve- braremos
olha-me não diretamente, lha.” “Mas agora está ai, fria,
mira algo que está atrás dizendo coisas que deveria das noites perdidas destes
de mim, mas o suficiente estar gestando há meses”. dias
para ver que a inaptidão “Não tenho mais nada a fa- em que nele não pensá-
de amante está pintada em lar. Seu pai não vai ligar em vamos,
minha face. Depois desce vir te buscar de carro, né?” e vivíamos feito bichos
um pouco e percebe que, “Adeus.” “Tenho um futuro
com as unhas de uma mão, para editar.” nos cativeiros de nós
eu lasco uma da oposta. mesmos.
Fala isso tudo olhando
“Você nunca fez isso”, diz. para os meus joelhos, que
Tenho a impressão que agora tremem. Hoje, estejamos nós
meus músculos faciais se Não quero mais ficar cientes apenas deste
contorcem, como se eu sozinha, enjoei. Já me perdi tempo
quisesse sumir diminuindo na vastidão fria da unidade, e um da persona do
o rosto. Gelo e interrompo infinita e vaga. Uma reta outro
a ação, deixando a unha não é nada além de um
por terminar de ser aparada traço, m esboço. Somente que como num palco
junta à carne. forma-se – formam – um amam-se ardentemente,
- Nunca me deparei com plano e deste plano, formas. mas são estéreis.
o fim, assim, tendo que Levanta-se.
executá-lo. Perdão. Seguro em sua mão com Sem lembrarmo-nos do
“Digo, isto com a unha, as minhas duas. Entrelaço futuro que fantasiávamos.
sempre foram tão bem as três num nó-de-mari-
feitas.” Relaxo e rio. Uma nheiro.
amarelidão me toma por Ele desata-se e some en- Amasso e jogo no ces-
completa. Ah, a unha. tre as crianças que sorvem to ao lado. Confirmei que
“Não queria te sufocar, sorvetes e saltos-altos que uma ruptura nunca é suave.
não era essa minha inten- olham vitrinas. Transição é eufemismo,
ção.” Não há como contro- mudança é mudança. Ele
Minha mãe me disse nem olhou por uma última
lar a reação em cadeia que que namorar meninos mais
nossas explosões causam. vez nos meus olhos.
velhos é diferente de meni-
“Não entendo isso que você nos da minha idade. Estes, Vou dar uma volta, de-
sente, não me sinto assim. eu apenas beijava e nossos pois ligo pro papai vir me
”É que você é materialista, planos não iam além do buscar.
Estou para você como o fu- fim de semana. Começar Queria pensar como
tebol ou o seu carro. “Você a beijar outras pessoas era uma menina de quinze
não é o meu mundo, ou um sinal de que o relacio- anos novamente. É difícil ter
não era, mas era o mundo namento não ai bem. quinze anos, mas ser pre-
para aonde eu ia me refu-
Desdobro o papel que coce. Antes ser precoce que
giar do mundo.” Mas você é
tenho em mãos, e que não ser póstuma. Nossa! Nada a
o meu, e tenho que abdicar
consegui passar para a dele. ver isso.
do mundo para evoluir. ‘En-
terre seus pais’, Buda disse e Leio.
coloquei no meu Orkut. PLURAIS
http://www.flickr.com/photos/27235917@N02/2788169879/sizes/l/
A Oficina Editora é uma utopia, um não-
lugar. Apenas no século XXI uma vintena
de autores, que jamais se encontraram
fisicamente, poderia conceber um projeto
semelhante.
O livro, sempre tido em conta como uma
das principais fontes de cultura, tornou-se
apenas um bem de consumo, tornou-se um
elemento de exclusão cultural.
A proposta da Oficina Editora é resgatar o
valor natural e primeiro da Literatura: de bem
cultural. Disponibilizando gratuitamente
e-books e com o custo mínimo para livros
impressos, nossos autores apresentam
a demonstração máxima de respeito à
Literatura e aos leitores.
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Contos
A menina que
não queria crescer
Ju Blasina
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Sentia uma coisa estranha e seriam felizes para sem- ao peito, ela não disse “que
no peito toda vez que pen- pre... lindo”. Não dessa vez.
sava nisso, então, fazia um ... Até mesmo no dia dos Pegou-o, sentou-se e
desenho e mostrava para a pais, quando os coleguinhas olhou cada detalhe com a
mãe. A mãe sempre dizia entregavam os presentes atenção que nunca antes
algo como “Que lindo, filha” feitos na escola, enquanto havia dado a nenhum dos
e Aninha não entendia ela levava mais um daque- inúmeros desenhos da filha
bem o porquê. Achava que les “presentes idiotas” para — era mesmo um desenho
a mãe tinha um estranho casa, aumentando a coleção especial — lágrimas rola-
gosto para desenhos e saia sobre a estante, à espera de ram enquanto seus olhos
resmungando: um pai que nunca vinha... percorriam cada traço do
— Adultos não entendem Era isso: faria um pai “desenho secreto de Ani-
“nadica de nada” mesmo. imaginário! O mais perfeito nha”:
A mãe respondia: — dos pais, que combatesse Ele trazia flores e pás-
Olha a língua! — e ela até as forças do mal e ainda saros e, como sempre, era
tentava obedecer, mas olhar ouvisse suas estórias. Me- muito colorido. Trazia
a própria língua era uma lhor que isso: ele contaria também, no centro, três bo-
tarefa difícil! Acabava guar- novas e incríveis aventuras necas de mãos dadas: uma
dando o papel junto aos e nunca se esqueceria do menina de sardas e maria-
outros desenhos secretos e seu próprio dia. chiquinhas; uma maior, de
se emburrando pelo resto E assim Aninha começou pijamas, chinelos e longos
do dia. o mais lindo desenho que cabelos soltos e uma menor,
Até que um dia surgiu a alguém já havia criado. Um encurvada, de óculos, em-
ideia. Uma ideia brilhante! desenho feito de sonhos, bora sem orelhas. Sob elas
Outra delas, afinal, tinha esperanças e fantasia: um havia plaquinhas identifi-
muitas ideias brilhantes, desenho mágico! cadoras dizendo, respecti-
mas esta parecia realmente vamente: “aninha, mamãe e
Levou uma eternidade vovó” e sobre elas voava um
especial: terminando o tal desenho, homem de rosto borrado.
— O que é que só uma escolhendo as cores certas, Ele apresentava vastos bigo-
criança pode fazer para fazendo pássaros e flores ao des e capa. Carregava um
mudar o mundo? Imaginar! redor e quando, enfim, ter- par de orelhas em uma das
Precisava imaginar algu- minou, correu para mostrar mãos tinha e um bolo de
ma coisa que combatesse as a todo mundo, começando dinheiro na outra. Na capa
forças do mal. Assim, pode- pela mãe: estava escrito em letras
ria deixar sua mãe em casa — O desenho secreto de grandes e coloridas “meu
e trazer os ouvidos da vovó Aninha. superpai”.
de volta. Se sua mãe ficasse Pena que naquele dia A mãe a abraçou for-
em casa, poderia abraçá-la sua mãe demorou tanto te, acordando-a e naquele
com bastante força e, as- para chegar, que ela aca- momento Aninha soube: “o
sim, nunca mais precisaria bou adormecendo no sofá desenho funciona!”
crescer! Se não crescesse, a sua espera, agarrada ao
a mamãe não viraria uma Sentiu-se muito feliz nos
desenho. Não viu a chegada braços da mãe. Foi como se
vovó e a vovó não iria à da mãe, mas se visse, não
parte alguma! Contariam o tempo parasse.
entenderia a sua reação: Ao
estórias o dia todo e todos ver o desenho que a filha Agora, ela nunca mais
os dias. Comeriam biscoitos segurava, já amassado, junto precisaria crescer...
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Ju Blasina
O pé de macaca
Era uma vez... tentava persuadir a maca- disso.
Uma menina loirinha, ca a deixá-la em paz, até Muitos anos se passa-
um pouco sardenta, outro porque, cá pra nós, devia ter ram e a menininha, — que
pouco tímida e “um tan- um bocado de micróbios, já deixou de ser "inha" há
tinho" medrosa. Tá bom, não na mãe, na macaca! A mais tempo do que gosta
bastante medrosa. Temia mãe era paranóica com mi- de admitir — até hoje, não
até as moscas — paradas! cróbios. Paranóico é como pode ver um pé de unhas
Até que num belo dia de se chama alguém que cisma vermelhas que logo sente
sol foi levada por sua mãe com uma coisa sem sentido. um arrepio e pensa:
para um passeio especial: O E assim a menina tornou- — Pé de macaca: Ahhhh-
circo... se paranóica. Não com ma- hhhh!
— E seria esta uma estó- cacos de forma geral, mas
quanto a unhas vermelhas, *baseado em uma história
ria feliz, não fosse por ela: real. Os nomes das persona-
a macaca das unhas verme- independente do pé em que
se encontrem. gens envolvidas foram troca-
lhas. dos para proteger a identida-
A garota viu a macaca —A macaca do pé ver- de das vítimas. A macaca se
e a macaca viu a garota. melho me pediu um beijo. chama Xita. Bem, na verdade
Não só a viu, como gamou. Macaca... Pediu... Pé... Pé de eu não lembro, inventei este
Queria um beijo, a qual- macaca! agora. Vou perguntar para a
quer preço! A menina lá, O trauma não foi beijar minha mãe!
toda encolhida no banco a macaca, foi ver bicho ves-
do circo, enquanto sua mãe tido de gente e convencido
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Contos
(dedicado a Marcia
Szajnbok, pela parceria,
e a Joaquim Bispo, o ver-
dadeiro Ursinho Joca).
Ursinho Joca
e os Pardais
36 SAMIZDAT setembro de 2009
Era um tempo difícil limpos e penteados para, como os passarinhos, que
para os habitantes da flo- só então, abocanhá-los. E finalmente ficaram quietos.
resta. Os Pardais enfiaram ainda, se chegava o inverno, Assim que percebeu que
na cabeça que eram os me- o Urso Joca tinha de dormir estavam prestando atenção,
lhores cantores do mundo, os exatos noventa dias, nem o Urso parou de cantar e
e, querendo convencer mais um dia a mais ou a menos. entregou a cada um deles
alguém além deles próprios, Foi justamente num in- um caderno de partituras.
resolveram começar a can- verno desses que os Pardais Como aprendeu bem o par-
tar nas portas das tocas dos empoleiraram-se à entrada dalês, ensinou aos Pardais
outros bichos. Alguns nem da caverna do Ursinho Joca, tintin-por-tintin a notação
prestavam atenção, outros quando ainda lhe restavam musical, todas as escalas e
se chateavam um pouco, vários dias até a primavera. os acordes maiores, meno-
outros ainda até achavam Obviamente, o metódico res, em sétima dominante
bonito aquela cantoria – Urso saiu de lá muito, mui- e em sétima diminuta.
sobretudo os gatos-do-mato, to contrariado. Sem perder Arriscou-se até a organizar
que tinham uma simpatia, a compostura, porque era com os pardais um coral de
digamos, ancestral pelos um ursinho muito polido, três vozes. Assim, Joca pode
passarinhos. Os Pardais, parou diante dos Pardais, voltar para sua caminha, e
coitados, até que tinham ta- endireitando os óculos na dormir os tantos dias que
lento. Mas todos cantavam ponta do focinho redondo ainda faltavam à hiberna-
cada um em seu tom, com e preto. Em um instante, ção daquele ano.
seu timbre particular, e al- arquitetou um plano para Joca não ficou menos
guns, tentando atingir notas voltar a ter paz. irritadiço com as imperfei-
mais altas que os outros, ções alheias, nem com as
esqueciam completamente a Como não sabia falar
pardalês, nem se deu ao suas. Mas, quando a pri-
noção de harmonia. Po- mavera chegou e ele saiu
rém, um dos moradores da trabalho de falar com os
cantadores. Foi direto até o para dar o primeiro passeio
floresta ficou extremamente depois dum longo sono, se
irritado com a nova mania oco de árvore onde morava
a Professora Coruja, para bem que interrompido no
dos Pardais: o Ursinho Joca. meio de um sonho, sentiu-
tomar umas aulas do dito
Dentro de sua toca, o idioma. Depois de aprender se muito bem quando ouviu
Ursinho Joca não fazia o suficiente para se co- os Pardais se arriscando a
outra coisa senão dedicar- municar, era um cursinho compor umas músicas eles
se à perfeição, em tudo o instrumental de sessenta mesmos a partir das pre-
que fizesse. Se colhia frutas, horas, o Urso Joca foi tomar ciosas dicas que ele trouxe
todas eram idênticas, ou no umas lições, imaginem só, do Maestro Cigarra. A vida
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Contos
A última fada
38 SAMIZDAT setembro de 2009
dedicado ao Henry, à Denise e por muitos anos, mas desde
especialmente que abandonou sua terra
natal, fugindo como uma
à Bia, a última fada criminosa pelas formidáveis
muralhas mágicas da Cidade
A fuga das fadas da Cida- Argêntea, suas premonições
de Argêntea deixou a popula- não eram mais as mesmas.
ção em pânico. Sabia-se que O sol já se pusera, mas
tempos difíceis viriam; era um fiapo de luz baça ainda
inevitável. Nenhum dos cris- entrava pela ampla porta
tais mágicos restou na Torre de pedra. Os braços nus
do Tempo. As tempestades, a arrepiaram-se ao toque da
fome, as feras, a discórdia e a brisa. Sabia que permanece-
morte, coisas desconhecidas ra naquele lugar por tempo
do Povo de Prata, atingiriam demais. A relva que cobria
aquele fabuloso país-cidade. como um manto as costas
Sem as fadas, que eram as da colina baixa onde ficava
únicas capazes de ouvir e o edifício decrépito ainda
interpretar os cristais, mesmo estava molhada – e caminhar
os habilidosos Senhores do no barro é como traçar uma
Tempo não passavam de fa- linha entre o perseguido e o
zedores de truques. A última perseguidor. Uma última vez,
esperança dos poderosos era antes que a claridade acabas-
em uma criança-fada cha- se por completo, desenrolou
mada Anaxya. Mas um dia, o pequeno embrulho que
como seria de imaginar se os trazia oculto na faixa em sua
Senhores da Torre do Tempo cintura. Assim que Anaxya
fossem dados à imaginação, descobriu a minúscula esfera
sua última esperança fugiu. de cristal, ouviu o canto que
Se ela não fosse encontra- lhe era tão familiar, audível
da, a Cidade Argêntea pas- somente aos de sua raça.
saria a ser um lugar como A memória de sua infân-
todos os outros. cia, da infância de seu espí-
*** rito, de todas as suas vidas e
das vidas de todas as criatu-
Anaxya acordou-se de um
ras estavam naquela canção.
sono estranho, e percebeu
Admirou-a, e desejou ficar
que anoitecia. As ruínas onde
presa naquele instante para
se refugiara foram uma pro-
sempre, deleitar-se com a
teção segura para a tempes-
aurora do mundo e a dança
tade daqueles dias, mas não
dos sons do Universo em sua
seria em hipótese alguma
cabeça. Mas a jovem sabia
empecilho para o faro de
que esse era um dos muitos
seus perseguidores. Sua intui-
prodígios da pedra, que não
ção fora uma guia confiável
Foto: Henry Alfred Bugalho
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era boa nem má, mas era pe- ruínas. Era um lugar agou- que eles chamam aniversário.
rigosa. Teve de impor a sua rento, proibido às pessoas Eles dizem que até eu tenho
vontade à da jóia para não comuns pelos Senhores do um, mas eu nunca entendi
ser fascinada. O que preci- Tempo, mas proibido sobre- isso direito. Eu, ele e a chefa
sava naquele momento era a tudo às fadas. Era uma sede vamos tirar umas fotos. Quer
visão do caminho que deve- dos cultos antigos, quando o dizer... Eles vão tirar fotos, e
ria seguir, e só conseguiria Tempo não existia e as fadas eu vou junto. Querem vir?
tal visão se dominasse a jóia. eram as soberanas. Mesmo — Não, não. Gracias. A
E isso ela sabia fazer com amedrontados, os dois caça- gente vai ficar por aqui
alguma proficiência. dores seguiram colina aci- mesmo. Daqui a pouco vai
O que Anaxya não sabia ma e viram o grande domo, passar o carro do correio, e
era a importância do lugar chamuscado como que por a gente quer desempatar isso
onde estava. um incêndio arrasador. Bem hoje.
no centro, encontraram os
Assim que proferiu as — Ok. Até.
poucos pertences de Anaxya,
palavras secretas que abri- — Tchau, Bia. Adorei a
carbonizados. E, junto deles,
riam os olhos de sua mente, coleira nova.
as duas metades de um pe-
e isso dependia mais dela
queno globo de cristal. Depois que o trio com-
própria que do cristal má-
*** posto por Bia e o casal de
gico, Anaxya percebeu uma
humanos que a acompanha-
ligeira modificação no ar, nas — Essa é uma história
va se afastou, Tom e Rocky
paredes, no teto, em um cír- muito bonita, Tom.
voltaram a confabular.
culo do qual ela era o centro. — Gostou? E você não vai
Era como se estivesse mer- — Será que ela esqueceu
me perguntar o que aconte-
gulhada em um fluido. Podia tudo mesmo?
ceu com a fadinha fujona?
se mover, mas não era como — Olha. Não sei. Mas
— Hmmmmm... deixa eu
antes. Sentiu-se lenta como enquanto isso, a gente fica de
adivinhar: o caminho que
num sonho, irresistivelmente olho nela.
ela devia seguir não era no
letárgica, e sustentar-se em
Mundo Mágico, mas na Ter- — Eu, por mim, preferia
pé ficou impossível. Sentiu-se
ra. Então, seu espírito de fada que ela não lembrasse de
caindo, mas era como se flu-
caiu na Terra, e ela renasceu nada, nunca mais.
tuasse, ficando mais e mais
em uma linda cachorrinha — Eu também. Até tenho
na horizontal, e os olhos
que mora em South Harlem. saudades de casa. Mas... pô,
fecharam muito devagar. A
Pelo latão do McDonnald’s! eu adoro Nova Iorque.
esfera de cristal escapou-lhe
Você já contou essa história
pelo vão dos dedos e caiu no — Olha! É o carteiro!
um zilhão de vezes!
chão como uma gota na su-
— Pega! Pega!
perfície intacta de uma bacia — Você fala como se não
cheia d’água. Com a queda, gostasse de ouvir...
tudo dentro das ruínas se — Ei! Quieto! Ela tá vindo
consumiu num clarão. aí! – cochicha Rocky, disfar-
Os perseguidores da çando-se todo. – Oi, Bia! Vai
criança-fada encontraram passear?
com alguma facilidade a — Oi, pulguentos! O chefe
trilha deixada por ela até as tá de folga hoje, uma coisa
ficina
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Contos
O Pergaminho Esquecido
Henry Alfred Bugalho
minhos levava para cima, para ver — Basta! — Kzar vos e, hoje, ela é até mais
para o cume, para onde ja- se decidiu — Voltarei para conhecida do que a lenda
zia o pergaminho, o outro os meus. do pergaminho: as aventu-
levava para o vale, para a ras de Kzar são contadas
O herói desceu a mon- nas praças públicas, para
cidadela, para onde mora- tanha e chegou à cidadela.
vam sua família e amigos. crianças antes de elas irem
Foi saudado com festivi- dormir, nos teatros e nos
— Doze meses! — Kzar dades nunca vista antes salões da corte.
arfava — Doze meses longe naquela região.
dos que amo! Vale a pena A imaginação venceu
Kzar retornou à vida o pior dos inimigos — a
tanto esforço por causa pacata, dos dias sem sur-
dum mero rolo de papel? realidade.
presa, mas de afeto e
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Contos
Do Reino da Carochinha
Simone Santana
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Contos
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Guilherme Augusto Rodrigues
Arrependimentos
Foram certeiros, assim raiva, exaurida, já se en- casa se tornarem insu-
tudo retomou a paz e contrava na chácara com portáveis.
alegria de outras épocas. os dois filhos, um casal.
Bateu a porta e saiu... Resolveu subir ao
O marido sozinho em sótão, lugar em que guar-
Ele estava arrasado, casa pensativo. Refletiu daram durantes anos as
havia acabado de brigar sobre suas atitudes, como lembranças, objetos de
com a mulher. O casa- tem agido. Não tem sido valor pessoal de todos e
mento não ia bem. Per- bom nem para a mulher, outras velharias. O apo-
deu a beleza, a alegria e a nem para os filhos e nem sento estava empoeira-
vida. E vieram sucessivas para si. Durante esses do, cheirando a mofo e
brigas, sem explicações, últimos anos acumu- muito bagunçado. Numa
sem soluções. lou coisas desagradáveis rude mesinha de madeira
e que em outra época pegou um porta-retrato,
Devia ser o começo do condenava. Fez a vida da tirou a sujeira e desa-
fim. A mulher furiosa de família e o ambiente em cobertou uma foto de
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Contos
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nos que uma bruxa má e a bruxa e fez saber que a rir, acompanhado do
poderosa. E logo ali fez o estava ali para as pergun- pássaro, do cão e do gato,
seu feitiço: tas. Quando o rei chegou perguntou ao conselheiro
e não conseguiu respon- se tinha a certeza, se era
“Como não quiseste
der, ela não quis saber mesmo aquele o sábio.
ajudar-me, vou tirar-te
dos choros e pedidos.
aquilo que mais gos- Mas acalmou-se quan-
Disse: “Para o ano que
tas. Mas irei dar-te uma do soube do plano que
vem estarei outra vez. Por
oportunidade: Todos os iriam seguir. Passaram-se
isso, prepara-te”
anos, no primeiro dia vi- os dias e o Rei já não
rei aqui à tua porta fazer O Rei, não sabendo estava tão triste pois
três perguntas. Se conse- bem o que fazer, man- acreditava que a ideia iria
guires responder certo a dou chamar todos os funcionar. Finalmente,
todas elas, então devolve- seus conselheiros. Mas as chegou a altura, a noite
rei a tua filha querida.” ideias que eles apresen- das perguntas e, quando
tavam eram más. Deses- a velha tocou, o Sabichão,
E, dizendo isto, largou
perado, mandou chamar vestido com vestes de
uma risada e desapare-
o Bobo da Corte. Como criado foi abrir a porta.
ceu. O Rei mandou cha-
toda a gente achava que
mar Rubi mas, por mais “Onde está o teu se-
o bobo era muito burro,
que procurassem em nhor?” disse a bruxa
ele era o único que ainda
todas as dez mil e uma
não tinha sido consulta- “O meu senhor está na
salas, não conseguiram
do. cama, doente. Mas man-
encontrar a princesa.
dou que viesse eu respon-
“Senhor, uma prima
Ficou inconsolável e der às perguntas. Se não
da minha mulher ouviu
mandou arautos a to- te importares…” disse
falar de um homenzinho
dos os pontos do reino. o Sabichão
muito sábio. Lá na ter-
Quem soubesse onde se
ra todos lhe chamam o A bruxa desconfiou
encontrava a princesa
Sabichão. Talvez ele possa um pouco mas olhou
receberia dez mil moedas
ajudar” para o aspecto do ho-
de ouro. Ao fim de dois
mem. Com o cão e o
meses, todos voltaram O Rei, que já tinha
gato e o papagaio empo-
sem novidades. O baile tentado tudo o que podia,
leirado no ombro. Parecia
foi cancelado e o velho decidiu que não custava
um boneco. De certeza
rei passou a viver quase nada tentar mais aquela
que não ia conseguir
não saindo da sala da solução. Enviou os emis-
responder. Então mostrou
Tristeza. sários para trazer o sá-
um pequeno saco e fez a
bio. Dois dias depois, ele
O tempo passou até primeira pergunta
chegou.
que chegou a primeira
“Estás a ver este saco?
noite de inverno. O som Esperava um senhor de
Quero que me digas
forte da chuva foi inter- lunetas e ar importan-
quantos grãos de areia
rompido pelo bater no te. Por isso, quando viu
estão dentro dele”
portão: Toc, toc, toc. Era o anão de cara rosada
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Contos
As Amaranthas
Sheyla Smanioto Macedo
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Contos
Léo Borges
http://www.flickr.com/photos/brianscott/1465695576/sizes/o/
amena no Monte Kofa, sudo- defesa contra armas de fogo mais de pânico para suas
este do Arizona, Estados Uni- de cruéis caçadores e seus asas carregarem. Seu porte
dos, era novamente cortado cães farejadores. Os pares nobre e magnânimo cedia
por estampidos penetrantes. da linhagem accipitridae já lugar a um semblante de
Com as folhagens das árvo- haviam sido dizimados e de ave comum, e isso a irritou
res próximas sacudidas pelos sua espécie ela era uma das profundamente.
tiros, o terror mais uma vez únicas em Sonora.
entrava pelos ouvidos sensí- Lembrou-se do que certa
veis daquela criatura. Voou. Um voo longo e vez um camaleão, que fora
sem rumo. Não sabia para uma de suas refeições, lhe
Outrora caçadora de onde ir, apenas queria fugir, havia dito pouco antes de
subsistência, a onipotente encontrar um lugar que a virar almoço: “Você não pas-
aquila chrysaetos se via agora acolhesse. Sentia-se agora sa de um pombo rupestre!
encurralada por assassinos como uma de suas presas, Queria ver se manteria essa
frios, que a desejavam apenas perdizes ou pequenos lagar- pompa numa cidade como
como um portentoso troféu tos, que corriam assustados Nova York! Lá você morreria
empalhado, da mesma forma quando viam a sombra ágil de fome, pois na Big Apple
como já haviam feito com planando por perto. O mer- as aves comem pipoca dos
outros de sua família. Ainda gulho da ave de rapina era turistas e você não teria
que aquele fosse seu habitat, uma morte quase certa para uma única lagartixa para se
um lugar de paisagens belas, qualquer um desses seres. No servir!”. De certo foram as
não obstante considerado entanto, agora era ela quem últimas palavras do réptil
hostil pelos invasores, lhe es- experimentava a sensação audacioso, mas que feriram
capava motivos para perma- de fragilidade e medo. Cada fundo a ave de garbosa penu-
necer. Seu espírito guerreiro quilômetro que se afastava gem amarronzada.
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estava mesmo difícil de abrir. torcendo o bico ao ouvir do Empire State, deslumbrou-
Já encontrara outras assim, nova comparação com pom- se com a Estátua da Liberda-
mas normalmente suas pre- bos. O insólito encontro aca- de, deu rasantes pela elegante
sas não demoravam muito bou marcando uma amizade Fifth Avenue, brincou com
para rasgar o lixo. Quando entre ambos. o touro de bronze na Wall
finalmente conseguiu, viu Street e se impressionou com
uma sombra agigantando- – Qual seu nome, pássaro? as luzes de Times Square.
se e do céu um pássaro se – Samiz. E o seu? Enquanto curtia os endereços
engalfinhou com ele na luta que Beethoven apresentava,
pela comida. – Não tenho. Mas, algu- Samiz percebeu, do alto, que
mas pessoas me chamam de a vida de seu amigo era feliz
– Ei, o que é isso?? – per- Beethoven. Enquanto alguns apenas em aparência. Num
guntou o vira-lata, ainda sem cachorros ficavam parados dos rasantes, viu quando
saber bem quem era seu em restaurantes finos, es- um menino, com uma saco-
rival. perando sobras da janta, eu la com comida, atirou um
preferia ficar na porta de objeto na direção do cão, que
O pássaro, faminto e sujo,
saída da Broadway! empinava o focinho, tentando
pulava e tentava bicar o que
captar algum aroma agradá-
encontrava dentro da sacola. – Hum... você é mesmo vel.
– Eu que pergunto. Que um cão sofisticado, hein? –
disse Samiz, lembrando dos Vendo aquilo, a águia, des-
comida é essa? – disse a ave
agradáveis sons agudos que o ceu como um raio e inferni-
referindo-se ao que encon-
vento fazia quando zunia pe- zou o garoto que, ao correr,
trara.
las fileiras de cactos no Kofa. abandonou a sacola no chão.
Quando viu se tratar de
– Apenas leio jornais, – Os pássaros estão me
uma águia real, o cão de rua
livros e revistas rasgados e atacando! – vociferou, desper-
ficou perplexo.
amassados que as pessoas tando olhares curiosos para
– Uma águia em plena jogam fora. Não sou nenhum a águia, que, então, pousou
Madison Square?! beagle, chow chow, poodle sobre a haste de uma bandei-
ou schnauzer, mas nem por ra americana, aprumando as
– Sim. Sou uma legítima isso fico fora do que aconte- penas.
aquila chrysaetos linnaeus e ce no mundo. Viver na rua
vim de longe conhecer, com tem algum charme – disse o Beethoven, apesar de não
pretensões de morar, em cachorro com uma melan- ter aprovado o ataque, apro-
Nova York – disse o pássaro colia disfarçada. – Venha, veitou para rasgar a embala-
procurando mostrar nobreza Samiz, serei seu guia aqui. gem largada. Para sua alegria,
no falar. Vou mostrar-lhe as melhores encontrou batatas-fritas em
partes de Nova York sem profusão, além de uma fina
– Já vi falcões no Central barra de chocolate.
Park, mas não uma águia gastar nada além de penas e
real. Seu porte é mesmo patas. Samiz quis crer que aquele
nobre, mas essa sua penugem Beethoven sabia que a ave garoto iria passar a respeitar
empoeirada e esse seu ataque real poderia visitar os pontos os animais depois de sua
esfomeado à minha sacola turísticos por vários ângulos firme atuação, que lembrava
lembrou-me mais um desses justamente por sua condição até alguns de seus pares no
pombos de marquise. alada, mas mesmo assim gos- célebre filme de Hitchcock.
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tentando ali permanecer sem cão com o acessório. Bee- ainda naquela noite, rumo ao
ser enxotado, não teve dúvi- thoven mesclava felicidade e seu habitat natural no oeste
das: era aquele cão que ele incredulidade, pois sempre do país.
queria ter! apreciou o menino e sua ofi-
cina mambembe, mas nunca Beethoven lembrou-se da
Pediu que todos abrissem imaginou que pudesse tê-lo história contada por Samiz
passagem para o cachorro como dono um dia. sobre escolhas e decisões.
que, em princípio, não en- “Um entre tantos”: o escolhi-
tendeu que era com ele. Mas, O garoto abriu passagem do entre vários fora ele. Mas,
quando viu que não havia entre as pessoas que ali esta- e o amigo de penas que o
mais ninguém atrás de si, vam sob aplausos destas para acompanhara em toda aquela
tomou um susto. Será mesmo o cão escolhido. Beethoven jornada? Onde estava? Pre-
que o menino queria tocá-lo? estava mesmo impressionado ocupou-se. Não o viu mais
Queria conhecê-lo? Queria se com os elogios que agora lhe desde que estivera em transe
tornar seu dono? eram dirigidos e se esqueceu com o ocorrido. Começou
momentaneamente de Samiz. a olhar para todos os lados,
Beethoven caminhou com A ave, pousada sobre o mo- para o topo dos edifícios,
receio, olhando as pessoas a numento, acompanhava com mas já era praticamente noite
sua volta, pessoas que antes satisfação o desenrolar do e, como não possuía a mes-
eram sérias e, agora, afaga- episódio. Seu amigo encon- ma incrível visão da águia, só
vam sua cabeça e mexiam trara um companheiro e ela o que enxergava era a esplen-
em seu focinho. Ao chegar considerou ser melhor não dorosa iluminação da Ro-
próximo, recebeu um re- romper aquele laço harmôni- ckefeller Park. Dat percebeu
pentino, agradável e hones- co entre ambos. o agito do amigo e parou o
to abraço do menino, que passeio para confortá-lo. A
fechou os olhos ao envolvê- Viu que seu jeito, outrora criança era detentora de uma
lo. Beethoven sentiu algo que prepotente, havia muda- sensibilidade nata na com-
nunca sentira antes, um cari- do com Beethoven e toda preensão de animais.
nho especial que lhe trouxe aquela saga. A humildade
profunda felicidade e, então, do cão havia lhe tocado. Os – Sei que está aflito um
retribuiu com uma lambida momentos alegres ao lado amigo seu. Mas acredite que
no rosto. de um cachorro vira-lata ele está bem, pois sabe que
lhe deram nova perspectiva você está feliz agora. Estare-
– Qual será o nome dele? e, agora, mesmo os basset mos em casa em breve e logo
– alguém perguntou. hounds farejadores do Kofa ele também vai estar.
– Ele possui nome desde não lhe pareciam ameaça-
dores. Aquela aventura havia Beethoven impressionou-
sempre: Beethoven. se com Dat. Viu nos olhos
sido mesmo muito boa,
talvez o “marco zero” de sua do garoto o mesmo brilho
O cão levou um susto:
vida, como o nome daquela flamejante que havia nos de
“como ele sabe meu nome?!”.
bela escultura sugeria. Gos- Samiz. O cãozinho estava
Mas, lembrou-se que aquele
tara enormemente de Nova não apenas intimamente feliz
era um menino especial e
York, mas era hora de voltar. como teve certeza de que
que provavelmente já havia
Lembrou-se da notícia sobre naquele entardecer ocorrera
depreendido, de alguma for-
Sonora, de que não haveria alguma simbiose entre Samiz
ma, que seu nome só poderia
mais caça na região, e re- e Dat. E que isso, de alguma
estar relacionado com o mes-
solveu que iria partir. Deu forma, foi provocado por sua
tre da música que ali servia
um último giro pela ilha de perseverança, e a do amigo
como fundo.
Manhattan, observando pela alado, em querer encontrar
Dat, que já havia inclusive última vez seu amigo canino um lugar para viver.
arrumado uma coleira para e, com a saudade já apertan-
o seu novo companheiro, do seu coraçãozinho, seguiu,
levantou-se e paramentou o
Mariana Valle
Casal moderno
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60
Contos
www.revistasamizdat.com 61
Contos
Giselle Sato
Um conto de fadas
62 SAMIZDAT setembro de 2009
Amanda estava triste. Na tivo verdadeiro. reu para casa sem se des-
hora do recreio ia para o pedir da coleguinha. Entrou
balanço, longe das outras -Está bem querida. As apressada, beijou a mãe e
meninas. Não brincava de professoras estão observando subiu as escadas do segundo
pular corda ou amarelinha. com atenção, vamos redo- pavimento da casa.
Esqueceu as bonecas e a tro- brar as atenções e aguardar
ca de figurinhas. um pouco mais. O quarto da menina era
um sonho, bonecas lindas
Tudo começou duas se- A piscina na casa de enfeitavam a cama e várias
manas após o início do ano Amanda era o ponto de prateleiras. Muitos jogos e
letivo. Apesar dos esforços encontro das amiguinhas brinquedos. Amanda es-
dos professores, a pequena nos finais de semana. Todas piou pela fresta da janela da
aluna não contava o motivo adoravam as brincadeiras casinha de bonecas. Uma luz
da mudança de comporta- com Chocolate, o alegre piscou várias vezes e a me-
mento. Os pais de Aman- ‘’labrador’’, que amava água nina sorriu:-Oi Agnes, como
da estavam preocupados. e bagunça. Agora andavam você está?
Eram médicos e trabalham todas com saudades do cão-
no Hospital Municipal da zinho levado: A luz rosada brilhou su-
pequena cidade do interior, avemente na forma de uma
-Amanda, podemos visitar fadinha. Tão pequena que
cercada de montanhas e o Chocolate?
lagos. caberia na palma da mão da
-Vou sair com mamãe, menina.
Sempre revezavam os vamos ver uma tia doente.
turnos para que a menina Uma fadinha com asas
não ficasse sozinha na casa -Que tia? transparentes e longos cabe-
grande: los azuis caminhou pela sala
-Você não conhece . repleta de móveis em mi-
-Querido, o que esta niatura, sentou-se na mesa e
-Conheço toda sua famí-
menina tem? Está calada piscou para Amanda:
lia, sou sua melhor amiga,
demais
que tia é essa? -Olá amiguinha, como foi
-Pode ser ciúmes do bebê na escola?
-Esqueci o nome, que coi-
a caminho, já conversamos
sa, Julinha. - Tudo bem. Ainda não
sobre isto com ela mas
quem sabe está com receio acredito que você está aqui,
- O que está acontecendo?
parece uma história do livro
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passando e ainda não encon- direções. Um sorriso sur- seus pais.
trei a solução. giu no rostinho da menina
adormecida. Acordou reno- - E se for verdade? Tenho
- Vou até a biblioteca do vada, cheia de idéias e muito medo.
meu pai, ele sempre diz que inspirada. Encontrou Agnes
tudo está nos livros. Volto -Medo? O amor é mais
sentada em uma caixa de forte que o medo Amanda,
logo, fique escondida. Cuida- lenços perfumados:- tive
do com Chocolate, ele come você tem muito amor, preci-
um sonho lindo, parecia de sa confiar no seu coração.
fadinhas verdade.
As estantes repletas de li- Amanda saiu do quarto
-Querida menina, sonhos correndo, acabou tropeçando
vros exalavam um cheirinho podem ser recadinhos espe-
gostoso. no tapete e sofrendo uma
ciais. O que sonhou? queda em frente ao quarto
O sofá confortável, pare- -Que estávamos juntos, dos pais. Os dois correram
des inteiras repletas de obras fadas e crianças. Havia mui- para acudir a menina:
de todos os lugares do mun- tas luzes e o mundo inteiro
do. Amanda nunca se cansa- - Filha, você está bem?
participava. E as luzes acen- Onde está doendo?
va de olhar as prateleiras. diam e brilhavam....
Havia muitos livros de Amanda deixou-se abra-
- Amanda, encontrou a çar pela mãe e começou a
Contos de Fada, cada um solução. Podemos juntar
mais bonito que o outro. chorar
suas amiguinhas?
Folheou alguns, o tempo foi Tão surpresa quanto o
passando, acabou pegando - Não quero festas, estou marido, a mãe ficou longo
no sono. muito triste Agnes. tempo ninando e acalmando
Sonhou com Agnes vo- -Porque querida? a garotinha. Sentiu saudades
ando livre no mundo de faz daquele carinho:- Filhinha
de conta com outras fadi- - Não percebeu que meus querida, está tudo bem, foi
nhas. Havia alegria, como se pais não são meus pais de só um susto, estamos aqui
uma grande festa estivesse verdade? meu bem.
acontecendo,muitas crianças -Como assim? Eles não -Mamãezinha.
brincando e rindo. cuidam bem de você? Não
te amam? -O que está acontecendo
Conforme a garota- Amanda? Porque está cho-
da brincava e as fadinhas -Cuidam sim, mas sou rando assim?
ganhavam brilho, muitas adotada. Sou negra, eles são
luzes piscavam no ar, for- brancos e eles terão um A menina contou pela
mando desenhos em torno bebê em breve. primeira vez o motivo da
do parque do bairro. Aos sua tristeza. Um menino
poucos, tomavam conta da -Amanda, seus pais te soube que ela era adotada
cidade. Mais adiante e o país adotaram e te amam muito. e para implicar passou a
inteirinho vibrava em tons contar histórias de pais que
-Não sei, o Pedro contou mandavam crianças embora
alternados.
que quando o bebê chegar, quando tinham outros filhos.
Finalmente o planeta tudo será diferente.
transformou-se em milhares O que antes era motivo
-Querida, você precisa de alegria transformou-se
de cores fortes, lançando
decidir se acredita no Pedro em um enorme pesadelo
jatos de luz em todas as
ou pergunta a verdade para
-Eu queria contar mamãe, Julinha estava contente -Não adivinha? Precisa-
não tive coragem... outra vez, era a melhor ami- mos de você para existir.
ga de Amanda e partilhavam É a menina mais alegre da
-Filha, de agora em dian- segredos. Juntas olharam a cidade, está sempre animada
te, se surgir alguma dúvida, casinha de bonecas que os e de alto astral. Sua energia
pergunte à sua família. E pais da menina haviam colo- é maravilhosa querida...
você precisa ensinar tudo cado no gramado, a fadinha
isto para Agnes. - Oba! Que bom. Sou a
havia sumido:- Não entendo, menina mais feliz do mundo
- O nome que eu escolhi onde ela está?
venceu? Que maravilha!!! Os pais de Amanda abra-
-Quem? Alguma boneca çados na varanda admira-
- Isto mesmo! nova? vam a alegria das meninas:-
-Não, minha amiguinha O mundo da imaginação
-Papai, vamos terminar a não é maravilhoso? Olhe
arrumação do quartinho da Agnes, ela é uma fada.
como estão rindo com aque-
minha irmã? -Amanda, fadas não exis- les insetinhos.
-Claro filha, mãos à obra tem...
-Querido, são pirilampos
garotinha. -Olhem bem, estão che- coloridos piscando em pleno
Agnes, que tudo obser- gando, são muitas, milhares... sol de meio-dia.
vava, parecia feliz com o Mal havia terminado a -Um pequeno milagre da
desfecho da situação. frase e mil pontinhos co- natureza. Que dia esplêndi-
O dia amanheceu ensola- meçaram a brilhar em volta do, há muito não me sentia
rado e a mãe de Amanda fez das duas meninas, todas tão feliz.
algumas ligações. correram para admirar o es-
petáculo das luzes, eram tão Amanda, Julinha, Camila,
Chocolate parecia adi- pequeninas e lindas. Brinca- Aninha e Isabel assistiram
vinhar que alguma coisa lhonas, faziam mil piruetas a despedida das fadinhas e
estava para acontecer porque para encanto das crianças. a coroação de Agnes. Dora-
não parava de correr e fazer vante uma fada madrinha.
todos os truques que conhe- Flutuando e pousando no
nariz de cada uma delas. As Enquanto existir alegria
cia. e felicidade nos corações
meninas cantavam e riam,
A cozinheira preparou batiam palmas e dançavam puros das crianças, as fadas
delícias e o cheirinho bom como se ouvissem uma mú- estarão sempre próximas.
de cachorro-quente e bolo sica especial: Mesmo que não possam
encheu a casa. ser vistas, são sentidas em
-Agnes, como você está
Logo as meninas chega- linda! sentimentos felizes e inexpli-
ram, rindo e correndo pelo cáveis que acontecem o tem-
gramado. Cinco amiguinhas -Obrigada querida, você po todo e mal nos damos
vestindo maiôs coloridos também está radiante, preci- conta.
pularam na piscina, falando so confessar que nunca per-
sem parar, esquecidas do di meus poderes, desculpe a
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Autor Convidado
http://www.flickr.com/photos/extranoise/161266331/sizes/l/
Chato foi encarar os senhor sabe, aquela parte do Quando a campainha
olhos do inspetor depois de colégio é um mistério. Mas soou, seis horas, fim das
ter visto coisa tão linda pela juro que não vi nada além aulas. Dei um tempo. Corri
janela quebrada. de chuveiros e ladrilhos. para a escada dos fundos.
- Mas eu não fiz nada, seu - Mentira! Pulei a corrente e me aco-
Mota. corei no alto, latões sobre
Mentira mesmo. O banho latões, de olho no buraco
- Mentira. Você violou de Bernadete não saía da da janela. Ouvi as meninas
uma norma disciplinar do minha cabeça. Foi de caso chegando, fazendo barulho,
colégio. Mais importante pensado. Naquela tarde não falando alto, conversando
que isso só um manda- fui embora com os meni- sacanagem. E não sabia que
mento bíblico. E se você nos, fiquei perambulando elas também falavam saca-
não confessar, sofrerá uma pelo colégio até que termi- nagem. Só consegui enxer-
suspensão de dez dias, sem nasse a ginástica das garo- gar um chuveiro na minha
direito a segunda chamada tas. Tinha que pegar pelo frente e fiquei preocupa-
dos exames. Ouviu bem? menos uma delas. Já não do pensando que alguma
Dezzzzzz diassssss! tinha graça ficar imaginan- baranga fosse tomar banho
Dez dias que me enche- do o que havia por dentro logo ali, no meu alvo calcu-
ram de perdigotos. A boca das saias pregueadas, justas, lado. Estava tenso. Dessa vez
porca estava a um centíme- coladinhas nas coxas. Estava não chupei picolé. Fumei
tro do meu nariz. Não pude nervoso, com medo que des- meu primeiro cigarro. Tossi
resistir. cobrissem que eu tinha que- pra dentro, um horror, tosse
brado o vidro da janela na escondida, fumaça infeliz
- Foi só uma espiadinha, noite anterior. Andava pra que quase acaba com a
Seu Mota. Estava subindo lá e pra cá, roía as unhas, festa.
a escada e vi um buraco suava as mãos. Chupei dois
na janela quebrada. Subi e picolés de côco. Um atrás Foi aí que apareceu a Ber-
olhei. Curiosidade pura. O do outro. nadete. Na mosca. A melhor
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perder a chance. Deixá-la a gente pode pedir uma ra. Mamãe está tendo um
sozinha no ônibus, nunca bagaceira. chilique.
mais. Boa idéia. Papai bebia E me mordia a orelha.
Quando a campainha bagaceira no frio, e a brisa - O que você vai dizer
soou, seis horas, fim das fresquinha pedia uma baga- quando chegar em casa,
aulas, saímos juntos de ceira, embora nunca tivesse hein, menino levado? Vai
colégio. E juntos seguimos passado pela minha cabeça levar um surra daquelas,
pela rua sem trocar uma que diabo de gosto tinha menininho desobediente.
palavra, mas houve um pro- uma bagaceira.
gresso: mãos coladinhas e E me lambia o pescoço.
Um garçom mal-encarado
os dedos embaralhados uns apareceu e foi logo dizendo: - Não precisa tremer. Seu
nos outros, esfregando-se e Papai tenente coronel vai
espalhando gostosas sensa- - Maneira, mocinha. Vê se ficar orgulhoso. Você está
ções pelo corpo. Pegamos não dá vexame de novo, que muito bem-acompanhado,
o ônibus sem desgrudes. tu é de menor. numa praça mal-iluminada.
Perguntei o que havia no Estufei o peito. Merda. Por que fui enfiar
fim da linha e ela me res-
- Se incomode não, seu o olho no buraco da jane-
pondeu que nunca tinha
moço. A moça tá comigo. la quebrada? Como é que
passado do terceiro ponto
- O cara de fedelho é de eu fui cair nessa? Pronto.
depois do colégio. Cínica.
maior? Bernadete bêbada com duas
Senti medo. Um medo gos-
bagaceiras. Me lambendo,
toso, que me dava coragem. - Não importa. Meu pai é me chupando, me babando.
Dá pra entender? Medo e tenente-coronel. E eu querendo ir embora,
coragem. Uma mistureba
Bernadete riu de mim. mas com vergonha de ir
tão gostosa quanto a mão
Fiquei vermelho. Tentei embora. Até meu pinto me
que me apertava, me alisa-
disfarçar, mas, que merda, abandonou. Só pensava na
va, me apertava, me alisava.
o que eu poderia ter dito? hora de chegar em casa,
Lá embaixo, o pinto sentia
Que estava me borrando de entrar correndo sem falar
o recado. Embolado, mas
medo de o garçom cismar com ninguém, me trancar
sentia.
com a nossa cara e não ser- no quarto e nunca, nunca
*** vir a gente? Além do mais, mais, acordar praquele co-
O fim da linha era uma lá em casa sempre diziam légio miserável, que só me
praça mal-iluminada. Um que filho de militar manda- fazia passar vergonha.
bar na esquina rodeado de va nesse país. - Me dá um beijo de
mesinhas amarelas, algumas É claro que ele trouxe a língua.
árvores, alguns bancos e bagaceira. Com um milíme- - Agora não, o garçom tá
no meio, bem no meio, um tro de língua, entre o copo olhando...
mastro de uns dez metros e e os dentes, senti um gosto
pouco se via na escuridão. forte de queimar as entra- - Um beijinho só. Língua
Aquilo parecia uma gávea nhas e formigar o couro com língua. Cê vai gostar.
das caravelas antigas, onde cabeludo. - Eu sei como é. Mas
os marinheiros subiam agora não. É melhor a gente
para descobrir coisas novas. Bernadete bebeu num
gole só, para mostrar que ir se arrancando. Tá ficando
Tinha uns ganchinhos, que tarde. Vai ver que nem tem
deviam estar ali para aju- já era veterana em bebidas
violentas. No segundo copo, mais ônibus.
dar alguém a subir, e, lá no
alto, uma bandeira encardi- começou a dizer besteiras. - Se você não me der um
da pouco se mexia de tão Me sussurrava aos ouvidos beijo na boca, vou subir
velha. as maiores sandices, com naquele mastro e só saio se
hálito de bêbada e a voz você me buscar.
Lembrei dos romances da fora de rotação.
televisão. Sentamos no bar e - Tá doida, menina? Vem
ofereci um drinque à Ber- - Papai tenente-coronel cá, vem cá.
nadete. deve estar preocupado. O Bernadete saiu correndo
filhotinho soldadinho não pela praça. Escalou os gan-
- Sou de menor, mas aqui apareceu em casa até ago-
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O lugar onde
a boa Literatura
é fabricada
ficina
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www.oficinaeditora.com
Autor Convidado
Pleno Sereno
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Tradução
Como o camelo
ganhou sua corcova
Rudyard Kipling
tradução: Henry Alfred Bugalho
72 SAMIZDAT agosto de de
setembro 2009
2009
Agora esta é a próxima ele, com um graveto na circunlóquio, e uma inda-
história, de como o ca- boca, e disse: ba, e um punchayet, e um
melo ganhou sua grande pow-wow num canto do
— Camelo, ó camelo,
corcova. deserto; e o Camelo veio,
venha, apanhe o graveto e
mascando asclépia na
No começo dos anos, o carregue como o resto
mais excruciante ociosi-
quando o mundo era de nós.
dade, e riu deles. Então,
ainda novinho em folha,
— Uma ova! — disse o ele disse “Uma ova!” e foi
e os animais ainda estava
camelo; e o cão foi embo- embora de novo.
começando a trabalhar
ra e contou ao Homem.
para o Homem, havia Depois, apareceu o
o camelo, e ele vivia no Depois, veio o boi até gênio encarregado de
meio de um uivante ele, com o jugo em seu todos os desertos, desli-
deserto, porque ele não pescoço e disse: zando sobre uma nuvem
queria trabalhar; e, além de poeira (gênios sempre
— Camelo, ó camelo,
disto, ele próprio berrava. viajam deste jeito, porque
venha e lavre como o
Então, ele comia grave- é mágica), e parou para
resto de nós.
tos, espinhos, tamariscos, circunloquiar e pow-po-
asclépias e acúleos, numa — Uma ova! — disse o war com os três.
excruciante ociosidade; camelo; e o boi foi embo- — Gênio de Todos os
e quando alguém falava ra e contou ao Homem. Desertos — disse o Cava-
com ele, simplesmente
No final do dia, o Ho- lo — é correto alguém ser
respondia “Uma ova!”
mem chamou o Cavalo, o ocioso, com o mundo tão
Apenas “Uma ova!”, e
Cão e o Boi e disse: novinho em folha?
nada mais.
— Os três, ó vocês três, — Certamente que não
Depois, o cavalo veio
sinto muito por vocês — disse o Gênio.
até ele, numa manhã de
segunda-feira, com uma (com o mundo tão no- — Bem, — disse o
sela sobre suas costas e vinho em folha), mas Cavalo — há uma coisa
com um freio na boca e aquela coisa-de-uma-ova no meio de seu Deserto
disse: no deserto não consegue Uivante (e ele próprio
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o ouro da Arábia! O que
ele responde?
trou o Camelo na mais abóbora mágica que virou uma grande chama branca. Então o Gênio
pegou seu leque mágico e abanou a chama, até que a ela se tornasse uma
excruciante ociosidade,
mágica por conta própria. Era uma mágica boa e, na verdade, era uma
fitando o próprio reflexo
mágica muito gentil, apesar de ela ter dado ao camelo uma corcova porque
numa poça d’água.
o camelo era preguiçoso. O Gênio encarregado de todos os desertos era um
— Meu amigo compri- dos gênios mais legais, então ele nunca faria algo realmente cruel.
— Isto é de propósito
— disse o gênio — tudo
porque você perdeu os
outros três dias. Você
poderá trabalhar agora
por três dias sem comer,
porque você pode viver
da sua ova; e não diga
que nunca fiz nada por
você. Saia do deserto e vá
até os três, e se comporte.
Mexa-se!
E o camelo se mexeu,
ova e tudo o mais, e foi Esta é a imagem do Gênio encarregado de todos os desertos, condu-
se juntar aos três. E des- zindo a mágica com seu leque mágico. O camelo está comendo um ramo
de aquele dia, o Camelo de acácia, e ele havia acabado de dizer “uma ova” vezes demais (como
sempre carregar uma ova Gênio o havia dito), e assim a ova está surgindo. A longa coisa entoalhada
(nós chamamos “corco- crescendo da coisa como uma cebola é a mágica, e você pode ver a ova
va” agora, para não ferir sobre o ombro dele. A ova se encaixa na parte plana das costas do camelo.
E camelo está ocupado demais fitando sua própria beleza na poça d’água
seus sentimentos); mas ele
para saber o que está acontecendo com ele.
nunca conseguiu recu-
perar aqueles três dias Sob a imagem verdadeira está a imagem do mundo novinho em folha.
perdidos no começo do Há dois vulcões fumegantes nele, algumas outras montanhas e algumas
mundo, e ainda não con- pedras, um lago, uma ilha negra, um rio sinuoso e um monte outras coisas,
seguiu aprender como se bem como uma Arca de Noé. Não pude desenhar todos os desertos dos
quais o Gênio era encarregado, então só desenhei um, mas este é o deserto
comportar.
mais desértico.
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A corcova do camelo é um feio calombo Preta e azul corcova!
Mas mais feia ainda é a corcova A cura pra todo o mal é não ficar parado.
Que ganhamos por pouco fazer. Ou descansar com um livro diante da larei-
ra;
A horrível corcova —
Levantamo-nos da cama com os cabelos
despenteados A preta e azul corcova!
E com uma voz desafinada. Eu ganho uma também, assim como você —
Camélica corcova —
www.revistasamizdat.com 77
Teoria Literária
Os desafios
da autopublicação
Henry Alfred Bugalho
www.revistasamizdat.com 79
alguns casos, até consegui- cinematográficas —, sem maneira espontânea e inu-
ram sobreviver das Letras, a mínima necessidade de sitada, o blog se tornou um
mas sob extrema penúria, me enquadrar em parâme- sucesso e, um ano depois,
enquanto alguns poucos, tros mercadológicos, sem o virou um livro.
especialmente durante o compromisso de produzir Nenhuma outra obra
século XX, chegaram a fazer algo vendável. literária minha chegou nem
fortuna com a escrita. No No entanto, o número de perto da repercussão deste
Brasil, o primeiro a autor leitores era relativamente blog, nem antes, e, por en-
a viver exclusivamente de pequeno, isto até 2007. quanto, nem depois.
direitos autorais foi Érico
Foi mais ou menos nes-
Veríssimo, isto apenas na
ta época que conheci a
década de 1930.
lulu.com, uma editora sob
Ficção X não-ficção
Este fato nunca com- demanda que caiu como
prometeu a qualidade da uma luva para minhas
Sempre Sempre ouvi
escrita, nunca significou necessidades como autor.
relatos de que obras de
um demérito para os au- Nesta editora, bastava você
não-ficção costumam fazer
tores — inclusive, alguns carregar os arquivos com o
mais sucesso do que de fic-
dos mais influentes escri- texto que o seu livro estava
ção. As razões para isto me
tores da modernidade não publicado. Não há estoques,
parecem evidentes: vivemos
obtinham renda alguma não há tiragens iniciais,
numa era utilitária, tudo
da escrita, tais quais Franz não há gasto algum para o
precisa ter uma serventia,
Kafka e Fernando Pessoa —; autor. Simplesmente, o leitor
o conhecimento precisa ser
apenas recentemente que acessa o sítio, encomenda
aplicado em alguma função.
viver da escrita, ou enrique- o livro, eles imprimem e
A ficção é inútil por sua
cer através dela, se tornou mandam pelo correio para
própria natureza. Por mais
uma meta, uma proposta de a casa do comprador. Me-
que retrate a realidade, ou
carreira. lhor, impossível!
apresente problemas sociais,
A existência do “escri- E o mais surpreendente
ou instigue mudanças, pelo
tor profissional” é recente, para mim foi que, apesar de
fato de não ser verídica, ela
e aparentemente terá vida todo o conteúdo do livro
não tem a mesma serventia
breve, se depender da inter- estar disponível de graça
que uma obra de não-fic-
net. no blog, em um ano o guia
ção, que visa estar de acor-
Por isto, que o retorno do com a verdade. havia vendido mil exempla-
a uma escrita descompro- res, sendo que 70% ou 80%
Em 2007, criei o blog
missada, livre da necessi- deles haviam sido de exem-
“Nova York para Mãos-de-
dade monetária me atraiu. plares digitais (e-books).
Vaca” (http://www.maos-
Através do blog, eu poderia “Se houve tanta procura,
devaca.com), para falar de
tornar públicos meus textos não teria sido melhor tê-lo
coisas baratas na cidade. De
— contos, crônicas, críticas
http://www.flickr.com/photos/davidw/1244497565/sizes/m/
comercial?”, você me pergun- cisaria vender 4 mil exem- York para Mãos-de-Vaca”. Obra
de sucesso, apesar da publicação
ta. plares, o que é um número independente.
Talvez, e até houve um considerável. Topo: Livraria El Atheneo, em
editor que se mostrou Por fim, ao estar à frente Buenos Aires. O maior problema
da literatura independente: distri-
interessado. Todavia, numa da publicação, fica a meu buição.
editora comercial, o autor critério quando atualizar o
la, a dinâmica do mercado
ganha 10% do preço de livro, quando aumentar ou
editorial.
capa, ou seja, se um livro reduzir o preço, quanto do
custa 30 reais, o autor conteúdo eu posso distri- Quase todos os meus
ganha 3 reais, sendo que o buir gratuitamente, ou seja, romances estão publica-
restante do valor se esvai na tudo relacionado ao meu dos independentemente, do
distribuição, para a livra- livro está sob meu poder de mesmo modo que o meu
ria, em impostos e para a decisão. guia de viagem, porém as
editora. tentativas de torná-los ren-
E este modelo pode ser
táveis não deram certo e,
Já no caso do autor in- reproduzido para ficção?
atualmente, todos eles estão
dependente, e este é o meu Possivelmente, mesmo disponíveis de graça na
caso, o lucro inteiro é meu, que eu ainda não tenhate- internet.
já que fui eu quem prepa- nho conseguido. Até o ao
rou a diagramação do livro A não-ficção envolve a
momento, na minha experi-
e sou eu quem negocia, às questão de credibilidade do
ência pessoal, a repercussão
vezes, com o comprador. O autor, no entanto, isto não
e o sucesso do meu livro de
e-book do guia é vendido é tão fácil de se estabelecer
não-ficção, em comparação
a 12 reais, ou seja, para ter para a ficção. Para saber
às minhas obras de ficção,
o mesmo lucro por uma se um autor duma obra de
reproduziu, em menor esca-
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referência sabe do que está editor independente não te tem de fazer da internet
falando, basta investigar sua tem, como livrarias, bancas não apenas a sua livraria,
formação e de onde ele está de jornais e revistas, super- mas a sua vitrine. É através
falando, mas para se certi- mercados, etc. Além disto, dela que ele pode vender
ficar se um autor de fic- a mídia costuma acolher seus livros, mas também é
ção possui competência, é com maior descrença obras através dela que ele estabe-
preciso ler a obra inteira, às independentes, principal- lecerá sua reputação como
vezes, várias de suas obras, mente porque por detrás escritor e criará vínculos
e este é um esforço que duma editora comercial com seus leitores.
poucos leitores estão dis- há uma equipe interessada O que eu percebo é que
postos a empreender para em promover seus livros, ainda há um certo menos-
um autor desconhecido. assessores de imprensa e de prezo quanto a à capacida-
marketing. de de um blog cativar lei-
As dificuldades (e A dificuldade de dis- tores, mas já temos alguns
algumas soluções) da tribuição é o calcanhar exemplos de autores que se
publicação independente de Aquiles da publicação lançaram na internet para
independente. Se a obra não depois chegarem ao merca-
Assim, a publicação inde-
chega ao comprador, é mui- do editorial.
pendente reflete exatamente
to improvável que consiga Já no meu caso, o grande
o que ocorre na publicação
atrair atenção para si. problema é encontrar o ca-
comercial: não-ficção de
autores com credibilidade É neste ponto que a in- minho para me estabelecer
costuma vender muito mais ternet acaba servindo como como autor independente,
do que ficção; e ficção de a maior aliada do autor sem a necessidade de con-
autores desconhecidos tende autopublicado. siderar uma editora comer-
a encalhar nas prateleiras, As editoras comerciais cial como Meca literária.
isto até estes autores atin- utilizam a internet de “É possível consolidar
girem determinado grau de maneira pouco eficaz, por uma carreira literária in-
notoriedade. enquanto. Para estas edi- dependentemente do mer-
Perceba que não estamos toras, a internet possui o cado?”, é a pergunta que
realizando nenhum juízo papel simples e único de proponho, ainda sem ter
de valor, como se publica- uma livraria virtual. Você, muita certeza de qual é a
ção comercial fosse melhor leitor, acessa o catálogo resposta.
do que a independente, ou online da editora, procura
vice-versa; estamos apenas seu livro de interesse e o
falando em magnitude. compra, repetindo quase o
Uma grande editora comer- mesmo procedimento que
cial tem acesso a canais de faria numa editora física.
distribuição que o autor- Mas o autor independen-
http://www.flickr.com/photos/27235917@N02/2788169879/sizes/l/
A Oficina Editora é uma utopia, um não-
lugar. Apenas no século XXI uma vintena
de autores, que jamais se encontraram
fisicamente, poderia conceber um projeto
semelhante.
O livro, sempre tido em conta como uma
das principais fontes de cultura, tornou-se
apenas um bem de consumo, tornou-se um
elemento de exclusão cultural.
A proposta da Oficina Editora é resgatar o
valor natural e primeiro da Literatura: de bem
cultural. Disponibilizando gratuitamente
e-books e com o custo mínimo para livros
impressos, nossos autores apresentam
a demonstração máxima de respeito à
Literatura e aos leitores.
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Crônica
Joaquim Bispo
A faixa branca
84 SAMIZDAT setembro de 2009
Ah, a Irlanda! – a ilha e a vida fora dos espaços cor límpida dos olhos, a
que tem o permanente religiosos. Refugiaram-se forma germinante dum
verde dos campos na nas instituições católicas corpo a meio caminho
bandeira. Há quem diga pelas mais variadas ra- da floração; recorda o
que a faixa alaranjada no zões, quase nunca para seu próprio corpo e as
outro extremo da bandei- renunciarem ao apelo das emoções perturbadoras
ra é a cor do uísque. Ah, sensações lúbricas. Nem da puberdade, às vezes,
os pubs, a festa, a herança tal lhes é exigido. Mes- como um adulto o ini-
celta. E a faixa branca, a mo aos padres, a Igreja ciou nessas emoções. Aos
meio, significa o quê – proíbe-lhes o casamento, poucos, sobrevém a opor-
pureza? não pela subjacente im- tunidade de masturbar a
Um relatório agora plicação de mais difícil criança. Quer desvendar-
divulgado revela que du- acesso ao sexo mas – diz- lhe esse mundo maravi-
rante sessenta anos – des- se – por um mais pro- lhoso, que o seu corpo
de 1930 até 1990 –, pelo saico programa de evitar encerra, onde reside
menos duas mil crianças o forçoso sorvedouro de um prazer insuspeito.
carenciadas, que tinham bens, necessários para ali- Ele próprio segue o que
sido acolhidas por insti- mentar e vestir cônjuge e entende como o desejo
tuições religiosas católi- filhos. da criança, que chega a
cas, foram objecto de vio- Não é a Igreja que faz perceber como uma pro-
lência e abusos sexuais. os pedófilos; também vocação ao gozo mútuo.
O facto choca, sobretudo nas instituições governa- Desencadeia e deixa-se
porque os acontecimentos mentais sucede o abuso. enredar, consciente e
tiveram lugar em abrigos O ambiente colectivo maliciosamente, numa
infantis, reformatórios nos locais de acolhimen- crónica teia de relacio-
e orfanatos geridos pela to, onde os mais velhos namento furtivo, sabendo
Igreja Católica, largamen- dispõem de ascendente que é um comportamen-
te maioritária no país. sobre aqueles que estão à to censurável, a esconder,
Pensamos sempre que os sua guarda, proporciona um segredo para dois.
homens e as mulheres da a oportunidade adequada Sente na criança uma
Igreja estão, tendencial- às práticas do pedófilo. A aceitação e uma ausên-
http://www.flickr.com/photos/boldorak/3188013773/sizes/o/
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nas inúmeras situações ram ter sofrido abusos de formam em abusadores.
de controlo e poder que vários tipos. Outras terão Há pedófilos violentos,
surgem numa institui- já morrido, certamente. mas, a maior parte das
ção com muitas crianças «Ah, o horror! Inacei- vezes, são apenas o que
desenraizadas. Às vezes, tável!», dirão alguns, alar- a palavra indica: gostam
encontra nesse adulto o mados com os números. mesmo de crianças. Não
amigo que a ouve e lhe «Danos colaterais. Inevitá- aceitam que o que fazem
afasta as inquietações. veis.», dirão outros, argu- é prejudicial à criança,
Fica perturbada com as mentando que se fossem que representa um abuso,
sensações que o adulto só estas 2000, estaríamos uma humilhação que a
ensinou o seu corpo a a falar do valor «confor- vai acompanhar pela vida
proporcionar-lhe, acei- tável» de apenas 2 ou 3 inteira. Se tiverem opor-
ta responder às carícias crianças abusadas, por tunidade – e é impressio-
como retribuição pedida instituição, por ano. nante como são atraídos
e justamente merecida. Há tanta coisa inacei- por relações, actividades
Não domina o jogo das tável que temos de en- e profissões que os apro-
relações sociais; mesmo golir, infelizmente, desde ximem das crianças – vão
quando se sente descon- a miséria nos bairros repetir comportamentos
fortável, evita denunciar periféricos das grandes pedófilos, Pelas crianças,
quem sempre parece cidades, à invasão arrasa- que serão adultos ma-
querer-lhe bem. Afinal, dora de países soberanos. goados, a sociedade tem
os outros adultos estão Em todas essas situações, o dever de tentar mino-
emocionalmente muito há inocentes apanhados rar as oportunidades de
mais afastados. Sente que nas redes da animalidade acesso dos pedófilos às
é culpada de ter ido tão humana e traídos pelo crianças, seleccionando
longe, tem dificuldade em bocejo da indiferença criteriosamente quem
dizer «não». Envergonha- social ou internacional. lida com elas e mantendo
se; sabe como tais situ- É tão difícil alertar as uma observação activa
ações, quando reveladas, pessoas, embrenhadas nos sobre o funcionamento
são motivo de escárnio. seus pequenos problemas. dessas instituições. Para
Isola-se e tenta sobreviver E, mesmo quando alguém que as Irlandas deste
até um dia sair da insti- para para pensar, o má- mundo sejam apontadas
tuição. ximo que sente é uma apenas pelos bons mo-
Vamos a contas: no re- sensação angustiante de tivos: belas paisagens e
ferido período, passaram impotência. E vai desfor- bom uísque.
pelas 250 instituições rar-se no frigorífico…
em causa, entre 30000 Não se sabe o que
e 40000 crianças. No desencadeia as tendências
inquérito realizado nos pedófilas. Nem sempre
últimos dez anos, 2000, os abusadores foram
algumas com mais de abusados, nem sempre
cinquenta anos, declara- os abusados se trans-
Brasiléiros e Brasiléiras
— Qual é a melhor — Troquei o carnê — Ah! Claro. Lembro
recordação que você tem com um cabo eleitoral do do dia que ele virou pre-
http://golpedecabeca.files.wordpress.com/2009/02/jose-sarney-tribuna.jpg
do tempo em que o Sar- Collor. sidente.
ney foi presidente?
— E você votou nele? — Virou?
— Da poupança que
eu tinha no Bamerin- — Claro que não. Votei — Sim. Lembro do
dus. Cheguei a ter cento no Lula. Antônio Britto, porta voz
e cinquenta milhões de do governo, veio dizer
— Você não tinha que o presidente eleito, o
cruzados. medo da “ameaça socia- Tancredo, não ia poder
— Nossa! Tudo isso? E lista”? comparecer à cerimônia
o que fez com esse di- — Até tinha, mas eu de posse teve a infelicida-
nheiro todo? ficava tão emocionado de de morrer antes. Aí, o
com aquela musiquinha... vice, Sarney, virou presi-
— Dei de entrada num dente. Depois disso, nun-
par de chuteiras Kichute. “Brilha uma estrela... Lula
lá!”... ca duvidei de mais nada.
Terminei de pagar no dia
que o Ulysses anunciou — Tá, mas e o Sarney?
que ia se candidatar, em
89. O que eu devia na — Que tem ele?
loja de calçados dava
para comprar um Fusca. — Não lembra de nada
do governo dele?
— E pagou como?
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Crônica
Repaginando
as Havaianas
Henry Alfred Bugalho
das de futebol. palavra da moda) e dos pés socar seu pé gorducho numa
da piazada e do chão batido Havaiana a qualquer custo,
Quem precisa de uma passaram para os das cele- enquanto que o sonho de
luva de goleiro quando tem bridades e lojas da Quinta muito brasileiro é ter um
um par de Havaianas? Avenida. Nike, que é tão barato nos
EUA que até os mendigos
Bastava encaixar o chinelo Hoje, ter umas Havaianas usam um.
nos dedos da mão e se jogar é uma necessidade, é um
para agarrar a bola sem artigo da moda, é in, é cool. Pelo menos, o Nike real-
medo das espalmadas. mente nunca solta as tiras,
Se antes as Havaianas só e você nunca verá um rapa-
E qual moleque no inte- tinham 8 cores (porém, eu zinho do Harlem tendo de
rior nunca perdeu uma de só me lembro de três, da parar de correr para arru-
suas Havaianas ao saltar azul marinho, da vermelha mar seu tênis, nem perderá
um riacho ou se enfiar no e da preta), hoje elas têem seu Nike no banhado...
banhado? Meter o pé num
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Crônica
Criança tem
cada uma...
Maristela Scheuer Deves
Rafael não tinha sequer e o Rafa, e desatou numa ele resolveu explicar,
aparecido lá. corrida desenfreada pela ressaltando as sílabas:
Procura daqui, procu- rua. Ao ser alcançado, “Mas vovó, eu já disse
ra dali, de repente teve três quadras adiante, que o pa(i) tá fa(zendo) o
a inspiração de olhar contou que “estava indo pe(queno) do(rmir)!”
dentro de um ônibus que buscar o vovô e a tia Téia
saía rumo ao interior do de volta.”
município. E lá estava, O vocabulário desses
sentado quietinho no danadinhos também é
último banco, o Rafael. algo digno de análise.
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Crônica
http://www.flickr.com/photos/adwriter/255230682/sizes/o/
Marcia Szajnbok
e Amanda Szajnbok de Faria
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Poesia
Laboratório Poético:
Limericks
Volmar Camargo Junior
Game Over
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Poesia
Poesias Bestas
Ju Blasina
Lesmiando
Anelar
Antenado
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Asas
Poesia
Marcia Szajnbok
http://www.flickr.com/photos/kimonomania/3180273288/sizes/o/
No parapeito da janela, suspensa em puro enlevo, outra ave lá pousara.
Mal se movia, escutava, entendia, a canção mais bela – poesia! –
Que aquele pássaro jamais cantara.
Era uma ave apaixonada.
Não durou muito -– uma pena! – aquele idílio de melodia e olhares.
A tarde findava, escurecia, e a visitante voou -–
Não sem antes hesitar, como quem fizesse um convite.
Calou-se novamente o cativo.
E foi mais uma vez pelos humanos esquecido.
Mas não por todos, uma exceção:
Na madrugada, o menino que desvendara o mistério foi lhe fazer companhia.
Chegando junto à gaiola viu o que depois contou, mas entre os adultos ninguém acreditou.
O lindo pássaro, mudo, chorava.
Lágrimas silenciosas nos pequenos olhos atentos.
Quem já viu passarinho chorar? Nunca! Imaginação de criança...
Mas o que ficou mal explicado foi o ainda mais estranho fato:
No dia seguinte, gaiola intacta e pássaro ausente.
Como saiu? Ninguém jamais soube...
Todo o cenário intacto...
Seria preciso olhar bem de perto o garoto, e ser muito observador
Para notar-lhe no canto do lábio um sorriso discreto,
A expressão muito viva, o orgulho disfarçado.
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Poesia
Ao final, deseja
outras ações em dias perdidos,
porque o realizado
agora
lhe parece o mais triste dos finais...
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SOBRE OS AUTORES DA
SAMIZDAT
Edição, diagramação e capa
Revisão
Caio Rudá
Bahiano do interior, hoje mora na capital. Estuda
Psicologia na Universidade Federal da Bahia e espera
um dia entender o ser humano. Enquanto isso não
acontece, vai escrevendo a vida, decodificando o enig-
ma da existência. Não tem livro publicado, prêmio,
reconhecimento e sequer duas décadas de vida. Mas
como consolo, um potencial asseverado pela mãe.
Mariana Valle
Por um amor não correspondido, a carioca de
Copacabana começou a poetar aos 12 anos. Veio o
beijo e o príncipe virou sapo. Mas a poesia virou sua
amante. Fez oficina literária e deu pra encharcar o
papel com erotismo. E também com seu choro. Em
reação à hipocrisia e ao machismo da sociedade.
Atuou como jornalista em várias empresas, mas foi
na TV Globo onde aprimorou as técnicas de reda-
ção e ficção. E hoje as usa para contar suas próprias
histórias. Algumas publicadas em seu primeiro livro
e outras divulgadas nos links listados em seu blog
pessoal: www.marianavalle.com
Colaboração
Joaquim Bispo
Ex-técnico de televisão, xadrezista e pintor ama-
dor, licenciado recente em História da Arte, experi-
menta agora o prazer da escrita, em Lisboa.
episcopum@hotmail.com
Barbara Duffles
Jornalista, escritora e roteirista, é autora do livro
“Não Abra” e do blog “Não Clique”. Apesar das nega-
tivas, esta carioca quer, sim, ser lida - como todo es-
critor. Tem dias de conto, de crônica e de pílulas sem
sentido. Suas paixões: cinema e livros com cheiro de
novo - se bem que adora se perder nos sebos da vida.
www.revistasamizdat.com 103
Carlos Barros
Paulistano, filho de nordestinos, desenhista desde
sempre, artista plástico formado, escritor. Começou
sua vida profissional como educador e, desde então,
já deixou seu rastro por ONG’s, Escolas e Centros
Culturais, através de trabalhos artísticos e pedagó-
gicos – experiências que têm forte influência sobre
seus escritos. Atualmente, organiza oficinas de ilus-
tração para crianças, estuda pós-graduação em Histó-
ria da Arte e escreve para publicações na internet.
carloseducador@hotmail.com
http://desnome.blogspot.com
Eder Ferreira
Nasceu em Siqueira Campos, no dia 27 de dezem-
bro de 1980. Formou-se no curso de Matemática,
na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Jaca-
rezinho (FAFIJA). Funcionário público municipal na
cidade de Siqueira Campos, trabalha junto ao Depar-
tamento de Cultura, coordenando projetos de incen-
tivo à leitura e à criação literária. Também exerce
a função de professor de informática e secretariado
administrativo no Centro Educacional Integrado
Plovas Informática (CEIPI). Trabalha ainda, de forma
autônoma, com livros personalizados para presentes.
Sua ligação com a literatura já é de longa data.
Giselle Sato
Autora de Meninas Malvadas, A Pequena Baila-
rina e Contos de Terror Selecionados. Se autodefine
apenas como uma contadora de histórias carioca.
Estudou Belas Artes, Psicologia e foi comissária de
bordo. Gosta de retratar a realidade, dedicando-se
a textos fortes que chegam a chocar pelos detalhes,
funcionando como um eficiente panorama da socie-
dade em que vivemos.
104
104 SAMIZDAT setembro de 2009
http://www.photoshoptalent.com/images/contests/spider%20web/fullsize/sourceimage.jpg
Guilherme Rodrigues
Estudante de Letras na Universidade do Sagrado
Coração, em Bauru, onde sempre morou. Procura
reinventar o mundo a seu modo, seja belo ou grotes-
co, e assim mostrar um novo caminho. Admirador
das coisas mais simples e belas do mundo e da vida,
busca expressar essas sublimes minúcias em suas
poesias. Não dispensa o café da tarde com pãezinhos.
Apaixonado por Línguas, Literatura e Linguística.
Jú Blasina
Gaúcha de Porto Alegre. Não gosta de mensurar
a vida em números (idade, peso, altura, salário). Não
se julga muito sã e coleciona papéis - alguns afir-
mam que é bióloga, mestre em fisiologia animal e
etc, mas ela os nega dizendo-se escritora e ponto fi-
nal. Disso não resta dúvida, mas como nem sempre
uma palavra sincera basta, voltou à faculdade como
estudante de letras, de onde obterá mais papéis para
aumentar a sua pilha. É cronista do Caderno Mulher
(Jornal Agora - Rio Grande - RS), mantém atualiza-
do seu blog “P+ 2 T” e participa de fóruns e oficinas
virtuais, além de projetos secretos sustentados à base
de chocolate e vinho, nas madrugadas da vida.
www.revistasamizdat.com 105
Léo Borges
Nasceu em setembro de 1974, é carioca, servidor
público e amante da literatura. Formado em Comu-
nicação Social pela FACHA - Faculdades Integradas
Hélio Alonso, participou da antologia de crônicas
“Retratos Urbanos” em 2008 pela Editora Andross.
Marcia Szajnbok
Médica formada pela Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo, trabalha como psiquiatra
e psicanalista. Apaixonada por literatura e línguas
estrangeiras, lê sempre que pode e brinca de escrever
de vez em quando. Paulistana convicta, vive desde
sempre em São Paulo.
Maristela Deves
Gaúcha nascida na pequena cidade de Pirapó, co-
meçou a sonhar em ser escritora tão logo aprendeu
a ler. Escreve principalmente contos nos gêneros mis-
tério, suspense e terror, além de crônicas. Mantém
ainda o blog Palavra Escrita, sobre livros e literatura
(www.pioneiro.com/palavraescrita).
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106 SAMIZDAT setembro de 2009
http://www.photoshoptalent.com/images/contests/spider%20web/fullsize/sourceimage.jpg
Simone Santana
Ouro Preto – MG, 1981). Professora de Língua
Portuguesa e Literatura em escolas estaduais. Escreve
já há algum tempo, é inédita em livro e edita o blo-
gue A Parede Lá de Casa. Possui textos publicados na
revista Germina, participa do site Escritoras Suicidas,
e colaborou com o conto Rosário de Lágrimas na
edição de aniversário de sessenta anos do Suplemento
literário Correio das Artes. Escrever é uma necessida-
de.
Wellington Souza
Paulistano, mas morou também em Ribeirão Preto,
onde cursou economia na Universidade de São Pau-
lo. Hoje, reside novamente no bairro em que nasceu.
Participou das antologias do concurso Nacional de
Contos da Cidade de Porto Seguro e do Poetas de Ga-
veta/USP. Escreve poemas, contos, crônicas e ensaios
literários em um blog (Hiper-link), na revista digital
SAMIZDAT e no portal Sociedade Literária. “Escrever
é um modo de ser outro ser”.
www.revistasamizdat.com 107
Também nesta edição, textos de
Jú Blasina
108 SAMIZDAT setembro de 2009