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Percepção do Espaço 1.

O presente artigo resulta, em


grande parte, da pesquisa de
mestrado defendida em 2014

Geográfico nos
em Geografia por Márcio José
Mendonça, sob a orientação
do professor Luis Carlos Tosta
dos Reis. A análise apresentada

Quadrinhos1
neste artigo é complementada
em artigo publicado pelos
autores na Revista Geo, da UERJ
(MENDONÇA, REIS, 2015)

 Márcio José Mendonça2


Universidade Federal do Espírito Santo
Dr. Luis Carlos Tosta dos Reis3
Universidade Federal do Espírito Santo
2. Doutorando pelo Programa
de Pós-graduação em Geografia
da Universidade Federal do
Espírito Santo

3. Prof. Dr. do Depto e do


Resumo: Oferece uma análise de como há uma espécie de percepção do espaço geográfico Programa de Pós-graduação
nas histórias em quadrinhos, não apenas pela disposição da linguagem visual e da linguagem em Geografia da Universidade
textual unificada nos quadrinhos, que configuram uma sequência narrativa disposta em Federal do Espírito Santo
cenas que transparecem noções espaciais. Além disso, argumenta que o que podemos
chamar de espaço geográfico nos quadrinhos, no que se refere a uma percepção espacial
de diferentes lugares, dá-se pela relação entre os personagens e os seus mundos através das
ações que os personagens desempenham em diferentes lugares. Quadrinhos fecundamente
expressam a sua forma, uma percepção de objetos espaciais, seus significados, e mesmo, a
organização espacial como uma síntese do lugar pela distribuição de cenas em diferentes
perspectivas de visão.

Palavras-chave: Quadrinhos; Personagens; Cenário; Percepção; Espaço Geográfico.

Abstract: Offers an analysis of how there is a kind of perception of geographic space in the
comics, not just the disposition of a unified visual and textual language in comics, which
shapes a narrative sequence disposed in scenes that present spatial notions. Furthermore,
argues that what we call geographic space in the comics, which refers to a spatial perception
of different places, is given by the relationship between the characters and their worlds by
the actions performed by the characters in different places. Comics fruitfully express their
style, a perception of space objects, their meanings, and even the spatial organization as a
synthesis of the place for the distribution of scenes from different perspectives of vision.

Keywords: Comics; Characters; Scenario; Perception; Geographic Space.

Introdução em Geografia, através da forma que


Neste texto, procura-se qualificar as histórias em quadrinhos expressam
melhor algumas ideias anteriormente uma organização espacial. A percepção
desenvolvidas em trabalho acadêmico espacial nos quadrinhos é possível pela
desenvolvido na Universidade Federal do compreensão da forma que o cenário
Espírito Santo (MENDONÇA, 2014). geográfico é revelado ao leitor. O cenário
Defende-se, aqui, que podemos ter uma nos quadrinhos é sobremodo saliente
percepção espacial inteligível ao estudo ao leitor ao deliberar uma sequência de

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cenas, em que os personagens assumem que os protagonistas desempenham
papel preponderante, urdindo os espaços em diferentes lugares. A construção
e conferindo sentido à narrativa. Histórias de um mundo dotado de significados
em quadrinhos são, nesse sentido, geográficos pela linguagem dos
mais do que simples narrativas, pois quadrinhos, que associa o elemento
revelam também espaços habitados por textual e o visual de forma unificada
personagens que transparecem cenários de se evidencia, desse modo, por uma
grande profundidade visual e expressam percepção espacial, na qual, constatamos,
significados. os quadrinhos proporcionam uma visão
Os personagens dos quadrinhos vertical-tridimensional do cenário. Essa
constroem o seu mundo conferindo percepção do mundo dos personagens em
significado espacial aos lugares por quadrinhos é revelada pelas suas ações,
meio suas ações, revelando, assim, uma mas também é condicionada pelos planos
paisagem, ou em outras palavras, um espaço de visão da narrativa.
geográfico em que podemos notar objetos Assim, pretende-se, utilizando-
e seus significados, que remetem a uma se destes trabalhos, oferecer uma
síntese espacial dos lugares representados, compreensão da percepção do espaço
sejam eles ficcionais ou não. Percebemos, geográfico nos quadrinhos, que possibilite
desse modo, conjuntos de elementos à Geografia explorar os quadrinhos
visuais e expressões nos quadrinhos que como fonte de pesquisa, demonstrando,
influenciam a maneira cognocente com assim, a viabilidade destas fontes para
que interpretamos e vemos o seu mundo. oferecer leituras espaciais, seja ficcionais
De outro modo, constatamos também, ou não. Para isso, no primeiro momento,
que podemos aprender com eles, uma vez oferece-se uma discussão da percepção
que, não necessariamente, são sujeitos à espacial nos quadrinhos que enfatiza
produção de falsificações. Quadrinhos o papel dos personagens na criação de
podem oferecer leituras valiosas quando mundos geográficos, enfocando a forma
são capazes de transmitir significados ou como os personagens ressignificam ou
saberes de outros lugares. criam uma percepção espacial por meio
Para demonstrar isso, associam-se de suas ações. O segundo item, por sua
diferentes pesquisas sobre a dimensão vez, problematiza, a partir disso, que
espacial nas histórias em quadrinhos, a relação entre os personagens e o seu
utilizando-se de trabalhos de cartunistas mundo está diretamente relacionada
e pesquisadores da área, bem como de à criação de um mundo geográfico de
geógrafos. Aos geógrafos, na interface da grande profundidade visual, que propicia
ampliação do campo de estudo da ciência a percepção vertical-tridimensional do
geográfica nos últimos tempos, coube se cenário, amplificando, desse modo, ao
preocupar também com a percepção ou revelar uma visão geral da organização
manifestação de uma geograficidade em espacial do lugar representado, o que há
diferentes fontes de pesquisa, o que inclui de geográfico nos quadrinhos.
os quadrinhos, dentre outros campos de
pesquisa que recentemente se tornaram 1 - Personagens e o seu Mundo
área de estudo da Geografia. É possível afirmar que a linguagem
No que se refere aos quadrinhos, sequencial das histórias em quadrinhos,
estes trabalhos norteadores são utilizados que envolve os elementos visuais e textuais
para argumentar que há uma percepção de forma associada, promove, em interface
espacial pela forma como os personagens com os personagens da narrativa, uma
recriam mundos quadrinhográficos, ao espécie de percepção do espaço nos
conferir sentido a ações ressignificantes quadrinhos. Os personagens revelam um

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cenário geográfico em suas ações, que dão que são de fundamental importância
significados aos lugares e são organizados para a vinculação da lógica operativa
estruturalmente pela disposição dos dos quadrinhos como um sistema que
quadros na sequência narrativa que reúne comunica significado.
os elementos visuais e textuais. Assim, verificamos que autor
Partindo dessa premissa, cabe-nos, concebeu a percepção do espaço-tempo
antes disso, retomar uma importante nos quadrinhos como um sistema de
discussão nos estudos sobre a percepção coordenadas de posição dos quadros que
do espaço nas histórias em quadrinhos corresponde a um determinado momento
no campo da semiótica, realizada por do desenrolar da história, sem, contudo,
Thierry Groensteen na obra intitulada especificar a importância ou relação dos
The system of comics (2007). Nesse livro, personagens na leitura e na criação desses
o escritor belga desenvolveu o conceito mundos. Groensteen se concentra sobre
de espaço-tópico, no qual entende haver um complexo de unidades, parâmetros
interdependência entre o espaço dos e funções estruturais da narrativa que
quadrinhos e os componentes visuais e os pouco considera as ações dos personagens
textuais, por meio dos quais tal espaço é na ressignificação do espaço. Entendemos
criado e os significados que estruturam a que embora o autor compreenda a
dimensão espacial da narrativa por meio percepção do espaço por um conjunto
de seus signos são estruturados. de códigos interligados que estruturam
Essa é a razão pela qual os a sequência narrativa, sua análise não
quadrinhos só podem ser descritos abrange a construção desse espaço a partir
em termos de um sistema narrativo das ações dos personagens desencadeadas
estruturado de forma unificada pela num sítio geográfico como parte da
linguagem visual e pela verbal. Painéis trama espacial. A construção do espaço é
(ou quadros), situados em função de uma veiculada à sucessão de cenas em sentido
sequência, são, necessariamente, colocados estrutural da narrativa, que não confere
em relação a uma estrutura narrativa importância suficiente aos significados
pré-definida e operam no sentido de que os personagens atribuem ao espaço,
reconstruir uma percepção do espaço. embora Groensteen faça menção ao
Esses são os princípios fundamentais dessa protagonista com um elemento conector
distribuição espacial que são examinados das cenas. Aqui, vamos considerar, além
sob o enfoque da espaço-topia, um termo dos componentes visuais e dos textuais
criado por Groensteen (2007) que invoca, articulados na construção da espacialidade
ao mesmo tempo, o conceito de espaço e da temporalidade da narrativa, o próprio
(espace) e o de lugar (lieu). papel dos personagens na representação e
Quadrinhos são, portanto, uma na criação de mundos geográficos.
combinação original de dois códigos Ao se tratar de uma percepção do
fundamentais, o visual e o verbal. Com espaço por meio dos quadrinhos, essas
base no conceito de espaço-tópico, representações que recriam o cenário
Groensteen demonstrou que o significado geográfico não serão consideradas, como
nos quadrinhos é construído primeiro Gomes (2008; 2013) ressalta, como
e, antes de tudo, pelo posicionamento cópias da realidade, uma vez que as
específico dos quadros sobre a página. representações não espelham o mundo,
Processos de ruptura dos quadros e mas o criam. Isto inclui o mundo dos
layout de página mostram-se centrais quadrinhos, em que representações do
para a produção de leitura, com efeitos espaço geográfico não podem ser tomadas
estéticos gerados por elementos tais como como uma interpretação do real, em
o quadro, a calha, a moldura e a margem, sentido estrito. Representações, antes de

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qualquer coisa, expressam escolhas de Podemos dizer, considerando a obra de
princípios, de significação própria. Joe Sacco (2000; 2003; 2005a; 2005b;
Contudo, neste universo particular 2010) como um exemplo pragmático,
de significações, o espaço nas histórias em que o autor promove nitidamente uma
quadrinhos é híbrido, consistindo numa representação que é profundamente
complexa montagem de fragmentos de amparada em uma interpretação rigorosa
alusão ao espaço físico real e ao ficcional. e criteriosa, na medida em que sua obra
Histórias em quadrinhos resultam fornece uma leitura do mundo a partir
de um universo particular de seus de um ponto de vista tornado explicito,
personagens entre o mundo real e o da ao invés de criar ilusões e falsificações.
ficção; neste universo paralelo, também Trata-se de um lugar geográfico dotado
podem oferecer uma representação que de significados e distorções, que, contudo,
nos faculte aprender suas significações, não aponta na direção de um universo
destacando aquelas que possuem valor de ficcional deliberadamente criado por
conhecimento. personagens, pois seu enfoque não se
O espaço geográfico nos refere à construção de mundos fantásticos,
quadrinhos, seja ele mais ficcional ou de mas, sim, ao contrário, a uma forma de ver
fundamentação realista, consiste num o mundo por meio dos quadrinhos, pois a
cenário que possui amplitude visual e realidade é, ela mesma, uma forma de ver o
que depende da morfologia do sítio. mundo a partir dos aparatos cognoscentes
No Super-Homem ou no Batman, por que dispomos para isso.
exemplo, uma cidade fictícia que apresenta Assim, constata-se que há
alguns elementos “reais” apoia as ações dos representações geográficas nos quadrinhos
personagens. Metrópolis é a cidade que que apresentam elementos espaciais de
habita o homem de aço, e Gotham City é a percepção desses mundos, que recriam
cidade na qual vive o homem morcego. No um ambiente repleto de significados, que
Homem-Aranha, por sua vez, Nova York é podem ser factualmente verossímeis ou
o palco das aventuras de seu protagonista, simplesmente imaginários, através das
onde temos uma configuração espacial ações que os personagens empregam na
semelhante à da cidade real de Nova construção destes mundos. Em outras
York. Tanto no Super-Homem, no palavras, os personagens, por meio de suas
Batman, quanto no Homem-Aranha, o ações num sítio geográfico, criam o espaço
protagonista age num espaço esculpido físico de suas ações que pode ser entendido
por suas ações, previamente amparado em como um cenário. Rama (2006), Lima
sentidos de verossimilhança, já que esses (2006), Góis (2008), Gomes e Góis (2008)
quadrinhos têm em comum suas aventuras observam isto, embora em perspectivas
ambientadas em cenários urbanos de diferentes em suas abordagens, quando
grandes metrópoles. Nesses quadrinhos, notam que os cenários geográficos nas
verifica-se, então, uma urbanidade entre histórias em quadrinhos são resultado de
a criação fantástica e fragmentos de uma uma ambientação a um mundo particular
metrópole “real”. que o personagem habita. Os cenários
De todas as formas, se as histórias estabelecem uma união funcional entre os
em quadrinhos são constituídas por personagens e o espaço físico de suas ações
personagens que habitam um lugar no e por meio desses cenários os personagens
momento em que o criam, esse mundo criam e são efeitos do mundo onde atuam.
pode apresentar fragmentos da realidade, Esses cenários resultam, assim, de
como disse Valle (2008), que vinculam uma uma ideia de espacialidade que ganha
interpretação factual ou testemunhal com sentido por meio das ações, objetos e
a forma de representação dos quadrinhos. significados que os personagens recriam

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como uma trama locacional, que é espaciais temporariamente
associada a um plano, a uma superfície refuncionalizados. O
ou volume, na acepção que Gomes (2013) personagem fantástico introduz
confere ao termo. Isto vale para todos uma marca, ele rompe com
os quadrinhos que possuem conteúdo o cotidiano da sociedade e
espacial. Histórias em quadrinhos estabelece novas relações com
que possuem personagens fantásticos o espaço, criando um novo
tendem a apresentar ambientes incríveis, sentido. Ao interagir com os
onde os personagens desempenham objetos espaciais que compõem a
suas aventuras, na medida em que eles cidade, o personagem fantástico
ressignificam os objetos e criam um volume constrói uma nova lógica no
espacial em acordo com suas ações. Mesmo uso de tais objetos (GOMES,
quando ambientado em lugares “reais”, GÓIS, 2008, p. 25, itálicos dos
um super-herói, com seus superpoderes, autores).
ressignifica o espaço com suas ações,
ainda que apresente em sua outra vida, O cenário das cidades dos super-
mais cotidiana, um comportamento mais heróis em quadrinhos possibilita,
comum para conviver em maior harmonia portanto, que seus protagonistas
com os personagens não fantásticos de seu desempenhem ações fantásticas, visto que,
universo. a partir de seu espaço físico o super-herói
[...] Desde as histórias de se apropria e faz uso da cidade na luta
super-heróis criadas na década contra o crime. Da mesma forma, sempre
de 1930, como Batman e Super- dando sobrevida ao personagem, uma
Homem, até os quadrinhos mais grande metrópole caótica disponibiliza
recentes de Homem-Aranha uma variedade de situações e de vilões que
e X-Men, é uma constante a requerem a atuação de seus super-heróis
representação de altos prédios, para proteger a população (RAMA,
entremeados por avenidas por 2006). Por conta disso, o cenário dos
onde circulam muitos veículos e quadrinhos
pessoas. Isso parece possuir um [...] tem originalmente
significado original que reside um significado que une lugar
na comunhão entre poderes e ação. Isso quer dizer que seu
espetaculares para responder sentido mais essencial é aquele
aos grandes problemas que que estabelece uma dependência
surgem nesse quadro das necessária entre ações e os lugares
grandes cidades. Nessa onde elas ocorrem. O conceito
representação da cidade nos de cenário efetua uma reunião
enredos fantásticos dos super- fusional entre enredo e o espaço
heróis, há uma modificação no onde ele se situa e é a partir
significado de alguns objetos dessa fusão que o significado das
espaciais a partir da relação com ações pode ser lido. O espaço é
o inusitado dos personagens. Os concebido como uma dimensão
grandes objetos movidos sem fundamental da ação social
esforço pelo Super-Homem, os pois, nesse caso, ele qualifica e
para-peitos [sic] que servem modifica a natureza das ações.
de torre de vigilância para o Em termos muito simples, o
Batman e os prédios altos, mesmo enunciado pode mudar
nos quais o Homem-Aranha fundamentalmente de sentido
prende suas teias são objetos quando pronunciado a partir de

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localizações espaciais diferentes. ser menos complexo, sendo a vida deles
Se isso é facilmente verificável traçada em uma ambientação pouca
no exemplo acima, podemos evoluída (GOMES, GÓIS, 2008).
então ousar a generalizações e Trata-se de uma união funcional
dizer que sempre a espacialidade entre personagem e lugar, que estabelece
das ações é um ingrediente uma relação estreita a qual Gomes e Góis
da base na compreensão das (2008, p. 22) retiram “[...] a hipótese de
dinâmicas sociais; pois o jogo das que quanto mais complexos forem os
localizações exprime significados personagens, ou seja, em outros termos,
e modifica o sentido dessas ações quanto mais sentidos eles forem capazes
(GOMES, GÓIS, 2008, p. 21). de extrair, mais associações com diferentes
É, sobretudo, a partir desse dimensões espaciais eles tenderão a
significado, que une ações e lugares, que desenvolver [...]”. Sendo assim, verificamos
Gomes e Góis (2008) compreendem que que há diferentes tipos e formas de
nas histórias em quadrinhos a figuração ressignificação do espaço: no que se
dos lugares assume uma colocação básica refere ao tipo, podem ser simples quando
na composição da narrativa. Retomando, imperam personagens pouco complexos,
mais uma vez, o papel dos personagens em como os personagens de fábulas;
uma narrativa em quadrinhos, os autores ressignificações complexas, por sua vez,
enunciam que personagens que falam de ocorrem quando imperam os personagens
lugares específicos assumem características altamente complexos, como os super-
que estabelecem coerência e sentido com heróis ou os sujeitos-personagens de Joe
esses ambientes. Esses lugares são, assim, Sacco. No que se refere à forma, dentre as
essenciais para que as características de várias modalidades que podemos destacar,
tais personagens apareçam e deem sentido duas, a nosso ver, são dignas de nota: uma
à narrativa. pela natureza fantástica dos super-heróis
Deste modo, quando se trata no qual os personagens ressignificam o
de narrativas totalmente ficcionais, espaço quando percorrem aos diferentes
em que imperam os personagens espaços (como o das grandes cidades), que
fantásticos, estes serão mais propensos lhe oportunizam aventuras em situações
a feitos extraordinários, e seu espaço, distintas; e outra, que ressignifica o espaço
pelo amálgama de possibilidades que pela expressão ordinária dos personagens,
irão articular, será mais fantástico pela pois estes não contam com superpoderes,
adequação necessária à própria ação como é o caso da obra de Joe Sacco,
do personagem. As metrópoles onde baseada em uma narrativa factual e
vários super-heróis habitam, mesmo realista. Ambas favorecem uma percepção
sendo muitas vezes representadas como do espaço geográfico associada à estrutura
uma verossimilhança de cidades reais, da narrativa, que reúne o elemento visual
oferecem para seus protagonistas as mais e o textual, como o item seguinte enfoca.
variadas situações, em que o super-herói
pode ser requisitado a usar o seu poder 2 - Percepção do Espaço Geográfico nas HQs
de super-humano. Já em quadrinhos A estrutura narrativa dos
menos complexos, como nas fábulas, quadrinhos disposta textual e visualmente
desenvolvidas quase sempre em cenários de forma unificada foi tema de pesquisa de
pouco evoluídos espacialmente e com cartunistas como Eisner (1999) e McCloud
uma única característica, os personagens (2005; 2008), que forneceram uma
são mais simples e seu espaço pouco varia. compreensão dos principais elementos
Parece uma regra, pois, se os personagens da linguagem sequencial dos quadrinhos
forem mais simples, seu espaço tenderá a que conformam a expressão espaço-

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temporal da narrativa. Além do interesse Em uma passagem de Jimmy Corrigan
de leitores e cartunistas, a percepção (Figura 1), temos um exemplo expressivo
espaço-temporal dos quadrinhos também dessa conversão: uma narrativa plural que
despertou o interesse do geógrafo inglês conta a história de Amy, a irmã adotada
Jason Dittmer (2010), que percebeu na de Jimmy, desde o período de sua gestação,
montagem dos quadros um importante nascimento e adoção, até a idade adulta.
componente estruturador da narrativa e, Nessa sequência de Jimmy Corrigan,
consequentemente, da temporalidade da para compreender e também recriar a
história. Dittmer argumentou que em narrativa, podem-se tomar diferentes
quadrinhos complexos, que estruturam pontos de vistas, reconstruindo-a. Para
temporalidades diferentes e ao mesmo fazer essa leitura, o leitor estabelece
tempo simultâneas, é concebido um convenções temporais que recriam o
espaço geográfico que exige convenções espaço através da narrativa, conformando
que requerem do leitor rearranjos na um sentido unificado por meio de
montagem para reconstruir a narrativa. diferentes pontos de vista. Mas, para que
Para constatar como o espaço a compreensão vá além da temporalidade,
e o tempo nos quadrinhos podem ser este trabalho propõe compreender a
reconfigurados pelo leitor, Dittmer espacialidade da narrativa, tomando-a
oferece uma análise de Jimmy Corrigan: como “[...] uma trama locacional associada
the smartest kid on Earth de Chirs Ware a um plano, uma superfície ou volume
(2000), em que nota como a montagem [...]”, como Gomes (2013, p. 17) sugere.
dos quadros veicula temporalidades A significância dessa espacialidade nos
em torno de uma sequência não linear, quadrinhos corresponde a uma forma
que pode seguir por diferentes enredos espacial ou sítio geográfico, que veicula
e oferecer outro sentido à narrativa, uma percepção do espaço geográfico por
movendo-se entre as temporalidades que meio de diferentes ângulos de visão que os
estruturam o espaço geográfico da história. quadrinhos oferecem.

Figura 1 - Fonte: Dittmer, Comic book visualities, 2010, p. 232

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A criação de histórias em quadrinhos
demanda a construção de mundos que
proporcionam senso de localidade para seus
leitores. Para criar esse mundo, McCloud
(2008, p. 158-159) enfatiza que “representar
todas as vistas e sensações de ângulos pode
ser um desafio intimidador. Mas com
conhecimento... esforço... e a disposição de
ir além do meramente ‘adequado’... Seus
mundos podem parecer tão impressionantes
e vividos como quaisquer outros mundos.
Reais ou imaginários”. Esse mundo, sendo
um universo complexo, será habitado por
Figura 2 - Fonte: McCloud, Desenhando quadrinhos, 2008, p. 164. personagens também complexos e, então,
experimentado por seus ângulos de visão e
profundidade.
Para criar um mundo complexo onde
os personagens habitam e fazem parte do
ambiente, ao invés simplesmente de um
fundo transitório, tornando esse mundo
acreditável visualmente, o cartunista
precisará “[...] abordar o assunto e desenhar
cenas em perspectiva [...]” (McCLOUD,
2008, p. 170). Num plano em perspectiva,
enfatiza McCloud, linhas horizontais
e pontos de fuga desenhados sobre
uma grade estabelecem um sentido de
profundidade ao criar um mundo em 3-D
(tridimensional) numa superfície em 2-D
(bidimensional), como uma folha de papel.
Um cenário com grande senso de
profundidade e detalhes harmoniosos
intensifica a “[...] impressão de seus leitores
de que estão rodeados por seu mundo”
(McCLOUD, 2008, p. 165). Neste cenário,
Figura 3 - Fonte: McCloud, Desenhando quadrinhos, 2008, p. 159 descreve McCloud que se a moldura da janela
se expande a uma noção ampla, o ângulo de
câmera ou filmagem por qual vemos a cena
ultrapassa a nossa visão periférica, o que
em outras palavras demonstra que o leitor
pode atravessar essa janela e experimentar a
sensação que este ambiente causa, bem como
seus sons e cheiro (ver Figuras 2 e 3). Em um
ambiente complexo representado em 3-D
o cartunista faz com que os olhos do leitor
vagueiem e explorem este mundo, em vez de
ver as coisas em uma única perspectiva.
Se se tratar de uma concepção
“realista”, cuja pesquisa e detalhes se tornam

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fundamentais para construir o ambiente, 2008, p. 167). Um ambiente “realista” fornece
o leitor pode experimentar “[...] o mundo um ambiente complexo e com grande
praticamente da mesma forma como faria na senso de profundidade, onde o leitor tem a
‘vida real’. Olhando para cima... para baixo... o impressão de estar no lugar por meio de uma
que quer que atraia o olhar. Um pedaço por visão panorâmica, seja a representação de um
vez. Isso empresta um ar de experiência em lugar que realmente existe, seja a criação de
primeira mão e sustenta a ilusão de vaguear outro lugar através da verossimilhança com o
através de um cenário [...]” (McCLOUD, que é real. Veja-se, por exemplo, a Figura 4:

Figura 4 - Fonte: McCloud, Desenhando quadrinhos, 2008, p. 165

Um mundo complexo é visão vertical, que fornece uma riqueza de


experimentado em uma visão em 3-D, em informações e orientações de localização
que tomadas panorâmicas fornecem detalhes que se dão em uma visão tridimensional. O
e indicam a localidade de personagens cenário geográfico dos quadrinhos apresenta
e objetos, construindo, por meio dessa nesses termos uma verticalidade que investe
configuração espacial, um ambiente. Assim, o numa visão mais ampla em 3-D, quando
cenário complexo pode colocar o leitor numa vista do alto, e mais estreita, quando vista do
visão mais acima ou mais abaixo, dentro de nível do chão em ambientes como o de uma
uma configuração espacial disposta pela grande cidade (ver Figura 5 e 6).

Figura 5 (à esquerda) - Vista


de um edifício clássico a
partir do ângulo de visão do
nível da rua. Fonte: McCloud,
Desenhando quadrinhos,
2008, p. 177

Figura 6 - Vista de um centro


verticalizado de uma metró-
pole através de uma visão
panorâmica do alto como
se estivéssemos em cima
de um arranha-céu. Fonte:
McCloud, Desenhando
quadrinhos, 2008, p. 158

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Estes ambientes são habitados por geográfica, quando dispõem de elementos
personagens que revelam em suas ações a que oferecem um rico manancial para
visibilidade desses mundos. Quadrinhos interpretar discursos geográficos e quando
podem proporcionar uma percepção são capazes de revelar a organização
espacial, estando assim diretamente espacial como uma síntese do lugar: tanto
relacionados com o que Gomes (2013) ficcional quanto realista.
associa com a disposição e morfológica
física do sítio. Este sistema de projeção Considerações Finais
orienta um olhar através de um ponto de Vimos que personagens revelam
fuga em que determina distâncias, ângulos uma percepção espacial, que pode ser
e proporções para compor o cenário. Por efetivamente tratada nos quadrinhos como
sua vez, o cenário é experimentado em uma representação do espaço geográfico
diferentes ângulos e pontos de vistas, por meio das ações que eles desempenham
dando assim, a partir da sequência de num ambiente, que ligam os personagens
cenas, a dimensão do espaço “geográfico” a determinados lugares e, reconstruindo
nos quadrinhos. Esta paisagem rica em um cenário geográfico. Dessa maneira, o
representações de objetos como casas, espaço geográfico nos quadrinhos pode
prédios, ruas e pessoas, tomando ainda ser entendido como uma união funcional
como exemplo pragmático a cidade, entre o texto integrado à forma, mediante
segundo a interpretação que Góis (2008) o personagem que recria um ambiente
oferece, mantem relações de significação no qual ele é um agente ressignificante do
entre os personagens e os objetos figurados espaço, na medida em que age revelando
nos quadrinhos. este cenário em suas ações.
Em quadrinhos que oferecem um Constata-se então, que quadrinhos
cenário geográfico complexo por meio apresentam uma percepção do mundo em
de sua visibilidade espacial, constata-se um formato quadrinhográfico em 3-D,
que podem gerar uma interpretação de inteligível por meio de múltiplos ângulos
ambientes, como se fossem sínteses do de visão, que são condicionados pela
lugar, reconstruído por diferentes ângulos narrativa sequencial disposta e articulada
e tomadas de cena em profundidade. por imagens e texto. Possui, portanto, um
Dessa forma, como se pode sugerir pela senso de profundidade e visão vertical-
abordagem de Gomes e Ribeiro (2013), os tridimensional, como as Figuras 5 e 6
quadrinhos, ao focalizar múltiplas visões, demonstram. Constroem um sentido de
estão relacionados à produção de imagens percepção espacial imaginário ou verossímil
narrativas como instrumentos tanto de ao real, focalizando a forma como os
percepção como de compreensão do personagens se relacionam e se apropriam
mundo em uma visão tridimensional, e não do seu mundo por meio da espacialidade
apenas como ilustrações. que recriam. Quadrinhos se revelam,
O espaço geográfico dos quadrinhos assim, mais do que simples fontes de
se configura, desse modo, por um conjunto entretenimento, uma vez que, são capazes
de ângulos de visão que, articulados, de oferecer sínteses espaciais, que podem
transmitem uma percepção espacial a ser utilizadas como fonte de pesquisa para
partir da forma como os personagens a Geografia.
se apropriam de seus espaços e, assim,
reconstroem um cenário geográfico com Referências bibliográficas
grande amplitude visual ao explorar visões DITTMER, Jason. Comic book visualities:
verticais e tridimensionais. Esses cenários a methodological manifesto on geography,
geográficos expressos nos quadrinhos montage and narration. Transactions of
podem ser apreensíveis pela pesquisa the Institute of British Geographers, v. 35,

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p. 222-236, abril. 2010. quadrinhos de Joe Sacco. 2014. 185 f.
EISNER, Will. Quadrinhos e arte Dissertação (Mestrado em Geografia) –
sequencial. 3. ed. São Paulo: Martins Programa de Pós-graduação em Geografia,
Fontes, 1999. Universidade Federal do Espírito Santo,
GÓIS, Marcos P. Ferreira de. A Geografia Vitória, 2014.
em quadrinhos: uma análise dos elementos MENDONÇA, Márcio José; REIS,
sócio-espaciais que compõem a imagem Luis Carlos Tosta dos. Histórias em
presente no universo quadrinhográfico. 2008. quadrinhos: um campo recente da
74 f. Monografia (Bacharel em Geografia) – pesquisa em geografia sobre conflitos,
Departamento de Geografia, Universidade Geo, Universidade Estadual do Rio de
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