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RESENHA 1

Magnani (2016) investiga o exercício da etnografia e para tanto,


questiona se o histórico de métodos e conceitos da Antropologia é capaz de se
adaptar às crescentes aglomerações urbanas, embora a cidade não constitua a
escala tradicional dos estudos da disciplina.
Consideravelmente menos irônico e provocativo que Hissa (2011) e
Topalov (1991), parece introduzir mais pragmaticamente (e propriamente
apegado à discussão de métodos e conceitos) a essência das temáticas que
irão permear os três textos em questão: a necessidade de extrapolar fronteiras
para fazer Ciência, e os obstáculos nascidos da postura do pesquisador.
Via Habermas, Magnani (2016) apresenta que as funções sociais
urbanas outrora vivenciadas e percebidas numa temporalidade e
espacialidades de configuração nítida estão desgastadas. A partir do século
XIX – apesar do saudosismo de urbanistas, insistentes em reinventar métodos
para detectar padrões – essa se tornou a representação de uma cidade
antiquada, alheia à diversidade pujante cada vez mais representativa da vida
urbana.
Nesse contexto, a valia do método etnográfico para Magnani (2016)
está na capacidade de apreensão multiescalar de dinamicidades, apesar da
(mas por conta da) heterogeneidade da questão: antever regularidades e
formas recorrentes em planos intermediários de análise, e evitar
fragmentações.
Assim, Magnani (2016) foge à “tentação da aldeia”, e advoga a
relevância em partir da experiência vivida de atores sociais para traçar
elementos mínimos estruturantes, reconhecíveis em diferentes contextos. A
cidade não é um ente isolado, estanque, e racionalmente determinado em
ordem, totalidade e posição na pesquisa, mas uma “modalidade de
assentamento humano” abrangente, lugar de fluxos.
O autor elucida como isso contrapõe a visão microscópica usualmente
atribuída à etnografia. Extrapolando suas argumentações, essa territorialização
é negada também por Hissa (2011), que atrela a fragmentação ao
esvaziamento e comprometimento da produção do conhecimento, em virtude
do parcelamento científico.
Associa isso à pobreza de leituras de mundo, limitada ao respeito por
uma hierarquia inventada, corporativista e mercadológica: “sem brilho cultural
transformador” – um retrato fiel da educação antidialógica e bancária descrita
por Freire (1996).
Dialoga também com as construções dinâmicas e de protagonizar
atores/agentes sociais de Magnani (2016), no fato de considerar a
transdisciplinaridade, em verdade, “um movimento que transforma a disciplina
por meio do próprio movimento” (sendo que dá especial atenção ao conceito de
"transformação" no início de seu texto).
O autor defende que fugir ao circuito da ciência moderna é trabalhar
para que se referenciem sujeitos, saberes e práticas do mundo, ou melhor: “a
mistura entre o conhecimento científico e os saberes que circulam nas
sociedades”. A transdisciplinaridade, portanto, propõe expandir o conhecimento
científico de maneira radical, alcançando horizontes sumariamente
desconhecidos pela codificação do modelo cientificista moderno.
Hissa (2011) faz ver que tratar da transdisciplinaridade, de "suas
fragilidades e contradições", oferece um valioso arsenal sobre fazer Ciência, da
constituição da Ciência moderna, e converge na fuga de fragmentações que a
perspectiva etnográfica de Magnani apresenta. (Ser) transdisciplinar é povoar
fronteiras (cuja presença ameaça a reivindicação de territórios), e isso inclui
(necessariamente) fugir do âmbito acadêmico e da mera sobreposição de
disciplinas.
Importante mencionar a consideração do autor sobre a versão recorrente
de uma presumida tentativa nessa ordem: a aproximação de saberes não
científicos, unicamente para o “sujeito invasor” deles se apropriar, reinterpreta-
los unilateralmente – fato esse característico da região Amazônica
(MALHEIRO; PORTO-GONÇALVES; MICHELOTTI, 2021) abordada por
Magnani (2016), embora não adentre esse viés.
Hissa (2011) destaca que o modelo fragmentado é hegemônico,
pressuposto compartilhado por Magnani (2016) e Topalov (1991), embora o
último se distancie dos dois. Ele discorre extensamente sobre a percepção
construída e enraizada nos (e pelos) cientistas urbanos, da soberana influência
da disciplina da ciência urbana, sobre os rumos da sociedade. Mais do que
influência: controle, que é imposto com legitimidade minuciosamente
arquitetada.
O ordenamento urbano seria seguido pelo ordenamento social, uma
relação de causalidade unicamente possível de ser aventada, com uma
confiança excepcional na disciplina. Ou seja: uma estrutura inventada, passo a
passo, e calcada na asfixia (ainda que mascarada) dos tais atores/agentes
sociais.
O que Magnani (2016) descreve como uma recriação no contexto da
escrita, parte do trabalho de um etnógrafo, pode se inserir na crítica de Topalov
(1991) quanto à função do pesquisador de campo nesse processo de legitimar
a ciência urbana a fim de que se reproduza – o que muito frequentemente se
verifica nas instâncias presumidamente participativas em municipalidades
brasileiras.
Ao mesmo tempo, fica nítido que Topalov (1991) vê com ressalvas a
Antropologia Urbana tão cara a Magnani (2016), inserindo-a juntamente às
correntes da pesquisa urbana que enxergam os atores sociais na perspectiva
de reabilitá-los, ou de serem romanticamente o despontar de uma
reestruturação, no caso dos bairros populares.
Movimento relevante para recordar que a atenção nos processos é
sempre devida, especialmente quando inseridos em um modo de produção
diametralmente contrário a atividades de emancipação e autonomia popular,
como é o caso do capitalismo financeiro.
Não que essa presunção seja ignorada por Hissa (2011), mas a
retomada histórica que expõe as similitudes e origens convergentes de
diferentes correntes da ciência urbana (estejam mais à esquerda, ou mais à
direita) de Topalov (1991) oferece perspectiva distinta sobre as sutilezas
envolvidas tanto no discurso, como na prática com atores sociais descolados
do campo científico.
É certo que se exige cautela e muito refinamento para que os
paradigmas sejam superados, e que boas intenções não esqueçam posições
privilegiadas e obliterem o reconhecimento de propriedades singulares,
autorias e saberes diversos. Para além da apropriada transposição de
fronteiras, resta zelar pelo trato humano e político com a amplitude
ambicionada, para que se desenvolvam trabalhos politicamente comprometidos
e éticos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática


educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
HISSA, Cássio Eduardo Viana. Transdisciplinaridade: breves notas acerca de
limites e fronteiras da ciência moderna. Revista Terceiro Incluído, v. 1, n. 1, p.
90-105, 2011.
MALHEIRO, Bruno; PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter; MICHELOTTI,
Fernando. Horizontes Amazônicos: Para repensar o Brasil e o mundo. 1ª Ed.
São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo; Fundação Popular, 2021. 302p.
TOPALOV, Christian. Os saberes sobre a cidade: tempos de crise. Espaço e
Debates, v. 11, n. 34, p. 28-37, 1991.

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