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Lit.

Semana 15

Diogo Mendes
(Maria Carolina)

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Machado de mai
Assis

01. Resumo
02. Exercício de Aula
03. Exercício de Casa
04. Questão Contexto
RESUMO
Joaquim Maria Machado de Assis é um dos maio- Características Machadianas
res nomes da literatura brasileira. De origem hu-
milde e mestiça, o carioca, gago e epilético, nasci- As obras machadianas eram produzidas, em sua
do no Morro do Livramento, atuou como jornalista, maioria, em prosa e com o aprofundamento psico-
cronista, crítico, dramaturgo e poeta, superando os lógico de personagens e, um dos elementos mais
preconceitos através de seu inegável talento autodi- significativos, é o posicionamento do narrador. Com
data. O primeiro presidente da Academia Brasileira caráter persuasivo, o narrador –que por muitas ve-
de Letras é o principal nome do Realismo brasileiro, zes também é personagem- é ativo ao longo do en-
mas sua obra deixou um legado para diferentes esti- redo e dialoga o tempo inteiro com o leitor. Além
los e gêneros literários. disso, em alguns momentos, interfere no enredo e
admite uma posição provocadora sobre seu posicio-
namento, incitando que o interlocutor também pen-
se da mesma forma.

Veja abaixo, alguns exemplos da comunicação esta-


belecida entre o narrador e seu leitor:

“Cuidado, leitor, vamos entrar na alcova de uma


donzela.

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A esta notícia o leitor estremece e hesita. É natural-
Em 1855, publica o poema “Ela” e ingressa num mun- mente um homem de bons costumes, acata as famí-
do do qual nunca mais sairia: o das letras. Dono de lias e preza as leis do decoro público e privado.

Lit.
um estilo original e reticente que transborda humor […] Volta a folha e passa a coisa melhor.”
pessimista, ironia e profunda observação psicológi-
ca de suas personagens, Machado presenteou nos- (O anjo das donzelas, Machado de Assis)
sa literatura com obras singulares.
Outro ponto interessante a ser abordado, é o da des-
Machado fez com que suas obras ultrapassassem o crição feminina, que está longe da figura idealizada
momento histórico em que ele vivia, uma vez que há da escola Romântica. Aqui, a mulher é mais concre-
a introdução de novas técnicas e abordagens, prin- ta, abordada não só por suas qualidades, mas tam-
cipalmente, em relação à uma nova faceta da figura bém por seus defeitos. É uma mulher real, sem ser
feminina, que se desvinculava da ideia de uma visão fantasiada pelo narrador. Por fim, a ironia macha-
conservadora e moral. diana e o ceticismo também são uns dos principais
aspectos que fazem referência ao autor. Com um
Nesse sentido, muitos estudiosos não o consideram toque humorístico e, por muitas vezes sutil, estes
um escritor realista, uma vez que há trechos de suas conseguem expressar – com inteligência – as verda-
obras em que o autor faz uma crítica ao descritivis- deiras intenções do autor, fazendo abordagens so-
mo desse movimento literário. bre a hipocrisia humana, as relações por interesse,
o adultério, a infelicidade no casamento, a ascensão
social, o egocentrismo, entre outras.
TEXTOS DE APOIO almocreve.
Texto 1
E era verdade; se o jumento corre por ali fora, con-
Talvez espante ao leitor a franqueza com que tundia-me deveras, e não sei se a morte não estaria
lhe exponho e realço a minha mediocridade; no fim do desastre; cabeça partida, uma congestão,
advirta que a franqueza é a primeira virtude de qualquer transtorno cá dentro, lá se me ia a ciência
um defunto. Na vida, o olhar da opinião, o con- em flor. O almocreve salvara-me talvez a vida; era
traste dos interesses, a luta das cobiças obri- positivo; eu sentia-o no sangue que me agitava o co-
gam a gente a calar os trapos velhos, a disfar- ração. Bom almocreve! enquanto eu tornava à cons-
çar os rasgões e os remendos, a não estender ciência de mim mesmo, ele cuidava de consertar os
ao mundo as revelações que faz à consciência; arreios do jumento, com muito zelo e arte. Resolvi
e o melhor da obrigação é quando, à força de dar-lhe três moedas de ouro das cinco que trazia co-
embaçar os outros, embaça-se um homem a si migo; não porque tal fosse o preço da minha vida, --
mesmo, porque em tal caso poupa-se o vexa- essa era inestimável; mas porque era uma recompen-
me, que é uma sensação penosa, e a hipocrisia, sa digna da dedicação com que ele me salvou. Está
que é um vício hediondo. Mas, na morte, que dito, dou-lhe as três moedas.
diferença! que desabafo! que liberdade! Como — Pronto, disse ele, apresentando-me a ré-
a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao fos- dea da cavalgadura.
so as lentejoulas, despregar-se, despintar-se, — Daqui a nada, respondi; deixa-me, que
desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e ainda não estou em mim...

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o que deixou de ser! Porque, em suma, já não — Ora qual!
há vizinhos, nem amigos, nem inimigos, nem — Pois não é certo que ia morrendo?
conhecidos, nem estranhos; não há platéia. O — Se o jumento corre por aí fora, é possível;
olhar da opinião, esse olhar agudo e judicial, mas, com a ajuda do Senhor, viu vosmecê que não

Lit.
perde a virtude, logo que pisamos o território aconteceu nada.
da morte; não digo que ele se não estenda para
cá, e nos não examine e julgue; mas a nós é que Fui aos alforjes, tirei um colete velho, em cujo bol-
não se nos dá do exame nem do julgamento. so trazia as cinco moedas de ouro, e durante esse
Senhores vivos, não há nada tão incomensurá- tempo cogitei se não era excessiva a gratificação, se
vel como o desdém dos finados. não bastavam duas moedas. Talvez uma. Com efeito,
uma moeda era bastante para lhe dar estremeções
ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de de alegria. Examinei-lhe a roupa; era um pobre dia-
Brás Cubas. bo, que nunca jamais vira uma moeda de ouro. Por-
tanto, uma moeda. Tirei-a, via-a reluzir à luz do sol;
não a viu o almocreve, porque eu tinha-lhe voltado as
Texto 2 costas; mas suspeitou-o talvez, entrou a falar ao ju-
mento de um modo significativo; dava-lhe conselhos,
O almocreve dizia-lhe que tomasse juízo, que o «senhor doutor»
podia castigá-lo; um monólogo paternal. Valha-me
Vai então, empacou o jumento em que eu vinha mon- Deus! até ouvi estalar um beijo: era o almocreve que
tado; fustiguei-o, ele deu dous corcovos, depois mais lhe beijava a testa.
três, enfim mais um, que me sacudiu fora da sela, e — Olé! exclamei.
com tal desastre, que o pé esquerdo me ficou pre- — Queira vosmecê perdoar, mas o diabo do
so no estribo; tento agarrar-me ao ventre do animal, bicho está a olhar para a gente com tanta graça...
mas já então, espantado, disparou pela estrada afo-
ra. Digo mal: tentou disparar, e efetivamente deu Ri-me, hesitei, meti-lhe na mão um cruzado em pra-
dous saltos, mas um almocreve, que ali estava, acu- ta, cavalguei o jumento, e segui a trote largo, um pou-
diu a tempo de lhe pegar na rédea e detê-lo, não sem co vexado, melhor direi um pouco incerto do efeito da
esforço nem perigo. Dominado o bruto, desvencilhei- pratinha. Mas a algumas braças de distância, olhei
-me do estribo e pus-me de pé. para trás, o almocreve fazia-me grandes cortesias,
— Olhe do que vosmecê escapou, disse o com evidentes mostras de contentamento. Adverti que
devia ser assim mesmo; eu pagara-lhe bem, pa- Texto 4
gara-lhe talvez demais. Meti os dedos no bolso do
colete que trazia no corpo e senti umas moedas de Epitáfio
cobre; eram os vinténs que eu devera ter dado ao ________________________
almocreve, em logar do cruzado em prata. Porque,
enfim, ele não levou em mira nenhuma recompensa AQUI JAZ
ou virtude, cedeu a um impulso natural, ao tempera-
mento, aos hábitos do ofício; acresce que a circuns- D. EULÁLIA DAMASCENA DE BRITO
tância de estar, não mais adeante nem mais atrás,
mas justamente no ponto do desastre, parecia cons- MORTA
tituí-lo simples instrumento de Providência; e de um
ou de outro modo, o mérito do ato era positivamen- AOS DEZENOVE ANOS DE IDADE
te nenhum. Fiquei desconsolado com esta reflexão,
chamei-me pródigo, lancei o cruzado à conta das ORAI POR ELA!
minhas dissipações antigas; tive (por que não direi
tudo?), tive remorsos. __________

ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de
Brás Cubas. Brás Cubas.

Texto 3 Texto 5

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BRÁS CUBAS................................? O epitáfio diz tudo. Vale mais do que se lhes narrasse
VIRGÍLIA............................... a moléstia de Nhã-loló, a morte, o desespero da fa-
BRÁS CUBAS................................................ .................... mília, o enterro. Ficam sabendo que morreu; acres-

Lit.
.................................... centarei que foi por ocasião da primeira entrada da
VIRGÍLIA..........................................! febre amarela. Não digo mais nada, a não ser que a
BRÁS CUBAS................................. acompanhei até o último jazigo, e me despedi triste,
VIRGÍLIA................................................. mas sem lágrimas. Concluí que talvez não a amasse
deveras.
................................................................? ..........................
........................ ....................................................... ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de
BRÁS CUBAS................................. Brás Cubas
VIRGÍLIA...............................................
BRÁS CUBAS ...................................................................
........................... ..........!..............................!.....................
......! Texto 6
VIRGÍLIA....................................................?
BRÁS CUBAS.............................................! Crônica da abolição
VIRGÍLIA.....................................................!
Eu pertenço a uma família de profetas “après coup”1,
ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de “post factum”2, “depois do gato morto”, ou como me-
Brás Cubas lhor nome tenha em holandês. Por isso digo, juro se
necessário for, que toda a história desta lei de 13 de
maio estava por mim prevista, tanto que na segun-
da-feira, antes mesmo dos debates, tratei de alfor-
riar um molecote que tinha, pessoa de seus dezoito
anos, mais ou menos. Alforriá-lo era nada; entendi
que, perdido por mil, perdido por mil e quinhentos, e
dei um jantar.
Neste jantar, a que meus amigos deram o nome de te. Quando nasceste eras um pirralho deste tamanho;
banquete, em falta de outro melhor, reuni umas cin- hoje estás mais alto que eu. Deixa ver; olha, és mais
co pessoas, conquanto as notícias dissessem trinta e alto quatro dedos...
três (anos de Cristo), no intuito de lhe dar um aspecto — Artura não qué dizê nada, não, senhô...
simbólico. — Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-réis: mas é
de grão em grão que a galinha enche o seu papo. Tu
No golpe do meio (“coupe do milieu”3, mas eu prefiro vales muito mais que uma galinha.
falar a minha língua) levantei-me eu com a taça de — Eu vaio um galo, sim, senhô.
champanha e declarei que, acompanhando as idéias — Justamente. Pois seis mil-réis. No fim de um ano,
pregadas por Cristo há dezoito séculos, restituía a se andares bem, conta com oito. Oito ou sete.
liberdade ao meu escravo Pancrácio; que entendia
que a nação inteira devia acompanhar as mesmas Pancrácio aceitou tudo: aceitou até um peteleco que
idéias e imitar o meu exemplo; finalmente, que a li- lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as
berdade era um dom de Deus que os homens não po- botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que
diam roubar sem pecado. o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anu-
lar o direito civil adquirido por um título que lhe dei.
Pancrácio, que estava à espreita, entrou na sala, Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois es-
como um furacão, e veio abraçar-me os pés. Um dos tados naturais, quase divinos.
meus amigos (creio que é ainda meu sobrinho) pe-
gou de outra taça e pediu à ilustre assembléia que Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio: daí para
correspondesse ao ato que acabava de publicar brin- cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés, um ou ou-
dando ao primeiro dos cariocas. Ouvi cabisbaixo: fiz tro puxão de orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe

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outro discurso agradecendo, e entreguei a carta ao não chamo filho do diabo; cousas todas que ele rece-
molecote. Todos os lenços comovidos apanharam as be humildemente e (Deus me perdoe!) creio que até
lágrimas de admiração. Caí na cadeira e não vi mais alegre. [...]
nada. De noite, recebi muitos cartões. Creio que es-

Lit.
tão pintando o meu retrato, e suponho que a óleo. MACHADO DE ASSIS

No dia seguinte, chamei o Pancrácio e disse-lhe com


rara franqueza: Vocabulário:
— Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens 1“après coup”: depois do golpe
casa amiga, já conhecida, e tens mais um ordenado, 2“post factum”: depois do fato
um ordenado que... 3“coupe do milieu”: o autor utiliza uma expressão
— Oh! meu senhô! Fico. inexistente em francês para mostrar a ignorância do
— Um ordenado pequeno, mas que há de crescer. personagem
Tudo cresce neste mundo: tu cresceste imensamen-

EXERCÍCIO DE AULA
1.
(FUVEST)
“Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara, pendurou-me
uma ideia no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma vez pen­durada, entrou
a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volatim, que é
possível crer. Eu deixei-me estar a contemplá-la. Súbito, deu um grande sal-
to, estendeu os braços e as pernas, até tomar a forma de um X: decifra-me
ou devoro-te.”

(Memórias póstumas de Brás Cubas – Machado de Assis)

Sobre o texto mostrado, pode-se dizer que:


a) o autor faz uma abordagem superficial da situação.
b) o autor preocupa-se com os detalhes, por meio de minuciosa descrição.
c) o autor dá relevância a outras circunstân­cias, negligenciando o foco do as-
sunto.
d) o autor não mostra preocupação com o discer­nimento do leitor, pois apenas
sugere situações.
e) contempla a si próprio, num ritual egocêntrico e narcisista.

2.
No trecho abaixo, o narrador, ao descrever a personagem, critica sutilmente um
outro estilo de época: o romantismo.

“Naquele tempo contava apenas uns quinze ou dezesseis anos; era talvez a
mais atrevida criatura da nossa raça, e, com certeza, a mais voluntariosa.
Não digo que já lhe coubesse a primazia da beleza, entre as mocinhas do
tempo, porque isto não é romance, em que o autor sobredoura a realidade
e fecha os olhos às sardas e espinhas; mas também não digo que lhe macu-
lasse o rosto nenhuma sarda ou espinha, não. Era bonita, fresca, saía das
mãos da natureza, cheia daquele feitiço, precário e eterno, que o indivíduo
passa a outro indivíduo, para os fins secretos da criação.”

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ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro:
Jackson,1957.

Lit.
A frase do texto em que se percebe a crítica do narrador ao romantismo está
transcrita na alternativa:

a) ... o autor sobredoura a realidade e fecha os olhos às sardas e espinhas ...


b) ... era talvez a mais atrevida criatura da nossa raça ...
c) Era bonita, fresca, saía das mãos da natureza, cheia daquele feitiço, precário
e eterno, ...
d) Naquele tempo contava apenas uns quinze ou dezesseis anos ...
e) ... o indivíduo passa a outro indivíduo, para os fins secretos da criação.

3.
(UERJ) Crônica da Abolição

Eu pertenço a uma família de profetas après coup¹, post factum², depois


do gato morto, ou como melhor nome tenha em holandês. Por isso digo, e
juro se necessário fôr, que tôda a história desta lei de 13 de maio estava por
mim prevista, tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei
de alforriar um molecote que tinha, pessoa de seus dezoito anos, mais ou
menos. Alforriá-lo era nada; entendi que, perdido por mil, perdido por mil e
quinhentos, e dei um jantar.

Neste jantar, a que meus amigos deram o nome de banquete, em falta de


outro melhor, reuni umas cinco pessoas, conquanto as notícias dissessem
trinta e três (anos de Cristo), no intuito de lhe dar um aspecto simbólico.
No golpe do meio (coup du milieu³, mas eu prefiro falar a minha língua), le-
vantei-me eu com a taça de champanha e declarei que acompanhando as
idéias pregadas por Cristo, há dezoito séculos, restituía a liberdade ao meu
escravo Pancrácio; que entendia que a nação inteira devia acompanhar as
mesmas idéias e imitar o meu exemplo; finalmente, que a liberdade era um
dom de Deus, que os homens não podiam roubar sem pecado.

Pancrácio, que estava à espreita, entrou na sala, como um furacão, e veio


abraçar-me os pés. Um dos meus amigos (creio que é ainda meu sobrinho)
pegou de outra taça, e pediu à ilustre assembléia que correspondesse ao
ato que acabava de publicar, brindando ao primeiro dos cariocas. Ouvi ca-
bisbaixo; fiz outro discurso agradecendo, e entreguei a carta ao molecote.
Todos os lenços comovidos apanharam as lágrimas de admiração. Caí na
cadeira e não vi mais nada. De noite, recebi muitos cartões. Creio que estão
pintando o meu retrato, e suponho que a óleo.

No dia seguinte, chamei o Pancrácio e disse-lhe com rara franqueza:


– Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conheci-
da e tens mais um ordenado, um ordenado que…
– Oh! meu senhô! fico.
– …Um ordenado pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce neste mun-
do; tu cresceste imensamente. Quando nasceste, eras um pirralho dêste ta-

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manho; hoje estás mais alto que eu. Deixa ver; olha, és mais alto quatro
dedos…
– Artura não qué dizê nada, não, senhô…
– Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-réis; mas é de grão em grão que a

Lit.
galinha enche o seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha.
– Justamente. Pois seis mil-réis. No fim de um ano, se andares bem, conta
com oito. Oito ou sete.

Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte,
por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe
que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil
adquirido por um título que lhe dei. Êle continuava livre, eu de mau humor;
eram dois estados naturais, quase divinos.

Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí pra cá, tenho-lhe despedido
alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe bêsta quando
lhe não chamo filho do diabo; cousas tôdas que êle recebe humildemente, e
(Deus me perdoe!) creio que até alegre. [...]
Texto extraído do livro; Assis, Machado de. Obra Completa, Vol III. 3ª edi-
ção. José Aguilar, Rio de Janeiro. 1973. p. 489 – 491.

Vocabulário:
¹ après coup: depois do golpe
² post factum: depois do fato
³ coupe do milieu: o autor utiliza uma expressão inexistente em francês para
mostrar a ignorância do personagem

Poucos dias após a Abolição da Escravatura, o escritor Machado de Assis publi-


cou nos jornais essa crônica, na verdade um pequeno conto irônico. A ironia é
uma forma de relativizar uma posição, mostrando-a sob outra perspectiva.
Identifique o alvo da ironia de Machado de Assis e demonstre por que a contra-
tação de Pancrácio como assalariado faz parte dessa ironia.
4.
“Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo
fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte.
Suposto que o uso vulgar seja co­meçar pelo nascimento, duas considera-
ções me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou
propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa
foi outro berço; o segundo é que o escrito ficaria assim mais galante e mais
novo.”
(“Memórias póstumas de Brás Cubas – Machado de Assis)

Essa é a abertura do famoso romance de Machado de Assis. Dentro desse con-


texto, já dá para se ver o tipo de narrativa que será explorada. Assinale a alterna-
tiva correta a esse respeito.

a) A narrativa decorre de forma cronologi­camente correta, de acordo com a pas-


sagem do tempo: infância, juventude, maturidade e velhice.
b) A linearidade das ações apresenta cenas de suspense, dado o comportamento
inusi­tado dos personagens.
c) Não há como prever o final da narrati­va, já que seu enredo é, propositadamen-
te, complicado.
d) A ação terá, como cenário, os diversos centros cosmopolitas do mundo.
e) O autor usa o recurso do flashback devi­do a sua intenção de iniciar o romance
pelo “fim”.

75
Lit.
EXERCÍCIO DE CASA
1.
“Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada me-
nos. Meu pai logo que teve aragem dos quinze contos sobressaltou-se deve-
ras; achou que o caso excedia as raias de um capricho juvenil.

— Dessa vez, disse ele, vais para Europa, vais cursar uma Universidade, pro-
vavelmente Coimbra, quero-te homem sério e não arruador e não gatuno.
E como eu fizesse um gesto de espanto:

— Gatuno, sim senhor, não é outra coisa um filho que me faz isso.”

(Machado de Assis – Memórias póstumas de Brás Cubas)

De acordo com essa passagem da obra, po­de-se antecipar a visão que Machado
de Assis tinha sobre as pessoas e sobre a sociedade. A esse respeito, assinale a
alternativa correta.

a) O amor é fruto de interesse e compõe o pilar das instituições hipócritas.


b) O amor, se sincero, supera todas as barrei­ras, inclusive as financeiras.
c) O caráter autoritarista moldava as relações familiares, principalmente entre
pai e filho.
d) Havia medo de que a marginalidade envolvesse os jovens daquela época.
e) O amor era glorificado e apontado como o único caminho para redimir as pes-
soas.
2.
(ENEM) Joaquim Maria Machado de Assis, cronista, contista, dramaturgo, jor-
nalista, poeta, novelista, romancista, crítico e ensaísta, nasceu na cidade do Rio
de Janeiro em 21 de junho de 1839. Filho de um operário mestiço de negro e por-
tuguês, Francisco José de Assis, e de D. Maria Leopoldina Machado de Assis,
aquele que viria a tornar-se o maior escritor do país e um mestre da língua, perde
a mãe muito cedo e é criado pela madrasta, Maria Inês, também mulata, que se
dedica ao menino e o matricula na escola pública, única que frequentou o auto-
didata Machado de Assis.

Considerando os seus conhecimentos sobre os gêneros textuais, o texto citado


constitui-se de

a) fatos ficcionais, relacionados a outros de caráter realista, relativos à vida de


um renomado escritor.
b) representações generalizadas acerca da vida de membros da sociedade por
seus trabalhos e vida cotidiana.
c) explicações da vida de um renomado escritor, com estrutura argumentativa,
destacando como tema seus principais feitos.
d) questões controversas e fatos diversos da vida de personalidade histórica,
ressaltando sua intimidade familiar em detrimento de seus feitos públicos.
e) apresentação da vida de uma personalidade, organizada sobretudo pela or-
dem tipológica da narração, com um estilo marcado por linguagem objetiva.

76
3.
(UERJ) Crônica da Abolição

Lit.
Eu pertenço a uma família de profetas après coup¹, post factum², depois
do gato morto, ou como melhor nome tenha em holandês. Por isso digo, e
juro se necessário fôr, que tôda a história desta lei de 13 de maio estava por
mim prevista, tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei
de alforriar um molecote que tinha, pessoa de seus dezoito anos, mais ou
menos. Alforriá-lo era nada; entendi que, perdido por mil, perdido por mil e
quinhentos, e dei um jantar.

Neste jantar, a que meus amigos deram o nome de banquete, em falta de


outro melhor, reuni umas cinco pessoas, conquanto as notícias dissessem
trinta e três (anos de Cristo), no intuito de lhe dar um aspecto simbólico.

No golpe do meio (coup du milieu³, mas eu prefiro falar a minha língua), le-
vantei-me eu com a taça de champanha e declarei que acompanhando as
idéias pregadas por Cristo, há dezoito séculos, restituía a liberdade ao meu
escravo Pancrácio; que entendia que a nação inteira devia acompanhar as
mesmas idéias e imitar o meu exemplo; finalmente, que a liberdade era um
dom de Deus, que os homens não podiam roubar sem pecado.

Pancrácio, que estava à espreita, entrou na sala, como um furacão, e veio


abraçar-me os pés. Um dos meus amigos (creio que é ainda meu sobrinho)
pegou de outra taça, e pediu à ilustre assembléia que correspondesse ao
ato que acabava de publicar, brindando ao primeiro dos cariocas. Ouvi ca-
bisbaixo; fiz outro discurso agradecendo, e entreguei a carta ao molecote.
Todos os lenços comovidos apanharam as lágrimas de admiração. Caí na
cadeira e não vi mais nada. De noite, recebi muitos cartões. Creio que estão
pintando o meu retrato, e suponho que a óleo.
No dia seguinte, chamei o Pancrácio e disse-lhe com rara franqueza:

– Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conheci-
da e tens mais um ordenado, um ordenado que…

– Oh! meu senhô! fico.

– …Um ordenado pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce neste mun-
do; tu cresceste imensamente. Quando nasceste, eras um pirralho dêste ta-
manho; hoje estás mais alto que eu. Deixa ver; olha, és mais alto quatro
dedos…

– Artura não qué dizê nada, não, senhô…

– Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-réis; mas é de grão em grão que a
galinha enche o seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha.

– Justamente. Pois seis mil-réis. No fim de um ano, se andares bem, conta


com oito. Oito ou sete.

Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte,
por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe

77
que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil
adquirido por um título que lhe dei. Êle continuava livre, eu de mau humor;
eram dois estados naturais, quase divinos.

Lit.
Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí pra cá, tenho-lhe despedido
alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe bêsta quando
lhe não chamo filho do diabo; cousas tôdas que êle recebe humildemente, e
(Deus me perdoe!) creio que até alegre. [...]

Texto extraído do livro; Assis, Machado de. Obra Completa, Vol III. 3ª edi-
ção. José Aguilar, Rio de Janeiro. 1973. p. 489 – 491.

Vocabulário:
¹ après coup: depois do golpe
² post factum: depois do fato
³ coupe do milieu: o autor utiliza uma expressão inexistente em francês para
mostrar a ignorância do personagem

“Um ordenado pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce neste mundo: tu
cresceste imensamente. Quando nasceste eras um pirralho deste tamanho; hoje
estás mais alto que eu.”

A fala do senhor de Pancrácio deseja convencer e persuadir seu interlocutor. O


argumento apresentado, entretanto, é intencionalmente falho, isto é, configura
uma falácia. Explique em que consiste esta falácia.
4.
A propósito de Dom Casmurro, de Machado de Assis, é correto afirmar:

a) A narrativa de Bento Santiago é comparável a uma acusação: aproveitando


sua formação jurídica, o narrador pretende configurar a culpa de Capitu.
b) O artifício narrativo usado é a forma de diário, de modo que o leitor receba
as informações do narrador à medida que elas acontecem, mantendo-se assim
a tensão.
c) Elegendo a temática do adultério, o autor resgata o romantismo de seus pri-
meiros romances, com personagens idealizadas entregues à paixão amorosa.
d) O espaço geográfico e social representado é situado em uma província do
Império, buscando demonstrar que as mazelas sociais não são prerrogativa da
Corte.
e) Bentinho desejava a morte de Escobar (até tentou envenená-lo uma vez), a
ponto de se sentir culpado quando o ex amigo morreu afogado.

5.
“Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim,
isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto
que o uso vulgar seja co­meçar pelo nascimento, duas considerações me levaram
a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor

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defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; o segundo
é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo.”

(“Memórias póstumas de Brás Cubas – Machado de Assis)

Lit.
Em relação à questão anterior, infere-se que a linguagem dispõe de um recur-
so enriquecedor: a disposição das palavras no espaço frasal. Sendo assim, que
tipo de lei­tura pode-se fazer dessas duas expressões: “autor defunto” e “defunto
autor”?

a) A colocação da palavra defunto após a pa­lavra autor leva-nos a pensar que o


segundo elemento está em fase final de carreira.
b) Defunto autor remete à ideia de que a pessoa irá escrever suas memórias den-
tro de um cemitério.
c) Ambas as expressões transmitem a mes­ma ideia, com iguais valores semân-
ticos.
d) A expressão defunto autor aparece de forma metaforizada, original, privile-
giando uma nova forma de narração autobiográfica.
e) Ambas as construções não têm expressão na obra biográfica de Machado de
Assis.
6.
(MACKENZIE) Texto I
(...) estás sempre aí, bruxo alusivo e zombeteiro,
que revolves em mim tantos enigmas.
Carlos Drummond de Andrade (em poema dedicado a Machado de Assis)

Texto II
Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro
para fora, outra que olha de fora para dentro (...). Há casos, por exemplo,
em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; — e
assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de bo-
tas (...). Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos,
foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de
irmandade, suponhamos.
Machado de Assis

“Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um cho-
calho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de irmandade, su-
ponhamos.”

Assinale a afirmação correta sobre os exemplos apresentados no texto.

a) Correspondem a estratégia argumentativa para persuadir o interlocutor de

79
que há uma alma exterior.
b) Funcionam como digressões, isto é, desvios com relação ao tema de teor es-
piritualista presente na afirmação inicial.
c) Usados ironicamente, invalidam a tese, já que provam a tendência materialista

Lit.
e consumista, inata no homem.
d) Contrariam a tese, na medida em que indicam coisas concretas, o que provo-
ca efeito humorístico.
e) Embora indiquem coisas concretas, confirmam o desapego humano à mate-
rialidade do mundo.

7.
Assinale a alternativa correta sobre Machado de Assis.

a) Desde o início de sua carreira literária, seguiu de forma rigorosa os cânones


da estética realista, produzindo romances cuja base temática se apoia no deter-
minismo cientificista.
b) Privilegiou a sondagem dos misteriosos motivos psicológicos que atuam sobre
o comportamento humano, atitude que o particularizou no contexto do Realismo
ortodoxo do século XIX.
c) Retratou, de acordo com princípios do Naturalismo, a degradação da socie-
dade burguesa de sua época, criando personagens marcados por fortes traços
patológicos.
d) Embora tenha adotado o estilo realista, defendeu a tese de que a única salva-
ção para o homem estaria na religião.
e) Sua obra é marcada por forte influência romântica, derivando daí a acentuada
idealização do espírito humano tematizada em seus textos.
QUESTÃO CONTEXTO
Leia atentamente o trecho abaixo, retirado da obra “Dom Casmurro”, de Macha-
do de Assis:

“Capitu era Capitu, isto é, uma criatura muito particular, mais mulher do que
eu era homem. Se ainda o não disse, aí fica. Se disse, fica também. Há con-
ceitos que se devem incutir na alma do leitor, à força de repetição.

Era também mais curiosa. As curiosidades de Capitu dão para um capítulo.


Eram de vária espécie, explicáveis e inexplicáveis, assim úteis como inúteis,
umas graves, outras frívolas; gostava de saber tudo. No colégio onde, desde
os sete anos, aprendera a ler, escrever e contar, francês, doutrina e obras
de agulha, não aprendeu, por exemplo, a fazer renda; por isso mesmo, quis
que prima Justina lhe ensinasse. Se não estudou latim com o Padre Cabral
foi porque o padre, depois de lhe propor gracejando, acabou dizendo que la-
tim não era língua de meninas. Capitu confessou-me um dia que esta razão
acendeu nela o desejo de o saber. Em compensação, quis aprender inglês
com um velho professor amigo do pai e parceiro deste ao solo, mas não foi
adiante. Tio Cosme ensinou-lhe gamão.”

80
De acordo com as informações extraídas do texto e seus conhecimentos acerca
da literatura machadiana, aponte características que reforcem a ideia de que a
personagem Capitu não se encaixava aos valores morais de seu tempo, associan-
do ao contexto histórico da época.

Lit.
GABARITO
01. 03.
Exercício de aula Questão Contexto
1. c No século XIX, a construção da figura da mulher
2. a era voltada aos valores patriarcais, devendo essa se
3. A ironia é um recurso retórico sofisticado submeter aos anseios do pai ou do marido. Entre-
exatamente porque ela pode, numa única formula- tanto, o que o trecho em questão nos mostra é que
ção, apresentar duas perspectivas, em geral antagô- a personagem Capitu tenta desconstruir o senso de
nicas entre si. O alvo da ironia do autor é a existência “obediência” que a mulher deveria exercer, além do
de hipócritas entre os que defendiam a abolição da fato de percebemos uma aproximação à busca inte-
escravatura: pessoas que a defendiam não por prin- lectual, presente nos trechos “Se não estudou latim
cípios humanitários, mas sim por oportunismo, para com o Padre Cabral foi porque o padre, (...), acabou
seguir os outros, ou por esperteza, para continuar dizendo que latim não era língua de meninas” e “Em
levando vantagem na mudança do regime econômi- compensação, quis aprender inglês”, o que mostra
co. uma resistência e autonomia da personagem femini-
A contratação de Pancrácio como assalariado faz na em tentar romper, para si, os valores morais que
parte dessa ironia porque ela o mantém sob o domí- a envolviam.
nio e a exploração do seu ex-dono, agora patrão, in-
clusive com “direito” às mesmas surras da condição
anterior de escravo. O autor mostra que a libertação

81
dos escravos é relativa: em muitos casos, os escra-
vos ficaram em situação pior do que antes. (Gabarito
Oficial Uerj)
4. e

Lit.
02.
Exercício de casa
1. a
2. e
3. O senhor de Pancrácio, para convencê-lo
da evolução da sua condição, de escravo a assala-
riado, compara a possibilidade de crescimento do
seu ordenado com o crescimento físico do próprio
Pancrácio. A comparação, entretanto, é indevida,
pois não sustenta de modo algum o argumento, isto
é, trata-se de uma falácia: um argumento construí-
do não para esclarecer uma verdade, mas sim, para
enganar o ouvinte ou leitor. Enquanto o crescimen-
to do escravo é notável e independente da vontade
de qualquer pessoa, o crescimento do ordenado de-
pende da vontade e da decisão do patrão, ou seja,
de quem paga o salário. (Gabarito Oficial Uerj)
4. a
5. d
6. a
7. b

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