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Universidade de Brasília

Instituto de Ciências Humanas


Departamento de Filosofia
Tópicos Especiais de Filosofia Política

JOSÉ VICTOR RODRIGUES STEMLER

AVALIAÇÃO FINAL

BRASÍLIA – DF
2019
Tema 1.

Comente, relacionando-os, os trechos abaixo, levando em conta os conceitos centrais que definem a
ideologia liberal:

a) “O tema deste ensaio não é o assim chamado livre arbítrio (…); mas sim a liberdade civil, ou
liberdade social; a natureza e os limites do poder que pode ser legitimamente exercido pela sociedade
sobre o indivíduo”. (...) “Há um limite para a interferência legítima da opinião coletiva na
independência do indivíduo; encontrar esse limite, e defendê-lo de interferências, é tão indispensável
à boa condição das questões humanas quanto a proteção contra o despotismo político”. (John Stuart
Mill, Sobre a liberdade).

b) “(...) o poder político sempre é poder coercitivo baseado no uso que o Estado faz das sanções; pois
só o Estado tem autoridade para usar a força a fim de impor suas leis. (...) Isso levanta a questão da
legitimidade da estrutura geral da autoridade (...). O pano de fundo dessa questão é que, como sempre,
vemos os cidadãos como razoáveis e racionais, bem como livres e iguais, e também vemos a
diversidade de doutrinas religiosas, filosóficas e morais razoáveis, encontradas em sociedades
democráticas, como uma característica permanente de sua cultura pública. Dado isso, e considerando-
se o poder político como o poder dos cidadãos como um corpo coletivo, perguntamos: quando esse
poder é apropriadamente exercido? (...) A essa pergunta, o liberalismo político responde: nosso
exercício de poder político é inteiramente apropriado somente quando está de acordo com uma
constituição, cujos elementos essenciais se pode razoavelmente esperar que todos os cidadãos, em sua
condição de livres e iguais, endossam à luz de princípios e ideais aceitáveis para sua razão humana
comum. Esse é o princípio liberal de legitimidade.” (John Rawls, Liberalismo Político, p. 181-182)
Em Liberalismo Político, Rawls tenta demarcar mais claramente à autonomia política (ou
ética), enquanto continua insistindo que o liberalismo político inclui apenas a primeira. Prossegue
admitindo que a capacidade para uma concepção de bem é um componente moral da justiça enquanto
justiça, como indicado no contraste estabelecido entre "os valores morais de uma doutrina abrangente
e os valores políticos e morais de uma concepção política”. O liberalismo político respeita a autonomia
política que faz-se a independência legal e a integridade política garantida dos cidadãos, mas é incapaz
de endossar a autonomia moral que perfaz o ato crítico ao examinar nossos fins e ideais mais
profundos.

Além disto, sem o amplo exercício da autonomia moral individual, o pluralismo das sociedades
ocidentais modernas não seria extinguível. Como indica sua estipulação do relevante potencial da
pessoalidade, Rawls prevê concepções de bem que desenvolvem-se e, possivelmente, aglutinam-se ou
são abandonadas a um nível individual, e não corporativo. O liberalismo político imagina que cada
indivíduo seja igualmente livre para conceber e revisar tais concepções: as concepções do bem não são
desenvolvidas por igrejas, escolas, famílias, grupos, e então simplesmente transmitidas mediante ação
osmótica a seus membros individuais. Esse tipo de transmissão pode, é claro, ocorrer em uma
sociedade livre, mas a clara implicação da posição de Rawls é que a adesão contínua a qualquer
concepção corporativa do bem deve ser voluntária e sujeita à própria consciência do indivíduo. Um
forte compromisso com a autonomia moral individual está, portanto, embutido não apenas na própria
ideia de Rawls de pessoalidade, mas também na condição mais ampla de pluralismo a que o liberalismo
político responde.

Já a concepção de Mill sobre a pessoa não é puramente política: pelo contrário, ele invoca o
ideal da natureza humana como tendo o potencial de estar em constante estado de desenvolvimento
para criticar e, espera-se, reformar a cultura política de seu tempo que, por seu diagnóstico, exibiu
fortes tendências em direção à conformidade, mediocridade e marasmo. Mill buscou uma atmosfera
política e cultural que permitisse, àqueles que desejassem, desenvolver sua individualidade; talvez, até
mesmo, uma atmosfera em que isso fosse encorajado. Mas, em fato, aceitou que alguns, e talvez
muitos, não aproveitassem essa oportunidade e tentassem apelar para seu senso de interesse próprio
para tolerar aquilo que beneficia os outros. A defesa da individualidade de Mill está a serviço da
diversidade, e não como uma ameaça a ela. Deste modo, para relacionar-se com justeza à natureza de
cada um, é essencial que diferentes indivíduos possam desenvolver vivências distintas. Ele compartilha
o objetivo de Rawls de proteger a diversidade razoável - diferenças em estilos de vida e crenças que
não causam danos aos outros.
O compromisso de Mill com a autonomia individual não supera seu compromisso com a
diversidade, assim como sua doutrina moral e política o impede de exigir que todos os indivíduos
subscrevam uma única concepção do bem ou um único modo de se relacionar com seus valores e
crenças. Seu argumento correlato ao poder do Estado também garante que a diversidade floresceria em
um estado como concebido por ele. Sua admiração pela autonomia não o levou a sugerir que o Estado
necessariamente a imponha. Ao contrário, ele temia que um Estado muito poderoso abusasse de seu
poder, impondo uniformidade, espalhando conformidade e sufocando à individualidade.

Rawls e Mill têm visões similares sobre a autonomia, e ambos argumentam que o Estado não
deve impor um modo particular de vida aos cidadãos. Mas uma diferença importante entre eles, que
Rawls não nota diretamente, é como eles veem a relação entre a justiça e Estado. Mill claramente
queria que o estado ajudasse na construção de dadas metas políticas, mas seu receio para com o excesso
de poder estatal concentrado levou-o a argumentar que o Estado deveria ter um papel importante, mas
limitado. O estado deve impor um aspecto central da justiça, protegendo os direitos dos cidadãos. Mas
Mill deixou claro que nem todo aspecto da justiça é uma questão de coerção estatal.

Em contrapartida, Rawls tem um papel mais expansivo para o Estado na imposição da justiça.
A concepção política de justiça de Rawls não estrutura como os indivíduos tratam uns aos outros, mas
aplica-se à estrutura básica de uma sociedade. A estrutura básica inclui as principais instituições da
sociedade: seus arranjos constitucionais, instituições econômicas, a família e seu aparato legal. Quando
Rawls declara que a justiça é a “primeira virtude das instituições como a verdade é para os sistemas
racionais”, ele concentra nossa atenção na ideia de que em uma sociedade bem ordenada, a justiça
emana da estrutura básica. Quando os cidadãos se imaginam na posição original, seus julgamentos
acertados os levarão a concordar com os princípios de justiça. Contudo, em suas ações cotidianas, eles
frequentemente guiar-se-ão pelo interesse próprio. Para Rawls, isso é aceitável e compreensível: ter
que pensar constantemente sobre justiça em todas as ações seria exaustivo. Como as instituições da
estrutura básica garantirão a justiça, os cidadãos não precisam ser guiados pelos ditames da justiça nas
ações e interações cotidianas. É somente quando esses princípios precisam ser ajustados que os
cidadãos precisam refletir sobre o significado da justiça. As instituições da estrutura básica têm regras
que devem ser obedecidas, para que a justiça possa ser alcançada. Imbuída à estrutura básica, a justiça
também se torna uma questão de coerção.

Rawls sugere que a disjunção entre os juízos das pessoas e suas ações cotidianas é bastante
pequena, uma vez que a maioria dos cidadãos vê a justiça como justiça para si mesmos. Tal fato não
resume-se à suposta concordância dos cidadãos com os princípios da justiça de forma abstrata, mas,
institui que quando vivem sob um sistema justo, naturalmente tornam-se resistentes às tendências
normais à injustiça. Viver sob instituições justas os influenciará a querer agir de maneira justa, tanto
como de um modo razoável e racional nas interações basilares.

A insistência de Mill na proteção de direitos como um dever fundamental do Estado não exaure
sua visão do papel do Estado ou da justiça. No que ele chama de ‘estados civilizados’, havia muitas
questões que não atinavam imediatamente ao direto, mas o Estado poderia intervir como uma resolução
puramente política. Ele diz que a ação do governo guia-se pelo benefício da comunidade em si, mas
claramente achava que era preciso equilibrar os ditames da liberdade individual e da diversidade, de
um lado, com a necessidade de garantir a justiça do outro. Mill também achava que havia questões de
justiça nas quais o Estado não deveria intervir. Podemos desaprovar o comportamento injusto e
podemos tentar usar a opinião pública para olhar e repudiar severamente à injustiça, mas há limites
para o que o Estado deveria aplicar. Isto posto, Mill dispõe que a justiça é também uma questão de
interação entre os cidadãos e não apenas parte do que Rawls chama de estrutura básica. Os pontos de
vista de Mill sobre como a justiça evolui para além do estado são melhor visualizados através de suas
visões sobre o progresso. Ele achava que o progresso permitiria que a justiça aumentasse seu escopo
de ação.

O estado instituir-se-ia o papel de encorajar tal progresso, mas não deveria aplicá-lo
coercitivamente. Isso não é apenas porque Mill queria que o poder estatal fosse limitado, mas também
porque as pessoas progrediriam quando estivessem efetivamente prontas. Isso aconteceria
organicamente, alterando a visão das pessoas sobre a justiça e o bem comum e as instituições que
habitavam e sob as quais conviviam. A cooperação e o progresso se expandiriam lentamente, à medida
que os indivíduos se movessem para um plano moral mais elevado. À medida que o progresso
continuasse, mais pessoas seriam conduzidas mais pelo bem comum do que pelo interesse próprio.
Mill estava confiante de que os horizontes individuais se expandiriam para além do interesse pessoal,
embora não tivesse certeza de quanto do interesse próprio poderia ser superado - só o tempo diria. Por
mais expansiva que seja a doutrina moral de Mill, sua concepção política de justiça é relativamente
estreita. A justiça certamente foi além do que Rawls chama de estrutura básica, mas Mill concedeu
apenas um papel limitado ao Estado ao impor justiça. Quaisquer que sejam os problemas com essa
visão progressista da história, sua presença em seu pensamento ajuda a explicar porque Mill não confia
demais no Estado para promover e impor a justiça.

Rawls acha que Mill depende muito de uma psicologia moral baseada em uma visão otimista
do progresso e não o suficiente em instituições que reforçam à justiça. Quando a justiça é incorporada
e reforçada através das instituições do Estado, ela assume um papel educativo. Essa é uma grande parte
da diferença entre Mill e Rawls: quando Rawls pensa em justiça, ele procura instituições para impô-
la; quando Mill pensa em justiça, pensa em instituições estatais em algum grau, mas em estados
democráticos "civilizados", a justiça está entrelaçada com o progresso e repousa de maneira importante
numa psicologia moral baseada num virtuoso círculo de cooperação entre os cidadãos.

A versão de Rawls do liberalismo político nem sempre difere tão dramaticamente do suposto
liberalismo de Mill como o próprio Rawls sugere. Mesmo depois de sua putativa virada política, Rawls
tem uma visão semelhante a Mill sobre a importância da autonomia, ainda que abrigue uma visão mais
abrangente do Estado do que Mill e exija mais concordância dos cidadãos sobre o conteúdo da justiça.
Mill desconfia mais do poder do Estado do que Rawls e não coloca a justiça como ponto focal da
denominada estrutura básica. Ao ponto em que Rawls está demasiadamente seguro para assumir que
o acordo sobre a justiça distributiva é possível, Mill é otimista demais sobre como a justiça será
abarcada pelos ventos ascendentes do progresso moral. Rawls observa que os princípios de Mill podem
parecer uma visão excessivamente otimista da nossa natureza.

Parte da diferença entre Rawls e Mill deve-se às questões que fazem. Mill pergunta: dadas as
incríveis pressões para se conformar e a diminuição alarmante da diversidade, como podemos
estruturar a sociedade para estimular o pluralismo e a individualidade? Enquanto Rawls pergunta: dado
o vasto pluralismo das democracias modernas, como as pessoas que discordam sobre o que é bom na
vida concordam com uma concepção de justiça política? A questão de Rawls leva-o a defender a
importância de uma concepção compartilhada de justiça dentro do estado e dentro do que ele chama
de estrutura básica. A pergunta de Mill o leva a precisar que o Estado garanta que as condições básicas
de justiça estejam em vigor (protegendo os direitos), mas também que se desconfie de muito poder
estatal, o que ele preocupa impor demasiada uniformidade aos cidadãos.

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