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A cultura na sociologia contemporânea: identidade, narrativas e

estratégias de ação
Bárbara de Souza Fontes 1

Resumo
Este artigo busca analisar a discussão sobre “identidade” presente na sociologia
contemporânea, tomando como parâmetro o livro The Dignity of Working Men:
Morality and the Bondaries of Race, Class and Immigration, de Michèle Lamont
(2000). Para isso, faz-se necessário uma incursão à análise sociológica da cultura
através da contextualização do tema da “identidade”, bem como de uma análise
das narrativas, das fronteiras e das estratégias de ação presentes na construção de
identidade dos indivíduos.

Palavras-chave: identidade, fronteiras, narrativa, sociologia da cultura, estratégias


de ação.

The culture in contemporary Sociology: identity, narratives and strategies


of action

Abstract
This article aims to analyse the discussion about “identity” present in contemporary
Sociology, using as a parameter the book The Dignity of Working Men: Morality and
the Boundaries of Race, Culture and Immigration, from Michèle Lamont (2000). In
order to achieve this, an incursion into the sociological analysis of culture through
the contextualization of the term “identity” will be necessary, as well as an analysis
of the narratives, boundaries and strategies of action present in the social
construction of individual´s identity.

Key-words: identity, boundaries, narratives, sociology of culture, strategies of


action.

Graduada em Ciências Sociais pela UFRJ (2008). Atualmente sou mestranda do Programa
1

de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia – PPGSA/IFCS/UFRJ (turma 2009)

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Introdução

Na teoria social, o debate sobre o tema da “identidade” enquanto uma


categoria fundamental para a construção da subjetividade e da reflexividade do
ator social surge no pós-guerra e no contexto da democracia, de acordo com
Calhoun (1994). Questões de identidade coletiva emergem com a crescente
prevalência de ideias de que a identidade individual é um produto de
autoconstrução, aberta à livre escolha e não simplesmente dada pelo nascimento
ou desejo divino. Apesar da teoria clássica já enfatizar a centralidade do indivíduo
para a compreensão da vida social, as diferenças entre os indivíduos não eram
postas em pauta, mas sim a equivalência das identidades.
O presente ensaio pretende, nesse sentido, refletir sobre o debate acerca da
“identidade” na sociologia contemporânea tendo como base o livro The Dignity of
Working Men: Morality and the Bondaries of Race, Class and Immigration, de
Michèle Lamont (2000). Neste livro, através da análise comparativa entre
trabalhadores dos Estados Unidos e da França, a autora busca compreender de que
forma se define a identidade desses trabalhadores. Com a comparação através de
categorias como brancos/negros e classe alta/classe baixa nos Estados Unidos e
franceses/imigrantes e classe alta/classe baixa na França, Lamont identifica os mais
salientes princípios de classificação e identificação que operam por trás das
avaliações dos trabalhadores sobre valores e percepções de hierarquia social, bem
como de que forma eles constroem fronteiras de classe e de raça.
Lamont pretende explorar o senso de identidade, os valores e o status
desses trabalhadores, não desprezando que estejam num contexto de crise e de
declínio de seus padrões de vida, no qual um ideal de sucesso social poderia
parecer inacessível. A autora analisa como essa classe trabalhadora constrói um
senso de autovaloração e percepção da hierarquia social através da diferença entre
o “nós” e os “outros”. Além disso, a moralidade ocupa um lugar central no mundo
desses indivíduos. Tais padrões morais funcionam como uma alternativa para
definições econômicas de sucesso e oferecem uma maneira de manter a dignidade
e produzir sentido às suas vidas. Definem, por conseguinte, quem eles são e quem
eles não são. Portanto, eles desenhariam linhas que delimitariam uma comunidade
imaginada de pessoas como “eu”, as quais dividiriam os mesmos sagrados valores
e com quem eles estariam prontos a dividir recursos.
Através de um número amplo de entrevistas com trabalhadores do sexo
masculino, e tendo como parâmetro classe, raça e contexto das experiências como
elementos de comparação, este estudo faz uso do método indutivo porque,

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segundo Lamont, permite enxergar as teorias usadas pelas pessoas para


produzirem sentido em suas vidas, segundo categorias dadas como certas que elas
mobilizam quando interpretam e organizam as diferenças. O método indutivo
permitiria assim reconstruir a coerência interna de suas visões e o entendimento de
mundo. Este método gera uma sociologia comparativa de fronteiras e modelos
ordinários da definição de comunidade que documentam padrões de
inclusão/exclusão baseados em moralidade, raça, classe e cidadania.
Esse processo de construção de identidade se dá juntamente com a
dimensão da narrativa, das fronteiras, sejam elas simbólicas ou sociais, e dos
componentes culturais usados para construir estratégias de ação dos indivíduos. A
noção de fronteira permite uma diferenciação entre “dentro do grupo” e “fora do
grupo” (Lamont & Molnár, 2002); já a dimensão da narrativa permite que o
indivíduo se localize ou seja localizado em um repertório determinado de histórias,
e que as pessoas sejam guiadas para a ação de determinadas maneiras, e não de
outras, através de projeções, expectativas e memórias derivadas de um repertório
de narrativas sociais, públicas e culturais disponíveis (Somers & Gibson, 1994). As
estratégias de ação, por sua vez, são produtos culturais construídos através de
formas de organizar a experiência e avaliar a realidade, modos de regular a
conduta e maneiras de formar laços sociais (Swidler, 1986).
Desta forma, a partir do livro de Lamont, que se preocupa com diferenças
sociais através de dimensões simbólicas e não-materiais, o objetivo do ensaio é
uma reflexão que tem em vista a análise sociológica da “cultura”, 2 entendida aqui
como veículos simbólicos de significados, que incluem tanto crenças, práticas rituais
e cerimônias, como a linguagem e as histórias da vida diária – meios através dos
quais os processos sociais de compartilhamento de modos de comportamento e
perspectiva acontecem (Swidler, 1986). Narrativas, estratégias de ações e
fronteiras, por sua vez, só fazem sentido se vinculadas a esses veículos simbólicos
de significado.

A discussão sobre identidade no pensamento sociológico

Na conclusão do livro The Dignity of Working Men: Morality and the


Bondaries of Race, Class and Immigration, Lamont (2000) afirma que sua pesquisa
proporciona uma avaliação das teorias pós-modernas da identidade que a tomam
como construída, oposta ao primordial, ao essencial e ao fixo no tempo. De fato,
como argumenta Calhoun (1994) no prefácio do livro Social Theory and the Politics

2
A análise sociológica da cultura diferencia-se da “sociologia cultural”. Sobre esta última ver Lima Neto
(2007).

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of Identity, o debate sobre o tema da “identidade” aflora no contexto das mudanças


do mundo moderno e da democracia que transformaram as relações entre os
diferentes grupos de cidadãos.
Tomo como base para dissertar sobre este tema as reflexões de Calhoun
(1994). Segundo este autor, a teoria social foi formada pela repressão de certos
aspectos da questão da identidade. Mesmo com o reconhecimento da centralidade
do indivíduo para a vida social, a teoria social pioneira não enfatizou as diferenças
entre os indivíduos. Desse modo, teve que lidar durante muito tempo com a tensão
de presumir identidades equivalentes o suficiente para permitir que os indivíduos
fossem tidos como unidades de análise equivalentes. Nesta perspectiva, a
identidade seria construída no sentido de preparação dos jovens para a participação
na vida adulta. Ou ainda, a formação da identidade prepararia para a entrada na
arena pública, como é o caso da teoria da esfera pública de Habermas. Neste caso,
diferenças de gênero, classe e etnicidade seriam postas de lado para enfatizar a
igualdade entre os indivíduos (op. cit.:3).
No contexto da democracia e das mudanças do pós-guerra, com a
legitimidade das ações políticas não mais a partir de um direito divino, mas sim de
atores sociais, começa a surgir na teoria social, principalmente através dos
movimentos sociais, a ideia da própria identidade como um foco crucial para a luta
política. Esses movimentos sociais, como o movimento das mulheres, o dos
homossexuais e o dos direitos civis nos Estados Unidos, atentam para a dimensão
política das identidades e seu caráter coletivo.
Em capítulo homônimo ao título do livro, Calhoun disserta sobre o discurso
moderno da identidade. Enfatiza a onipresença de ambas as formas de identidade,
individual e coletiva; contudo, chama a atenção para o fato de que, se a
preocupação com as questões identitárias deve ser universal, as identidades, elas
mesmas, não o são. “Gênero e idade são distintivos em praticamente todos os
lugares, “pedigree” ou parentesco são quase equivalentes em sua ampla
significância” (Calhoun: 1994:9). 3 Contudo, o discurso sobre identidade é
distintivamente moderno, intrínseco e parcialmente definidor da era moderna.
Por conseguinte, o discurso sobre o self é moderno não somente pela ênfase
moral e cognitiva que liga subjetividades e identidade pessoal, mas por ter tornado
a identidade distintivamente problemática. Nas palavras do autor: “é muito difícil
para nós estabelecer quem nós somos e manter nossa identidade satisfatoriamente
em nossas vidas e no reconhecimento dos outros” (op. cit.:10). Assim, o
autoconhecimento, sempre uma construção, nunca é completamente separável de
reivindicações para ser reconhecido de modos específicos pelos outros.

3
As citações dos textos em língua inglesa são traduções livres feitas pela autora.

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A modernidade tem promovido a dissolução da maior parte dos esquemas


de identidade englobadores, característicos das sociedades pré-modernas, segundo
Calhoun. Se o parentesco, por exemplo, continua sendo importante em uma
sociedade de indivíduos, ainda investido de um grande peso emocional, ele já não
pode mais nos oferecer um molde completo para nossas identidades pessoais e
sociais. Nas sociedades pré-modernas, por outro lado, mesmo existindo mais
dúvidas, anomalias e decepções do que usualmente imaginamos
retrospectivamente, havia comumente um nível de aceitação inquestionável da
ordem aparente das categorias sociais, não mais existentes na modernidade.
Calhoun recorre a Bourdieu, afirmando que, segundo este autor, nas sociedades
pré-modernas os “esquemas de compreensão e a ordem normativa apareciam
como doxa” (op. cit.:11), modelos de razão prática simplesmente dados.
A mudança de paradigma da identidade na modernidade caracteriza a
subjetividade. A identidade é sempre construída e situada no meio de um fluxo de
discursos culturais. O autor cita então Cascardi, que afirma que o sujeito moderno
está inserido “numa série de esferas de valor separadas, cada uma das quais tende
a excluir ou tenta afirmar suas prioridades sobre o resto” (op. cit.:12). Ainda no
argumento de Cascardi, a tensão e mesmo a incomensurabilidade entre os vários
discursos aparecem não apenas como uma dificuldade “externa” para os indivíduos,
mas como uma série de contradições dentro do “eu”.
A subjetividade, portanto, é melhor entendida como um processo, como algo
em construção constante, nunca perfeita. A identidade, por sua vez, é um aspecto
crucial para a subjetividade. Ela está ligada aos problemas do autorreconhecimento
e do reconhecimento pelos outros. “Reconhecimento é vital para qualquer
reflexividade, por exemplo, qualquer capacidade de olhar para si mesmo, para
escolher uma ação e olhar suas consequências e para ter a esperança de fazer de si
mesmo melhor do que se é” (op. cit.:20).
Calhoun chama a atenção ainda para a forma com que a teoria sociológica
tem pensado de modo limitado as questões relativas à identidade. Passa então a
uma discussão sobre “essencialismo” e “construcionismo” na teoria social. Assim, a
teoria social construtivista desconstrói as noções essencializadas das identidades
individuais e coletivas. Contudo, as invocações essencialistas de raça, nação,
gênero, classes e pessoas e muitos outros tipos de identidades continuam sendo
comuns nos discursos contemporâneas por todo o mundo. O essencialismo reforçou
e foi reforçado pelo desenvolvimento do individualismo, pela retórica da identidade
nacional e pelos apelos à natureza como uma fonte legítima de moral.
Por outro lado, as próprias teorias construtivistas, quando usadas na práxis
política, acabam reificando estrategicamente as identidades suprimidas ou

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desvalorizadas pela maior parte da sociedade, em busca de legitimação e


valorização. As teorias do movimento gay e do movimento feminista, bem como a
do movimento negro, enfrentam o paradoxo descrito por Calhoun:

Simplesmente, o argumento sugere que onde uma particular categoria de


identidade vem sendo reprimida, deslegitimada ou desvalorizada nos
discursos dominantes, uma vital responsabilidade deve ser reivindicar valor
para todos esses classificados por essa categoria, que implicitamente é
invocada de uma maneira essencialista (Calhoun, 1994:17).

Desta maneira, a crítica ao essencialismo não deve se tornar uma proibição


contra o uso de categorias gerais de identidade. Como sugere o autor, não é
possível escapar completamente da metafísica, todavia, é tarefa daquele que venha
a invocar categorias gerais uma séria autocrítica sobre a essencialização nelas
contida. Isto significa ter atenção quanto aos aspectos agonísticos, fraturados e
problemáticos da identidade.
Esta questão é semelhante à discussão de Somers e Gibson (1994).
Segunda estas autoras, devemos rejeitar a tentação de confluir identidades com o
que frequentemente remete a categorias singulares “essencialistas”, como aquelas
de raça, sexo ou gênero, o que constitui uma tendência que tem caracterizado um
número de teorias feministas em seus esforços de restaurar o “outro” feminino
anteriormente marginalizado. As autoras chamam a atenção então para estudos
antropológicos de diferentes culturas que têm evitado esse “perigo”.
É o caso de Louis Dumont (1992) que, em seu estudo sobre o sistema de
castas na Índia, desestabiliza categorias dadas como conceitos universalizados. Em
esforço de compreender outros valores que não os modernos, o autor faz uma
crítica aos estudiosos que buscam entender a Índia por comparação com nosso
sistema ou em busca de semelhanças, e não por sua particularidade própria que
representa uma forma de universal, universal este que só poder ser atingido
através das características concernentes a cada tipo de sociedade. Assim, a crítica é
direcionada à “essencialidade” dada à noção de indivíduo. Com a preocupação de
compreender a ideologia do sistema de castas, Dumont propõe uma desconstrução
da ideologia moderna, especificamente da teoria igualitária como expressão
adequada da vida social. Tendo como ponto de partida a reavaliação da construção
ocidental do individualismo e da teoria igualitária, o autor se recusa a considerar o
sistema de castas como uma forma extrema de “estratificação social”, que seria
uma classificação a partir dos pressupostos nativos do pesquisador. 4

4
Vale ressaltar o risco de Dumont, ao querer combater uma noção essencializada do indivíduo como
algo universal, de resvalar numa “essencialização” da categoria “pessoa” nessa tentativa de apreender
intelectualmente a ideologia do sistema de castas.

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Dumont, deste modo, se vale da importância do contexto do “outro” cultural


para a utilização ou não de determinadas categorias de identificação. Já Somers e
Gibson (1994) argumentam que, apesar dos estudos antropológicos que através do
outro clareiam as classificações ocidentais, não é necessário recorrer a "outros"
culturais para reconhecer as falsas certezas impostas por aproximações categóricas
para a identidade. Incorporar ao núcleo da concepção de identidade as dimensões
de “tempo”, “espaço” e “relacionalidade”, como não deixa de fazer Dumont, é uma
forma de evitar o perigo do essencialismo. Assim, por exemplo, assumir
simplesmente que em determinados tempos e lugares as mulheres parecem ser
mais relacionais do que os homens em seu senso de agência não implica de forma
alguma concluir que todas as mulheres são moralmente mais relacionais do que os
homens.
Justamente, ao trazerem essas dimensões através da análise das narrativas
enquanto fundamentais para a construção de identidades sociais, as autoras
consideram possível combinar estudos de ação e identidade. Cabe agora uma
análise da esfera das narrativas segundo uma dimensão “ontológica” para a própria
condição da vida social e, deste modo, formadoras de identidades sociais. Os
discursos dos trabalhadores analisados por Lamont (2000) são formas de narrativas
e estão diretamente envolvidos nesse processo de construção de suas identidades,
tanto individuais como coletivas.

Narrativa e identidade social

Para discutir este tópico, utilizo o artigo “Reclaiming the Epistemological


‘Other’: Narrative and the Social Constitution of Identity”, de Somers e Gibson
(1994). Considerando a narrativa uma dimensão ontológica da vida social, as
autoras pretendem demonstrar a viabilidade de estudar a ação social por uma ótica
que permite focar na ontologia social e na constituição social da identidade. Dessa
maneira, a narrativa não pode ser limitada a um método ou a uma forma de
representação, mas deve constituir uma nova dimensão ontológica de estudos.
Segundo as autoras, a abordagem contemporânea sobre narrativa e o
processo pelo qual a narrativa é tanto desenvolvida como apreendida 5 reconhece
serem estes conceitos de epistemologia e ontologia social. Tais conceitos postulam
assim que é através desse processo que entendemos, conhecemos e atribuímos
sentido ao mundo social; e através deles também constituímos nossas identidades
sociais. “Acima de tudo, as narrativas são ‘constelações de relacionamentos’
embebidas no tempo e no espaço, e constituídas por um enredo causal” (op.

5
No original: “narrativity”.

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cit.:59). Por conseguinte, esse processo pressupõe o discernimento sobre o


significado de qualquer evento particular apenas em relação temporal e espacial
com outros eventos. Assim, eis a principal característica da narrativa:

De fato, a principal característica da narrativa é que ela se torna


compreensível apenas por conectar (ainda que de forma instável) partes a
fim de construir uma configuração ou uma rede social (ainda que incoerente
ou irrealizável) composta de práticas simbólicas, institucionais e materiais
(Somers & Gibson, 1994:59).

É esta conectividade que transforma os eventos em episódios, o que é feito


através de um encadeamento, elemento crucial do processo da narrativa, que dá
significado a instâncias independentes. Tornar algo inteligível no contexto da
narrativa é, segundo Somers e Gibson (1994:60), dar historicidade e
relacionalidade. E isto faz sentido porque, quando os eventos estão localizados em
uma cadeia temporal e sequencial, é possível explicar sua relação com outros
eventos.
Outro elemento crucial do processo de desenvolvimento da narrativa é o seu
critério de avaliação. É a avaliação que nos permite fazer distinções qualitativas
entre a infinita variedade de eventos, experiências, características e os fatores
sociais que constrangem nossas vidas. Assim, em face da potencialmente ilimitada
variedade de experiências sociais derivadas do contato com eventos, instituições e
pessoas, a capacidade avaliativa do enredo demanda e habilita uma “apropriação
seletiva” na construção de narrativas (op. cit.:60).
Após apresentar essas dimensões “abstratas” da narrativa, as autoras
passam a examinar outras quatro: ontológica, pública, conceitual e “meta”
narrativa. As narrativas públicas referem-se mais às formações institucionais e
culturais do que ao indivíduo singular. As conceituais são conceitos e explicações
construídos pelos pesquisadores sociais. E as “meta” narrativas referem-se às
grandes narrativas nas quais estamos inseridos como atores sociais
contemporâneos na história e como cientistas sociais (op. cit.:62, 63). Para os fins
deste trabalho, nós nos deteremos nas narrativas ontológicas, que se relacionam
diretamente com a pesquisa de Lamont.
As narrativas ontológicas constituem histórias que os atores sociais usam
para dar sentido às suas vidas. São utilizadas para definir quem nós somos, o que é
uma precondição para saber o que fazer, como agir. Esse “fazer” irá, por sua vez,
produzir novas narrativas e, consequentemente, novas ações. Assim, a relação
entre narrativa e ontologia é processual e mutuamente constitutiva. Uma é
condição para a outra e nenhuma vem a priori. A “localização” das narrativas dota
os atores sociais de identidades que, no entanto, podem ser múltiplas, ambíguas,

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efêmeras ou conflitantes. Por conseguinte, “pessoas agem, ou não agem, em parte


de acordo com a forma como elas entendem seu lugar em um número de
narrativas dadas – mesmo que fragmentadas, contraditórias, ou parciais” (op.
cit.:61).
O livro de Lamont é permeado por citações de narrativas deste tipo
ontológico. No capítulo que trata sobre a ordem moral nos Estados Unidos, por
exemplo, a autora nota que brancos e negros não são iguais nas dimensões de
moralidade que privilegiam. É através dessa dimensão que eles definem quem são
e, mais importante, quem não são. Para os negros, mais que para os brancos, a
religião e a moralidade tradicional são centrais na proteção de suas famílias e na
defesa contra a “poluição” e a criminalidade, talvez porque a fronteira entre a
classe trabalhadora e o submundo seja mais tênue para eles do que para os
brancos. Além disso, eles geralmente vivem em áreas com índices altos de
criminalidade e desemprego, o que pode levá-los a demarcar fronteiras morais mais
rígidas como forma de manter o perigo e a desorganização à distância.
Segundo, e fundamental, os trabalhadores negros enfatizam as dimensões
coletivas da moralidade, colocando o “eu solidário” acima do “eu disciplinado”: eles
estão particularmente preocupados com solidariedade, generosidade, contatos
interpessoais mais próximos e a defesa da “comunidade imaginada”. Em contraste,
os trabalhadores brancos têm um entendimento mais individualista do altruísmo e
estão menos expostos a repertórios (como o da Igreja negra) que podem sustentar
noções solidárias. Portanto, os trabalhadores negros, apesar de pertencerem à
mesma classe, têm culturas em certa medida diferentes dos brancos, porque elas
são fabricadas a partir de bases culturais diferentes e estão expostas a condições
estruturais mais “rigorosas” (Lamont, 2000:52).
Cito dois trechos de entrevistas para ilustrar esta questão. O primeiro é de
um pintor branco que se define ao definir o tipo de pessoas de quem gosta; e o
segundo é de um carteiro negro que descreve os valores que pretende passar para
os filhos:
Eu não gosto de pessoas que vivem para o momento. Eu não sou uma
grande pessoa em relação a poupar dinheiro, mas eu estou sempre olhando
para o futuro. Eu tento basear minhas decisões hoje em como elas vão me
afetar amanhã, não apenas no que quero fazer hoje. Se eu quiser, eu posso
sair à noite e ficar totalmente bêbado, mas eu vou dizer, bem, eu tenho que
trabalhar amanhã... De vez em quando, eu gostaria de ser mais
despreocupado. E então eu digo não, eu gosto do jeito que sou... Eu gosto de
pessoas que são responsáveis. De muitas pessoas você se aproxima e diz
alguma coisa, e elas dizem, “Eu não me importo”. Eu gosto de pessoas que
são próximas à família, próximas aos amigos. Eu acho que você olha para
você e diz: “eu gostaria de que as pessoas pudessem ser como eu”. Pessoas
que têm os mesmos valores que eu (Lamont, 2000:1).

Apenas os valores regulares do Cristianismo, porque eles cresceram [os


filhos] sendo membros regulares da igreja e coisas assim. Você sabe, eu

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penso que estou apenas tentando ensiná-los a ser, eu acho que nós
chamaríamos de um “bom americano”. Bons cidadãos, você sabe, e justos,
íntegros, moralmente, espiritualmente e fisicamente. E eles são! Os amigos
deles não são o tipo de pessoa da rua. Todos os amigos deles são como
garotos de colarinho branco (white-collar-type guys), você sabe, e esse tipo
de coisas. Então, eles não se associam com os maus elementos também (op.
cit.: 43).

Como fica explícito nos discursos destes trabalhadores, notamos que as


identidades sociais são também construídas através do processo da narrativa, da
mesma forma que as interações e os processos sociais são narrativamente
mediados (Somers & Gibson, 1994). Desse modo, interligando narrativa e
identidade, as dimensões de tempo, espaço e relacionalidade são introduzidas. A
abordagem da identidade narrativa, com isto, insere o ator em relacionamentos e
histórias que mudam através do tempo e do espaço e, então, evita a estabilidade
categórica na ação. A transformação das configurações por meio da temporalidade
e da espacialidade forma as coordenadas relacionais das narrativas ontológicas,
públicas e culturais. E dentro destas multifacetadas narrativas as identidades são
formadas; por isso, “a identidade narrativa é processual e relacional” (op. cit.:65).
De acordo com Somers e Gibson, a abordagem da identidade narrativa
aproxima-se da ação no sentido de que a ação social só pode ser inteligível se
reconhecermos que as pessoas são guiadas para agir a partir das relações nas
quais estão inseridas e das histórias com as quais se identificam. Menos do que por
interesses, as identidades narrativas são constituídas por uma pessoa “localizada”
temporal e espacialmente em histórias culturalmente compreendidas de regras,
práticas, instituições, e numa multiplicidade de tramas de família, nação ou vida
econômica. Em um paralelo que pode ser feito com Lamont (2000), as autores
citam como exemplo os trabalhadores, afirmando que suas experiências como tais
estão inextricavelmente interconectadas com a ampla matriz de relações que
modelou suas vidas.
No livro de Lamont, fala-se sobre “pessoas acima” e “pessoas abaixo”,
trabalhadores brancos e negros, que ocupam posições equivalentes, adotam
discursos diferenciados. Assim, os trabalhadores negros identificam-se mais com os
valores da classe média alta, como a liderança e o dinheiro, por ser esta uma
possibilidade de eles adquirirem pertencimento social. Em relação às “pessoas
abaixo”, devido ao fato de a pobreza estar mais associada aos negros nos Estados
Unidos, esses trabalhadores estabelecem fronteiras mais fortes contra os pobres
em suas narrativas, apesar de compreenderem melhor as causas estruturais da
pobreza.
Assim, conforme Somers e Gibson (1994) assinalam, a partir da perspectiva
da identidade narrativa, a classe trabalhadora não se define pela experiência

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imputada de uma categoria social, como operário de fábrica, mas pelo lugar dos
atores em múltiplas narrativas, simbólicas e materiais, nas quais estão inseridos ou
com as quais se identificam, como a do American dream, tão recorrente nos
trabalhadores do livro de Lamont. Por conseguinte, as autoras argumentam que
devemos buscar as identidades desses trabalhadores nos seus conjuntos relacionais
ou, como diria Bourdieu, no habitus.
Desta maneira, pessoas com atributos similares, como os trabalhadores
analisados por Lamont, nem sempre compartilham experiências de vida social. Isto
só acontece caso compartilhem identidades narrativas e conjuntos de relações
similares, de acordo com Somers e Gibson. Tais representações, por sua vez,
conduzem a determinadas estratégias de ação e ao estabelecimento de fronteiras
entre “dentro do grupo” e “fora do grupo”, como veremos a seguir.

Estratégias de ação e o estabelecimento de “fronteiras”

Neste tópico utilizo o artigo “Culture in Action: Symbols and Strategies”, de


Ann Swidler (1986), para discutir de que forma o repertório cultural no qual o
indivíduo está inserido tem efeito sobre a ação. As fronteiras, por sua vez, podem
ser entendidas como uma estratégia de ação pautada pelo repertório cultural, como
veremos no artigo de Lamont e Mólnar (2002), “The study of boundaries in social
science”.
Em seu artigo, Swidler (1986) argumenta que a “cultura influencia a ação
não por providenciar os valores últimos para os quais a ação é orientada, mas por
formar um repertório ou ‘kit de ferramentas’ (tool kit) de hábitos, habilidades e
estilos dos quais as pessoas constroem ‘estratégias de ação’” (op. cit.:273). Nesse
sentido, a análise da cultura proposta pela autora consiste em três passos. O
primeiro é oferecer uma imagem da cultura como “kit” de símbolos, histórias,
visões de mundo que as pessoas utilizam para resolver diferentes tipos de
problemas. Segundo, para analisar os efeitos causais da cultura, a análise deve
focar nas “estratégias de ação”, ou seja, formas persistentes de ordenar a ação
através do tempo. E terceiro, essa análise vê a significância causal da cultura não
definindo fins para a ação, mas providenciando componentes culturais que são
usados para construir estratégias de ação.
A fim de mostrar que os valores não são os fins últimos que guiam a ação,
Swidler – como fazem de forma semelhante Somers e Gibson (1994) e Lamont
(2000) explicita em seu livro – argumenta que as aspirações presentes nas
similaridades de classe de nenhuma forma resolvem a questão sobre a existência
de diferenças de classe na cultura. Em outras palavras, as pessoas podem

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compartilhar aspirações comuns ao mesmo tempo em que permanecem


profundamente diferentes na forma como sua cultura organiza seus padrões gerais
de comportamento. Nesse sentido, a cultura é mais parecida com um estilo ou
conjunto de habilidades do que com um conjunto de preferências ou desejos.
Assim, para adotar uma linha de conduta, é necessária uma imagem do mundo no
qual se está tentando agir, um senso de que é possível ler com razoável precisão
como agir, e uma capacidade de escolher entre alternativas linhas de ação. A falta
destas habilidades constitui um “choque cultural” e é notada quando as pessoas se
movem de uma comunidade cultural para outra (Swidler, 1986:275).
Esta questão é explicitada no livro de Lamont (2000), no capítulo em que a
autora aborda a relação entre os trabalhadores franceses e os imigrantes norte-
africanos. Os trabalhadores franceses constroem uma imagem dos norte-africanos
como violadores dos seus padrões de valor. Esses imigrantes são criticados por
uma suposta falta de ética de trabalho, senso de responsabilidade e civilidade.
Além disso, sendo a França um país de valores caracteristicamente laicos, esses
imigrantes são considerados incompatíveis com os franceses por serem
muçulmanos. Os imigrantes norte-africanos, por sua vez, enfatizam o fato de
seguirem o caminho “honesto” e as regras do respeito, considerados temas
importantes na tradição do Alcorão. Cito um exemplo deste “choque cultural”
através do depoimento de um técnico ferroviário francês:

Nós temos que ser honestos. O problema é que eles não têm a mesma
educação, os mesmos valores que nós temos... A maioria dos franceses não
acredita em deus, mas todos têm uma educação cristã que regula nossos
relacionamentos. Mas o Alcorão não tem os mesmos valores. Eles enviam
crianças para serem mortas em campos minados no Iraque. Na França, se
você matar uma criança, isso realmente é um escândalo. Mas naqueles
países, as coisas sociais não são tão importantes. A mãe é feliz em enviar
seu filho para ser morto nos campos minados. Ela vai chorar, é verdade, ela
vai ter a mesma dor que uma mãe europeia, mas não é a mesma coisa... E
existe também o respeito dos próprios valores da vida. As mulheres no
mundo muçulmano não têm lugar. Ao passo que aqui na França eu lavo
louças... Em um momento minha mulher teve depressão, e eu fiquei com
meus filhos... (Lamont, 2000:179).

Swidler (1996) argumenta então que a ação é integrada ao que ela chama
de “estratégias de ação”, ou seja, formas gerais de organizar a ação que permitem
alcançar diferentes objetivos na vida. Ao mesmo tempo em que incorporam, essas
estratégias dependem de hábitos, maneiras, sensibilidades e visões de mundo. 6
Nesse sentido, as pessoas constroem linhas de ação a partir de ligações pré-
fabricadas. No entanto, esses “guias” para a ação não são unificados e
consistentes, mas estariam mais próximos de um “repertório” ou “kit de

6
Como Swidler sugere no texto, conferir Geertz (1973) sobre “ethos” e “visão de mundo”.

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ferramentas” cultural, a partir do qual os atores selecionam diferentes partes para


construir linhas de ação (op. cit.:277).
A cultura é usada na sociologia para explicar, segundo a autora,
continuidades na ação em face de mudanças estruturais. É o caso dos imigrantes
analisados por Lamont, por exemplo, que são orientados a agir culturalmente de
maneiras determinadas quando ainda preservam hábitos “tradicionais” em novas
circunstâncias. Outra apropriação do uso explicativo da cultura é descobrir por que
diferentes grupos se comportam de formas diversas nas mesmas condições
estruturais, como é o caso dos trabalhadores americanos também analisados por
Lamont. Além disso, a cultura aponta continuidades na forma de viver de grupos
particulares (Swidler, 1986). Mas a autora argumenta que a cultura tem igualmente
um papel central na mudança social contemporânea. Para isso, sugere dois
modelos de diferente influência cultural: o primeiro é a “existência estável” (settled
lives) e o segundo é a “existência instável” (unsettled lives).
Essa “existência instável” é caracterizada por períodos de transformação
social, que atestam forte evidência da influência da cultura na ação social. Nesses
períodos, as ideologias estabelecem novos estilos ou estratégias de ação. Isto
porque, quando as pessoas estão aprendendo outras maneiras de organizar a ação
individual e coletiva, praticando hábitos estranhos até que se tornem familiares, as
doutrinas, os símbolos e os rituais são determinantes para a ação. 7 Nesses casos, a
cultura “forma diretamente a ação” (Swidler, 1986:279), além de possibilitar novas
estratégias de ação através da construção de “entidades” que possam atuar (como
o “eu”, famílias e corporações) estruturando os estilos e as habilidades para a ação
e modelando formas de autoridade e cooperação.
Já nos períodos estáveis de vida, a conexão entre cultura e ação acontece de
forma diferente. A cultura aqui explica as continuidades e está intimamente
integrada com a ação. Nesses casos, estamos mais “tentados” a ver os valores
como organizadores dos padrões de ação, bem como é mais difícil identificar o que
é unicamente “cultural”, já que a cultura e as circunstâncias estruturais parecem se
reforçar mutuamente. Com isto, a ação adquire um constrangimento maior, porque
a cultura providencia um limitado conjunto de recursos fora dos quais os indivíduos
e os grupos constroem estratégias de ação. Por conseguinte, os significados dos
elementos particulares da cultura dependem, em parte, das estratégias de ação nas
quais eles estão inseridos (op. cit.:281).
Essas abordagens distintas sugerem uma importância diferenciada dos
valores na formação das ações. Nos períodos instáveis da vida social, é improvável

7
O artigo “Ritual and Social Change: a example Javanese”, de Geertz (1973), é especialmente sugestivo
sobre o papel da ideologia e da tradição em períodos de mudança social.

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que os valores tenham influência determinante sobre a ação, justamente por não
estarem ainda estabelecidos. Já nos períodos estáveis da vida social, os valores
desempenham um papel significante. Isto porque constituem importantes
equipamentos culturais para o estabelecimento de estratégias de ação. Devemos
reconhecer, com isto, que os valores não formam a ação por definirem seus fins,
mas antes ajustam com precisão a regulação da ação segundo formas
estabelecidas de vida (op. cit.:282).
Assim, pensar a cultura como um “kit de ferramentas” que influencia as
estratégias de ação desenvolvidas pelos atores sociais implica refletir sobre
experiências simbólicas, motivações, modos de regular a conduta e maneiras de
formar laços sociais que caracterizam, e dão identidade, aos indivíduos e aos
grupos. Entretanto, essa construção da identidade através de tais estratégias de
ação também se dá pela diferença, como é o caso do estabelecimento de fronteiras
enquanto recursos simbólicos para criar, manter, contestar ou mesmo dissolver
diferenças sociais institucionalizadas (Lamont & Molnár, 2002:168).
Nesse sentido, conforme assinalam Lamont e Molnár (2002) no artigo “The
study of Boundaries in Social Science”, os sociólogos que trabalham com a
dimensão da cultura centram sua atenção em como as fronteiras são formadas pelo
contexto e, particularmente, por repertórios culturais, tradições e narrativas a que
os indivíduos têm acesso. Sugerem assim que devemos apreender como
concepções de autovaloração e fronteiras de grupos são formadas por definições
institucionalizadas de pertencimento cultural. Por conseguinte, através do
estabelecimento de similaridades e diferenças, os grupos se definem enquanto tais.
As autoras chamam a atenção para dois tipos de fronteiras no
estabelecimento de diferenças sociais. As chamadas “fronteiras simbólicas”
constituem distinções conceituais feitas pelos atores sociais para categorizar
objetos, pessoas, práticas e até mesmo o tempo e o espaço. Permitem-nos captar
as dimensões dinâmicas das relações sociais. Além disso, separam pessoas dentro
dos grupos e permitem gerar sentimentos de similaridade e pertencimento de
grupo. Já as “fronteiras sociais” referem-se a formas concretas de diferenças sociais
manifestadas em um acesso desigual para uma distribuição também desigual de
recursos e oportunidades sociais. Estes dois tipos de fronteiras são igualmente
reais. Enquanto as primeiras existem no nível intersubjetivo, as últimas se
manifestam enquanto grupos de indivíduos. As fronteiras simbólicas podem ser
pensadas, deste modo, como uma condição necessária, mas não suficiente para a
existência de fronteiras sociais (Lamont & Molnár, 2002:168, 169).
Desta forma, nas palavras das autoras: “A teoria da identidade social tem se
preocupado particularmente com a permeabilidade do que chamamos fronteiras

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simbólicas e sociais e seus efeitos nas estratégias de mobilidade coletivas e


individuais” (op. cit.:170). É o caso do estudo de Lamont (2000), no qual a autora
estende o conceito de fronteira de trabalho para a identidade com o objetivo de
demonstrar a importância das fronteiras morais.
Outro uso importante da abordagem analítica das fronteiras encontra-se no
tema das desigualdades étnicas e raciais. Esta perspectiva considera a construção
de identidades étnicas e raciais como resultado de um “processo de autodefinição”
e a construção de fronteiras simbólicas e atribuição de identidades coletivas por
outros (Lamont & Molnár, 2002:175). Mais uma vez recorremos a Lamont (2000),
que analisa como as amplas perspectivas morais dos trabalhadores os conduzem a
desenhar fronteiras raciais. Desse modo, enquanto os trabalhadores brancos
associam os negros à pobreza e à falta de ética de trabalho, os negros associam os
brancos à classe média egoísta, rebatendo o racismo através de estratégias
universalistas. Nas palavras da autora:

A assimetria na capacidade dos dois grupos em disseminar uma visão


demonizada do outro é chave para entender o papel crucial que a cultura
desempenha na reprodução da desigualdade racial na sociedade americana.
As definições de valor moral, nas quais essas visões demonizadas são
baseadas, não são apenas diferentes; elas também têm um impacto muito
desigual na cultura americana predominante. São centrais para a construção
da identidade racial branca e negra e para o racismo americano. Contribuem
diretamente para a crescente desigualdade nos recursos a que os brancos e
os não-brancos têm acesso [...]. O relativo isolamento dos brancos em
relação aos negros, e vice-versa, desempenha um papel na sustentação de
estereótipos raciais e um empobrecimento na compreensão da cultura do
outro em ambos os grupos (Lamont, 2000:95, 96).

O estudo das fronteiras também é importante no que se refere aos


imigrantes e na definição dos países em oposição a outros. Lamont e Molnár (2002)
argumentam nesse sentido que, ao contrário dos antropólogos que enfatizam o
declínio do nacional através da hibridização, os estudos sociológicos sugerem uma
saliente persistência das fronteiras nacionais ao menos na estruturação dos
repertórios culturais disponíveis. É justamente o que Lamont (2000) argumenta no
caso dos imigrantes norte-africanos que vão viver na França. Segundo a autora, os
franceses fornecem mais explicações culturais do que os americanos para
diferenças etnorraciais que enfatizam “incompatibilidades culturais” (op. cit.:171).
A análise das fronteiras enquanto estratégias de ação permite, portanto,
uma incursão ao tema do pertencimento cultural. Como o livro de Lamont explicita,
da mesma forma que a construção das narrativas e, consequentemente, das
identidades coletivas e individuais, a noção de fronteira é fundamental para
compreender de que forma os atores sociais constroem os grupos como similares e

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diferentes, e como eles formam o entendimento de suas responsabilidades para tais


grupos (Lamont & Molnár, 2002:187).

Considerações finais

No livro The Dignity of Working Men: Morality and the Bondaries of Race,
Class and Immigration, Lamont (2000) explica os padrões de fronteiras em relação
a negros, imigrantes, classe alta e classe baixa nos Estados Unidos e na França,
através dos repertórios culturais disponíveis e das condições estruturais nas quais
os trabalhadores vivem. Esses padrões de fronteiras funcionam, segundo a autora,
como “estruturas culturais”, ou seja, “repertórios culturais institucionalizados ou
sistemas de categorização publicamente disponíveis” (op. cit.:243). Isto permite
explicar tanto variações intranacionais quanto entre nações. Como esses padrões
são historicamente contingentes, os repertórios culturais e as condições estruturais
transformam-se.
Como já dito anteriormente, a pesquisa da autora proporciona uma
avaliação empírica das teorias pós-modernas da identidade, que a tomam como
construída, oposta ao primordial, ao essencial e ao fixo no tempo. Essas teorias
consideram a identidade múltipla, autorreflexiva, “plural” e “descentralizada”,
definida através de princípios relacionais que funcionam de maneira indiferenciada
por meio de contextos. Entretanto, mesmo concordando que as identidades são
instáveis ou fragmentadas, Lamont estabelece empiricamente que alguns padrões
de autoidentificação e de fronteiras são mais plausíveis em um contexto do que em
outro. Isto não é, segundo a autora, negar a importância da agência individual,
mas enfatizar o fato de que ela é “delimitada pelo contexto diferencialmente
estruturado no qual as pessoas vivem” (op. cit.:244). Assim, em suas palavras:

Meus achados sugerem que, de fato, o padrão americano de exclusão para os


pobres, negros e imigrantes é diferente dos padrões em outros lugares, ou
no mínimo na França. Entretanto, eles também sugerem, de acordo com os
oponentes dessa tese, que o padrão americano não é menos exclusivo que o
encontrado na França. Mais ainda, em vez de considerar as classes
trabalhadoras como radicalmente diferentes umas das outras, eu mostro que
suas visões de mundo se sobrepõem. Por exemplo, os trabalhadores em
ambos os países enfatizam a importância do trabalho duro, da
responsabilidade, e de manter o mundo em uma ordem moral (Lamont,
2000:245).

Nesse sentido, a autora enfatiza na conclusão de seu livro a importância de


estudar questões como conflitos de classes ou fronteiras raciais a partir do
contexto, tanto estrutural como cultural, no qual os atores sociais estão inseridos.
De forma semelhante, Swidler (1986) chama a atenção para o desafio da sociologia

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contemporânea da cultura em mostrar como a cultura é usada pelos atores, como


os elementos culturais constrangem ou facilitam padrões de ação, que aspectos de
um patrimônio cultural têm efeitos duradouros sobre a ação, e que mudanças
históricas específicas enfraquecem a vitalidade de alguns padrões culturais dando
origem a outros (op. cit.:284).
Tomar a cultura enquanto foco analítico permite compreender o processo
pelo qual as identidades são construídas. Lamont (2000), nesta perspectiva, mostra
como a passagem de uma fronteira simbólica ou social para outra tem a ver com
uma questão identitária. Este ensaio esboçou, portanto, a viabilidade de uma
análise sociológica da cultura a partir de categorias como a identidade, as
narrativas e as estratégias de ação que permeiam a vida dos atores sociais e
caracterizam seu pertencimento cultural.

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Para citar este artigo:

FONTES, Bárbara de Souza. A cultura na sociologia contemporânea: identidades,


narrativas e estratégias de ação. Revista Enfoques: revista semestral eletrônica
dos alunos do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ,
Rio de Janeiro, v.9, n.1, p.77-93, agosto 2010. Em: http://www.enfoques.ifcs.ufrj.br.

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