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OCIDENTAL
Sergio Ghivelder
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo apresentar ao músico ocidental e especialmente aos
flautistas/clarinetistas/saxofonistas, o bansuri, flauta de bambu utilizada no norte da Índia. O
bansuri, devido à ausência de chaves mecânicas, oferece recursos e possibilidades únicas em
relação a outros instrumentos de sopro e está ganhando mais espaço fora do seu país de
origem e em variados contextos musicais.
ABSTRACT
The present article aims to introduce to the western musician and especially to flute/clarinet/
saxophone players, the bansuri, a bamboo flute used in northen India. The bansuri, due to the
absence of mechanical keys, offers unique features and possibilities compared to other wind
instruments and is gaining more space outside its home country and in various musical
contexts.
1 INTRODUÇÃO
Bansuri é o nome local de uma flauta de bambu utilizada no norte da Índia e também
no Paquistão, Bangladesh e Nepal. O nome é derivado da junção das palavras em sânscrito
bans, que significa bambu, e sur, que significa nota ou melodia. O presente artigo tem o
objetivo de introduzir o instrumento para aqueles que não o conhecem e explicar por que uma
flauta aparentemente tão primitiva está começando a ganhar mais espaço fora do seu país de
origem e em variados contextos musicais.
A apropriação do bansuri por outros gêneros musicais, aqui sugerida e constatada, não
é uma tentativa de inclusão de um elemento “exótico” ou “oriental” como seria
inevitavelmente o uso de uma cítara indiana1. O timbre do bansuri é muito semelhante ao de
uma flauta ocidental e os dois instrumentos podem ser facilmente confundidos. Mais do que o
timbre, a diferença principal entre os dois instrumentos é o fato do bansuri ter desenvolvido
uma técnica de dedilhado com o objetivo específico de explorar o espaço entre as notas.
Glissandos e variações microtonais2 fazem parte da essência da música indiana e são,
portanto, considerados recursos indispensáveis em um instrumento musical.
Ao contrário, no ocidente, os instrumentos musicais em geral, e particularmente os
instrumentos de sopro, desenvolveram-se em torno das necessidades da música orquestral dos
séculos XVIII e XIX que, além de virtuosismos, requer a divisão da escala em 12 semitons
idênticos seja no intervalo seja no timbre. O foco está na capacidade de saltar entre as notas
com a velocidade e destreza de um piano. No caso da flauta transversa, essa necessidade
culminou com uma série de inovações introduzidas pelo alemão Theobald Boehm (1794-
1881). Boehm aperfeiçoou um complexo sistema de chaves 3 que, além de aumentar a
extensão da flauta, permitia virtuosismos cromáticos impossíveis até então. A invenção de
Boehm foi sucessivamente adaptada a outros instrumentos como o oboé e o clarinete e não
sofreu alterações significativas até os dias de hoje. Enquanto cem por cento eficaz na
execução de cromatismos e modulações, o sistema de chaves dificulta muito a capacidade
mencionada de executar glissandos e ornamentos que requerem variações microtonais.
1 Exemplos famosos e pioneiros do uso da cítara na música popular são as canções Norwegian Wood e Love
You To dos Beatles.
2 Um microtom é qualquer intervalo menor do que um semitom.
3 Boehm descreve minunciosamente a sua invenção no livro Die Flöte und das Flötenspiel in akustischer,
technischer und artistischer Beziehung, publicado pela primeira vez em 1871.
A partir do século XX porém, a flauta criada por Boehm especificamente para a
música do século XIX, começa a ser considerada limitada em vários ambientes, desde a
música contemporânea ao jazz. A busca por novas sonoridades e recursos produziu manuais
de “técnicas expandidas” para a flauta e outros instrumentos de sopro. No seu livro The Other
Flute, Robert Dick (p. V, 1975) reconhece a importância da capacidade de produzir microtons.
Ele afirma: “The traditional conceptual limitations of the flute exclude it from many of the
innovations taking place in the musical fields of the avant-garde, jazz, and rock 4”. Bruno
Bartolozzi (p. 1, 1967, tradução nossa), citado por Dick como uma importante influência no
seu trabalho, em relação à música contemporânea, afirma: “As limitações conceituais
tradicionais da flauta a excluem de muitas das inovações que estão ocorrendo nos campos
musicais da avant-garde, do jazz e do rock”. Eve E. O'Kelly (p. 97-98, 1990) também aborda
a capacidade da flauta doce de produzir glissandos límpidos e graduais, tendo em vista a
ausência de chaves.
É claro que existe uma relação direta entre a música de uma determinada cultura e
seus instrumentos musicais. Deixando de lado os instrumentos de percussão, raramente um
instrumento musical é utilizado em uma cultura diferente daquela para a qual se desenvolveu.
Existem, porém, algumas exceções e talvez uma das mais antigas e interessantes seja a adoção
do violino por parte da música indiana. O violino, que ao contrário de outros instrumentos
ocidentais, é capaz de explorar com facilidade o espaço entre as notas, tornou-se, com uma
técnica de dedilhado transformada, um instrumento indiano para todos os efeitos.
É interessante notar que esse mesmo processo de apropriação ocorreu dentro da
própria música indiana, quando a música erudita começou a utilizar instrumentos, entre eles o
bansuri, que eram até então associados a contextos predominantemente folclóricos. Os
instrumentos envolvidos tiveram assim que reinventar suas técnicas para adaptar-se ao novo
status quo. Carl Clements, flautista/saxofonista americano que escreveu uma tese de
doutorado sobre o bansuri, diz:
4 “Some composers already show an obvious lack of interest in conventional instruments and have no
hesitation in using the most unusual means in an effort to find new sonorities”.
5 “The twentieth century in India was a time of dramatic change, [...] many factors contributed to a major
restructuring of the Indian musical landscape. An important outcome was the introduction onto the classical
stage of musical instruments not previously featured as prominent solo voices, such as bānsurī, sārangī,
shahnāī, and santūr”
2 O INSTRUMENTO
Fig. 1 - Bansuri
6 Outros instrumentos de sopro provenientes de diversas culturas, como o Shakuhachi do Japão, o Ney do
oriente médio, ou a Quena dos Andes, são totalmente diferentes no modo de produzir o som.
7 Os adornos coloridos não alteram o som produzido e não possuem uma função prática, exceto nos casos
frequentes em que uma flauta racha e fios e cola são utilizados para manter juntos os pedaços rachados.
Instrumentos com múltiplas rachaduras podem continuar a ser utilizados normalmente.
8 Bansuri fabricado por Subhash Thakur (https://www.punamflutes.com) de Nova Delhi, um dos melhores
fabricantes da atualidade. Imagem do fabricante utilizada com a devida autorização.
9 Os nós são constituídos por um diafragma que isola o entrenó anterior do próximo.
10 A flauta de metal também possui um mecanismo que permite ajustar a posição da tampa.
distância entre o ponto central da embocadura e a tampa é aproximadamente a mesma do
diâmetro do tubo. Na prática, porém, existem muitas variáveis e, frequentemente, essa
distância é substancialmente menor11.
O bansuri possui, além da embocadura, seis furos para os dedos (índice, médio e
anular de ambas as mãos). Vista a ausência de chaves, é possível segurá-lo voltado para os
dois lados com qualquer uma das mãos nos furos superiores. Hariprasad Chaurasia (1938), o
flautista mais famoso da Índia de todos os tempos, é um exemplo de músico canhoto que
prefere segurar o bansuri com a mão direita mais perto da embocadura 12. Além dos furos para
os dedos, o bansuri possui um furo adicional que permanece aberto 13. Instrumentos mais
antigos não possuem esse sétimo furo. A presença do furo adicional, inovação atribuída ao
grande músico e flautista Pannalal Ghosh (1911-1960), diminui um pouco a distância entre os
outros furos facilitando assim a posição das mãos, especialmente nos instrumentos de grande
dimensão. Estudioso da obra de Ghosh, Clements (2011, p.374) afirma que "Ghosh
redesenhou o bansuri para melhor atender os requisitos da música clássica Hindustani".
A dimensão é certamente o diferencial mais importante entre o bansuri e outras flautas
de bambu produzidas pelo mundo afora. Quanto maior é a flauta, mais grave é o som. Um
bansuri padrão, utilizado como solista na música clássica do norte da Índia, tem
aproximadamente 80 centímetros de comprimento e a nota mais grave é um Si2 14, mas
existem instrumentos de várias dimensões.
Tradicionalmente, não é a nota mais grave a definir a altura de um bansuri e sim a nota
produzida com os três furos superiores fechados15. Essa nota, chamada Sa, é considerada a
fundamental de todos os bansuris e sua frequência específica dependerá da dimensão do
instrumento. Assim que, como podemos ver na fig. 2, os nomes das notas representam
dedilhados específicos, válidos para bansuris de qualquer dimensão. Esse sistema é análogo
ao famoso Dó móvel utilizado pelo compositor húngaro Zoltán Kodály (1882-1967). Os
nomes das notas, SA RE GA MA PA DHA NI, não representam frequências específicas e sim
intervalos em relação ao SA fundamental. Visto que existem bansuris de várias dimensões, é
muito útil utilizar uma nomenclatura diretamente relacionada ao dedilhado utilizado16.
11 No caso do bansuri da fig. 3, o diâmetro interno do bambu é de 24 mm enquanto a distância entre a tampa e o
ponto central da embocadura é de apenas 10 mm.
12 Por essa razão, o presente texto utilizará os termos mão “superior” ou “inferior”, em vez de direita e
esquerda.
13 Ocasionalmente, e dependendo da sua posição, o furo suplementar pode ser fechado com a coxa ou o dedo
mínimo da mão inferior, obtendo assim uma nota aproximadamente um semitom mais grave.
14 Meio tom abaixo do Dó3 da flauta moderna tradicional.
15 No caso do Venu, flauta de bambu utilizada no sul da Índia, o SA fundamental é obtido fechando somente os
dois furos superiores.
16 Na escala relativa indiana o SA e o PA (fundamental e quinta justa) são imutáveis. O MA (quarta) pode ser
Fig. 2 – Dedilhado básico
normal (Suddha) ou Tivra (sustenido) enquanto que o RE (segunda), o GA (terça), o DHA (sexta) e o NI
(sétima) podem ser normais (Suddha) ou Komal (bemol).
17 A diferença no comprimento do tubo entre os dois instrumentos é devida ao fato que no bansuri a nota mais
grave é produzida com o sétimo furo aberto.
Fig. 3 – Bansuri e flauta em Dó
Visto que não é possível alcançar os orifícios com a ponta dos dedos, torna-se
necessário segurar o instrumento diferentemente; como podemos ver na foto (fig. 4), retirada
da tese de Mestrado de Catherine Potter (1957-2010), musicista canadense aluna do
Chaurasia, apenas os anulares cobrem os orifícios com a ponta dos dedos. Os dedos indicador
e médio, de ambas as mãos, utilizam a falange média para cobrir os orifícios do bansuri.
Ainda que obter instrumentos de boa qualidade não seja uma tarefa fácil, pode-se dizer
que, do ponto de vista artesanal, o bansuri, assim como outras flautas de bambu, é um dos
instrumentos musicais mais simples do planeta. Até mesmo outras flautas de bambu, como o
sakuhachi, possuem um processo de construção mais complexo, visto que as membranas dos
nós devem ser perfuradas internamente. Porém, como veremos adiante, os recursos que fazem
do bansuri uma flauta versátil, capaz de adaptar-se à qualquer gênero musical, não derivam da
complexidade do instrumento, e sim da técnica de dedilhado utilizada para a sua execução.
3 TÉCNICAS DE DEDILHADO
O bansuri, como qualquer outra flauta, produz notas de várias alturas de acordo com o
comprimento do tubo. A primeira oitava (do PA mais grave ao Tivra MA) é produzida abrindo
em sucessão os orifícios desde todos fechados 18 até todos abertos. A segunda oitava é
produzida com os mesmos dedilhados, mas com uma pressão de sopro maior e, portanto, uma
mudança de registro. As notas obtidas são o primeiro harmônico das notas da primeira
oitava19. As notas da terceira oitava são produzidas a partir de diferentes harmônicos das notas
fundamentais, mas precisam, para a sua produção e afinação, ser ajustadas com dedilhados de
forquilha, denominação utilizada quando há orifícios abertos entre os cobertos pelos dedos.
Uma das primeiras tabelas de dedilhado (fig. 5) para a flauta transversa, presente no livro
Harmonie universelle de Marin Mersenne, teórico musical, matemático e filósofo francês
(1588-1648), ilustra perfeitamente o que foi dito:
A tabela de Mersenne, essencialmente válida seja para o bansuri que para o Dizi chinês
ou o Pife brasileiro, ilustra uma realidade comum a todos esses instrumentos: se abrir um
orifício produz um intervalo de um tom (com exceção do intervalo NI -SA ou 3-420 da tabela
No caso da flauta doce, em vez da chave, a solução adotada para produzir as notas
21 Girar a flauta para fora (em relação ao flautista) produz notas mais agudas enquanto que girar o instrumento
para dentro produz notas mais graves. A variação porém é limitada.
intermediárias dos primeiros orifícios foi dividi-los em dois pequenos furos separados (fig.7).
Fonte: Yamaha22
A flauta doce é o instrumento de sopro sem chaves que melhor consegue produzir todos os
semitons intermediários em modo uniforme e afinado utilizando somente dedilhados de
forquilha. Por essa razão ela permaneceu inalterada até os dias de hoje. Porém, com o início
do período clássico, é o timbre da flauta transversa que conquista a graça do público e ela
deve adaptar-se à um novo ideal estético. Nas palavras de Laura Rónai, flautista e
pesquisadora brasileira:
Por volta de 1775, no ápice do período clássico, a flauta passou a ter seis e às vezes
até oito chaves, para facilitar a digitação de passagens rápidas. […] Com o sistema
de temperamento igual, era preciso também criar a possibilidade de compor para a
flauta (e tocar!) em tonalidades variadas, sem abusar dos dedilhados de forquilha,
que impossibilitavam a execução de peças muito cromáticas ou com excesso de
bemóis. (RÓNAI, 2008, p. 38-39).
25 “There is a common assumption we come across when learning Western instruments; that we should be able
to play in all 12 keys equally. With regard to bamboo flute playing we must acknowledge the simple fact that
this is physically impossible”.
26 Única exceção o índice da mão inferior.
Potter está ilustrando a técnica empregada pelo seu professor, Chaurasia. Bansuristas
discutem por horas sobre qual é a melhor forma de posicionar o dedo em cada um dos meios
furos. É possível abrir parcialmente o orifício levantando a ponta do dedo como sugere a fig.
8, diagonalmente como sugere Potter, girando ou arrastando o dedo para cima ou para baixo,
ou com qualquer combinação dos movimentos descritos acima.
Não existe uma técnica que possa ser considerada exclusivamente correta. O tamanho da mão,
a forma, a largura e a consistência dos dedos são todos fatores determinantes e variam muito
de uma pessoa para a outra. Além disso, o mesmo flautista pode empregar técnicas diferentes
dependendo da duração da nota e do desenho melódico específico no qual ela ocorre.
27 Potter usa como exemplo padrão a medida de bansuri mais utilizada na música Hindustani, na qual a nota
mais grave, o PA, é Sí e o SA é Mí.
Obviamente, nada impede um flautista de misturar a técnica dos meios furos com
dedilhados de forquilha. O livro de Geisler traz várias sugestões nesse sentido. Na fig. 10,
estão evidenciadas com retângulos vermelhos as suas propostas de dedilhados de forquilha
para as notas Komal GHA e Suddha MA28.
Na prática, porém, se dedilhados de forquilha fossem eficazes, o traverso barroco não teria
desenvolvido chaves. No caso do bansuri, a imperfeição da afinação e a diferença de volume e
de timbre são ainda maiores do que em um traverso. Na minha experiência pessoal, o Suddha
MA da Fig. 10 (segundo retângulo) é o único dedilhado de forquilha afinado o suficiente para
ser útil em alguns casos. A utilidade de outros dedilhados alternativos é limitada a passagens
muito rápidas, nas quais a precisão da afinação não é relevante.
Pode-se dizer que o problema comum de todas as flautas de qualquer cultura sempre
foi a produção das notas intermediárias ou, em outras palavras, como produzir mais notas do
que os dedos que temos à disposição. É curioso que somente o bansuri, e em tempos recentes,
tenha desenvolvido uma solução tão simples como cobrir parcialmente os orifícios. Com isso
não quero dizer que não existam exemplos de dedilhados com meios furos em outras flautas
pelo mundo afora, mas, com certeza, é só com o ingresso do bansuri na música erudita indiana
que essa técnica, conceitualmente simples, mas complexa na sua execução, foi aperfeiçoada
ao ponto de produzir todos os semitons, glissandos e uma infinidade de ornamentos
microtonais com esse nível de sofisticação. Nas palavras do flautista americano Lyon Leifer
que estudou com Pandit Devendra Murdeshwar (1923-2000), genro e discípulo de Pannalal
Ghosh:
28 Geisler usa como exemplo padrão um bansuri no qual a nota mais grave, o PA, é Dó e o SA é Fá.
“Produzir meend e gamak29 em modo uniforme e controlado requer uma acurada
coordenação entre os dedos na qual os dedos cobrem (para a descida) ou deixam
(para a subida) seus orifícios em uma sucessão muito gradual de modo que o efeito
de continuamente alongar ou encurtar a coluna de ar é produzido. Para produzir este
efeito, deve-se experimentar com a colocação lateral dos dedos sobre os orifícios,
bem como a relação vertical de cada um dos dedos envolvidos no glissando em
particular30. (LEIFER, 1997, p. 68, tradução nossa).
4 RECURSOS
Uma vez dominada a técnica dos meios furos, a liberdade de movimentação dentro de
um mesmo registro (do PA, com todos orifícios fechados, ao Tivra MA, todos abertos) é
análoga à de uma corda de violino, na qual o dedo pode deslizar livremente ao longo do braço
do instrumento. Mudar de registro na flauta é equivalente a trocar de corda no violino e por
isso não é possível deslizar de um registro para o outro. A impossibilidade de chegar ao PA
vindo de baixo, constitui uma grande imperfeição do bansuri em relação à própria música
indiana. O PA, quinta justa da escala, em relação ao SA fundamental, é uma nota importante
e, no caso de cantores e outros instrumentistas, é frequentemente abordado dessa forma. Por
essa razão, adicionei, em 1984, um furo suplementar para o polegar da mão superior, criando
assim um dedilhado alternativo para o PA que permite o glissando vindo do grave. Fico feliz
em constatar, 35 anos depois, que essa solução tem sido adotada por outros músicos pioneiros,
como o flautista indiano Pravin Godkhindi31.
A possibilidade de utilizar o espaço entre as notas não é limitada a glissandos. Os
indianos chamam de gamak pequenos ornamentos nos quais as notas são abordadas com uma
variação da altura, seja do agudo ou do grave. Notas repetidas, por exemplo, podem ser
separadas com gamaks. A oscilação pode ser sutil, utilizando intervalos microtonais, ou mais
acentuada, utilizando intervalos maiores. A fig. 11 representa graficamente três notas da
mesma altura separadas por diferentes tipos de gamaks, superiores e inferiores. Sobrepondo e
alternando gamaks com a técnica tradicional de articulação com a língua obtemos uma
variedade impressionante de efeitos sonoros.
29 Meend significa glissando e gamak é um nome genérico para uma variedade de ornamentos que abordaremos
em seguida.
30 “Producing very even and controlled meend and gamak requires a highly practiced type of finger
coordination where the fingers enter (for descent) or leave (for ascent) their tone holes in a very gradual
succession so that the effect of the air column being continuously lengthened or shortened is produced. To
produce this effect, one must experiment with the lateral placement of the fingers over the tone holes as well
as the vertical relation of each of the fingers involved in the particular meend”.
31 No vídeo, disponível no Youtube na página ”https://youtu.be/P3tHZ_o4sJM” Godkhindi, nascido em 1973,
além de utilizar o furo adicional do polegar superior para o PA, também consegue fechar o sétimo furo do
bansuri com o dedo mínimo da mão inferior, obtendo assim um Tivra MA grave.
Fig. 11 – Notas repetidas separadas por gamaks
É fácil cair no estereótipo que esse tipo de ornamentação seja oriental e que no
ocidente as notas sejam sempre utilizadas como as teclas de um piano, porém a realidade é
bem mais complexa. É verdade que a Índia, com uma música predominantemente vocal e
monofônica, desenvolveu toda uma teoria musical em torno do uso de ornamentos e variações
melódicas, enquanto no ocidente, com a polifonia e o tonalismo, a teoria musical é centrada
na utilização de acordes. Porém, se escutarmos atentamente Elis Regina, Ella Fitzgerald ou
Freddie Mercury, citados somente como exemplos aleatórios de diferentes culturas musicais,
notaremos que inflexões vocais de vários tipos são muito mais frequentes do que
imaginamos32. No Jazz, no Rock e na música popular de um modo geral, os instrumentos
musicais criados para a orquestra do século XIX não são mais suficientes. O contrabaixo
perde o arco e começa a utilizar microtons, nasce a guitarra com a técnica do Bend33 e a flauta
transversa começa a perder terreno para o saxofone que, além de possuir uma potência sonora
muito maior não só em relação à flauta, mas também em relação à clarineta (instrumento do
qual tirou a primazia no jazz), também é, devido à embocadura com palheta, bem mais
flexível no ataque das notas.
Ainda que seja possível produzir todos os semitons com a técnica dos meios furos, não
seria sensato utilizar um meio furo como fundamental da escala. É oportuno haver
instrumentos de diferentes dimensões, de acordo com a tonalidade e tessitura desejada. Eu
pessoalmente, como muitos outros bansuristas, utilizo principalmente o bansuri em Dó da
32 No caso de passagens ligadas, cantadas apenas com vogais, sem interrupção do som, o comportamento
natural da voz é executar um glissando rápido entre as notas. Para separá-las totalmente é necessário, no
mínimo, pronunciar uma consoante surda, visto que as pregas vocais param de vibrar nas consoantes surdas.
33 Bend é uma técnica utilizada na guitarra na qual levanta-se ou abaixa-se a corda do instrumento para atingir o
som de outras notas desejadas.
fig.3, outro um semitom mais grave, em sí (a dimensão padrão da música indiana com o SA
em Mí), e um mais agudo, em Ré. Nesse último, os dedilhados coincidem com os da flauta
ocidental. Difícil de tocar, vista a distância entre os furos, o bansuri em Lá (SA = Ré) possui
um timbre grave e aveludado que combina de modo singular com outros instrumentos
acústicos ou como acompanhamento vocal.
5 CONCLUSÃO
Além dos meus próprios experimentos com o grupo SOMA 34, que culminaram em
1990, na Alemanha, com o lançamento do CD Southern Cross, artistas ocidentais
contemporâneos importantes, como Steve Gorn (que colaborou, entre outros, com Paul Simon
e Naná Vasconcelos) e Rão Kyao, muito conhecido em Portugal, utilizam há décadas o
bansuri em vários contextos musicais.
Os músicos mencionados acima estudaram na Índia nos anos 70 e 80 do século
passado. Nessa era pré-Youtube, o acesso à música indiana era restrito à poucas gravações em
LPs, disponíveis em bibliotecas. O acesso à música ocidental na Índia era praticamente
inexistente, limitado à sucessos da música pop que tocavam no rádio. Hoje, a realidade é
muito diferente e uma inteira geração de músicos indianos cresceu com uma sensibilidade
também voltada à música ocidental. Essa nova geração bicultural, capaz de entender e
apreciar dois sistemas musicais totalmente diferentes, não precisa ser convencida de que o
bansuri pode ser utilizado na música ocidental. Eles já estão fazendo isso. É o caso de Rajeev
Prasanna com sua versão da canção Smooth Criminal (do Michael Jackson) para bansuri35 e
do virtuoso paquistanês Baqir Abbas, cuja colaboração com o jazzista Wynton Marsallis é
absolutamente memorável, incluindo um verdadeiro duelo musical entre o bansuri e a flauta
transversa de Ted Nash36.
O objetivo do presente texto é simplesmente apresentar ao músico (e compositor)
ocidental e especialmente aos flautistas/clarinetistas/saxofonistas, uma flauta que pode
parecer primitiva, mas de fato oferece recursos e possibilidades únicas em relação a outros
instrumentos de sopro.
34 Além de mim, os integrantes do grupo eram: Paulo Russo, no contrabaixo acústico, Henrique Lissovsky, no
violão e Edu Szajnbrum, na percussão.
35 Disponível no Youtube na página “https://youtu.be/-QK6ggbBDks”.
36 Disponível no Youtube na página “https://youtu.be/NfLAVNrvVpE”.
REFERÊNCIAS
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Books on Music), 2011 (originalmente publicado na Alemanha em 1871).
BARTOLOZZI, Bruno. New Sounds For Woodwinds. London: Oxford University Press,
1967.
DICK, Robert. The Other Flute: a performance manual of contemporary techniques. New
York: Oxford University Press, 1975.
GEISLER, Joshua. The Chromatic Bansuri: A Cross-Cultural Guide to Learning the North
Indian Bamboo Flute. New York: Covel Music Inc., 2nd edition, 2008.
LEIFER, Lyon. How to Play the Bansuri: A Manual for Self-instruction Based on the
Teaching of Devendra Murdeshwar. Glenview, IL: Rasa Music Company, 1997.
O'KELLY, Eve E.. The Recorder Today. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.
POTTER, Catherine. Hariprasad Chaurasia: The individual and the North Indian Classical
Music Tradition. Tese de mestrado em etnomusicologia: University of Montreal, 1993.
SAMBAMURTHY, P.. The Flute. Madras: The Indian Music Publishing House, 1982.
SHRIVASTAVA, C. L.. Bansuri Shiksha: A Complete Guide to The Flute with Notation.
Varanasi: Sangeet Karyalaya Hathras, 1999.
SOMA. Southern Cross. Alemanha: West Wind Latina, WW2208, 1990. 1 CD.