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SAMIZDAT

www.samizdat-pt.blogspot.com

6
julho
2008

SALVEM AS CRIANÇAS!
esta é a súplica de Lu Xun
em Diário dum Louco
SAMIZDAT 6
julho de 2008

Edição, Capa e Diagramação: Obra Licenciada pela Atribuição-Uso Não-Comercial-


Henry Alfred Bugalho Vedada a Criação de Obras Derivadas 2.5 Brasil Creative
Commons.
Autores Todas as imagens publicadas são de domínio público ou
Alian Moroz
royalty free.
Carlos Alberto Barros As idéias expressas e a revisão das obras são de inteira
responsabilidades de seus autores ou tradutores.
Giselle Natsu Sato
Henry Alfred Bugalho
José Espírito Santo
Editorial
Marcia Szajnbok Após tantos séculos, a China ainda permanece um territó-
Pedro Faria rio a ser desbravado. No imaginário coletivo, este povo com
Volmar Camargo Junior vários milênios de História acaba por se resumir a alguns
conceitos bastante delimitadores: a Grande Muralha, filmes
toscos de kung-fu, macarrão chop-suey, meninas sendo aban-
Autores Convidados
donadas à morte por causa duma arraigada cultura patriar-
Leo Borges cal e Mao-Tse-Tung. Como se a complexidade do país mais
populoso do mundo pudesse ser apresentada de maneira tão
Textos de: simplória.
Aluísio Azevedo Em agosto deste ano, as atenções estarão voltadas para a
China, sede dos jogos olímpicos de 2008. Do mesmo modo
Hu Shi
que o povo chinês tem sido obrigado a ocidentalizar cer-
Lu Xun tos hábitos e costumes, nós também estamos tendo de nos
orientalizar em certos aspectos, apenas assim podemos nos
preparar para esta nova China, bem diferente daquela dos
filmes de Ang Lee (“O Tigre e o Dragão”) ou de Zhang Yimou
(“Herói” e “O Clã das Adagas Voadoras”). Por mais que, no
Imagem da capa: interior rural, a China ainda esteja atolada num regime quase
http://www.flickr.com/photos/ feudal – o que também poderia ser dito do interior brasileiro,
mazintosh/2104768410/ por exemplo –, as metrópoles chinesas são a última palavra
em tecnologia e civilização.
Nesta edição da SAMIZDAT, são apresentados dois autores
desta China moderna, porém ainda pré-revolucionária. Lu
Xun e Hu Shi são dois expoentes duma intelectualidade que
contribuiu para a atualização e renovação deste país – re-
volução que significou atrocidades inimagináveis, mas que
também tentou gerar um pouco de igualdade numa nação
de contrastes. Aliás, este foi o desafio e o conflito enfrentado
por quase todos os Estados socialistas.
Outro destaque é a coleção e o ensaio teórico sobre uma
forma poética bastante adaptada à era digital – o poetrix.
Breve, econômico, conciso e belo.
Henry Alfred Bugalho
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Sumário
Por que Samizdat? 6
Henry Alfred Bugalho

ENTREVISTA
Fernando Bonassi 8

MICROCONTOS
Alian Moroz 11
Henry Alfred Bugalho 11
Volmar Camargo Junior 11

AUTORES EM LÍNGUA PORTUGUESA


Polítipo 12
Aluísio Azevedo

PANORAMA LITERÁRIO
O Medo do Livro 16
Henry Alfred Bugalho

CONTOS
Lucas, o Menino Binário 20
Carlos Alberto Barros

O Convite 24
Volmar Camargo Junior
Capítulos 1 28
Henry Alfred Bugalho

O Autor dos Passos 30


José Espírito Santo

O País 33
José Espírito Santo

Caiu a Sombra 34
Pedro Faria

O Templo dos Sorrisos 37


Alian Moroz
O Bicho-Papão 38
Giselle Sato

TRADUÇÃO
Diário dum Louco 40
Lu Xun
Hu Shi, o intelectual da
reforma literária chinesa 50
Não se esqueça 53
Hu Shi

Sonho e Poesia 54
Hu Shi

AUTOR CONVIDADO
A Única Paz Possível é a Jacimeire 56
Leo Borges

TEORIA LITERÁRIA
Por que escrevo? 60
Henry Alfred Bugalho
Três Versos 62
Volmar Camargo Junior

CRÔNICAS
Brasileiros no Exterior:
Patuscada no Carnegie Hall 66
Henry Alfred Bugalho
POESIA
Teatro de Máscaras 70
Carlos Alberto Barros

Utopia 71
Frederico Galhardo

Laboratório Póetico III 72


Volmar Camargo Junior

Poesia Concreta 73
Volmar Camargo Junior

Poetrix 74
José Espírito Santo

Dois Momentos 75
Marcia Szajnbok

LINKS DESTA EDIÇÃO 76


SOBRE OS AUTORES DA SAMIZDAT 75

SEÇÃO DO LEITOR
Agora o leitor da SAMIZDAT também pode colaborar com a elaboração da revista.
Envie-nos suas sugestões, críticas e comentários.
Você também pode propor ou enviar textos para as seguintes seções da revista: Rese-
nha Literária, Teoria Literária, Autores em Língua Portuguesa, Tradução e Autor Convi-
dado.
Escreva-nos para:
revistasamizdat@hotmail.com
Por que Samizdat?

“Eu mesmo crio, edito, censuro, publico,


­distribuo e posso ser preso por causa disto”
Vladimir Bukovsky

Henry Alfred Bugalho Inclusão e Exclusão governo humanitária, igua-


henrybugalho@hotmail.com litária, mas logo se converte
em uma ditadura como qual-
Nas relações humanas,
quer outra. É a microfísica do
sempre há uma dinâmica de
poder.
inclusão e exclusão.
Em reação, aqueles que
O grupo dominante, pela
se acreditavam como livres-
própria natureza restritiva
pensadores, que não que-
do poder, costuma excluir ou
riam, ou não conseguiram,
ignorar tudo aquilo que não
fazer parte da máquina
pertença a seu projeto, ou
­administrativa - que esti-
que esteja contra seus prin-
pulava como deveria ser a
cípios.
cultura, a informação, a voz
Em regimes autoritários, do povo -, encontraram na
esta exclusão é muito eviden- autopublicação clandestina
te, sob forma de perseguição, um meio de expressão.
censura, exílio. Qualquer um
Datilografando, mimeo-
que se interponha no cami-
grafando, ou simplesmente
nho dos dirigentes é afastado
manuscrevendo, tais autores
e ostracizado.
russos disseminavam suas
As razões disto são muito idéias. E ao leitor era incum-
simples de se compreender: bida a tarefa de continuar
o diferente, o dissidente é esta cadeia, reproduzindo tais
perigoso, pois apresenta obras e também as p ­ assando
alternativas, às vezes, muito adiante. Este processo foi
melhores do que o estabe- designado "samizdat", que
lecido. Por isto, é necessário nada mais significa do que
suprirmir, esconder, banir. "autopublicado", em oposição
às publicações oficiais do
A União Soviética não regime soviético.
foi muito diferente de de-
mais regimes autocráticos.
­Origina-se como uma
Foto: exenplo dum samizdat. Corte- forma de
sia do Gulag Museum em Perm-36.

6 SAMIZDAT julho de 2008


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E por que Samizdat? revistas, jornais - onde ele des tiragens que substitua
possa divulgar seu trabalho. o prazer de ouvir o respal-
O único aspecto que conta é do de leitores sinceros, que
A indústria cultural - e o
o prazer que a obra causa no não estão atrás de grandes
mercado literário faz parte
leitor. autores populares, que não
dela - também realiza um
perseguem ansiosos os 10
processo de exclusão, base- Enquanto que este é um mais vendidos.
ado no que se julga não ter trabalho difícil, por outro
valor mercadológico. Inex- lado, concede ao criador uma Os autores que compõem
plicavelmente, estabeleceu-se liberdade e uma autonomia este projeto não fazem parte
que contos, poemas, autores total: ele é dono de sua pala- de nenhum ­movimento
desconhecidos não podem vra, é o responsável pelo que literário organizado, não
ser comercializados, que não diz, o culpado por seus erros, são modernistas, pós-
vale a pena investir neles, é quem recebe os louros por ­modernistas, vanguardistas
pois os gastos seriam maio- seus acertos. ou q­ ualquer outra definição
res do que o lucro. que vise rotular e definir a
E, com a internet, os au- orientação dum grupo. São
A indústria deseja o pro- tores possuem acesso direto apenas escritores ­interessados
duto pronto e com consumi- e imediato a seus leitores. A em trocar experiências e
dores. Não basta qualidade, repercussão do que escreve sofisticarem suas escritas. A
não basta competência; se (quando há) surge em ques- qualidade deles não é uma
houver quem compre, mes- tão de minutos. orientação de estilo, mas sim
mo o lixo possui prioridades
a heterogeneidade.
na hora de ser absorvido Ao serem obrigados a bur-
pelo mercado. larem a indústria cultural, os Enfim, “Samizdat” porque a
autores conquistaram algo internet é um meio de auto-
E a autopublicação, como que jamais conseguiriam de publicação, mas “Samizdat”
em qualquer regime exclu- outro modo, o contato qua- porque também é um modo
dente, torna-se a via para se pessoal com os leitores, de contornar um processo
produtores culturais atingi- o ­diálogo capaz de tornar a de exclusão e de atingir o
rem o público. obra melhor, a rede de conta- ­objetivo fundamental da
tos que, se não é tão influen- ­escrita: ser lido por alguém.
Este é um processo soli-
te quanto a da ­grande mídia,
tário e gradativo. O autor
faz do leitor um colaborador,
precisa conquistar leitor a
um co-autor da obra que lê.
leitor. Não há grandes apa-
Não há sucesso, não há gran-
ratos midiáticos - como TV,

SAMIZDAT é uma revista eletrônica


­ ensal, escrita, editada e publicada pelos
m
­integrantes da Oficina de Escritores e Teoria
Literária. Diariamente são incluídos novos
textos de autores consagrados e de jovens
­escritores amadores, entusiastas e profis-
sionais. Contos, crônicas, poemas, resenhas
literárias e muito mais.

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Entrevista

FERNANDO BONASSI
adaptado de 2003); Garotas do estreou no dia 04 de abril de
ABC (de Carlos Reichenbach), 1998.
Cazuza (de Sandra ­Werneck- Nesse mesmo ano,
Prêmio TAM do Cinema Bra- foi vencedor da bolsa do
sileiro para o melhor roteiro ­Kunstlerprogramm do DAAD
adaptado de 2004). - Deutscher Akademischer
Em 2006 é co-autor, com o Austauschdienst. Desde 1997 é
cineasta chinês Yu Lik Way, do colunista do jornal Folha de São
roteiro da co-produção Brasil/ Paulo.
China Plastic City.
No teatro, destacam-se as
montagens de Preso Entre Há pouco tempo nós
Fernando Bonassi nas-
Ferragens (dirigida por Eliana tivemos a adaptação do
ceu em São Paulo, em 1962.
É roteirista de cinema e TV, Fonseca); Apocalipse 1,11 (em impressionante livro
dramaturgo, cineasta e escritor colaboração com o Teatro da 'Ensaio sobre a cegueira',
de diversas obras, entre elas Um Vertigem); “Três Cigarros e a do José Saramago, em
Céu de Estrelas (Ed Siciliano) Última Lasanha” (com Rena- uma produção que cau-
Subúrbio; Crimes Conjugais e to Borghi e direção de Débora sou alguma polêmica.
100 Histórias Colhidas na Rua Dubois); Souvenirs (dirigida por Há uma cena impactan-
(Scritta); O Amor é Uma Dor Márcio Aurélio); “Arena Conta
te (a do estupro coleti-
Feliz (Moderna); Uma Carta Danton” com a Cia Livre de
vo) que foi efetivamente
Para Deus e Vida da Gente Teatro; a encenação do fragmen-
to “Estilhaços de São Paulo”,
filmada pelo Meirelles
(­Formato) O Céu e o Fundo do e exibida de maneira
Mar (Geração Editorial); 100 no espetáculo “Megalopolis” do
Theater der Klaenge (Sttutgart, experimental. A cena foi
Coisas (Angra) ); Declaração vetada porque a reação
Universal do Moleque Invocado Alemanha) e “Centro Nervoso”,
quando estreou na direção, em foi muito adversa. Nesse
(Cosac & Naify) e São Paulo/
agosto de 2006. sentido, há algum tre-
Brasil (Ed. Dimensão), ambos
finalistas do Prêmio Jabuti nos Em 2007 volta ao texto e cho do livro “Estação
seus anos de lançamento. a direção com o monólogo O Carandiru”, de Dráusio
Incrível Menino na Fotografia, Varela, que você consi-
Em 2003 é publicada a
interpretado pelo ator Eucir de derou melhor não ex-
novela Prova Contrária e em
Souza. por na adaptação para
2005 o romance O Menino que
se Trancou na Geladeira, ambos Tem diversos prêmios como o cinema? E o que você
pela Editora Objetiva. roteirista no Brasil e no exterior, achou do resultado final
além de obras literárias adapta- do filme?
É co-roteirista de filmes
como Os Matadores (de Beto das para o cinema e textos em
Brant); Através da Janela (de antologias na França, Estados
Unidos e Alemanha. Fernando Bonassi:
Tata Amaral); Castelo Ra Tim Não, nenhuma cena de
Bum (de Cao Hamburguer); O romance Subúrbio teve
­Carandiru foi censurada
Carandiru (de Hector B ­ abenco os direitos comprados pelo
de qualquer modo pelos
– Prêmio TAM do Cinema Deutsches Schauspielhaus de
Hamburgo. A adaptação teatral roteiristas e responsáveis
Brasileiro para o melhor roteiro

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pelo filme. Fizemos o que F.B.: Acompanhei um Conte-nos um pouco
quisemos, mas acho que grupo de escritores lá sobre a trajetória per-
o resultado não é bom. no presídio e ao mesmo corrida até ter sua pri-
É um filme muito lento tempo escrevia cartas meira obra publicada.
quando devia ser rápi- para outros tantos, tudo
do e muito rápido onde que vi, e ouvi lá me
devia se deter e “observar marcou para o roteiro e F.B.: Escrevia (e escrevo)
melhor” os personagens. marca minha escrita sim. muito muito. Participei
Não é o meu melhor Havia muita dor lá, im- de todos os concursos e
resultado em cinema. possível ficar imune. jornais literários de mi-
Gosto mais do que ajudei nha época e até hoje é
a fazer em Os Matadores, assim. Oferecer o meu
de Beto Brant.
“Minha maior texto por aí é o úni-
preocupação como co jeito mais ou menos
autor é comover honesto que encontrei e
como sou comovido encontro até hoje...
com a vida.”
É comum encontrar-
se autores que, mesmo
A literatura, o cine- com livros publicados,
ma e o teatro possuem se não tiverem a apro-
estruturas, resultados e vação da crítica ou um
públicos bastante dis- maior reconhecimento,
tintos. Para você, qual não conseguem obter
é o maior desafio ao retorno satisfatório com
escrever para cada um a escrita e acabam por
destes meios? E qual deixarem-na em segun-
deles mais te agrada? do plano ou, até mesmo,
a abandonam. O que
você acha disso e, no
F.B.: Cinema é dinheiro. seu caso, como e quan-
Para a escrita do Teatro é diversão. Litera- do surgiu esse reconhe-
roteiro do filme tura é liberdade. cimento?
“­Carandiru”, você este-
ve dentro deste com- Qual é sua maior F.B.: Escritor que escreve
plexo penitenciário preocupação como por reconhecimento tem
para acompanhar as autor? Que mensagem texto morto. A gente es-
atividades diárias dos deseja passar com o que creve e a crítica aprecia.
detentos. O que essa escreve? Normalmente tomamos
experiência lhe trouxe? pau, mas é assim mesmo.
Você costuma usar esse Um dia alguém fala bem
artifício de inserção no F.B.: Minha maior pre- e aí começa um circuito
ambiente retratado para ocupação como autor é de boatos em torno de
compor suas histórias? comover como sou co- você... Mas isso só acon-
movido com a vida. tece se você escrever sem
esperar. Tem que ser sur-

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presa, senão não vale. Se falar de tudo com uma
a crítica fosse importante, criança, já os adultos vi-
haveria só ensaio, não vem se ofendendo... é um
literatura. saco.

Como foi sua expe- Há algum projeto


riência de viver fora específico (romance,
da Brasil? Há uma boa roteiro, peça teatral)
aceitação de seus livros em que está investindo
por leitores estrangei- no momento? Pode nos
ros? falar um pouco dele?

F.B.: Viver no estrangei- F.B.: Neste momento


ro, em países onde você interrompi a escrita de
nem sabe a língua, é uma um romance para traba-
experiência muito forte lhar na TV. Fui contrata-
de solidão e paradoxal- do pela TV Globo para
mente de mergulho na algumas propostas (ainda
sua própria cultura. Pas- sigilosas) de ficção e com
sei a compreender (não uma liberdade criati-
aceitar) melhor o Brasil va, por enquanto, muito
depois que fiquei longe grande. Eu vou até onde
dele. É bom ser cidadão eles me deixarem enlou-
das Américas, a tradição quecer. O salário é mui-
nos pesa menos... Meus to bom, de todo modo.
livros de criança vendem Acho que vai dar pra
bem no exterior, mas comprar alguns vestidos
ainda temos muito o que de princesa pras minhas
aprender para se dar bem filhas...
nesse mercado...
Por fim, a equipe Coordenador da entrevista:
Tendo em vista sua editorial da revista Carlos Alberto Barros
participação em pro- ­SAMIZDAT agradece
jetos marcantes para a muito toda a presta-
televisão, como os pro- tividade e disposição Perguntas feitas por:
gramas “Rá-tim-bum” e com que nos cedeu esta Alian Moroz
“O Mundo da Lua”, até entrevista. Desejamos- Carlos Alberto Barros
que ponto vai sua afini- lhe todo sucesso e um
dade com a escrita para grande abraço! Denis da Cruz
o público infantil? Henry Alfred Bugalho

F.B.: O meu abraço frater- Samuel Peregrino


F.B.: As crianças são lei- no a todos da SAMIZDAT! Volmar Camargo Junior
tores mais desencanados
que os adultos. Dá pra

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Microcontos
http://www.flickr.com/photos/caribb/1561876135/sizes/o/

Idéias
Alian Moroz

Sentiu a consciência pesar.


Uma idéia concreta talvez?

A Beca do Morto
Henry Alfred Bugalho

http://www.flickr.com/photos/woylee/1137932049/sizes/o/
- Ele era um anjo!
- Era um amor de criatura!
- Um santo... nunca fez mal a viv'alma.
- Ele era um desgraçado filho duma puta, isso sim!
Em vida, ele emprestava minhas coisas e nunca de-
volvia. Inclusive, aquele terno que ele está usando é
meu!

Cenário
http://www.flickr.com/photos/premshree/2588299341/sizes/l/

Volmar Camargo Junior

- Essas casas, essas lojas, esses restaurantes... É tudo


tão bonito! Parece cinema!
- Senhora...
- Sim?
- Posso parar de fingir que sou seu marido agora?

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Autor em Língua Portuguesa

POLÍTIPO
Aluísio Azevedo

http://healthisaright.files.wordpress.com/2008/03/1024magritte-sonofman.jpg
Suicidou-se anteontem o Não conheci ainda cria-
tura de melhor coração, nem
meu triste amigo Boaventura
de pior estrela. Possuía o
da Costa.
desgraçado os mais formosos
Pobre Boaventura! Jamais dotes morais de que é sus-
o caiporismo encontrou ceptível um animal da nossa
asilo tão cômodo para as espécie, escondidos, porém,
suas traiçoeiras manobras na mais ingrata e compro-
como naquele corpinho dele, metedora figura que até hoje
arqueado e seco, cuja exigüi- viram meus olhos por entre
dade física, em contraste com a intérmina cadeia dos tipos
a rara grandeza de sua alma, ridículos.
muita vez me levou a p­ ensar
O livro era excelente, mas
seriamente na injustiça dos
a encadernação detestável.
céus e na desequilibrada
desigualdade das cousas cá Imagine-se um homenzi-
da terra. nho de cinco pés de altura

12 SAMIZDAT julho de 2008


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sobre um de largo, com uma dos, e em cada rosto o pobre de cima para baixo era quase
grande cabeça feia, q­ uase Boaventura percebia uma um bonito moço, porém, de
sem testa, olhos fundos, pe- acusação tácita. baixo para cima era simples-
quenos e descabelado; nariz E o pior é que nestas mente horrível.
de feitio duvidoso, boca sem ocasiões, em que tão injusta- Encarando-o bem de
expressão, gestos vulgares, mente era tomado por outro, frente, ninguém hesitaria em
nenhum sinal de barba, bra- ficava o desgraçado por tal dar-lhe vinte e cinco anos,
ços curtos, peito apertado e modo confuso e perplexo, mas, com o rosto em três
pernas arqueadas; e ter-se-á que, em vez de protestar, quartos, afigurava apenas
uma idéia do tipo do meu começava a empalidecer, a dezoito. Quando saía à rua,
malogrado amigo. engolir em seco, agravando em noites chuvosas, com
Tipo destinado a perder- cada vez mais a sua dura a gola do sobretudo até às
se na multidão, mas que a situação. orelhas e o chapéu até à gola
cada instante se destacava Outro doloroso caipo- do sobretudo, passava por
justamente pela sua extraor- rismo dos seus, era o de um velhinho octogenário; e,
dinária vulgaridade; tipo sem parecer-se com todo o mun- quando estava em casa, no
nenhum traço individual, do. Boaventura não tinha verão, em fralda de camisa,
sem uma nota própria, mas fisionomia própria; tinha um a brincar com o seu gato ou
que por isso mesmo se fazia pouco da de toda a gente. com o seu cachorro, era tirar
singular e apontado; tipo, Daí os quiproquós em que nem pôr, um nhônhô de uns
cuja fisionomia ninguém ele ­apesar de tão bom e tão dez ou doze anos de idade.
conseguia reter na memória, pacato, vivia sempre enreda- Um dia, entre muitos, em
mas que todos supunham do. Tão depressa o tomavam que a polícia, por engano, lhe
conhecer ou já ter visto em por um ator, como por um invadiu os aposentos, sur-
alguma parte; tipo a que padre, ou por um barbeiro, preendeu-o dormindo, muito
homem algum, nem mesmo ou por um polícia secreto; agachadinho sob os lençóis,
aqueles a quem o infeliz, tomavam-no por tudo e por com a cabeça embrulhada
levado pelos impulsos gene- todos, menos pelo Boaventura num lenço à laia de touca, e
rosos de sua alma, prestava da Costa, rapaz solteiro, ama- o sargento exclamou como-
com sacrifício os mais galan- nuense de uma repartição vido:
tes obséquios, jamais encarou pública, pessoa honesta e de
sem uma instintiva e secreta - Uma criança! Pobrezinha!
bons costumes. Como a deixaram aqui tão
ponta de desconfiança.
Tinha cara de tudo e não desamparada!
Se em qualquer conflito, tinha cara de nada, ao. certo.
na rua, num teatro, no café De outra vez quando ain-
A circunstância da sua falta da a polícia quis dar caça a
ou no bonde, era uma senho- absoluta, de barba dava-lhe
ra desacatada, ou um velho certas mulheres, que tiveram
ao rosto uma dúbia expres- a fantasia de tomar trajos de
vítima de alguma violência; são, que tanto podia ser de
ou uma criança batida por homem e percorrer assim as
homem, como de mulher, ruas da cidade, Boaventura
alguém mais forte do que ou mesmo de criança. Era
ela, Boaventura tomava logo foi logo agarrado e só na es-
muito difícil, senão impossí- tação conseguiu provar que
as dores pela parte fraca, vel, determinar-lhe a idade.
revoltava-se indignado, casti- não era quem supunham.
Visto de certo modo, parecia Outra ocasião, indo procu-
gava com palavras enérgicas um sujeito de trinta anos,
o culpado; mas ninguém, rar certo artista, de cujos
mas bastava que ele mudasse serviços precisava, foi rece-
ninguém lhe atribuía a pater- de posição para que o ob-
nidade de ação tão generosa. bido no corredor com esta
servador mudasse também ­singularíssima frase:
Ao passo que, quando em sua de julgamento; de perfil
presença se cometia qualquer representava pessoa bastante - Quê? Pois a senhora tem
ato desairoso, cujo autor não idosa, mas, olhado de costas, a coragem de voltar?... E quer
fosse logo descoberto, todos dir-se-ia um estudante de ver se me engana com essas
olhavam para ele desconfia- preparatórios; contemplado calças?

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Tomara-o pela pobre, a camisa, era só a ele que se - Mas não me engano! é o
quem na véspera havia des- dirigiam as pessoas chegadas meu caixeiro!
pedido de casa. depois. Nas muitas vezes que - Dir-se-ia que este moço
Não se dava conflito de foi preso como suposto autor era um meu antigo compa-
rua, em que, passando perto de vários crimes, a autorida- nheiro de bilhar!...
o Boaventura, não o tomas- de afiançava sempre que ele
tinha diversos retratos na - E eu aposto como é um
sem imediatamente por velho, que tinha um bote-
um dos desordeiros. Era ele polícia. Verdade era que as
fotografias não se pareciam quim por debaixo da casa
sempre o mais sobressal- onde eu moro!
tado, o mais lívido, o mais entre si, mas todas se pare-
suspeito dos circunstantes. ciam com Boaventura. - Qual velho, o que! Co-
Não conseguia atravessar um Num clube familiar, quan- nheço este defunto. Era estu-
quarteirão, sem que fosse a do o infeliz já no corredor, dante de medicina! Uma vez
cada passo interrompido por reclamava do porteiro o seu até tomamos banho juntos,
várias pessoas desconhecidas, chapéu para retirar-se, uma no boqueirão. Lembro-me
que lhe davam joviais palma- senhora de nervos fortes dele perfeitamente!
das no ombro e na barriga, chegou-se por detrás dele na - Estudante! Ora muito
acompanhando-as de alegres ponta dos pés e ferrou-lhe obrigado! há mais de dois
e risonhas frases de velha e um beliscão. anos chamei-o fora de horas
íntima amizade. - Pensas que não vi o para ir ver minha mulher
Em outros casos era um teu escândalo com a viúva que tinia de cólicas! Era mé-
credor que o perseguia, ­Sarmento, grandíssimo velha- dico velho!
convencido de que o devedor co?! - Impossível! Afianço que
queria escapar-lhe, fingindo O mísero voltara-se inal- este era um pequeno que
não ser o próprio; ou uma teravelmente, sem a menor vendia jornais. Ia levar-me to-
mulher que o descompunha ­surpresa. Ah! ele já estava dos os dias a “Gazeta” à casa.
em público; ou um agente mais habituado àqueles en- É que a morte alterou--lhe as
policial que lhe rondava os ganos. feições.
passos; ou um soldado que
Que vida! - Meu pai!
lhe cortava o caminho su-
pondo ver nele um colega Afinal, e nem podia deixar - O Bernardino!
desertor. de ser assim, atirou-se ao - Olha! Meu padrinho!
E tudo isto ia o infeliz mar.
- Jesus! Este é meu tio José!
suportando, sem nunca aliás No necrotério, onde fui
- Coitado do padre Rocha!
ter em sua vida cometido a por acaso, encontrei já muita
menor culpa. gente; e todos aflitos, e todos Pobre Boaventura! Só eu
agoniados defronte daquele compreendi, adivinhei, que
Uma existência impossível!
cadáver que se parecia com aquele cadáver não podia
Se se achava numa repar- um parente ou com um ami- ser senão o teu, ó triste
tição pública, tomavam-no, go de cada um deles. ­Boaventura da Costa!
infalivelmente, pelo contínuo;
Havia choro a valer e, E isso mesmo porque me
nas igrejas passava sempre
entre o clamor geral, dis- pareceu reconhecer naque-
pelo sacristão, nos cafés, se
tinguiam-se estas e outras le defunto todo o mundo,
acontecia levantar-se da mesa
frases: menos tu, meu desgraçado
sem chapéu, bradava-lhe logo
amigo.
um consumidor, segurando- - Meu filho morto! Meu
lhe o braço: filho morto!
- Garção! Há meia hora - Valha-me Deus! Estou Fonte: Biblioteca Virtual -
que reclamo que me sirva. viúva! Ai o meu rico homem! Literatura
Se ia provar um paletó - Ó senhores! Ia jurar que
à loja do alfaiate, enquan- este cadáver é o do Manduca!
to estivesse em mangas de

14 SAMIZDAT julho de 2008


14
Autor em Língua Portuguesa

ALUÍSIO AZEVEDO
1881, publica "O Mulato", inaugurar o estilo naturalis-
onde choca a sociedade pela ta no Brasil com o romance
forma crua do romance, O mulato (1881). É também
desnudando a questão racial autor dos romances Casa de
- tendo ele já se filiado aos pensão (1884) e O cortiço
abolicionistas. (1890), entre outros.
O sucesso desta obra habi- A influência de Aluísio
lita-o a voltar para a Capital de Azevedo são os escritores
do Império, onde escreve naturalistas europeus, dentre
sem parar novos romances, eles, o mais importante foi
contos, crônicas e até peças Émile Zola. Através dessa
teatrais. óptica naturalista, capta a
Sua obra é vista como ir- mediocridade da rotina, os
regular por diversos críticos, sestros e mesmo as taras do
uma vez que oscilava entre indivíduo, uma opção con-
obras românticas açucaradas, trária dos românticos que o
com cunho comercial e di- precederam.
Biografia recionado ao grande público; As características fun-
e outras mais elaboradas e damentais do naturalismo,
Aluísio Tancredo
onde deixava sua marca de quais sejam influência do
­ onçalves de Azevedo
G
grande escritor naturalista. meio social e da hereditarie-
(São Luís do Maranhão, 14
Feito diplomata, em 1895, dade na formação dos indi-
de abril de 1857 — Buenos
chega finalmente em [1910] víduos, além do fatalismo,
Aires, 21 de janeiro de 1913)
em [Buenos Aires], cidade estão presentes nas obras de
foi um escritor, diplomata,
onde veio a falecer, menos de Aluísio de forma veemente.
caricaturista e jornalista
três anos depois. Nele "a natureza humana afi-
brasileiro.
Foi homenageado com o gura-se-lhe uma serta selva-
Era filho do português
nome de uma importante geria onde os fortes comem
David Gonçalves de Azevedo
rua no bairro de Santana, da os fracos", afirma o estudioso
e de Emília Amália Pinto de
cidade de São Paulo. Alfredo Bosi.
Magalhães. Seu pai era viúvo
Foi o responsável por
e a mãe , separada do marido
algo que configurava grande
escândalo na sociedade da
época. Irmão do dramaturgo
e jornalista Artur Azevedo.
Aluísio desde muito novo
dedicou-se ao desenho (ca-
http://www.geocities.com/vsportelli/cortico.jpg

ricatura), e ao trabalho. Em
1876 viaja ao Rio de Janeiro,
a fim de estudar Belas Artes,
obtendo desde então susten-
to com seus desenhos para
jornais.
Com o falecimento do
pai (1879), volta para o
­Maranhão, onde começa
finalmente a escrever.E em

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http://www.flickr.com/photos/melanieburger/1451941259/sizes/o/

16
16
O

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Panorama Literário

MEDO
DO
L
“...o brasileiro foi

LIVRO
ensinado a temer o
livro e este fenômeno
está enraizado
num triste contexto
histórico-social.”

Quando eu era adoles-


cente, nas férias, eu sempre
viajava acompanhado por
pelo menos um livro.
E toda vez que alguém
Henry Alfred Bugalho me encontrava, sentado na
henrybugalho@gmail.com varanda da casa da minha
avó, no interior do Paraná, ou
na praia, neste mesmo estado,
lendo, a pergunta inevitável
era feita:
— Por que você está len-
do?
— Porque gosto... — eu
respondia.
— Mas você é louco?
Eu não compreendia, à
época, a relação entre gos-
tar de ler e ser considerado
um maluco, pois, para mim,
o prazer da leitura era tão
natural quanto o de assistir
TV, jogar videogame ou ir ao
cinema; um não excluía o
outro.
Mas descobri que o bra-
sileiro foi ensinado a temer
o livro e este fenômeno está
enraizado num triste contex-
to histórico-social.

Em 1950, mais de 50%


da população brasileira era
analfabeta, ou seja, dos 50
milhões de habitantes, mais
de metade não conseguiria
ler um livro se o tivesse às
mãos.
Foi exatamente neste

www.samizdat-pt.blogspot.com 17
mesmo ano que o primeiro minado, para toda a família, a ler Guimarães Rosa ou
canal de TV foi inaugurado ou comprar alguns volumes Euclides da Cunha é criar
no país. finitos (o ponto final é o fim) uma aversão ainda maior
de prazer solitário? ao livro do que a que eles já
Dez anos depois, o anal-
traziam desde casa. Um lar
fabetismo havia caído 10%, Uma população (semi-)
sem livros é uma casa sem
enquanto o número de tele- analfabeta, um mercado lite-
leitores, mas uma escola que
visores havia rário que for-
seleciona os livros errados
aumentado “A Literatura nunca foi ça aos leito- está criando verdadeiros ini-
200 mil vezes.
vista como uma forma res um preço migos da Literatura. Eu bem
surreal, e o
Hoje, a de entretenimento tão mito criado sei quantos anos se passaram
televisão está até eu me reconciliar com
ou mais agradável ao redor do
“Sagarana”.
presente em
88% dos lares do que as outras — livro sepulta-
ram — talvez Parece ser este o grande
brasileiros, TV, cinema, música,
para sempre tabu da Literatura no Brasil
sendo que 98% internet.”
— um rela- — ser popular, ser entreteni-
dos brasilei-
cionamento mento, ser agradável. Qual-
ros assiste a
íntimo entre o brasileiro e o quer autor que porventura
TV pelo menos uma vez por
livro. caia nas graças do público,
semana; por outro lado, os
deste pobre público que mal
índices de alfabetização estão A Literatura nunca foi
consegue comprar dois livros
na casa de 88%, incluindo vista como uma forma de
ao ano, é o alvo da execra-
os analfabetos funcionais entretenimento tão ou mais
ção crítica e moral. Vender e
— capazes de níveis básicos agradável do que as outras
divertir é um convite a uma
de escrita, mas sem grandes — TV, cinema, música, inter-
temporada no inferno literá-
habilidades interpretativas. net. Ao livro é resguardado
rio. No Brasil, o bom autor
o rótulo de “repositório de
Enquanto a França, a In- que se preza abomina cifras,
saber”, o que, nas entrelinhas,
glaterra e os Estados Unidos enredos lineares, personagens
significa: “que chatice!”
haviam criado um gigantesco planas (e, por isto, facilmente
público leitores, acoplado a O modo como as esco- assimiladas pelo “populacho”)
programas educacionais de las apresentam a Literatura e, o mais surpreendente,
qualidade, durante os séculos também não é dos mais parágrafos. O bom autor
XIX e XX, a leitura no Bra- agradáveis. Apesar de todos brasileiro vomita tudo, sem
sil sempre foi precária, até seus méritos literários, for- interrupção, por 500 páginas.
o momento em que teve de çar alunos de 14 ou 15 anos E se o leitor não entender, o
dividir espaço com a desleal
concorrência da TV.
Um meio de entreteni-
mento instantâneo, atraente
e novo disputou — e venceu http://www.flickr.com/photos/memorymotel/375042645/sizes/l/

— o obsoleto e intrincado
universo dos livros. Um
indivíduo com sérias limita-
ções financeiras não deveria
ter dúvida sobre como gastar
seu miserável salário: 200
reais numa TV, ou o mesmo
valor para uma estante com
alguns poucos livros? Adqui-
rir um aparelho que pro-
porciona diversão 24 horas
ao dia, por tempo indeter-

18 SAMIZDAT julho de 2008


18
problema é dele! reais para adquirir um livro. diversão ou riso.
O que existe é uma hierar-
É um ciclo que se alimen-
quia de prioridades, do que
ta.
proporciona prazer ao que A questão passa longe de
Numa pesquisa recente foi causa repulsa. preço ou comércio; quem
apresentada a estatística de tem disposição empresta um
A única medida que
que 45% dos brasileiros não livro numa biblioteca, ou lê a
concebo para reverter este
gosta de ler. obra pela internet (as opções
cenário — se é que isto seja
de bons livros de domínio
Muita gente pensa — in- possível — é modificar a
público ou livres de copyri-
clusive grandes formadores relação entre o brasileiro
ght são intermináveis), mas é
de opinião — que bastaria e o livro. É preciso fazê-lo
preciso querer.
baixar o preço dos livros ver que leitura não é coisas
para se conquistar mais de louco, que, no interior da Prazer na leitura, sem isto,
leitores. Isto é simplesmente biblioteca universal, existem não há medida educacional,
ridículo. Um brasileiro paga obras complexas, sapienciais, não há campanha publicitá-
25 reais para ir a um jogo difíceis, mas que a leitura ria que alterará o panorama
de futebol, mas não paga 30 também pode gerar prazer, literário.

Para Saber Mais:

Câmara Brasileira do Livro


http://www.cbl.org.br/content.php?recid=5828&type=N

De olho na Educação
http://www.deolhonaeducacao.org.br/Comunicacao.aspx?action=5&mID=832

Desemprego Zero
http://www.desempregozero.org.br/artigos/um_estudo_sobre_a_populacao_brasileira_no_secu-
lo_xx_fonte_ibge.php

Domínio Cultural
http://www.dominiocultural.com/ver_coluna.php?id=6207&PHPSESSID=8b602f1930d00d246d
d2b14aca7c560c

Farol Comunitário
http://farolcomunitario.blogspot.com/2008/05/imprensa-oficial-publica-pesquisa.html

Microfone: História da Televisão Brasileira


http://www.microfone.jor.br/historiadaTV.htm

Portal Brasil
http://www.portalbrasil.net/brasil_economia.htm

Wikipédia
http://pt.wikipedia.org/wiki/MOBRAL

www.samizdat-pt.blogspot.com 19
Contos

LUCAS, O MENINO BINÁRIO

http://www.msgraphix.com/Wallpaper/Binary/Binary1024x768.jpg
Carlos Alberto Barros Haverá um tempo em que Binário.
os seres humanos quererão O parto de Lucas terá
carloseducador@hotmail.com extravasar seus sentidos, grandes complicações. Seu
seus sentimentos, seu amor, corpo se enroscará no cor-
seu sexo. Uma mulher triste dão umbilical e dificultará
se isolará em sua casa, se sua saída. Os médicos suarão
sentirá solitária, amargurada, por horas, até conseguirem
manterá relações virtuais retirá-lo por completo. Só aí,
para suprir suas carências, perceberão que a dificulda-
quererá satisfazer seus instin- de se deu por conta de uma
tos e passará a copular com das mãos do bebê. E dirão
máquinas. Nessas cópulas mãos por não saberem como
biocibernéticas, será fecun- chamar as formas incomuns
dada e gerará uma criança à apresentadas nas extremida-
qual dará o nome de Lucas des dos braços. Espantados,
e que, posteriormente, será verão, ligado ao pulso direito
conhecida como o Menino do recém-nascido, o ­número

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20
1; e ao pulso esquerdo, o ele não consiga segurar um
número 0. lápis, que o que vale é a inte-
A mãe do menino pro- ligência. Ele, então, continua-
meterá a si mesma nunca rá a estudar e logo arrumará
permitir que ele sofra pre- briga com um dos colegas.
conceito e o criará como Usará seu 1 para ferir o
qualquer outra criança. Ela o oponente, vencerá a briga e
levará para ser batizado e o os outros meninos levantarão
sacerdote congregará sobre a seu braço, e dirão que o nú-
sacralidade de seus números. mero já fala tudo. Chamarão
Dirá que as mãos de Lucas, Lucas de Menino Binário, o
unidas em oração, mostra- número 1. E ele começará a
rão sempre o quanto ele é gostar de seu apelido e abrirá
10, assim como o tão bom e um sorriso sempre que ouvir
poderoso Deus. alguém o pronunciando. A
vida na escola será menos
O garoto crescerá e fre- triste e todos, mais por dó
qüentará a escola. Sofrerá que por vontade, passarão a
zombaria dos colegas, ficará lhe demonstrar carinho.
triste, se sentirá diferente,
chorará. Sua mãe dirá o Quando chegar à adoles-
quanto ele é especial, o quan- cência, o Menino Binário se
to o ama, que será sempre mostrará incomodado com
seu filho nota 10. Dirá que seu apelido e dirá a todos
não deve ter vergonha de si que prefere que o chamem
mesmo e nem permitir que de Jovem Binário, mas verá
o maltratem. A professora de que soará estranho, sem
Lucas será alertada sobre as identidade e que será melhor
brincadeiras de mau gosto deixar como antes. E ficará
dos colegas, dirá o quanto muito feliz quando uma ga-
devemos respeitar o próximo, rota disser que acha o nome
que somos todos iguais pe- bonitinho. Perguntará se ela
rante Deus e que não é certo não se importa com aquelas
caçoar dos outros. Os alunos diferenças em seu corpo.
baixarão as cabeças, fingi- Ela responderá que acha que
rão arrependimento. Depois, se pode fazer muitas coisas
assistirão aula de História interessantes com aqueles
das Máquinas e aprenderão números. Ele enrubescerá e
que os antigos computadores fingirá não entender o co-
funcionavam apenas com os mentário. Os dois começarão
numerais 0 e 1, através de a namorar e as pessoas acha-
um sistema denominado có- rão a relação estranha. A
digo binário. E não demora- família da moça dirá que há
rão a usar a isso como novo tantos rapazes normais por
motivo de zombarias. aí. Outros irão desaprovar,
criticar e fazer comentários
http://techitright.com/img/binary.jpg

Lucas será chamado de maldosos. Dirão que ela é


Menino Binário, ficará cha- tão bonita, que deve arrumar
teado e quererá deixar a coisa melhor. A moça se sen-
escola. Sua mãe insistirá para tirá pressionada, começará a
que permaneça, falará sobre refletir e verá defeitos naque-
a importância do conheci- les números 1 e 0. O Menino
mento, de um grande futuro. Binário não entenderá as
Dirá que não importa que mudanças na garota e ela

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terminará o namoro, dizendo primeira vez e o Menino
que não dá mais. Binário se manifestará. Terá
A juventude de Lucas se o motivo de sua presença
seguirá solitária. Chegará o questionado e, então, mos-
ponto de pensar em suicídio. trará seus números a todos.
Irá até uma estação de trens A assembléia, em uníssono,
e aguardará. No momento exclamará o quanto Lucas
certo, descerá na via, colocará é perfeito e ele, de tão feliz,
os pulsos sobre o trilho e es- erguerá bem alto seu número
perará para ter seus números 1, assim como na briga da
decepados. Ouvirá um forte escola. Também ouvirá uma
som de freios, verá os segu- longa salva de palmas e verá
ranças da estação chegarem, o sorriso de satisfação de
será preso. Sua mãe será in- Silvia, sentada ao seu lado.
formada do ocorrido e cairá Os anos irão avançar e os
em lágrimas, discutirá com o Virtualis aumentarão. Mui-
Menino, dirá que não precisa tas pessoas dirão que são
disso e que o ama. Ele a con- aberrações; outras, que são
denará, dirá que a odeia por seres humanos como todos.
colocá-lo no mundo e fugirá Haverá guerras, mortes. Lucas
para longe. se tornará homem, entenderá
O Menino Binário vagará a injustiça sofrida por seus
até encontrar uma jovem. semelhantes, se juntará a gru-
Perguntará seu nome e ela pos revolucionários e lutará
dirá que é Silvia, mas que por seus direitos.
pode chamá-la de Telemoça. A nova vida trará grandes
Será questionada do porquê, amigos: Daniel, o Dedos-de-
e mostrará que no lugar de antena; Funes, o Memorioso;
sua barriga há uma tela de Glória, a Mulher-remota.
TV que mostra as imagens Numa bela noite, Lucas irá
que ela desejar. Ele achará in- beber com eles e a Telemoça.
teressante, dirá que se chama Ficará alcoolizado e brigará
Lucas, mais conhecido como com um zombador de seus
Menino Binário, e explicará o números. Anunciará sua
motivo de seu nome. Os dois vitória erguendo o braço
se tornarão amigos e ela lhe direito e, olhando para Silvia,
revelará que, além deles, há erguerá também o esquerdo,
muitos outros. Dirá que são juntará os dois e dirá para
conhecidos como Virtualis e todos ouvirem que ela é uma
que o levará para conhecê- mulher nota 10, que sempre
los. a amará e que lhe propõe
Lucas e Silvia chegarão a casamento. Ela ficará feliz e
um local onde haverá um irá beijá-lo. Lucas a olhará
grande grupo de pessoas. À com expressão de volúpia e
frente de todos, terá um ho- introduzirá o número 1 no
mem discursando através de 0. A Telemoça sentirá vergo-
um auto-falante que possui nha, sorrirá e dirá que ele é
no lugar da boca. Ouvirão um pervertido. E os amigos
o inflamado discurso, que darão longas gargalhadas de
falará da luta pelos direitos aprovação.
dos Virtualis. O homem per- Lucas abandonará o nome
guntará quem está ali pela de menino e começará a ser

22 SAMIZDAT julho de 2008


22
chamado de Homem Biná- antena entortados, Funes
rio. Passará a se sentir mais terá seu cérebro arrancado e
forte e entenderá que a luta sua memória extinta, Glória
contra o preconceito deve- terá seus botões de contro-
rá sempre continuar. Verá le remoto cortados. Lucas
políticos pedindo seu voto verá todos serem mortos,
e falando sobre igualdade. chamará os carrascos de
Presenciará a criação do covardes, dirá que a hora
Estatuto do Virtuali e viverá deles chegará. Os homens
experiências comprovando o espancarão, usarão um
a ineficácia dessa lei. Ficará machado para arrancar seus
revoltado e fará discursos números, mandarão comer
fervorosos. Dirá que os seus membros decepados. O
Virtualis são injustiçados, Homem Binário amaldiçoará
que estão sendo mortos sem o mundo, sentirá medo da
ninguém fazer nada, que morte, tentará comer, sentirá
precisam de um deles entre náuseas, vomitará, chorará,
os governantes. Todos aplau- ouvirá injúrias, será humi-
dirão e se sentirão capazes. lhado, lembrará de sua mãe,
Unidos, criarão o Partido VV de sua esposa, de sua briga
(Virtualis Vivos) e iniciarão na escola, de quando foi
uma campanha para eleger chamado pela primeira vez
o Homem Binário. Planeja- de Menino Binário. Um dos
rão tudo: primeiro, prefeito; homens cortará seu pescoço
depois, governador; por fim, e Lucas morrerá. Seu corpo
presidente. Lucas governará nunca mais será visto. A
o país e nenhum Virtuali Telemoça se desesperará.
será mais menosprezado. A Os Virtualis se revoltarão,
campanha seguirá firme e as alegarão perseguição políti-
pessoas sensíveis se comove- ca, assassinato. O caso nunca
rão. Lágrimas emocionadas será resolvido.
cairão quando o Homem Anos e mais anos passa-
Binário erguer seus braços, rão e a lembrança de Lucas
formando o número 10 de se perderá no tempo. Haverá
sua candidatura, e aparecer aqueles que debocharão, que
na tela do ventre de sua dirão que tudo foi inventado.
esposa, Silvia. Os fatos se tornarão lenda e
Muitos serão os adeptos a história do Menino Binário
da Partido VV e também será apenas mais uma que
muitos serão os desafetos. muitos sentirão prazer em
Políticos de outras siglas contar.
ficarão incomodados com a
aceitação do Homem Biná-
rio, se sentirão ameaçados,
perceberão que ele é uma
perigosa influência para
a população e quererão
eliminá-lo. Eles contratarão
homens que farão Lucas e
seus amigos mais próximos
caírem em uma armadilha.
Daniel terá seus dedos-de-

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Contos

O CONVITE

http://www.reuther.wayne.edu/faces/evicted.jpg
Volmar Camargo Junior Era o ano de 1930 e eu rem a entrada, e terminada a
v.camargo.junior@gmail.com estava de férias. A conversa balbúrdia, as pessoas vol-
dos adultos à noite rendeu- tavam para suas casas com
me um passeio pela manhã. montinhos maiores ou me-
Meu conhecimento sobre nores. O que mamãe enfiou
bancos era que de tempos na bolsa logo após dizer “Boa
em tempos minha mãe ia até Tarde” não era grande. Foi
o mais próximo de casa e lá a primeira vez que vi tanto
deixava algum dinheiro. Uma dinheiro junto.
quantidade enorme de pes-
soas aglomerava-se à porta
da agência aonde íamos, cuja A fábrica onde meu pai
porta encontrava-se fechada. trabalhava fazia trilhos para
Em muitas esquinas do cen- trens, ou peças para trens, ou
tro da cidade havia grupos as duas coisas. Encontramo-
assim, ensandecidos. No final nos com ele a poucos metros
da tarde, depois de permiti- de casa. Estava chorando, em

24 SAMIZDAT julho de 2008


24
e fechei-a. Nem o vento nem cio. A luz pálida dos postes
a sujeira que tive de varrer entrava pelos vãos da janela.
outra vez abalaram meu Percebi alguém observan-
bom-humor. do pela cortina do quarto.
Mamãe costumava deixá-la
aberta antes de ir-se deitar.
http://www.geh.org/fm/feininger/m197806060312.jpg

A família reuniu-se às Tive medo. Todos sabem,


seis da tarde para o jantar. especialmente as crianças sa-
Estávamos felizes porque bem quando a mãe os espia.
Stanislaw, meu irmão, voltou Não era ela. No corredor,
depois de um longo tempo. na sala, na cozinha; alguém
Mamãe fez pierogi, uma deslizava pela casa. O quanto
travessa cheia de onde tentei pude, tentei nem respirar.
capturar um. Recebi uma
reprimenda da tia Heike, ma-
drinha de Stan: “Tire a mão! Barulho. Metal, louça, vi-
Esses são só dele.” Não havia dro, madeira, o som de tudo
muita coisa — na verdade só o que havia. As luzes acende-
silêncio como fazem os ho- czernina, que eu não gostava, ram e todo mundo pulou da
mens. Não era comum vê-lo mas nunca disse isso a nin- cama, inclusive eu — graças
assim. O patrão gostava do guém. A mesa foi decorada, a Deus alguém inventou a
serviço dele — era polonês, quase tão bonita quanto a do luz para espantar o que nos
como nós — e ofereceu-lhe Natal. Sentei-me na cadeira amedronta. Pai de pijamas e
a oportunidade de continu- ao seu lado. Senti o cheiro com uma espingarda velha
ar no trabalho, com salário da loção de barba, e da goma correu até a cozinha. Todos
menor. Estava triste porque que usaram para passar sua corremos. A janela estava
os melhores amigos não camisa. Olhou uma ou duas aberta. Pegadas enlameadas e
receberam a mesma pro- vezes para mim durante o farinha por todo o soalho. A
posta. Chegamos. Papai foi jantar, e sorriu. Dividimos o lata vazia. O pacotinho não
para o quarto, mamãe para a prato de pierogi. estava lá.
cozinha, e o dinheiro foi em
um embrulho de papel para
Stanislaw contou que Passado o susto, papai
dentro da lata de farinha. Eu
tinha uma noiva e não chamou a polícia. Depois
fui para a sala de estar, pôr
demoraria a apresentá-la a daquela noite, as coisas só
tudo em ordem para receber

http://www.lordprice.co.uk/Merchant2/graphics/00000001/WOFI1007,-Wall-Street-Crash.jpg
nós. Ao ouvir o nome, era de pioraram.
alguém que há muito tempo
origem alemã, senti as solas
não via.
dos meus pés formigarem,
um frio percorrer minha
A casa ficou quieta, mas espinha, e os cabelos atrás da
não silenciosa, porque a nuca eriçarem como os de
quietude é diferente do um gato. Eu a odiei, mesmo
silêncio. O outono chegava sem nunca tê-la visto. Ale-
e o vento corria sobre os guei cansaço e fui para meu
telhados fazendo os beirais quarto. Não vi as visitas irem
assoviarem. A porta da fren- embora. Meu irmão saiu
te abriu-se, esparramando logo depois, em seu próprio
o cisco que eu acabara de carro – ou era do exército,
juntar. Não vi ninguém. Cor- nem sei. Chorei até pegar no
ri até a entrada e, fazendo sono.
uma mesura, disse ao recém-
chegado invisível “Queira
Acordei no meio da noite.
entrar, por favor. Sinta-se em
Mãe e pai dormiam. Silên-
sua própria casa.” Ri sozinha,

www.samizdat-pt.blogspot.com 25
nhão. Papai vendeu-a para de capa de couro marrom,
um judeu. Colocamos tudo enfiei-a debaixo do braço
na carroceria. O que levamos e tomei a direção da saída.
resumiu-se às roupas e ao Havia alguém no quarto.
que tinha algum valor senti-
mental. O resto, louça, cris-
Não consegui gritar.
http://66.230.220.70/images/post/nycbw/130.jpg

tais, talheres, os móveis de


madeira, até as camas, tudo Minhas canelas congelaram,
entrou no negócio. Mas havia os calcanhares pregaram no
uma coisa que não foi, nem soalho e meus olhos arderam
poderia ter sido vendida. até doer por não consegui-
rem piscar. Alguém estava
ali, diante de mim. O mesmo
Subíamos na cabina do ca- mal-estar da noite do ladrão.
minhão – eu teria de ir sen- Estáticas, eu e a outra pessoa.
tada no colo do pai; estava Pouco pude ver. Era mu-
muito frio para qualquer um lher. Velha, miúda, fiapos de
viajar na carroceria. Lem- cabelos pendendo sobre os
brei em voz alta “As fotos!”. ombros e o peito. Andrajos.
As fotografias eram a única Cheiro de mofo e de coisas
A fábrica de peças de recordação que eu guardava guardadas há muito tempo
trem — ou de trilhos — fa- de Stanlislaw. Do meu Stanis- preencheu o quarto.
liu. O banco da esquina e law. Não aquele, que escolheu
quase todos os da cidade uma mulher cuja voz nin-
fecharam as portas, dessa vez guém da família ouvira. Nem Consegui coragem, não
para sempre. Ouvimos dizer esperei autorização. Voltei sei de onde, dessas que só as
que o governo ia ajudar, correndo. O novo dono con- crianças têm.
formavam-se filas aqui e ali versava com um vizinho, e a
por causa disso. Havia quem porta estava destrancada.
o fizesse até para ganhar “Quem é a senhora?”
comida. Pessoas falavam mal “Não se lembra de mim?”
do Presidente Hoover. Ou- Por hábito, bati os pés no
“Juro que não.”
tras, falavam muito mal. Meu capacho e entrei. O vento
irmão foi dispensado da cor- estava forte, e a casa, quieta. “Há tempos, cheguei à sua
poração. A família da noiva Tive a sensação de já ter vivi- porta.”
chamou-o para voltar com do exatamente aquele evento. “Não a vi, sinto muito.”
eles para a Europa. Quando a Só muito depois soube que
moça mandou-lhe uma carta “Não. Não viu. Mas con-
isso tem até nome: déjà vu.
dizendo que estava espe- vidou-me para entrar. Disse
Diante do corredor, hesitei.
rando um bebê, ele sofreu bem assim ‘Queira entrar,
Não era só a lembrança das
muito, queria morrer. Os por favor. Sinta-se em sua
coisas na mesma ordem, mas
velhos entenderam a situação própria casa’. Como pode-
tive outra vez a impressão de
e mandaram que fosse com ria eu recusar um convite
estar sendo vigiada. As jane-
ela. Eles entenderam; eu não. desses?”
las estavam fechadas. Escu-
ro. O álbum de fotos ficava
em cima do meu roupeiro. Calei. Estava pasma, de
Tio Francis era dono Todos os corredores são me-
de uma oficina mecânica. frio e de medo. Eu dei-lhe
donhos a pouca luz, e aquele a passagem. Uma pessoa
Chamou o cunhado, meu pai, não era diferente. Teria de
para ajudá-lo, mas teríamos morta? Um fantasma? Um
atravessá-lo para chegar ao demônio? Não conseguia dis-
de nos mudar. A única coisa quarto. Corri, abri a cortina,
que ainda possuíamos era tinguir se era ou não alguém
e rapidamente, mesmo na conhecido. Só o que via eram
a casa. Veio buscar a gente penumbra, espichei a des-
e os móveis com um cami- seus cabelos atirados, brancos
tra, peguei a encadernação e compridos como os galhos

26 SAMIZDAT julho de 2008


26
http://66.230.220.70/images/post/nycbw/113.jpg

de um salgueiro ressecado.
Ela fez um lento movimento
com a mão, espalmando-a
para mim.

“Ainda não nos apresenta-


mos” disse. “Como se chama,
mocinha?”
“Leda”
“Bonito nome. É latim.
Significa ‘alegre’. Do latim
também é o meu”.

Curvou-se, imitando a
mesura que eu havia feito à
porta
“Meu nome é Miséria.”

E sumiu. Decididamente,
não se foi. Simplesmente
sumiu. Nunca mais a vi, mas
percebia sua presença, cada
vez mais intensa; seu cheiro
de mofo e seus cabelos secos
tocavam-me todos os dias.
Viajou conosco. Ficou conos-
co. Viveu com minha família
por anos. Ao mesmo tempo,
passou a viver em outras
casas. Em todas as casas. Não
bateu mais nas portas, nem
esperou que uma criança
gentil a convidasse. Parece-
me que faltou aos homens
coragem de pedir-lhe “Senho-
ra, tenha a bondade de se
retirar”.

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Contos
http://www.flickr.com/photos/aromma/189378446/sizes/l/

Capítulos 1
Henry Alfred Bugalho Elijah Abramanoviecz, ser a melhor opção: relatar
cumulado de anos, decidiu como ele, Elijah, cabalista de
henrybugalho@gmail.com
contar sua história, desde Nova York, tomou a reso-
criança em Varsóvia, pelo lução de abrir o livro de
gueto e humilhação do Rei- sua vida para os outros. De
ch, até a fuga para a Améri- todo o esforço davídico por
ca e os filhos que lá teve. conquistar o universo das
Sentou-se para escrever palavras e expor, com toda
seu livro, começando pelo a sinceridade de seu ser, as
começo e traçando toda a lições que aprendera da vida.
genealogia que conhecia No entanto, este princípio,
de sua família. Como rabi que prenunciava um longo
Solomon Abramanón, seu flashback no qual sua histó-
mais antigo antepassado, foi ria se desenrolaria, também
perseguido em Madri no não o agradou.
século XVI pelo Santo Ofício Rascunhou um novo
e como, muitos séculos mais capítulo, desde o momento
tarde, seu pai, Isaac Abra- em que ele leu pela primei-
manoviecz cuidava de sua ra vez o Sepher Yetzerah e,
barbearia e, um dia, conhece- ainda jovem, recém-saído de
ra Rebeca Steinberg, filha de seu bar Mitzva, iniciou seus
um industrial alemão, com a estudos dos sephirots e dos
qual se casaria posteriormen- nomes de Deus.
te e, de cujo amor, ele, Elijah,
nasceria. Um princípio tão hermé-
tico e abstruso, detalhando
Mas aquele longo capítu- anos de aprendizado caba-
lo, não o satisfez. Mais uma lístico, mais se assemelhava
catalogação de memórias a um dos milhares de livros
pretéritas do que um livro sobre ocultismo do que o
autobiográfico, o ritmo mo- que Elijah realmente preten-
roso e a abundância de deta- dia.
lhes enfadariam os supostos
leitores. Tentou novos começos, e a
cada tentativa novos obstácu-
Contar pelo fim pareceu los e objeções surgiam. Nem

28 SAMIZDAT julho de 2008


28
o relato de seu matrimô-
nio, nem os anos na escola
torânica, nem os medos em
Treblinka, nem a cegueira
parcial, nem a infância tran-
qüila, nem o deslumbramen-
to na Big Apple da década
de cinqüenta. A cada novo
começo, um novo fracasso.
Então, ao reler as sete-
centas páginas que havia
composto nos últimos sete
meses, Elijah Abramanoviecz
constatou que toda sua vida
esta ali. Não somente como
ele a relembrava, linearmen-
te, como o grande projeto
de Yahweh para os homens,
mas ciclicamente, com falsos
começos e finais mentirosos,
tal qual os projetos irrealiza-
dos dos homens, que quando
fazem uma escolha, deixam
para trás um leque de outras
perdidas, como o projetar-se
existencial de Heidegger, e
como os círculos concên-
tricos de rememoração, os
mesmos que motivaram
Proust e Henri Bergson; aque-
les círculos que se afastam
de nós e, quando retornam,
vêem como se não mais nos-
sos fossem, estranhos a nós,
apesar de nos pertencer.
No entanto, o que mais
surpreendeu Elijah é que,
em meio a todos aqueles
capítulos um, havia um que
ele sequer se recordava de
haver redigido, aquele no
qual ele narrava sua própria
morte e aqueles que ao seu
funeral atenderiam e como
ele voltaria a fazer parte do
mistério cósmico que um dia
o concebeu, deixando de ser
o cabalista de Nova York e
tornando-se aquele que pode
escrever o próprio futuro.

http://www.zeropoint.ca/Kalchemist.jpg

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Contos

O AUTOR DOS PASSOS


http://www.flickr.com/photos/annalisa/74229400/sizes/o/

José Espírito Santo I inquietante, foi isso o que


jjsanto@gmail.com Honra! Era a ­primeira mais nos cativou – disse
vez que participava no Carlos Reis, o célebre
concurso literário do romancista ribatejano,
grupo de editoras “Teya” e presidente do júri do
o seu romance “Os olhos concurso. Tomou entre
cansados do escurecer” mãos o livro de capa es-
arrebatara logo o primei- cura e abrindo na página
ro prémio. previamente marcada, leu
alto, para todos ouvirem
- A capacidade para
criar uma ambientação
rica e poética e mudar de “Olhos fundos” fechou a
repente para uma narra- sete chaves a porta do pe-
tiva em ritmo rápido e queno apartamento. Miguel
não aparecera e, de repente,

30 SAMIZDAT julho de 2008


30
ela sentia-se cansada, inse- casaco. cruzamento. É a única fonte
gura, “só de vida”. Na sala “Queres que te leve de luz.
moderna e pouco conven- até lá?” Inquiriu Mariana, Após alguns metros per-
cional, a janela era grande, deixando por momentos o corridos, espreita por cima
de sacada, quase todo o es- molhe de pessoas. do ombro verificando se
paço de uma parede. Estava algum indesejado a seguiu
entreaberta. Se espreitás- “Se não te faz diferen-
ça…” Respondeu. até aquelas paragens. Nada.
semos por ela, poderíamos Apenas outro comboio que
observar lá bem em baixo e Três quartos hora de- chega. Ouve-se o apito a
ao longe as mil luzinhas e pois e estavam à porta de marcar a partida e ela ain-
mais mil cores que assina- casa dele. Despediu-se com da vê de relance fugirem os
lavam o bulício do trânsito um beijo rápido e pouco rectângulos luminosos que
sonâmbulo, um enveredar intenso – um “selinho” - e são as janelas das várias
de forma indiferente por subiu as escadas a cor- carruagens.
repetidos e misteriosos rer. Ao chegar ao átrio do
caminhos. terceiro andar, deu com a
“Olhos fundos” despiu a porta escancarada e parou, Dispõe-se a continuar
roupa devagar e brincou colocando-se de sobreaviso. quando ouve o som dos
por breves momentos com Chegado ao “hall”, não viu passos. Estão mesmo atrás
o reflexo do seu próprio vivalma e a arrumação im- de si. Falta-lhe o tempo
corpo moreno belo e es- pecável não permitia inferir para escapar. Enquanto a
guio. Vestiu o robe branco qualquer presença estranha. mão forte envolve a face
e puxou do cigarro. Ficou Já estava a meio do tapando a boca, a outra
ali absorta, quase em tempo corredor quando os sentiu, mão faz deslizar a lâmina
suspenso, seguindo pensa- som quase imperceptível aguçada. O golpe é dado
mentos erráticos que eram de passos rápidos atrás de de baixo para cima com
como adornos de fumaça si. Virou-se para encarar força e precisão cirúrgica.
do “Português Suave”. Seria o intruso e algo lhe bateu O metal frio entra pelo
o último cigarro da sua com força mesmo no cimo baixo-ventre, abrindo rapi-
pobre vida. da nuca. Ao mergulhar na damente caminho e rasgan-
escuridão, teve ainda tempo do, deixando atrás de si as
Pairou por ali um silên- vísceras desfeitas, soltas e
cio breve ao fim do qual a para ouvir a gargalhada.
Um som familiar, que co- desamparadas. A torrente
plateia aplaudiu de pron- de sangue jorra livremente
to, rendida. Seguiram-se o nhecia perfeitamente, ape-
sar de estar a ouvi-lo pela naquela mesma fracção de
beberete e as vendas dos segundo em que ela entra
exemplares autografados. primeira vez.
em choque. A mulher nun-
Ao chegar o fim da tarde, ca saberá ao certo o que
disse para Mariana e aos II aconteceu.
outros “Estou cansado. Acho
que vou para casa tomar Passam uns minutos da O homem é alto e tem
um bom banho, comer meia-noite. No bairro pe- o cabelo rapado e olhos
qualquer coisa e dormir. Se riférico da capital, o grupo azuis, frios. No seu corpo
não se importarem, adia- apeia-se do comboio. Após musculoso, o peito exibe
mos a comemoração para as breves despedidas, a a tatuagem de um escor-
amanhã”. mulher inicia o trajecto que pião. Em silêncio, agacha-se
a levará até à porta de casa. sobre o cadáver e pesquisa
Pegou na sacola de couro Não se vê vivalma na rua a carteira procurando algo.
onde guardava os dois úni- estreita e escura. O cande- Decerto não tarda a encon-
cos exemplares não vendi- eiro de latão antigo e sujo trar o que procura, pois a
dos. Desfez o nó da gravata está ainda longe, perto do face sorri quando abandona
e guardou-a no bolso do

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o local apressadamente. julgava saber tudo abre-se Em pânico e paralisado pelo
na expressão de espanto medo, o escuro da noite não
lhe permitia ver quase nada
III “Tu, tu… tu escreves?” mas ele sabia onde estava, ima-
Então, o captor, em vez ginava já o impulso e a queda.
Acorda a meio da noite
e a cabeça dói, pesa-lhe. O de responder, abriu o livro Novamente passos. Desta
candeeiro aceso a seu lado e começou a leitura vez, atrás de atrás de si.
é a única fonte de luz. As “Alto. Nem um movimento!”
imagens que surgem uma rugiu a voz, imperiosa.
Era fim de tarde, uma tarde
por uma, desfocadas e des- chuvosa e triste quando Nuno Ouviu então o estampido
coloridas mostram-lhe que Marques da Silva, escritor do projéctil. Num único se-
está no quarto das visitas, amador, leva o copo de uís- gundo, os passos que morrem,
amarrado à cadeira. Atrás que pela segunda vez à boca o corpo que sai de atrás de si
de si, a voz forte e grave, e pensa se não será melhor para o vazio…
dona dos passos diz desistir daquele projecto. Entre As mãos puxaram nova-
o vidro e ele e o mar, apenas a mente a cadeira para dentro. E
“Como estás, escritor? A rua deserta e as dunas. Ao lon- ele viu então surgir a cara do
cabecinha dói muito?” ge, o cinzento das ondas que Inspector Santos acompanhado
Os passos fazem-se ouvir vão e vêm sempre de forma pelos dois polícias. Que sorte!
diferente, uma inconstância Que sorte tê-los criado tam-
novamente. Está agora bem
digna de Heraclito de Éfeso bém.
à sua frente, pode ver-lhe à qual apenas a perspectiva
claramente a tatuagem. Sabe peculiar do homem conferiria
a resposta mas, para ganhar padrão.
tempo, pergunta
De repente, a ideia surge e
“Porquê? Porquê tudo senta-se e começa a escrever.
isto? Se ao menos soubes- Todo o enredo iria ser cons-
se…” truído a partir do personagem
principal, um ser astuto e for-
“Se soubesses o quê?” te, completamente desprovido
responde-lhe a voz de escrúpulos.
“Se soubesse… nunca “Já chega” Disse o outro,
teria criado essa persona- as mãos aproximando-se da
gem, nunca, NUNCA TE cadeira
TERIA ESCRITO!” O escritor fitou-o com
Obtém como resposta terror
uma gargalhada forte, bem “Que, que me vais fazer?”
sonora. Então, o outro pega O intruso colocou a cadeira
no livro e encara-o. Após junto da janela e retorquiu em
uns segundos, responde voz alta, com um sorriso cruel
“Julgas que me criaste? “Vou ler-te o fim. Não que-
Na verdade, sei tudo sobre res saber como acaba o meu
ti, sobre o que eras dois romance?”
meses atrás, quando ter- A cadeira estava agora junto
minei de escrever. A única à portada aberta, a escassos
coisa que não conhecia era trinta centímetros do vazio.
esta morada, a toca onde te Novamente os passos atrás de
escondeste. Mas esse foi um si. A voz voltou para terminar
a leitura
problema que resolvi facil-
mente…” A portada estava aberta e
ele sentia o vento frio roçar as
A boca do escritor que cordas e entrar roupa adentro.

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http://www.flickr.com/photos/missmareck/2193567123/sizes/l/ Contos

José Espírito Santo


O PAÍS
A leoa perseguia o antí- notar a passagem do mais
jjsanto@gmail.com lope pela savana e as garras pequeno lagarto ou musa-
afiadas estavam quase a apa- ranho. As árvores e outros
nha-lo quando, sem qualquer vegetais passaram a mover-
aviso, aconteceu. O meteoro se livremente, mas apenas à
que visto dali parecia uma sexta-feira. Ou deveria falar
estrela a cair, precipitou-se nas segundas? É que a sema-
velozmente e foi embater no na passou a contar-se assim:
solo. Sexta, Quinta, Quarta, Terça,
Onde foi ao certo o im- Segunda…
pacto? Não sei. Apenas sei E as pessoas? Bem… os
que foi algures muito, muito políticos passaram a traba-
longe. Depois, depois acon- lhar de forma incansável
teceu algo extraordinário: para o bem comum e a
o céu ficou negro, de um recusar luxos e ostentação.
negro bem escuro e fecha- Futebol e novelas passaram a
do. A coisa durou dois dias, ser coisas aborrecidas, pouco
dois intermináveis dias. Após interessantes, chatas. O povo
decorrido esse tempo, o País tornou-se culto, educado,
estava diferente. gentil. As editoras e todos os
Os leões e todos os outros outros intermediários passa-
grandes felinos tornaram- ram a pagar um valor justo
se vegetarianos e passaram aos criadores. Ah… e a te-
a frequentar aulas de Yoga. levisão local teve de cancelar
Crocodilos eram cães. Aves o programa “Fiel ou Infiel”.
eram répteis e as de rapina Por falta de audiência.
passaram a esconder-se ao

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Contos

CAIU A SOMBRA
http://www.flickr.com/photos/ableman/1884813924/sizes/o/

Pedro Faria A garota sorriu ao guar- - E aí, o que nós temos?


punksterbass@hotmail.com dar o celular em seu bolso. - É melhor o senhor ver
Não havia achado algo por si mesmo.
particularmente engraçado. O detetive entrou. Peritos
Não, seu sorriso era aque- forenses tiravam fotos, ensa-
le de pessoas que não tem cavam copos usados, espa-
qualquer motivo para sorrir. lhavam pós para a coleta de
Era um sorriso de tristeza, e impressões digitais.
de desprezo.
No quarto, o detetive viu
Principalmente, era um o corpo. Ainda estava na po-
sorriso de ódio. sição ereta, sentado à frente
* do computador. O cutelo
O detetive encontrou o ainda estava preso na cabeça,
sargento próximo a porta do praticamente aberta em dois
apartamento. pedaços. Os olhos ainda esta-
vam abertos, e o detetive teve

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34
um calafrio ao olhar para Ele perguntou como ela de raiva, decidiu fazer algu-
eles. O detetive não soube estava. Ela estava bem. ma coisa. Nunca se sentira
porque sentira aquilo. Tinha Ele, cautelosamente, per- tão mal, e alguém pagaria
sido perturbado, e em quinze guntou se ela tinha lido a por isso.
anos de serviço, nunca tivera mensagem que ele lhe envia- Apertando os botões com
sido perturbado dessa ma- ra. mais força do que o necessá-
neira. rio, enviou uma mensagem,
Ela disse que sim, que não
Voltou até a porta, e rece- tinha problema, que a cul- e saiu.
beu a identidade da vítima. pa dela ter sido trocada por *
- Já temos algum suspeito? outra não era dele. Ele era A sombra caiu sobre aque-
-, perguntou, e de repente viu apenas o amigo preocupado. la casa.
de novo os olhos que acaba- Foram ao cinema, come-
ra de ver, só que dessa vez Sentada no chão, a sombra
ram, não conversaram muito. viu suas mãos vermelhas.
diretamente à sua frente, na
direção da escada. E, enquanto se dirigia à Vermelho era a única coisa
seu carro, Mário sentiu-se que conseguia enxergar. O
O sargento tinha dito perturbado. Sabia que Pe- resto era preto e branco.
alguma coisa. nélope não era do tipo de Na cadeira, em frente ao
- O que? -, perguntou o garota que aceitava notícias computador, estava o resto de
detetive subitamente, inter- ruins tão calmamente. Algo ser humano. O sangue ainda
rompendo algo que o sargen- estava errado. brotava do ferimento, como
to dizia. Durante a volta para casa, uma fonte macabra.
- Eu disse que sim, que na Mário decidiu ligar para A sombra se levantou, e
verdade já temos uma boa Penélope, perguntar como saiu do apartamento. E, ao
idéia de quem fez isso. ela realmente estava. Decidiu estar em segurança, voltou
Ainda um pouco perplexo, arrancar a verdade dela, não de onde veio, deixando para
o detetive perguntou quem importasse o custo. trás um corpo cansado e
tinha sido. Tateou dentro de sua mo- sonolento.
E o sargento lhe mostrou chila. Parou no sinal verme- *
um saco plástico. lho e continuou procurando.
O sinal ficou verde, o carro - Abra! É a polícia!
Dentro, havia um celular. continuou parado, Mário Esfregando os olhos, ele
* procurando. acordou, com dor de cabeça.
Mário pagou o estacio- E nada. Dirigiu-se até a porta, a
namento, esqueceu de pegar Seu celular havia sumido. tempo de vê-la ser derruba-
o troco e andou de cabeça da, e um grupo de homens
baixa até o carro. * de azul invadir sua casa.
Pensava em seu encontro - Aquela piranha! -, gritou Um dos homens (o único
com Penélope, em como ela Carlos, pela terceira vez. não usando azul) jogou-o de
parecia. Havia recebido a infor- cara na parede, e o algemou.
Ela estava muito feliz. mação de que tinham visto - Carlos Rodrigues, você
sua garota com outro, e está preso pela morte de
Mário estranhou isso, já não conseguia tirar isso da
que esperava encontra-la Joana Bagnoux.
cabeça. Se fosse um pouqui-
deprimida. Não queria isso, nho mais inteligente, Carlos Se estava de ressaca antes,
mas tinha aceitado isso como talvez enxergasse a ironia da após ouvir isso, não estava
fato. Porém, o que encontrou, situação. Porém, ele não era, mais.
foi uma Penélope sorriden- e portanto não enxergou. - O que? Você tá maluco,
te e alegre. Ela lhe abraçou cara?
como se ele não fosse um Irado, Carlos leu nova-
mensageiro de notícias ruins. mente a mensagem em seu Sua resposta foi ter sido
celular. Não se agüentando esmagado com mais força

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contra a parede pelo detetive.
- Eu vi o que tu fez com
ela, seu doente -, murmurou
o detetive – e você foi burro
o suficiente pra deixar sua
mensagem no celular dela.
Você sabe, aquela que você
dizia que ela pagaria por ter
te traído.
- Mas eu não fiz nada! Eu
saí ontem, para beber...
- E a matou. Continue ga-
roto, tu só tá se dando mais
corda para se enforcar.
Chorando e batendo os
pés, Carlos foi levado pela
polícia, de cuecas e sem ca-
misa, até a viatura.
*
Penélope viu Carlos ser le-
vado, de sua janela do outro
lado da rua.
Estava satisfeita. Tudo
dera certo. A sombra veio e
se foi, porém a memória do
que fizera com a vadia loira
continuou em sua mente.
Fez uma anotação mental,
de devolver o celular de Má-
rio, aquele que ela usara para
enganar Carlos.
Olhando a viatura se afas-
tar, Penélope lembrou-se da
sensação de enfiar o cutelo
na cabeça de Joana, lembrou
dela emitindo um último
ruído abafado antes da vida
jorrar para fora dela. Havia http://www.flickr.com/photos/sidereal/23416721/sizes/o/

gostado disso, gostado muito.


Talvez fizesse de novo.
Provavelmente faria de
novo.
Penélope sorriu com esse
pensamento.
Dessa vez, um sorriso
verdadeiro.
Estava feliz.

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36
Contos

http://www.flickr.com/photos/diogro/146406821/sizes/l/
O TEMPLO DOS
SORRISOS
Alian Moroz rente. Poderia o simpático bar
alian.moroz@hotmail.com vir a ser um templo para
O velho Inácio com seu discussões filosóficas ou
sorriso sempre amigo, por poéticas, como o velho Inácio
Tristeza tremenda invadiu
debaixo daquele bigodão lu- gostava de realizar todos os
minha mente esta semana.
sitano já grisalho, era farto. sábados à noite, mas não,
Junto com minha esposa,
fora também sucumbido
percorremos o bairro num
Saudades em meu coração, perante os apóstolos do nada
passeio diferente e saudo-
não compartilhadas por meu e sacrificado em nome da
sista. Visitar casas e bairros
fígado, visto, hoje, ser um alienação. Estou de luto esta
onde já havíamos morado,
abstêmio. semana. Inácio não merecia
transportou nossas lembran-
isso. Sorte de Deus: o velho
ças, já a tanto guardadas,
era ateu, senão, estaria agüen-
para as retinas. Olhei com surpresa que o
tando as argumentações
antigo local de encontro dos
pertinentes do sábio amigo.
Lugares de benevolente já distantes amigos e colegas
memória e românticas obras. de juventude tornara-se um
Um desses ambientes, pre- templo para arrecadação, não
ferido algures por mim, era de sorrisos, mas de moedas
o Bar do Velho Inácio. Uma para o céu. O velho Inácio
antiga construção de esquina havia morrido e o templo
onde eu, junto com velhos das risadas, do pão com boli-
camaradas, tomava minha nho, e do pastel, nem sempre
cota etílica, acompanhado frescos, havia sucumbido em
de uma boa conversa e risos sua finalidade e fora trans-
da piada mal contada; todos formado, de maneira herege,
conheciam, mas era sempre em mais uma igrejinha de
descrita de um modo dife- seita desconhecida.

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Contos
Rita puxou as cobertas

O BICHO-PAPÃO
e se encolheu na caminha
apertada.
A escuridão e a noite chu-
vosa contribuíam para que
seu pavor aumentasse ainda
mais.
Giselle Sato O som ritmado dos passos
gisellesato@superig.com.br no corredor de tábuas era
quebrado apenas pelo baque
seco do salto contra a ma-
deira.
Mentalmente contava os
tons altos e baixos, dez, nove,
oito....e então silêncio.
A porta do quarto nun-
ca era trancada. O monstro
espreitava.
Ela esperava de olhos bem
fechados, coração pulsando
forte, tremendo de frio e
medo.
Desde menina , Rita era
assombrada por terríveis
monstros. Foi embalada por
uma canção de ninar onde
um boi da cara preta engo-
lia o pranto das criancinhas
com medo de careta. Mais
tarde, corria para casa com
as ameaças do velho do saco
e do bicho papão.
Sempre havia um lobo
mau pronto a atacar se fosse
desobediente.
Os pais eram severos e
não admitiam que a menina
corresse pela casa ou sujasse
as roupas na terra.
As outras crianças brin-
cavam de pique e andavam
de bicicleta enquanto Rita,
sentada no degrau da frente
da bela casa, exibia impecá-
vel laços na bem comportada
“maria –chiquinha”, o vestido
muito bem engomado.
Rita olhava os sapatos
boneca de verniz brilhante
sem um só arranhão e com

http://www.flickr.com/photos/romeo66/2431660788/sizes/o/

38 SAMIZDAT julho de 2008


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a ponta das unhas puxava os Começou a mostrar im- A mãe chorava e precisou
fios das meias ¾ , desfiar era paciência e descaso, a exigir tomar fortes calmantes.
sua única distração. maiores explicações para O pai ligou o rádio e
Aos poucos compreendeu tantas proibições. pegou a garrafa de conha-
que seu limitado mundo era A mãe chorava e fazia que. Logo o fedor do charuto
um refúgio de dores e doen- queixa ao pai, temia que a barato invadia a casa.
ças. filha perdesse o rumo, a me- No quartinho Rita cho-
A casa cheirava a desin- nina estava rebelde demais. rava a irmã desconhecida e
fetante e éter. Pomadas e Naquela noite Rita sentiu a vida miserável. Cansada
ungüentos. os olhares atentos dos pais acabou dormindo.
A mãe lamentava a ar- durante todo o jantar. Des- Meia- noite. O relógio
trose e o pai trabalhava dia contentes e ameaçadores. antigo bateu as horas e Rita
e noite na padaria, sofria O pai era um senhor ouviu o som dos passos.
de pressão alta e não podia rude:- Sabe Rita, sua irmã A maçaneta girou e a
ser contrariado nunca. Os começou a ficar como você figura escura entrou sem
familiares haviam se afasta- e teve um final trágico e receio, sabia que ela não
do no decorrer do tempo e vergonhoso. gritaria nem teria qualquer
ninguém os visitava. -Por favor Adalberto, não reação.
A televisão ficava ligada tocamos neste assunto há O monstro puxou as co-
em programas femininos. A anos. bertas e levantou a ponta da
mãe adorava copiar receitas -Irmã? Eu tenho uma camisola da menina, cheirava
e acompanhar as novelas. irmã? Onde ela está? a conhaque e charuto, suor e
Rita não podia assistir os -Morta. maldade.
folhetins nem ler qualquer Antes de começar mais
obra. Rita nunca desconfiou da
existência da irmã. Era filha uma sessão torturante sus-
Tudo passava pela cen- única temporã:- Porque nun- surrou:- Se não quer acabar
sura paterna, nada escapava ca me contaram nada? Nem como sua irmã obedeça, seja
dos olhares atentos da mãe uma foto? Nada.... uma boa menina, não quero
zelosa que sempre a acom- ver sua mãe chorando por
panhava a escola, cinema ou -Ela desonrou esta família, suas desfeitas nunca mais
qualquer outro local. fugiu grávida e desapare- ouviu bem?
ceu com um bandido qual-
A mãe andava pelas ruas quer. Soubemos depois que Rita não ouviu nada, esta-
arrastando a menina pelo morreu de parto. Tinha só va longe, perdida na floresta
braço atenta aos mal enca- quinze anos. Negra, fugindo dos lobos
rados e suspeitos:-Está vendo e monstros. Suplicava por
aquele homem ali parado? -Depois fomos abenço- socorro ouvindo as risadas
Vamos atravessar, é assaltan- ados com sua vinda e pro- da Bruxa Mãe que fingia não
te ou tarado. Vê como nos metemos nunca mais tocar enxergar nada. Desta vez
olha? Cuidado Rita, são os neste assunto. havia uma outra menina na
piores tipos. -Não acredito que vocês estrada esperando. Seguiram
Rita não via nada de mais esconderam tudo isto, eu sou juntas o caminho da escu-
na pessoa em questão. uma menina normal, quero ridão onde os gritos de dor
ter uma vida como a das sopram como o vento.
Muito pelo contrário, outras pessoas. Vocês me tra-
achava que o pobre homem Um lamento para os
tam como uma prisioneira. inocentes que sofrem esque-
devia estar horrorizado com
a mulher com cara de lou- -Basta. Nesta casa só quem cidos.
ca correndo pelas calçadas fala mais alto sou eu. Já para
como se perseguida por seu quarto. E não sairá do
horda infernal castigo até aprender a ser
mais educada.
Treze anos de prisão.

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Tradução

DIÁRIO DUM LOUCO


Lu Xun
tradução: Henry Alfred Bugalho

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40
Dois irmãos, cujos nomes médica. Não alterei uma
não preciso mencionar aqui, única ilogicidade sequer do
eram ambos bons amigos diário e modifiquei apenas
meus durante o ginásio; os nomes, mesmo que as
mas, após uma separação de pessoas referidas sejam todas
vários anos, gradualmente interioranas, desconhecidas
acabamos perdendo contato. do mundo e sem importân-
Algum tempo atrás, che- cia. E sobre o título, este foi
gou aos meus ouvidos que escolhido pelo próprio autor
um deles havia adoecido do diário, após sua recupera-
gravemente e, como eu esta- ção, e eu não o alterei.
va retornando a meu velho
lar, interrompi minha viagem
para pagar-lhes uma visita, I
no entanto, encontrei apenas
um deles, que me disse que o Hoje à noite, a lua está
inválido era seu irmão mais muito brilhante.
novo. Eu não olhei pra ela por
Lu Xun era o pseudônimo de
Zhou Shren (25 de setembro de 1881 — Agradeço-o por ter vin- mais de trinta anos, então
- 19 de outubro de 1936), um dos do de tão longe para nos ver, hoje, quando a vi, senti uma
maiores autores chineses do século ele disse, mas meu irmão se incomum exaltação. Come-
XX. Considerado o fundador da recuperou, há algum tem- cei a perceber que, durante
moderna literatura baihuam, Lu Xun po, e se mudou para outro os últimos trinta anos, eu
foi contista, editor, tradutor, crítico e lugar, para assumir um cargo estive nas trevas; mas agora
ensaísta. Ele foi um dos fundadores oficial. eu devo ser extremamente
da Liga Chinesa de Escritores de cauteloso. Senão, por que
Então, rindo, ele me apre-
Esquerda em Xangai. aquele cachorro na casa do
sentou dois volumes do
A obra de Lu Xun exerceu grande diário de seu irmão, dizen- Chao teria me encarado duas
influência após o Movimento Quatro do que neles se podia ver a vezes?
de Maio, a ponto de ser exaltado natureza da doença que o Tenho razão para meu
pelo regime comunista após 1949. O havia acometido e que não medo.
próprio Mao Tse-Tung foi um admi-
havia perigo em mostrá-los a
rador das obras de Lu Xun durante
um velho amigo. Eu apanhei
toda a vida. Apesar de simpatizar
com o movimento comunista chinês,
os diários, li-os do começo II
Lu Xun jamais se afiliou ao Partido,
ao fim e descobri que ele ha-
mesmo sendo um ardoroso socialista, via sofrido de algum tipo de Hoje, não há lua, eu sei
como proferido em seus textos. complexo de perseguição. A que isto prenuncia desgra-
escrita era em grande parte ça. Esta manhã, quando saí,
confusa e incoerente, e ele cuidadoso, o Sr. Chao tinha
fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Lu_Xun havia feito algumas insanas um estranho olhar, como se
asserções; além disto, ele estivesse com medo de mim,
havia se omitido de fornecer como se quisesse me matar.
datas, assim apenas pela cor Havia com ele outras sete
da tinta e pelas diferenças ou oito pessoas, que falavam
na caligrafia que alguém de mim sussurrando. E elas
poderia distinguir quando os estavam com medo de serem
trechos não haviam sido es- vistas por mim. Todas as
critos duma só vez. Contudo, pessoas pelas quais passei
http://www.flickr.com/photos/hinaet/210499966/sizes/o/

certas seções não eram ao agiam deste modo. A mais


todo desconexas e eu copiei corajosa delas escancarou
algumas partes para servi- um sorriso pra mim, que
rem de objeto para pesquisa me fez ter calafrios dos pés

www.samizdat-pt.blogspot.com 41
à cabeça, por saber que os III
preparativos delas estavam
completos. Não consigo dormir à
noite. Tudo exige cuidadosa
reflexão para se entender.
No entanto, eu não estava
amedrontado, mas prossegui Aquelas pessoas, dentre
em meu caminho. Adiante, elas algumas que haviam
um grupo de crianças tam- sido humilhadas pelo juiz, es-
bém falava de mim, e o olhar bofeteadas pela nobreza local,
delas eram exatamente como suas mulheres levadas por
aquele do Sr. Chao, e seus oficiais de justiça, ou seus
rostos eram duma palidez pais forçados ao suicídio por
horrível. Tentei conceber que credores, nunca pareceram
rancor tais crianças pode- tão assustadas e hostis como
riam ter contra mim para ontem.
fazê-las se comportarem des- O mais extraordinário foi
te jeito. Não consegui evitar aquela mulher, ontem, na rua,
de gritar: que dava palmadas no filho
— Digam-me! Mas, então, e dizia:
elas fugiram. — Seu diabinho! Eu gosta-
ria de comer alguns pedaços
seus para aplacar minha
Pergunto-me que rancor raiva!
o Sr. Chao pode ter contra
mim, que rancor as pessoas No entanto, ela olhava
na estrada podem ter contra para mim todo o tempo. Eu
mim. Não consigo pensar em me sobressaltei, incapaz de
nada, excetuando que, vinte me controlar; todas aquelas
anos atrás, eu espezinhei o pessoas, rostos esverdeados,
livro de balancetes de vários dentes longos, começaram
anos do Sr. Ku Chiu1, e ele a rir escarniçadamente. O
1. Ku Chiu significa “Tempos
ficou muito ofendido. Apesar velho Chen apressou-se e me
Antigos”. Lu Hsun tem em mente a
longa história de opressão feudal na de o Sr. Chao não tê-lo co- arrastou para casa.
China. nhecido, ele deve ter ouvido Arrastou-me para casa.
algum boato sobre isto e O pessoal lá de casa fingiu
decidiu vingá-lo, então ele e não me conhecer; tinham o
as pessoas na estrada estão mesmo olhar que os outros.
conspirando contra mim. Quando entrei no escritório,
Mas as crianças? Naquela eles trancaram a porta por
época, elas não haviam nem fora como se engaiolassem
nascido ainda, por que então um frango ou um pato. Este
elas estariam me olhando tão incidente me deixou ainda
estranhamente hoje, como mais perplexo.
se tivessem medo de mim,
Alguns dias antes, um dos
como se quisessem me ma-
nossos inquilinos da Vila
tar? Isto realmente me assus-
Lobato veio relatar o fracasso
ta, é tão incompreensível e
nas colheitas, e disse a meu
perturbador.
irmão mais velho que um
Eu sei. Elas devem ter notório personagem na vila
aprendido com os pais! havia sido espancado até a
morte; então algumas pes-
soas arrancaram o coração

42 SAMIZDAT julho de 2008


42
e o fígado dele, fritaram-nos quais são seus pensamentos
em óleo e os comeram, com secretos — especialmente
o propósito de aumentar a quando eles estão prontos
coragem deles. Quando eu os para comer pessoas?
interrompi, tanto o inquilino
quanto meu irmão me enca-
raram. Apenas hoje percebi Tudo exige cuidadosa
que eles tinham o mesmo reflexão para se entender. Em
olhar que aquelas pessoas lá épocas antigas, se não me en-
fora. gano, as pessoas comiam se-
res humanos com freqüência,
mas não estou muito certo
Só de pensar nisto tenho disto. Tentei pesquisar sobre
calafrios do topo da cabeça o assunto, mas meu livro de
até as solas dos pés. História não tem cronologia,
Eles comem seres huma- e rabiscadas em cada uma
nos, então podem me comer das páginas estão as palavras:
também. “Virtude e Moral”. E como eu
não conseguia dormir, li-o
Percebo que o “comer atentamente durante metade
alguns pedaços seus” dito da noite, até que comecei a
pela mulher, a risadas da- ver palavras nas entrelinhas,
quelas pessoas de rostos todo o livro preenchido
esverdeados e dentes longos com duas palavras — “Coma
e a história do inquilino no pessoas”.
outro dia eram, obviamente,
sinais secretos. Vejo todo o Tais palavras escritas no
veneno na fala deles, em suas livro, tais palavras ditas por
risadas cortantes. Seus dentes nosso inquilino, observavam-
são brancos e reluzentes: eles me estranhamente com um
são devoradores de homens. sorriso enigmático.

Apesar de eu não ser uma Eu também sou um ho-


má pessoa, aparentemente mem, e eles querem me
minha situação era delicada comer!
desde o dia em que piso-
teei os balancetes do Sr. Ku.
Eles parecem ter segredos IV
que nem posso imaginar e,
se ficarem com raiva, eles De manhã, sentei-me em
chamarão qualquer um de silêncio por algum tempo. O
mau-caráter. Lembro-me velho Chen trouxe o almoço:
quando meu irmão mais uma tigela de vegetais e uma
velho me ensinou a escrever de peixe no vapor. Os olhos
redações — não importava do peixe estavam brancos
quão bom um homem fosse, e duros, a boca dele estava
se eu apresentasse argumen- aberta exatamente como das
tos contrários, ele marcaria pessoas que querem comer
o trecho para mostrar sua seres humanos. Após algu-
aprovação, e se eu defendesse mas poucas mordidas, eu não
os malfeitores, ele diria: conseguia distinguir se os
escorregadios bocados eram
— Que bom, isto demons-
de peixe ou de carne huma-
tra originalidade.
na, então vomitei tudo.
Como eu posso saber

www.samizdat-pt.blogspot.com 43
Eu disse: mente se muniu do pretexto agir de imediato, quase me
— Velho Chen, diga a meu de sentir meu pulso para fazem morrer de rir. Eu não
irmão que estou me sentindo ver quão gordo eu estava; ao conseguia parar de garga-
um pouco sufocado e que fazer isto, ele receberia uma lhar, estava tão surpreso. Eu
gostaria de dar uma volta no cota da minha carne. Mesmo sabia que nesta risada havia
jardim. assim, eu não estava com coragem e integridade. Tanto
medo. Mesmo que eu não o ancião quanto meu irmão
O velho Chen não disse coma homens, minha cora- empalideceram, estupefatos
nada, mas saiu, imediatamen- gem é maior do que a deles. diante de minha coragem e
te retornou e abriu o portão. Estendi meus dois punhos integridade.
Não me mexi, mas espe- para ver o que ele faria. O Mas tão somente por eu
rei para ver como eles me ancião se sentou, fechou os ser corajoso eles anseiam
tratariam, certo de que eles olhos, tateou-os por alguns ainda mais me comer, para
não me deixariam ir. Eu instantes e depois ficou quie- ganharem um pouco da mi-
tinha certeza! Meu irmão to por outros instantes; então nha coragem. O ancião saiu
mais velho entrou lentamen- ele abriu seus olhos malicio- pelo portão, mas antes que
te, conduzindo um ancião. sos e disse: estivesse longe, ele disse ao
Havia um brilho assassino — Não deixe sua imagi- meu irmão, baixinho:
nos olhos deste e, temendo nação o controlar. Descanse
que eu percebesse isto, ele — Deve ser comido logo! e
em silêncio por alguns dias e meu irmão aquiesceu. Então
abaixou a cabeça, olhando- tudo ficará bem.
me de esguelha por detrás de você também faz parte disto!
seus óculos. Esta estupenda descoberta,
Não deixe sua imaginação apesar de ter me chocado,
— Você parece estar muito não era nada mais do que
bem, hoje, meu irmão disse. o controlar! Descanse por
alguns dias! Quando eu hou- eu já esperava: o cúmplice
— Sim, respondi. ver engordado, naturalmente em devorar-me é meu irmão
eles terão mais o que comer; mais velho!
— Convidei o Sr. Ho para
vir aqui hoje, meu irmão mas que bem isto me fará, O devorador de carne
disse, para examiná-lo. ou como é que tudo “ficará humana é meu irmão mais
bem”? Todas estas pessoas velho!
— Tudo bem, eu disse. Na
querendo comer carne huma- Eu sou o irmão mais novo
verdade, eu sabia muito bem
na e, ao mesmo tempo, ten- dum devorador de carne
que este ancião era um exe-
tando sorrateiramente manter humana!
cutor disfarçado! Ele simples-
as aparências, não ousando

44 SAMIZDAT julho de 2008


44
Serei comido por outros, mente ouvia suas explicações
mas, mesmo assim, sou o e fazia vista grossa; agora eu
http://www.flickr.com/photos/bricecanonne/2487735696/sizes/l/

irmão dum devorador de sei que quando ele explicava


carne humana! isto para mim, não apenas
havia gordura humana nos
cantos de sua boca, mas todo
V seu coração estava inclinado
a comer homens.
Nestes últimos dias, voltei
a refletir: suponhamos que o
ancião não fosse um execu- VI
tor disfarçado, mas um dou-
tor de verdade; ele mesmo Trevas. Não sei se é dia ou
assim seria um devorador de noite. O cachorro da famí-
carne humana. Naquele livro lia Chao começou a latir de
sobre plantas medicinais, novo.
escrito por seu predeces- A ferocidade dum leão, a
2. Um farmacologista famoso sor Li Shih-chen2, afirma-se
(1518-1593), autor de Ben-cao- timidez dum coelho, a malí-
claramente que a carne dum cia duma raposa...
gang-um, a Materia Medica. homem pode ser cozida
e comida; então como ele
ainda insiste que não come
homens?
VII
Quanto a meu irmão mais Eu conheço o jeito deles;
velho, eu também tenho um não matarão alguém dire-
bom motivo para suspeitar tamente, nem ousam, pois
dele. Quando me ensinava, temem as conseqüências.
ele me disse com a própria Ao invés disto, uniram-se e
boca: prepararam armadilhas por
— Pessoas trocam os filhos todos os lados para me indu-
para comer. E, uma vez, deba- zirem ao suicídio. O com-
tendo sobre um homem mau, portamento dos homens e
ele disse que este não apenas mulheres nas ruas, há dias, e
merecia ser morto, como a atitude do meu irmão mais
deveria “ter sua carne comida velho nestes últimos tempos
e que se dormisse sobre sua torna isto óbvio. O que mais
3. Estas citações são do clássico pele...”3 Eu ainda era jovem, à os agrada é que um homem
Zuo Zhuan. época, e meu coração se ace- arranque da cintura seu cin-
lerou por um tempo; ele não to e se enforque numa viga,
ficou nem um pouco surpre- porque, então, eles podem
so com a história que nosso desfrutar de seus mais caros
inquilino da Vila do Lobato desejos sem serem culpados
nos contou, outro dia, sobre de assassinato. Naturalmente,
comer o coração e o fígado isto faz com que eles garga-
dum homem, mas ficou con- lhem com deleite. Por outro
cordando com a cabeça. Ele lado, se um homem está
é, evidentemente, tão cruel amedrontado ou preocupado
quanto antes. Se é possível com a morte, mesmo que
que se “troque filhos para com isto ele emagreça, eles
comer”, então tudo pode ser ainda aquiescem em aprova-
trocado, tudo pode ser comi- ção.
do. No passado, eu simples- Eles só comem carne

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http://www.flickr.com/photos/appenz/2434840052/sizes/o/

morta! Lembro-me de ter lido — É certo comer seres


em algum lugar sobre uma humanos?
fera medonha, com terrível Ainda sorrindo, ele res-
olhar, chamada “hiena”, que pondeu:
freqüentemente come carne
morta. Ela tritura em frag- — Quando não há escas-
mentos até o maior dos ossos sez, por que alguém comeria
e os engole: o mero pen- seres humanos?
samento disto é o bastante Percebi imediatamente que
para aterrorizar alguém. Hie- ele era um deles; mas ain-
nas são parentes dos lobos, da convoquei coragem para
e lobos pertencem à espécie repetir minha pergunta:
dos cães. Outro dia, o cão
— É certo?
na casa do Chao me fitou
várias vezes; é óbvio que ele — O que o leva a pergun-
também faz parte deste ardil tar tal coisa? Você realmente
e se tornou cúmplice deles. gosta duma piada... Está um
O ancião baixou o olhar, mas dia muito bonito hoje.
isto não me enganou! — Está bonito, e a lua está
O mais deplorável é o muito brilhante. Mas quero
meu irmão mais velho. Ele perguntar a você: é certo?
também é um homem, então Ele olhou-me desconcerta-
por que não está com medo, do e murmurou:
por que esta conspirando
— Não...
com os outros para me co-
mer? O hábito faz com que — Não? Então por que eles
se pense que isto não é mais ainda fazem isto?
um crime? Ou ele endureceu — Do que você está falan-
seu coração para fazer algo do?
que sabe ser errado?
— Do que estou falando?
Ao amaldiçoar os devo- Eles estão comendo homens
radores de homens, devo agora na Vila do Lobato e
começar por meu irmão, e, você pode encontrar isto
ao dissuadir os devoradores escrito pelos livros, em fresca
de homens, devo começar tinta vermelha.
por ele também.
A expressão dele mudou e
ele ficou terrivelmente páli-
do.
VIII
— Pode ser, ele disse,
Na verdade, tais argumen- encarando-me, sempre foi
tos deveriam tê-los convenci- assim...
do há muito tempo... — É certo porque sempre
De repente, alguém en- foi assim?
trou. Ele tinha apenas uns — Recuso-me a discutir
vinte anos e eu não enxerga- estes assuntos com você. De
va seus traços com clareza. qualquer modo, você não de-
Sua cara vinha ornamentada veria falar sobre isto. Qual-
com sorrisos, mas quando quer um que fala sobre isto
ele me cumprimentou, seu está errado!
sorriso não parecia autêntico. Sobressaltei-me e esbuga-
Perguntei a ele:
lhei meus olhos, mas o ho- — Bem, o que é? — ele
mem havia desaparecido. Eu perguntou, rapidamente se
estava encharcado de suor. virando em minha direção e
Ele era bem mais novo do aquiescendo.
que meu irmão, mas mesmo — É pouco, mas muito
assim ele fazia parte disto. difícil de se dizer. Irmão,
Deve ter sido ensinado por provavelmente todos os
seus pais. E temo que ele já povos primitivos comiam
tenha ensinado seus filhos: é carne humana, no princípio.
por isto que as crianças me Depois, porque a visão deles
olham com tamanha feroci- havia mudado, alguns deles
dade. pararam, e porque tentavam
ser bons, ele se tornaram
homens, tornaram-se homens
IX de verdade. Mas alguns ain-
da comem — assim como os
Querem comer homens, répteis. Alguns se tornaram
mas, ao mesmo tempo, têm peixes, pássaros, macacos e,
medo de eles próprios serem por fim, homens; mas al-
comidos, assim todos se en- guns não tentaram ser bons
treolham com a mais pro- e continuam ainda répteis.
funda das suspeitas... Quando aqueles que comem
Como a vida seria confor- homens se comparam àque-
tável para eles se pudessem les que não comem, como
se livrar de tais obsessões e eles devem se envergonhar.
fossem trabalhar, caminhar, Provavelmente se envergo-
comer e dormir sossegados. nham muito mais do que os
Eles tinham de dar apenas répteis diante dos macacos.
um passo. Mesmo assim, Em épocas antigas, Yi Ya co-
pais e filhos, maridos e espo- zinhou seu filho para Chieh
sas, irmãos, amigos, profes- e Chou comerem; esta é a
velha história4. Mas, na ver- 4. De acordo com os registros
sores e estudantes, inimigos antigos, Yi Ya cozinhou seu filho e
jurados e até estranhos, todos dade, desde a criação de céu
e terra por Pan Ku, homens o presenteou ao Duque Huan de
se reuniram nesta conspi- Chi que reinou de 685 a 643 a.C.
ração, desencorajando-se mu- têm comido uns aos outros,
desde o tempo do filho de Yi Chieh e Chou foram tiranos duma
tuamente e evitando que os época primitiva. O louco cometeu
outros dessem este passo. Ya até o tempo de Hsu Shi-
lin, e desde o tempo de Hsu um equívoco aqui.
Hsi-lin5 até o homem que foi 5. Um revolucionário no final da
pego na Vila do Lobato. Ano dinastia Ching (1644-1911), Hsu
X
passado, eles executaram um Hsi-lin foi executado em 1907 por
criminoso na cidade, um assassinar um oficial Ching. Seu
De manhã cedo, fui pro-
tuberculoso molhou um pe- coração e fígado foram comidos.
curar meu irmão mais velho.
daço de pão no sangue dele
Ele estava do lado de fora da
e o lambeu. Eles querem me
porta de entrada, olhando
comer e é claro que eu não
para o céu, quando apro-
posso fazer nada sozinho;
ximei-me dele pelas costas,
mas por que você se uniria
fiquei entre ele e a porta e,
a eles? Como devoradores de
com excepcional equilíbrio e
homens, eles são capazes de
educação, disse a ele:
qualquer coisa. Se eles me
— Irmão, tenho algo para comerem, podem comê-lo
lhe dizer. também; membros dum mes-

www.samizdat-pt.blogspot.com 47
mo grupo podem comer uns ficar olhando para um louco? era falso, então eu lutei, co-
aos outros. Mas se vocês mu- Então entendi parte do berto de suor. Mas eu tinha
darem seus hábitos imediata- ardil deles. Eles nunca es- de dizer:
mente, então todos terão paz. tariam dispostos a mudar — Vocês devem mudar
Apesar de isto ocorrer desde sua posição e seus planos já imediatamente, mudar de
tempos imemoriais, hoje nós estavam traçados; eles ha- todo o coração! Vocês devem
podemos fazer um esforço viam me estigmatizado como saber que, no futuro, não
especial para sermos bons e um louco. No futuro, quando haverá lugar no mundo para
dizer que isto não deve ser eu fosse comido, não apenas devoradores de homens...
feito! Tenho certeza de que não haveria problema algum,
você pode dizer isto, irmão. como as pessoas ficariam
Outro dia, quando o inquili- provavelmente gratas a eles.
no queria que você abaixasse
XI
Quando o nosso inquilino
o aluguel, você disse isto era falou dos vilões comendo um
impraticável. O sol não brilha, a porta
mau sujeito, era exatamente não está aberta, duas refei-
A princípio, ele apenas o mesmo artifício. Este é o ções ao dia.
sorriu cinicamente, então um velho truque deles.
brilho assassino surgiu em Peguei meus hashi, então
O velho Chen veio tam- pensei no meu irmão mais
seus olhos e, quando eu falei bém, em ótimo humor, mas
do segredo deles, ele empa- velho; agora sei como minha
eles não conseguiam me ca- irmã caçula morreu: foi tudo
lideceu. Do outro lado do lar, eu tinha de falar àquelas
portão, havia um grupo de por causa dele. Minha irmã
pessoas: tinha apenas cinco anos,
pessoas, incluindo o Sr. Chao
e seu cão, todos esticando — Vocês devem mudar, naquele tempo. Ainda consi-
os pescoços para espiarem. mudar de todo o coração! go me lembrar quão adorável
Eu não conseguia ver seus eu disse. Quase todos vocês e apaixonante ela era. Ma-
rostos, pois eles pareciam sabem que, no futuro, não mãe chorou e chorou, mas
estar mascarados com panos; haverá lugar no mundo para ele implorou para que ela
alguns deles eram pálidos devoradores de homens. Se não chorasse, provavelmente
e assustadores, escondendo não mudarem, vocês se co- porque ele a havia comido e
suas risadas. Eu sabia que merão uns aos outros. Ape- o choro dela o envergonhava.
eles eram um bando, todos sar de muitos terem nascido, Como se eles tivessem algum
comedores de carne humana. eles serão eliminados pelos senso de vergonha...
Mas eu também sabia que homens de verdade, assim Minha irmã havia sido
nem todos pensavam de ma- como os lobos são mortos comida por meu irmão, mas
neira semelhante. Alguns de- por caçadores. Assim como eu ainda não sei se mamãe
les pensavam que os homens répteis! percebeu isto ou não.
deveriam ser comidos, pois O velho Chen espantou Acho que mamãe devia sa-
sempre havia sido assim. todo mundo. Meu irmão de- ber, mas, quando chorou, ela
Alguns deles sabiam que não sapareceu. O velho Chen me não disse isto com franqueza,
deveriam comer homens, mas aconselhou a voltar para meu provavelmente porque ela
ainda assim tinham vontade; quarto. O quarto estava um também pensava que aquilo
e eles tinham medo que as breu. As traves e vigas tre- fosse apropriado. Lembro-me
pessoas descobrissem seu miam sobre minha cabeça. quando eu tinha quatro ou
segredo; assim, quando me Após tremerem por algum cinco anos, sentado no fres-
ouviram, eles se enfureceram, tempo, elas aumentaram de cor do vestíbulo, meu irmão
mas ainda assim tinham um tamanho. Empilharam-se me disse que se os pais dum
cínico sorriso amarelo. sobre mim. homem estivessem doentes,
De repente, meu irmão os O peso era tão grande que ele deveria cortar um peda-
olhou com fúria e gritou alto: eu não podia me mover. Elas ço de sua pele, cozinhá-lo
— Saiam daqui, todos significavam que eu deveria para eles, se ele desejasse ser
vocês! Qual é o sentido em morrer. Eu sabia que o peso considerado como um bom

48 SAMIZDAT julho de 2008


48
filho; e mamãe não o contra-
disse. Se um pedaço poderia
ser comido, obviamente que
o todo também pode. Ainda
assim, só de pensar naquele
lamento faz meu coração
ainda sangrar; esta é a coisa
mais extraordinária sobre
isto!

XII

Não suporto pensar sobre


isto.
Acabei de constatar que
tenho vivido todos estes anos
num lugar onde, por milha-
res de anos, eles têm comido
carne humana. Meu irmão
havia acabado de se tornar
o encarregado da casa quan-
do nossa irmã morreu, e ele
deve ter posto a carne dela
em nosso arroz e em nossas
refeições, fazendo com que
nós a comêssemos involunta-
riamente.
É possível que eu tenha
comido vários pedaços da
carne na minha irmã sem sa-
ber e que agora será a minha
vez...
Como pode um homem
semelhante a mim, após
quatro mil anos de histó-
ria de filantropia — mesmo
que eu não soubesse nada, a
princípio —, ter a esperança
de encarar um homem de
http://www.flickr.com/photos/yhlee/2257836817/sizes/o/

verdade?

XIII

Será que ainda há crianças


que não comeram homens?
Salvem as crianças....
Abril de 1918

fonte: Marxists Internet Archive

www.samizdat-pt.blogspot.com 49
Tradução

HU SHI
http://www.theeastisred.com/images/posters/PIC%2000180.jpg

O Intelectual da Reforma Literária Chinesa

50 SAMIZDAT julho de 2008


50
foto: Hu Shi em 1944, após servir
como embaixador nos Estados
Unidos.

Hu Shi (17 de dezembro permanência, recebeu apoio de Hu foi embaixador da


de 1891 - 24 de fevereiro de Chen Duxiu, editor do influen- República Popular da China
1962) foi um filósofo chinês e te jornal “Nova Juventude”, e nos EUA entre 1938 e 1941,
ensaísta. Nascido em Xangai, atraiu atenção e influência. Hu chanceler da Universidade de
ele foi enviado aos EUA em se tornou um dos principais Pequim entre 1946 e 1948 e,
1910 para estudar agricultu- e mais influentes intelectuais posteriormente, presidente da
ra na Cornell University. Em durante o Movimento Quatro Academia Sinica em Taiwan,
1912, ele mudou linha de pes- de Maio e, depois, no Movi- onde ele permanceu até sua
quisa para Filosofia e Litera- mento Nova Cultura. morta, por ataque cardíaco,
tura. Depois, estudou Filosofia aos 71 anos de idade. Ele foi
na Columbia University. Lá, foi o diretor-executivo do Jornal
profundamente influenciado Sua mais importante con- China Livre, que foi fechado
por seu professor, John Dewey, tribuição foi a divulgação do por causa da crítica a Chian
e se tornou tradutor das obras Chinês Vernáculo na literatura Kai-shek.
de Dewey e um defensor fer- em substituição ao Chinês
renho do pragmatismo. Retor- Clássico, o que tornou a lei-
nou para lecionar na Universi- tura mais acessível às pessoas
dade de Pequim. Durante sua comuns.

www.samizdat-pt.blogspot.com 51
OBRA 1. Escreva com
substância. Hu
queria dizer que
crevem sobre temas
como a morte. Hu
rejeita este modo
estas formas terem
sido o objetivo de
escritores antigos,
Diferente de outras fi- literatura deveria de pensar como Hu acreditava que
guras da Era dos Generais conter sentimen- sendo improduti- os autores mo-
na República da China, Hu tos e pensamentos vo na tentativa de dernos deveriam
era defensor de apenas uma humanos reais. resolver problemas primeiro aprender
corrente de pensamento: A intenção era modernos. o básico da subs-
contrastar à poesia 5. Elimine velhos tância e qualidade
o pragmatismo. Muitos de
recente com rimas clichês. A língua antes de retornar
seus textos utilizaram destas
e métrica, vista por chinesa sempre àqueles assuntos de
idéias para propor mudanças
Hu como sendo possuiu vários sutileza e delica-
na China. vazia. deza.
ditados e senten-
Hu era conhecido como o 2. Não imite os ças com quatro 8. Não evitar ex-
primeiro porta-voz da era da clássicos. Literatura caracteres utiliza- pressões populares
revolução literária, um mo- não deveria conter dos para descrever e formas populares
vimento que visava substituir estilos ultrapassa- eventos. Hu im- de caracteres. Esta
o erudito Chinês Clássico na dos, mas sim um plorou aos autores regra, talvez a mais
escrita pela língua vernácu- estilo moderno dos para usar suas conhecida, relacio-
la falada, além de cultivar e tempos atuais. próprias palavras na-se diretamente
estimular novas formas de 3. Respeite a em descrições e com a crença de
literatura. Num artigo publi- gramática. Hu não desprezou os que Hu de que a litera-
cado originalmente em "Nova dissertou muito não faziam isto. tura moderna de-
Juventude" de janeiro de sobre este ponto, 6. Não fazer alu- veria ser escrita em
1917, entitulado "Uma Dis- apenas afirman- sões. Hu se referia vernacular, ao invés
cussão Preliminar de Refor- do que as formas à prática de com- do Chinês Clássico.
ma Literária", Hu enfatizou recentes de poesia parar eventos pre- Ele acreditava que
originalmente oito diretrizes negligenciavam a sentes a históricos esta prática tinha
que todos escritores chineses gramática. quando não havia precedentes históri-
nenhuma analogia cos e que conduzia
deveriam ter em mente ao 4. Rejeite a
significativa. a uma maior com-
escrever: melancolia. Jovens preensão de textos
autores recentes co- 7. Não utilizar importantes.
mumente escolhem dísticos e parale-
pseudônimos e es- lismos. Apesar de

Em abril de 1918, Hu publicou um segundo artigo em


"Nova Juventude", este intitulado "Revolução Literária Cons-
trutiva - Uma Literatura da Fala Nacional". Nele, ele simplifi-
ca os oito itens originais em apenas quatro:

1. Fale apenas quando você 3. Fale o que é próprio de si


tem algo para dizer. Análogo mesmo, e não de outra pessoa.
ao primeiro item acima. Uma reescrita do item sete.

2. Fale o que você quer di- 4. Fale na língua da época


zer e o diga do modo que você em que você vive. Refere-se
http://www.flickr.com/photos/stoper/418005421/sizes/o/

quer dizer. Une do segundo ao novamente à substituição do


sexto itens acima. Chinês Clássico pela língua
vernácula.
fonte: http://en.wikipedia.org/
wiki/Hu_Shi

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NÃO SE ESQUEÇA
fonte: http://www.chinapage.com/poet-e/hushih2e.html

Hu Shi
tradução: Henry Alfred Bugalho

Tradução
Filho,
Por vinte anos ensinei-o a amar este país,
Mas só Deus sabe como!

Não se esqueça:
Este é o nosso país de soldados,
Que fez sua tia se suicidar em desgraça,
E fez o mesmo com Ah Shing,
E com sua esposa,
E que fuzilou Gao Sheng!

Não se esqueça:
Quem decepou seu dedo,
Quem espancou seu pai até a invalidez!
Quem queimou esta vila?
Merda! O fogo está chegando!
Vai, para o seu próprio bem! Não morra comigo!
Espere!

Não se esqueça:
O único desejo desse pai moribundo é o país invadido
Pelos cossacos,
Ou pelos prussianos,
Por qualquer um!
Há vida pior do que — esta?!

www.samizdat-pt.blogspot.com 53
SONHO E POESIA
Hu Shi
tradução: Henry Alfred Bugalho

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http://farm1.static.flickr.com/137/402635622_25046b5712_o.jpg
Tradução
É tudo experiência comum,
Tudo imagens comuns.
Ao acaso elas surgem num sonho,
Engendrando infinitos novos padrões.

É tudo sentimentos comuns,


Tudo palavras comuns.
Ao acaso elas encontram um poeta,
Engendrando infinitos novos versos.

Uma vez intoxicado, descobre-se a força do vinho,


Uma vez enamorado, descobre-se o poder do amor:
Tu não podes escrever meus poemas
Assim como não posso sonhar teus sonhos.

www.samizdat-pt.blogspot.com 55
Autor Convidado

A única Paz possível é a

Jacimeire
Leo Borges tou que a paz que o mundo que vemos é o óbvio e bati-
busca é impossível porque do: “não agüentamos mais a
O que eu mais gosto no entra em conflito com a pró- violência!”. Roupas brancas
Bar do Setembrino são os pria essência beligerante do de grife desfilando pelas ruas
axiomas do Rildo. Normal- ser humano. pedindo paz.

http://www.flickr.com/photos/marianafaria/2438289318/sizes/l/
mente vêm acompanhados Qualquer conduta reativa – As pessoas se adaptam
de bolinhos de carne – espe- é, antes de mais nada, uma ao jogo. Para novas conquis-
cialidade da casa – e cerveja violação ao que foi explana- tas o homem se reuniu para
barata, muito comum nos su- do anteriormente. Na visão guerrear e criou flechas e
búrbios. Se não vejo o Rildo macro de Rildo essa premis- pólvora. Se quisesse a paz,
em uma das mesas na calça- sa é não apenas primordial teria ficado no seu cantinho,
da, cumprimento o Setembri- como muito pitoresca. no cultivo familiar, trocando
no, jogo uma sinuca, falo um – Quando rompemos o sal e frutas com seus vizi-
pouco sobre futebol, mando padrão, a vida se movimenta nhos. A evolução é a própria
um beijo pra Jacimeire e sigo e as pessoas se desacomo- face da violência e do caos.
meu caminho. Mas com ele dam e com isso, evoluem. Quer coisa mais violenta que
por ali, fato relativamente Sem a bolsa roubada, Lourdes o desenho do Pica-Pau?
raro, fico para um papo mais iria pra casa assar sua carne, No ponto de vista de Ril-
cáustico, onde suas verdades fazer seu arroz. Mas acon- do não há viabilidade na paz.
empíricas vão sendo derra- teceu um fato novo em sua É tão ingênuo quanto tentar
madas sem filtros para quem vida e isso a vai fazer pensar fazer o leão não caçar suas
quiser ouvir. em outras coisas mais apro- presa explicando que a zebra
Hoje ele estava por lá, fundadas, tipo: ‘que mundo vai sentir dor. A comparação
como sempre na mesa é esse em que vivo?’ e ‘quem é tão estapafúrdia que seria
exposta ao ar livre, se mis- são as pessoas a minha uma violência ao diálogo
turando entre os transeuntes volta?’. Ela nunca teria essa tentar ponderar. E ainda que
apressados. Rildo dizia que oportunidade se não tivesse eu quisesse um caminho
o melhor de um bar não é a tido esse contratempo. mais brando para hastear a
comida e nem a bebida, mas Rildo não é um sujeito “bandeira branca” sobre os
a possibilidade de ver as pes- que pode ser classificado argumentos de Rildo, não
soas, nervosas, correndo de como ‘agradável’. Ele é do- conseguiria. Ele não dá essa
um lado para o outro numa lorosamente fiel aos seus opção.
sessão pavorosa de corpos conceitos. Desfia suas pérolas – A verdade é que todo
em movimento. Não me como algum filósofo frustra- mundo gostaria de ser poli-
furtei em puxar uma cadeira do que pretende explicar a cial ou bandido. Há glamour
para acompanhá-lo com uma vida a partir de sua vivência na violência. Estar intima-
gelada. Comentei sobre um boêmia. Mas é gostoso ouvir mente ligado a uma arma é
fato triste que havia presen- colocações que não são poli- prazeroso. Vá a uma locado-
ciado momentos antes, quan- ticamente corretas, já que nos ra de filmes e constate: existe
do um pivete roubara a bolsa jornais, revistas e TV tudo o a categoria “Engenheiro”? A
da dona Lourdes. Ele decre-

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“Arquiteto”? A “Peixeiro”? losa, mas ainda assim as es- num boneco de aniversário
Não. Mas existe a “Policial”. tatísticas iriam surpreender. de criança. E os pugilistas
Polícia e ladrão é a brinca- Triplicariam as mortes nas entrariam no ringue com
deira mais recorrente entre a estradas, já que todos sairiam luvas de algodão para pode-
criançada. E criança tem sua para passear. Duplicariam rem fazer uma boa “matinê
própria natureza de tapas e os pisoteamentos em shows, de cafuné”. Quem pagaria
corredor polonês. Precisam pois milhões iriam freqüen- para ver isso? Imagine uma
disso. Claro que quando não tar raves e similares. Afoga- lírica torcida do Flamengo
recebem uns bons cascudos mentos em piscinas e praias enaltecendo a torcida do Flu-
de seus pais para se com- em balneários superlotados. minense no Maracanã. Seria
portarem. O indivíduo só Intoxicações com inseticidas. até caricato. A essência de
deixa de porradaria quando Queimaduras. Atropelamen- uma disputa é justamente a
o policial vem e lhe senta o tos. Seria uma catástrofe sem briga. Já começamos brigan-
cacete. precedentes. do desde espermatozóides. Se
Para Rildo a violência não - As pessoas enjoariam não houvesse o antídoto da
tem como ser combatida de tanto marasmo e falta calmaria, o mundo estaria fa-
pelo fato de o ser humano de perspectivas perversas e dado ao cinismo, à falsidade
não saber conviver sem ela. sairiam para todos os can- e à desonestidade. Exemplo
Seria um mundo enfadonho, tos buscando qualquer coisa maior são os nossos políticos,
macambúzio e... violento! que as alegrassem. A figura que não atiram nem esfa-
Não seria uma violência do- do diabo seria transformada queiam. Mas quer violência

www.samizdat-pt.blogspot.com 57
maior que uma canetada pró-violência ou um libelo e violento, vence, sai bem
assinando uma lei estúpi- da destruição, já que seu tra- na fita, é glorificado e ainda
da? Um salário mínimo que tado é uma versão sarcástica posa de ‘bonzinho’.”Deus nos
no papel garante tudo e na e estilizada do mundo real. ajudou a vencer essa guerra
prática só serve como cha- Rildo é o Thomas More ao contra os impuros”. Como
cota. Melhor fazer piada que reverso em meio aos salgadi- disse Sartre, “o inferno são os
chorar com tanta violência. nhos engordurados do Bar do outros”.
Realmente é um mundo Setembrino. Percebi que o papo desse
esquisito o que Rildo vis- - Eu repudio frontalmen- dia já estava ficando cinzento
lumbra... mas e as religiões? te a violência – diz ele. – O além da conta. Enfim, para o
Não cumpririam seus papéis problema é que ela mora meu amigo de cerveja não há
pacíficos numa sociedade em todos os lugares onde paz possível. Seria isso? Nem
despojada de violência? há sinais de inteligência. Dê tanto.
– As religiões, que de- um pedaço de osso para um – Eu vou te contar qual é
veriam ser ícones de paz, cachorro e ele será feliz. Dê a única paz possível: a Jaci-
fomentam a violência com toneladas de ossadas para meire.
dogmas intolerantes e intran- um ser humano e ele ficará
amargurado com tantos res- Jacimeire é a garçonete do
sigentes. O grande trunfo da Setembrino. Mulata gostosa,
Igreja são, paradoxalmente, as tos mortais à sua disposição.
ela é mais que carinhosa no
trevas. Sem elas, a bonança Seriam os cães mais inteli- atendimento aos fregueses,
seria apenas um quadro do gentes que os homens? trazendo sempre junto com
Rembrandt num consultório - A busca pela felicidade o pedido um sorriso franco
psiquiátrico. é traumática, pois nos co- e um espírito alegre. Quando
Eu normalmente não loca frente a perguntas sem alguém pergunta seu nome
contraponho as assertivas de respostas. A violência, ao ela o fala todo: Jacimeire
Rildo, porque suas definições contrário, é pura, não preci- Francisca da Paz. Acho que
são, como ele próprio alega, sa de arquétipos, sem falar faz isso por gostar muito do
irrepreensíveis. E consiste que é ela quem gera milhões ‘Paz’ no fim. Nada mais cor-
nisso a diversão espinhosa de de empregos, de militares reto, já que sua exuberância
um bate-papo com ele. a jornalistas. Afinal, notícia acaba com qualquer conflito
- Tragédia maior, entre- ruim é que movimenta a entre bêbados mais alterados.
tanto, seria o sombrio clima imprensa. Alheia às loucuras dos
entre um casal impetuoso Para Rildo intolerância é a boêmios, ela trabalha com
num mundo sem violência. prima da ignorância. Moram indescritível préstimo e amor
Entre quatro paredes, o rapaz juntas e são muito compe- e isso confunde os incautos
não poderia nem segurar tentes em criar e cuidar da que acreditam que tal de-
com volúpia os cabelos de violência. Fazem isso com senvoltura possa ser algum
sua amada e muito menos grande esmero. flerte. Mas, que nada. É só
dar uns bons tapas em suas – Veja você que um solda- uma simpatia transbordante
ancas quando a sacanagem do é condecorado ao matar que sempre relaxa a fisio-
esquentasse. Em última duas pessoas, mas é execrado nomia rabugenta de alguns,
análise isso também está no se transar com alguém do que sempre traz esperança
rol de aberrações, de espan- mesmo sexo. A violência em algo melhor. Melhor que
camentos, ainda que consen- prevalece e ainda que lute o bolinho de carne de sol,
tidos. por seu país, nem ele próprio melhor que a tristeza de um
O mais interessante de vai saber quais são os ideais mundo confuso.
Rildo é que seus discursos pelos quais luta. Seus líderes – Que Paz maravilhosa...
são despolitizados, mas não dizem que é a luta pela de- Nesse ponto não há o que
são ocos. No caso em ques- mocracia. Mas o que se quer discordar dele.
tão não dá para acusar o ve- mesmo é a obtenção de ri-
lho como sendo um paladino quezas. Ou seja, quem é forte

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“Dê um pedaço de osso para
um cachorro e ele será feliz.
Dê toneladas de ossadas
para um ser humano e ele
ficará amargurado com
tantos restos mortais à sua
disposição.”

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Teoria Literária

Por que escrevo?

Henry Alfred Bugalho Hoje em dia, a última para esta turma. Mas, recen-
moda é criticar a aquisição temente, em vários artigos
henrybugalho@gmail.com
de “capital cultural”. que tenho lido pela internet,
algo semelhante tem sur-
gido, mas agora criticando
Antes, o alvo havia sido o hábito — extremamente
o capital puro e simples — burguês, como negar? — de
grana, bufunfa, prata, money. se escrever livros. “Os autores
Uma legião de esquerdistas, só escrevem para adquirir
de cunho marxista-leninista, capital cultural”, eles dizem.
se proliferou por países
subdesenvolvidos, execrando Tomei ciência deste
os males do capitalismo, a conceito pela primeira vez
exploração da mais-valia e a através da boca duma ami-
sociedade de classes. ga americana, mestranda
de Ciências Sociais, que me
A falência do socialismo explicou o que Bourdieu
foi um balde de água fria entendia por isto. A grosso

60 SAMIZDAT julho de 2008


60
modo, “capital social” é o autores buscam ao escreve- cultural!”
conhecimento, ou experiên- rem um livro? Acho que a primeira
cia ou relações que alguém intenção dum autor, a mais
possui de modo a permiti-lo genuína, a mais entranhada,
se destacar daqueles que não Sem dúvida, há uma fe-
tichização do livro. Aquela é tentar recriar as mesmas
possuem a mesma formação. impressões que ele teve ao
Este capital se divide em coisa, composta de páginas,
caracteres, signos, sentido, é ler um bom livro. Talvez o
três instâncias: 1 – inerente, que se passe na mente, talvez
aquele que nasce com um um universo à parte do nos-
so mundo cotidiano. Apesar até de maneira inconsciente,
indivíduo, ou é decorrente da dos escritores é causar nos
formação familiar; 2 – ob- de a escrita ser uma espécie
de instrumento de comuni- leitores aquela sensação: “eu
jetificado, que é aquilo que queria ter escrito este livro”.
pode ser possuído, enquanto cação — escrevemos cartas,
propriedade, como uma obra e-mails, cartazes, jornais, Isto não significa que os
de arte, um livro raro, ou revistas para comunicarmos autores tentam imitar formal
algo de grande valor cultural; algo a alguém, sendo que ou estilisticamente seus au-
e 3 – institucionalizado, que este alguém pode ser um tores favoritos, mas sim que,
decorre da legitimação de receptor direto, alguém que no interior de seus gostos e
instituições culturais, como conhecemos, ou um receptor predileções, eles gostariam
universidades, premiações, indireto, uma massa desco- de causar no leitor, através de
http://www.flickr.com/photos/josephrobertson/248621288/sizes/o/

títulos e demais honrarias. nhecida —, o livro ultrapassa palavras, o deslumbramento


esta função, ainda mais se que um dia tiveram através
Até onde percebo, o es- nos restringirmos aos limites da leitura.
critor se enquadraria nestas da ficção.
três categorias, pois a escrita A aquisição de capital cul-
depende de algo inerente, Um romance ou uma tural está atrelada ao ofício
o idioma no qual se escre- coleção de contos transmite literário do mesmo modo
ve, o talento para organizar uma mensagem, comunica que a aquisição de capital
sentenças, a capacidade de um sentido, mas vai além, está vinculada ao trabalho.
observação do mundo e sua visa algo que ultrapassa a Se não é vergonhoso ser
reprodução através da lite- mera comunicação. remunerado pela execução
ratura; depende também da O que este “além” significa dum trabalho, então por que
objetificação do livro, algo é motivo de debates acalo- o reconhecimento através da
físico, palpável, que pode ser rados através dos séculos; escrita seria?
comercializado, manuseado, uns dizem ser a transmissão
que traz na capa o nome do do Belo; outros, o estímulo Mas não é isto que motiva
autor, que o institui como de sensações e sentimentos; um escritor, pelo menos, não
criador e dono de seu conte- outros, a formação de senso deveria ser.
údo; por fim, também possui crítico ou a crítica da socie-
um caráter institucional, dade; outros, entretenimento.
pois o reconhecimento da As hipóteses e propostas são Se alguém me perguntas-
Academia é uma das grandes infindas, talvez tão nume- se: “por que você escreve?”, a
medidas de canonização dum rosas quanto os volumes de única resposta que eu po-
autor, a adoção de suas obras livros que já foram escritos deria dar, a mais sincera e
por uma Universidade, ou a na História da Humanidade. verdadeira, é: “porque gosto;
premiação em algum im- porque, acima de tudo, eu me
Eu, enquanto escritor, não
portante concurso literário, divirto muito”.
me recordo de, em momento
ou o recebimento de alguma
algum, eu me sentar diante E não há dinheiro ou
titulação de doutor honoris
do computador para escrever reconhecimento capaz de
causa.
um conto ou romance e ser superar esta sensação.
A aquisição de capital assolado pelo pensamento:
cultural faz parte do ofício “que beleza, vou adquirir
da escrita, mas é isto que os mais um pouco de capital

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Teoria Literária

TRÊS VERSOS
http://www.flickr.com/photos/pbouchard/2250272920/sizes/o/

Volmar Camargo Junior Há algum tempo, desde do qual apenas havia ouvido
v.camargo.junior@gmail.com que comecei a integrar esse falar.
grupo de escritores, auto-pro-
Depois disso, não parei
clamados “oficineiros”, entrei
mais. É claro que ainda não
em um irremediável proces-
fiz nada de extraordinário
so de auto-descobrimento
(muito pelo contrário, aliás)
literário. Entre as coisas que
Mas estou experimentando.
descobri em mim mesmo foi
O resultado dessas experi-
o quanto escrever poesia é
ências vem sendo publicado
gratificante. A primeira vez
aqui, na SAMIZDAT. São
que fiz um poema na vida
meus Laboratórios Poéticos.
foi para uma das atividades
da oficina: uma coletânea de Bem, continuei escrevendo
haicais. Para minha intei- haicai. Entretanto, eu sim-
ra satisfação, eu consegui plesmente não conseguia
escrever um haicai – que era, manter-me preso à singele-
aliás, um gênero de poesia za e às normas muito bem

62 SAMIZDAT julho de 2008


62
definidas que essa linguagem Os dez mandamentos do haicai
poética tão bonita (e tão an-
tiga) exige. Então, eu descobri (http://www.kakinet.com/caqui/dezmand.shtml)
o Poetrix. Ou melhor: eu
I - O Haicai é poema conciso, formado de 17 sílabas,
descobri que o que eu fazia,
ou melhor, sons, distribuídas em três versos (5-7-5), sem
pensando ser haicai, era, na
rima nem título e com o termo-de-estação do ano (kigô).
verdade, poetrix.
II - O kigô é a palavra que representa uma das quatro es-
Para tentar deixar claro tações, primavera, verão, outono e inverno; p. ex., IPÊ (flor
o que é um e o que é outro, de primavera), CALOR (fenômeno ambiental de verão),
dando como exemplo poe- LIBÉLULA (inseto de outono) e FESTA JUNINA (evento de
mas que eu mesmo escrevi, inverno).
tentarei expor abaixo as
III - Cada estação do ano tem o próprio caráter, do ponto
normas que fazem um haicai
de vista da sensibilidade do poeta; p. ex., Primavera (ale-
não ser um poetrix, e vice-
gria), Verão (vivacidade), Outono (melancolia) e inverno
versa.
(tranqüilidade).
IV - O haicai é poema que expressa fielmente a sensibili-
dade do autor. Por isso,
O haicai
respeitar a simplicidade;
Sobre a linguagem do hai- - evitar o “enfeite” de “termos poéticos”;
cai na História, pretendo tra- - captar um instante em seu núcleo de eternidade, ou
tar em outra oportunidade. melhor, um momento de transitoriedade;
Entretanto, vale ressaltar o
nome de duas pessoas essen- - evitar o raciocínio.
cialmente importantes para V - A métrica ideal do haicai é a seguinte: 5 sílabas no
a divulgação do haicai em primeiro verso, 7 no segundo e 5 no terceiro; mas não há
nosso país: Nempuku Sato e exigência rigorosa, obedecida a regra de não ultrapassar
Goga Masuda. O primeiro, 17 sílabas ao todo, e também não muito menos que isso.
um mestre desta forma de E a contagem das sílabas termina sempre na sílaba tônica
arte, foi o grande responsável da última palavra de cada verso.
pela cultura do haicai entre VI - O haicai é poemeto popular; por isso usa-se palavras
os imigrantes japoneses no quotidianas e de fácil compreensão.
Brasil – apesar de nunca ter
escrito poemas que não fos- VII - O dono do haicai é o próprio autor; por isso, deve-
sem em seu próprio idioma. se evitar imitação de qualquer forma, procurando sempre
O segundo, Goga Masuda, é a verdade do espírito haicaísta, que exige consciência e
discípulo de Nempuku Sato. realidade.
Possivelmente, é o respon- VIII - O haicaísta atento capta a instantaneidade, qual
sável pela divulgação dessa apertar o botão da câmera.
forma poética em terras
IX - O haicai é considerado como uma espécie de diálo-
brasileiras - não apenas para
go entre autor e apreciador; por isso, não se deve explicar
os imigrantes - seguindo a
tudo por tudo. A emoção ou a sensação sentida pelo
milenar tradição japonesa.
autor deve apenas sugerida, a fim de permitir ao leitor o
O texto abaixo, de autoria de
re-acontecer dessa emoção, para que ele possa concluir,
Masuda, é uma orientação
à sua maneira, o poema assim apresentado. Em outras
para o haicai tradicional.
palavras, o haicai não deve ser um poema discursivo e
*** acabado.

Um haicai, segundo minha X - O haicai é um produto de imaginação emanada da


pena (torta), tentando acom- sensibilidade do haicaísta; por isso, deve-se evitar expres-
panhar as diretrizes acima, é sões de causalidade, sentimentalismo vazio ou pieguice.
assim

www.samizdat-pt.blogspot.com 63
satírico. (...) No Manifesto
Orvalho noturno, Poetrix foram identificadas
Frio e geada - as suas principais caracterís-
Verso branco. ticas, que resultaram na atual
definição do novo vernáculo:
- possui apenas uma estrofe
No entanto, o primeiro de três versos, sem limite de
que escrevi, foi esse: sílabas (depois seria estabele-
cido o limite de 30 sílabas);
Flerte - o título é desejável, mas
não exigível, podendo com-
Roseira branca, plementar o texto (atualmen-
na cerca, ama o céu te, o título é uma exigência);
negro sem culpa.
- não existie rigor quanto
a métrica ou rimas (mas o
ritmo é desejável);
O POETRIX
- metáforas e outras figuras
O Poetrix é uma forma de linguagem, assim como
poética nascida aqui, no neologismos, são uma cons-
Brasil. Surgiu, à maneira dos tante no poetrix;
movimentos vanguardistas - geralmente há uma intera-
do Modernismo, com um ção autor/leitor provocada
manifesto. Seu idealizador, o por mensagens subliminares;
poeta baiano Goulart Go-
mes, é hoje o coordenador - é minimalista, ou seja,
do Movimento Internacional procurr transmitir a mais
Poetrix. Da mesma forma, completa mensagem em um
pretendo falar mais detida- menor número de palavras;
mente sobre a origem do
- passado, presente e futuro
Poetrix em um futuro pró-
podem ser utilizados sem
ximo. O texto abaixo consta
distinção;
na introdução do Volume 1
do Caderno Internacional de - o autor, as personagens e o
Poetrix, distribuído gratuita- fato observado podem inte-
mente na rede (http://www. ragir, mesmo criando condi-
zaz.com.br/virtualbooks/no- ções suprarreais, cômicas ou
valexandria/goulart/poetrix1. ilógicas (non sense).
htm)

Uns e outros
O Poetrix hoje
Uma inportante relação
POETRIX é um terceto entre os dois formatos foi
contemporâneo de temática trazida por Goulart nesta
livre, com título, ritmo e um mesma publicação, referida
máximo acima:
de trinta sílabas, possuin- “(...) POETRIX é, certamente,
do figuras de linguagem, de a primeira linguagem poética a
pensamento, tropos ou teor ganhar uma definição discutida
e elaborada pelos seus próprios
http://www.flickr.com/photos/himachal/858665751/sizes/o/

64 SAMIZDAT julho de 2008


64
praticantes – os poetrixtas – no
mundo virtual da internet. O
POETRIX foi proposto, inicial-
mente, como uma evidente
alternativa ao hai-kai, mantendo
a sua forma (em tercetos) mas
subvertendo o seu conteúdo, ao
admitir título, rimas, figuras de
linguagem e um maior número
de sílabas.”

Não estou querendo


defender um em detrimento
de outro. Aliás, muito pelo
contrário. Desde que conheci
o haicai, tenho-me esforçado
para conseguir criar um que
seja minimamente adequado
à tradição. E, da mesma for-
ma, tenho produzido alguns
poetrix, porque – talvez, é
uma suposição – meu pensa-
mento seja ocidental demais,
e demasiadamente atrelado
ao “querer dizer” dos idio-
mas românicos. Sobretudo o
português. Ainda mais, esse
português tupiniquim, nos-
tálgico, eclético, e (pelo que
sou muito grato) democráti-
co.
Fico muitíssimo satisfeito.

Para ler mais sobre haicai e poetrix, acesse:

Grêmio Haicai Ipê


http://www.kakinet.com/caqui/ipe.shtml

Biografia de Masuda Goga


http://www.kakinet.com/caqui/goga.shtml

Movimento Internacional Poetrix


http://www.movimentopoetrix.com/

Biografia de Goulart Gomes


http://recantodasletras.uol.com.br/autor.php?id=17739
http://www.flickr.com/photos/hogart/92289132/sizes/o/

www.samizdat-pt.blogspot.com 65
Crônica

bRASILEIROS NO EXTERIOR:

PATUSCADAS NO CAR

http://www.flickr.com/photos/stelling/65409814/sizes/l/

66 SAMIZDAT julho de 2008


66
O brasileiro no exterior se
torna um patriota. Mesmo
que tenha deixado o país
por haver amargado anos de
desemprego, ou por medo da

ARNEGIE HALL
violência, ou por vergonha
dos políticos, basta um ano
morando fora para se criar
uma visão fictícia do país.
Esquece-se de todas as ma-
zelas e o Brasil torna-se uma
Shangri-la.
Esta nostalgia impele os
Henry Alfred Bugalho brasileiros a perseguirem fa-
henrybugalho@gmail.com naticamente tudo que possui
alguma relação com o Brasil:
restaurantes, casas noturnas,
mercadinhos e, principal-
mente, a vinda de algum
artista famoso.
Assistir a algum show
dum artista brasileiro é a
justificação da existência
dos brasileiros no exterior,
a oportunidade para matar
a saudade do que nunca se
teve.
Recentemente, tive a opor-
tunidade de presenciar uma
destas agremiações.

A etiqueta da música
erudita

Não é preciso ser nenhum


gênio para se perceber, logo
na primeira experiência
com a música erudita, que
há uma etiqueta diferente
na hora de se apreciar um
concerto. Via de regra, não
se aplaude entre os movi-
mentos duma peça musical
— apenas no final —, nada de
assovios, gritos (excetuando
os Bravo! Bravo!) ou demais
arroubos de comportamento
característicos dos eventos
populares.
A música erudita foi

www.samizdat-pt.blogspot.com 67
consagrada pela aristocra- João Carlos Martins já era completa de Bach para tecla-
cia e burguesia européias uma figurinha carimbada do do. Quando sua outra mão
em contraposição às mani- cenário da música erudita há também ficou lesionada pelo
festações da praça pública. muito tempo. Considerado esforço, João foi obrigado a
Por isto, a reação também um dos maiores intérpretes abandonar o piano.
deve ser oposta, ao invés do de Bach, a carreira do pia- No entanto, este não é o
carnaval dionisíaco, a platéia nista foi brilhante, até que fim da história. Foi justamen-
dum concerto é uma mera os contratempos da vida a te neste momento em que
espectadora, ela vai ao teatro encerraram. Primeiro, João João Carlos Martins passou
para apreciar, não para fazer Carlos Martins perdeu o mo- a ser conhecido pelo públi-
parte da apresentação. vimento duma das mãos, ao co brasileiro. A sua história
se machucar jogando futebol de superação se tornou um
no Central Park; recuperou- ideal, um exemplo, e seu re-
A Atração se, voltou a tocar no auge de torno, posteriormente, como
sua forma; mas outro aci- regente, foi um novo apogeu.
Em maio, o Carnegie Hall dente, desta vez durante um
assalto na Bulgária, o fez per- Agora, não como pianista,
recebeu uma atração muito
der novamente o movimento mas como maestro, João Car-
especial: após uma década,
na mão. Isto não o impediu los Martins se apresentaria
João Carlos Martins voltava a
de terminar o seu projeto de no Carnegie Hall.
se apresentar no mais cele-
brado teatro do mundo. vida — a gravação da obra

68 SAMIZDAT julho de 2008


68
A Platéia agravante. na platéia observavam tudo
Este fato era o suficiente estarrecidos, sem compreen-
Dada a sua reputação para antecipar o óbvio — der bulhufas daquele carnaval.
internacional como concertis- aplausos na hora errada, gente Além disto, uma das
ta, imaginei que o público se indo embora antes do fim, principais atrações era uma
comporia, principalmente, de sessão de fotografia coletiva rápida corrida às primeiras
americanos. Mas logo na fila entre as poltronas, o que leva- filas para a bajulação obriga-
de entrada, já se va as funcioná- tória do global Marcos Frotas,
ouvia português “...a platéia dum rias do teatro que havia vindo prestigiar o
por todos os lados. concerto é uma ao desespero, concerto do amigo.
Obviamente, o
show seria dado
mera espectadora, na tentativa de Numa única noite, os
se fazer vale
para (e pelos) bra- ela vai ao teatro a advertência
brasileiros haviam consegui-
do quebrar todas as regras
zucas. para apreciar, não enorme de “No de etiqueta dum concerto de
Acontece que, para fazer parte da Photos” pro- música erudita. E com grande
algumas semanas jetada sobre
antes, João Carlos
apresentação.” o palco —,
estilo, pois não é todo dia que
se pode usar o Carnegie Hall
Martins havia es- mas nada nos pra isto.
tado no programa do Faustão poderia preparar para o me-
http://img.olhares.com/data/big/107/1079721.jpg

e mencionara seu concerto nos óbvio, como um celular


em Nova York. Assim, talvez tocando no meio da interpre-
pela primeira vez na Histó- tação dum Piazzola, ou como
ria, o Carnegie Hall estava toda a platéia se levantando,
abarrotado de pessoas que só mão sobre o coração, cho-
haviam ouvido Beethoven no rando, enquanto João Carlos
auto-falante do caminhão de Martins regia um arranjo do
gás e Mozart no comercial do hino nacional e alguém, nos
desodorante Vinólia. Talvez balcões superiores, balançava
o preço da entrada — dois uma bandeira do Brasil!
dólares — tenha sido um Os poucos não-brasileiros

http://www.flickr.com/photos/digitalink/24052775/sizes/o/

www.samizdat-pt.blogspot.com 69
Poesia

TEATRO
DE
MÁSCARAS
Carlos Alberto Barros
carloseducador@hotmail.com

Dirijo um teatro de máscaras.


Nele, sou o ator principal.
Meu palco é o além-eu.
Minha máscara é o plural imperfeito,
O incerto transmutável.

Se desejo-me poeta, sou tristeza.


Se almejo a tristeza, sou negligência.
Se busco a negligência, sou sorriso.
E se quero só um sorriso, eu garga-
lho!

Oh, máscara da morte,


Que veste a máscara da vida,
Que veste a máscara do simples,
Que veste a do complexo,

Antes que me deixe nua a face


Com tuas incógnitas cores,
Permita-me encenar o grande final
Portando a mais bela,
Aquela que é incondicional e plena,
Absoluta e irreversível:
A máscara do amor.
Aliás,
Será uma máscara?

http://www.flickr.com/photos/afsilva/304414484/sizes/o/

70 SAMIZDAT julho de 2008


70
UTOPIA Frederico Galhardo
Nascido em Curitiba, cursou dois
anos de jornalismo. Trabalha
atualmente (e talvez para todo o
sempre) numa livraria. Ocasio-
nalmente, redige artigos para um
jornal comunitário, para e-zines e
para serem escondidos na gaveta.
http://www.flickr.com/photos/chrisjones/12913665/sizes/l/

Flanei pelas ruas, buscando sei lá o quê.


Nas vitrinas, consumo e cores.
Nas calçadas, panfletos e bitucas de cigarro.
Seres anônimos passaram por mim, semblantes sérios, passos apressados.
Escravos das horas, servos do trabalho.
Eu, um vagabundo nauseabundo os invejei,
Sempre tão ocupados, sempre em cima da hora, sempre indo para algum lugar.
Meu ócio me envergonhou e, num banco de praça, ocioso me envergonhei.
Depois, em casa, deite-me, ronquei, babei, sonhei.
Com um mundo desocupado sonhei, todos poetas e filósofos
Contempladores do universo, sem relógios nem rugas de preocupação.
Apenas o tempo a passar sem que ninguém se preocupe com ele
E a vida a ser vivida sem que por ela dessem conta.

Vagabundo vaguei pelas vielas do sonho,


E lá encontrei sei lá o quê.

www.samizdat-pt.blogspot.com 71
Poesia

LABORATÓRIO POÉTICO iii

Fotografia

Poetrix
— Sai daí, pobrinho!
Está estragando
A paisagem da Serra.
Volmar Camargo Junior
v.camargo.junior@gmail.com

Reveillon

- Saúde e paz!
(...e que um raio te parta,
filho da puta!)

Sacrifício Morto vivo

Os dentes brancos rasgam a pele branca. Ninguém vivo,


Brota abundante o vermelho. Morto, é ninguém.
Primeiro do homem, depois do cachorro.
Morto, vivo.

72 SAMIZDAT julho de 2008


72
Junho
Estúpido tenho sido
Em tudo perdido
Estudo erudito
És tudo.

Antes
Na contramão.
Outrora infantes,
Ora entendem, ora não.

Grandes coisas feias


Miúdas e caras
Caras e bocas
Olho.

Olho
Todos sérios,
Calados, sisudos.
Adultos ministérios.

Professo o temporal
Protesto, é claro!
Preciso, claro,
Natural.

Porque
É mês de Junho,
E está ficando frio
E ainda não é inverno.

Por que é mês de Junho?


Volmar Camargo Junior
http://www.flickr.com/photos/lhattori/599423291/sizes/l/

Por que é inverno?

Poesia
Por que é frio?
Porque é.

Esquece.
Levanta daí,

concreta
Porque eu ainda
Tenho que arrumar tudo.

É São João!

www.samizdat-pt.blogspot.com 73
Poesia
Contabilidade

Calculo que sonhes


Sonho não é cálculo
É salto!

Ilusão

Início e fim
Errado que te toca

José Espírito Santo Rabo de minhoca

Último vôo

Dura folha
POETRIX

Queda esquecida
Outono de vida

Indecisão

Atenta reflexão
Alavanca que morre parada
Entre Sim e Não e Nada

Três

O Um
O Dois
O que vem depois

http://www.flickr.com/photos/twose/301833984/sizes/o/

74 SAMIZDAT julho de 2008


74
I. MORTE
Por vezes me pergunto
Se a falta que sinto
É mesmo do que já não tenho
Ou da parte de mim
Que um dia supus eterna
E agora não recupero

MOMENTOS
Por mais que tente
Persiga, imagine, invente

Constato a pura perda


http://www.flickr.com/photos/stevelevi/854897365/sizes/o/

Já por mim viva assim não espero


Foi-se o tempo
Marcia Szajnbok Perdeu-se sonho
marciasz@hotmail.com Tornou-se o que fui
Silente

Declaro-me a partir deste instante


Condenada
Ao exílio de mim
Eternamente.

II. VIDA
Tempo é trem que segue adiante
Sem paradas, estações, descansos.
Leva corpos, letras e sonhos.
Sobrepõe lembranças ,
Imagens quebradas e enganos.

Memória é ponto fugidio que escapa à reta,


Transgressão que ilude a alma.
Rompe a seqüência esperada dos impulsos,
Subverte ponteiros e areias,
Desperta espectros de sentimentos insepultos.

Saudade é ausência que deixa no íntimo


Pegadas de lugares, datas, pessoas.
Momentos de dor ou plenitude
Que alongam o tempo,
Contorcem horas, alteram mapas.
Cede às cores o vazio monocromático
De um presente solitário.

Mas o amor...
O amor não tem tempo.
O amor não tem memória.
O amor faz da saudade, alimento.

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Links desta edição


Ligações
Sites ou páginas pessoais: José Espírito Santo
http://www.riodeescrita.blogspot.com/

Carlos Alberto Barros


Leo Borges
http://desnome.blogspot.com
http://recantodasletras.uol.com.br/autor.
php?id=19246
Giselle Natsu Sato
http://www.trilhasdaimensidao.prosaeverso. Pedro Faria
net/ http://civilizadoselvagem.blogspot.com/

Henry Alfred Bugalho Revista SAMIZDAT


www.maosdevaca.com
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76 SAMIZDAT julho de 2008


76
Sven Geier
http://www.sgeier.net/fractals/

Volmar Camargo Junior


http://recantodasletras.uol.com.br/autores/vcj

Referências:
Biblioteca Virtual - Literatura
http://biblio.tempsite.ws/defaultz.asp?link=http://
biblio.tempsite.ws/conteudo/AluizioAzevedo/
politipo.htm

Flickr
http://www.flickr.com/

Marxists Internet Archive


http://www.marxists.org/

Wikipédia
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Fotos e ilustrações:
Flickr
Capa: http://www.flickr.com/photos/mazintosh/2104768410/
Idéias: http://www.flickr.com/photos/caribb/1561876135/sizes/o/
A Beca do Morto: http://www.flickr.com/photos/woylee/1137932049/sizes/o/
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O Medo do Livro http://www.flickr.com/photos/melanieburger/1451941259/sizes/o/
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Lucas, O Menino Binário http://www.msgraphix.com/Wallpaper/Binary/Binary1024x768.jpg
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O Convite http://www.reuther.wayne.edu/faces/evicted.jpg
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Capítulos 1 http://www.flickr.com/photos/aromma/189378446/sizes/l/
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O Autor dos Passos http://www.flickr.com/photos/annalisa/74229400/sizes/o/
O País http://www.flickr.com/photos/missmareck/2193567123/sizes/l/
Caiu a Sombra http://www.flickr.com/photos/ableman/1884813924/sizes/o/
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O Templo dos Sorrisos http://www.flickr.com/photos/diogro/146406821/sizes/l/
O Bicho-Papão http://www.flickr.com/photos/romeo66/2431660788/sizes/o/
Diário dum Louco http://www.flickr.com/photos/hinaet/210499966/sizes/o/
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Hu Shi http://www.theeastisred.com/images/posters/PIC%2000180.jpg
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A Única Paz Possível é a Jacimeire http://www.flickr.com/photos/marianafaria/2438289318/sizes/l/

Por que escrevo? http://www.flickr.com/photos/josephrobertson/248621288/sizes/o/


Três Versos http://www.flickr.com/photos/pbouchard/2250272920/sizes/o/
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http://www.flickr.com/photos/hogart/92289132/sizes/o/
Patuscada no Carnegie Hall http://www.flickr.com/photos/stelling/65409814/sizes/l/
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Teatro de Máscaras http://www.flickr.com/photos/afsilva/304414484/sizes/o/
Utopia http://www.flickr.com/photos/chrisjones/12913665/sizes/l/
Poesia Cnncreta http://www.flickr.com/photos/lhattori/599423291/sizes/l/
Poetrix http://www.flickr.com/photos/twose/301833984/sizes/o/
Dois Momentos http://www.flickr.com/photos/stevelevi/854897365/sizes/o/
Sobre os Autores http://www.labnews.co.uk/cms_images/Image/
March_2/318239_4385web.gif
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http://www.labnews.co.uk/cms_images/Image/March_2/318239_4385web.gif

78 SAMIZDAT julho de 2008


78
DA DA
S
RE

T
TO
AU
IZ
S
O
E

M
BR
SO

SA
B R E O S AU TO R E S D A
S O

SAMIZDAT
SOBRE OS AUT
ORES DA

SAMIZDAT
SOBRE OS AUTORES DA

SAMIZDAT

SOBRE
OS AU
TORES
SAMIZ DA

DAT www.samizdat-pt.blogspot.com 79
79
Alian Moroz
Formado em Matemática pela
UFPR,lecionou durante 20 anos. For-
mado ainda pela Faculdade de Belas
Artes do Paraná em Licenciatura em
Desenho,trabalhou junto a Estúdios de pro-
paganda e no setor editorial. Historiador e
Filósofo amador, venceu em 2006 o Prèmio
‘Destaque cultural’ promovido pela secre-
taria de Cultura de Curitiba com o livro ‘
Desvendando a História e os mitos Bíblicos’.
Lançou em 2007 a primeira edição de ‘ O Manuscrito XXXII’,
seu primeiro
romance , pela Editora Corifeu. Poeta e músico nas horas vagas,
têm como
principais influências,Umberto Eco e Luis Fernando Veríssimo.

alian.moroz@hotmail.com

s
erto Barro nhis-
Carlos Alb e n o r d e s t inos, dese
, filho d o formado,
Paulistano t i s ta plástic o
ta desde s
emp r e , a r sional com
e ç o u s u a vida profis e u r a s -
Com ixou s
escritor. s d e e n tão, já de u r a i s ,
, d e s Cu l t
educador e E s c o l a s e Centro a g ó g i -
G’ s , cos e p e d
tro por ON s a r t í s t i
ia
trabalho te influênc
através de c i a s q ue têm for n i z a
r i ê n te, o r g a
cos – expe r i t o s . Atualmen e s t uda
e s c criança s ,
sobre seus ç ã o p a r a
screve
ilustra a Arte e e
oficinas de i s t ó r i a d
ção em H
pós-gradua nternet.
r a p u b l i c ações na i
pa
il.com
ador@hotma
carloseduc ot.com
t p : / / d e s n ome.blogsp
ht

Giselle Sato
Giselle se autodefine apenas como uma contadora de his-
tórias carioca. Estudou Belas Artes e foi comissária de bordo
— cargo em que não fez muita arte, esperamos. Adora viajar
(felizmente!) e fala alguns idiomas.
Atualmente se diverte com a literatura, participando de
concursos e escrevendo para diversos sites pela net. Gosta de
retratar a realidade, dedicando-se a textos fortes que chegam
a chocar pelos detalhes, funcionando como um eficiente pa-
norama da sociedade em que vivemos, principalmente daquilo que é
comumente jogado
para baixo do tapete pelos veículos de comunicação.
gisellesato@superig.com.br
http://www.trilhasdaimensidao.prosaeverso.net/

o
Henry Alfred Bugalh
a pela UFPR, com
É formado em Filosofi ra e
pecialista em Literatu
http://bonfireblaze.files.wordpress.com/2007/12/grafiti_wall.jpg

ênfase em Estética. Es e de du as
atro romances
História. Autor de qu
.
coletâneas de contos
Nova York, com sua
Mora, atualmente, em
sua cachorrinha.
esposa Denise e Bia,
.com
henrybugalho@gmail
www.maosdevaca.com

80 SAMIZDAT julho de 2008


80
José Espírito Santo
Informático com licenciatura e pós
graduação na Faculdade de Ciências
da
Universidade de Lisboa, trabalha há
largos
anos em formação e consultoria, send
o
especialista em Bases de Dados, Siste
mas
de Gestão Transaccional e Middleware
de
“Messaging”. A paixão pela escrita surg
iu
recentemente, tendo no ano de 200
7
produzido os livros “Esboços” (contos)
e
“Onde termina esta praia” (poesia).
Vive
com a família em Portugal em Alverca,
uma pequena cidade um pouco a nort
Lisboa. e de

jjsanto@gmail.com
http://www.riodeescrita.blogspot.com
/

Marcia Szajnbok
Médica formada pela Facul-
dade de Medicina da Univer-
sidade de São Paulo, trabalha
como psiquiatra e psicanalista.
Apaixonada por literatura e lín-
guas estrangeiras, lê sempre que
pode e brinca de escrever de vez Pedro Faria
em quando. Paulistana convicta, Estuda Matemática na Univer-
lo.
vive desde sempre em São Pau sidade Estadual do Rio de Janeiro,
músico amador e escritor quando
marciasz@hotmail.com dá na telha. Nascido e criado no
Rio.

punksterbass@hotmail.com
http://civilizadoselvagem.blogspot.com/

Volmar Camargo Ju
nior é gaúcho. Form
em Letras pela Unive ado
rsidade de Cruz Alta,
leciona por sua próp nã o
ria vontade. Entrou na
em 2004, e desde en ECT
tão já morou em meia
de “Pereirópolis” pelo dúzia
Rio Grande. Atualm
vive com a esposa Na ente
tascha em Canela, na
Gaúcha. Dividem o ap Serra
artamento com Marie,
uma gata voluntario
sa e cínica.

v.camargo.junior@gm
http://recantodasletra ail.com
s.uol.com.br/autores/v
cj

www.samizdat-pt.blogspot.com 81
Também nesta edição,
textos de

Alian Moroz Hu Shi

Aluísio Azevedo Leo Borges

Carlos Alberto José Espírito Santo


Barros

Marcia Szajnbok
Giselle Natsu Sato

Pedro Faria
Henry Alfred
Bugalho
Volmar Camargo
Junior

82 SAMIZDAT julho de 2008


82

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