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No início de 2020, com o advento da pandemia atual causada pelo Coronavírus, uma crise na
saúde pública global se instalou, escancarando a contradição da lógica neoliberal. Essa lógica, que se
encontra alicerçada sobre a precarização do trabalho, o empobrecimento da classe trabalhadora, a
devastação dos recursos naturais, e principalmente, sobre a lógica violenta de descarte de todas as
vidas, se apresenta, primordialmente, a partir do enlace entre o capitalismo e o patriarcado. Nesse
âmbito, rege um modelo de ser humano dito “universal” que possui gênero, raça, classe, sexualidade
e capacidades diversas bem definidas: ele é homem, branco, heterossexual, patriarcal, por vezes,
cristão e há muito, proprietário, simbolizando o suprassumo desta aliança, que evoca urgência em ser
provocada e questionada em nosso cotidiano de ensino.
O contexto pandêmico, que já ultrapassa o marco de um milhão e meio de mortos, para além
de desnudar a debilidade de um sistema mergulhado no aprofundamento de políticas genocidas,
reacende também as discussões interseccionadas sobre gênero, raça, classe, sexualidade e
capacidades diversas. A crise, como nos aponta Barroso e Gama (2020), tem “rosto de mulher”. De um
lado, equipes de saúde de combate ao Coronavírus compostas majoritariamente por mulheres; do
outro, o crescimento acentuado da violência doméstica, além da sobrecarga e desprezo pelas tarefas
da casa que reforçam a desigualdade de Gênero e a reafirmação da vulnerabilidade dos corpos
negros/racializados e LGBTQIAP+.
Uma vez feita a aposta da Universidade Federal da Bahia pelo Semestre Letivo Suplementar,
a disciplina “Gênero, Natureza, Cidade e Arquitetura” decidiu por aproximar-se do campo da
arquitetura e do urbanismo sob a perspectiva de Gênero, como meio de refletir criticamente os
desafios escancarados acima, a partir de temas pouco estimulados/abordados pelo currículo
acadêmico. Dentre eles podemos mencionar as invisibilidades de profissionais e dos corpos
dissidentes que ocupam uma esfera marginalizada da vida urbana; os problemas historiográficos que
envolvem não apenas a exclusão de trajetórias e modos diversos à produção do habitar em lógica
capitalista e patriarcal, além dos significados que essas trajetórias e produções carregam e; percursos
feministas estratégicos a abordagens teóricas e práticas projetuais.
Ao entendermos Arquitetura como símbolo, que comunica e que também possui significado,
quais são os discursos transmitidos e quais narrativas permanecem reprimidas pelo pensamento
arquitetônico ocidental? Dos percursos das pesquisas em História Urbana no Brasil, professores como
Ana Fernandes e Marco A. A. F. Gomes, apontam reflexões que podem enunciar possíveis respostas,
e, que, naturalmente podem ser associadas aos questionamentos que o tema do Gênero busca
provocar ao nosso campo:
1
NOCHLIN, L. Porque não houve grandes mulheres artistas? São Paulo: Ed. Aurora, 2016.
2
FERNANDES, A.; GOMES, M. A. A. F. A pesquisa recente em história urbana no Brasil: percursos e questões. In
PADILHA, N. (org.) Cidade e urbanismo. História, teorias e práticas. Salvador: MAU/FAUFBa, 1998.
BASTOS, Nathan. A. M. Deturpar a visão: os enlaces do estado opressor. 2020. Nanquim e acrílica sobre papel,
21,0 x 29,7cm.
Partindo dessa provocação, evidenciar as enormes dobras suprimidas pela história a partir da
ressignificação de trajetórias e experiências femininas torna-se chave para uma reflexão que questione
e que se contraponha ao conhecimento hegemônico. Artifícios plausíveis devem ser considerados para
dar voz à diversidade de pesquisas elaboradas pelas figuras atuantes das academias do Cone Sul, uma
vez que estas pesquisas, em sua maioria, apresentam um debate descolonizado e direcionado ao tema
do Gênero e suas intersecções necessárias.
Um exemplo disso pode ser observado no campo do urbanismo, ao constatar que a maioria
das propostas idealizadas por esses grupos à margem se tornam mais inclusivas, ao passo que
consideram a diversidade das experiências, refletindo também, sobre as nuances de culturas
populares locais. O contato com os “corpos desajustados”, levantado pela professora e teórica
Francesca Hughes, aponta para a posição marginalizada do feminino como lugar propício para uma
revolução, uma vez que se reconhece o modelo tradicional - engessado e unilateral - fadado à
replicação de esquemas que afetam negativamente a pluralidade dos sujeitos.
Não menos importante é a discussão que perpassa as vozes femininas fora da academia. Ainda
mais ofuscadas, revelam novas indagações sobre os espaços hostis que a cidade e a casa – esta última
enquanto microcosmo - lhe oferecem, questão que reverbera sobre os modos de morar e habitar
baseados sob a égide da lógica capitalista e patriarcal.
5 - Assumir uma postura crítica acerca da dimensão imagética, que envolve os sistemas de
representação e seus significados, além da composição da lógica discursiva dominante nas produções
arquitetônicas e urbanísticas. Posto isso, é possível elaborar provocações sobre linguagens e discursos
baseados na unilateralidade de um sujeito universal, bem como questionar as proporções
historiográficas que essas obras, enquanto produção cultural, assumem, em detrimento de outras;
6 - Legitimar a presença de narrativas construídas “a contrapelo”, uma vez que tal perspectiva
histórica acolhe a diversidade de sujeitos e grupos, tensionando as identidades socialmente
formuladas que são potencialmente assimiladas na produção do espaço. Dessa forma, podemos
explorar outras possibilidades que envolvam o processo de elaboração de projetos e outros modos de
morar e habitar os lugares;
7 – Tornar visíveis arquitetas e arquiteturas produzidas pelo Cone Sul, sob uma perspectiva
crítica descolonizada do pensamento eurocentrado. Busca-se assim, ampliar as referências, sejam elas
experiências projetuais e de trajetórias profissionais, a partir do deslocamento da produção de
significados consolidados, em sua maioria, produzido a partir de narrativas universalizadas, do “gênio
criador” que evidenciam “grandes arquitetos”. A partir da análise da produção histórica e
contemporânea, abrimos espaço para outras representações e outros olhares que se aproximem e
contemplem a nossa realidade brasileira e latino-americana;
8 – Refletir sobre a experimentação do espaço urbano realizado pelos corpos e grupos
dissidentes em seus aspectos de resistência frente aos dispositivos de domesticação dos corpos e
territórios protagonizados pela intervenção do Estado e do Capital. Esta é uma consideração que
evidencia de modo mais aprofundado, reais insurgências acerca dos aspectos de gênero, raça, classe,
sexualidade e capacidades diversas como importante chave de análise crítica associadas às discussões
do direito à cidade e à justiça social;
Por fim, esta carta é um manifesto acerca de um conhecimento que atravesse a nossa própria
humanidade, como compasso essencial para o reconhecimento de paisagens e memórias sociais que
permeiam a produção de cidades e arquiteturas mais justas, horizontais e igualitárias.
AMEFRICANIDADE. Produção: Canal Saúde. Intérprete: Zezé Motta. Rio de Janeiro: Fio Cruz, 2020.
Disponível em: https://www.youtube.com/v/s-
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