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André Breton, Nadja e Gérard de Nerval: estranhas relações


Cláudio Willer

Um bom pretexto para voltar a tratar de Breton e surrealismo é o lançamento de


nova edição brasileira de Nadja, agora pela Cosac Naify, que já publicou outras obras
importantes de surrealistas. É, também, uma nova versão da tradução de Ivo Barroso.
Conforme é dito ao final do livro, “Barroso considera o texto publicado na presente
edição uma nova tradução”, assim mostrando ser um verdadeiro tradutor literário,
daqueles que encaram tradução como um compromisso, algo permanente, e não apenas
como tarefa de encomenda.
A circulação de Nadja no Brasil só tem a ganhar com esta edição. Vem
acompanhada por um bom apoio crítico: prefácio de Eliane Robert Moraes, posfácio de
Annie Le Brun, indicações de leitura e excertos da sua recepção, incluindo, entre outros,
os testemunhos capitais de Walter Benjamin, Murilo Mendes e Maurice Blanchot.
Enfim, tudo o que é preciso para que esta porta de entrada para o surrealismo se abra
plenamente para o leitor brasileiro.
Nadja foi a criação literária surrealista de maior repercussão ao ser publicada,
conforme observado nesta nova edição e documentado, entre outros, por Marguerite
Bonnet em Nadja – Réception de l’oeuvre1[1], Patrick Née em Lire Nadja2[2] e
Pascaline Mourier-Casile em Nadja d’André Breton3[3] (a propósito, são índices da
importância e prestígio de uma obra literária não apenas sua publicação em pocket book,
mas bons ensaios a respeito, como este de Mourier-Casile, também sairem em edições
de bolso, de grande tiragem).
Não obstante, Nadja e surrealismo ainda são recebidos de modo reticente e
descartados com ligeireza por boa parte da intelectualidade brasileira. Um exemplo é
este comentário de Silviano Santiago, afirmando que, em Nadja, Breton fez com que a
“[...] descrição lingüística do real fosse substituída pela fotografia
correspondente. Pensavam os surrealistas: imagem por imagem, por que e para
que buscá-las e compô-las com palavras? Recorramos à fotografia. Colemos a
foto ao texto lingüístico.”4[4]
1[1] No volume I das Oeuvres complètes de Breton (Gallimard, col. Pléiade)
2[2] Dunod, Paris, 1993
3[3] Gallimard, coleção Folio, 1994
4[4] No recém-lançado Cardernos de Literatura Brasileira - 10 anos, do Instituto Moreira
Salles, citado por Antonio Fernando de Franceschi, em um ensaio, no restante muito
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E ainda se refere, citando Robe-Grillet, ao “preguiçoso André Breton, o do


romance Nadja.”
Descrição substituída pela fotografia? De fato, Breton afirmou, no prefácio de
1962 para Nadja, que a “abundante ilustração fotográfica” no livro “objetiva eliminar
qualquer descrição.” Mas isso tornaria Breton preguiçoso? Como...? A mesma crítica
não valeria para outras obras literárias acompanhadas de fotografias? Por exemplo,
Paranóia de Roberto Piva, com as fotos de Wesley Duke Lee na edição original de
Massao Ohno e naquela do Instituto Moreira Salles?
Há confusão entre duas coisas: uma, a recusa da narrativa de ficção por Breton;
outra, uma recusa da escrita. Nadja relata os encontros, durante alguns dias, de André
Breton com uma mulher estranha e visionária, que acabaria internada em hospícios até o
fim de seus dias. Fascina pelo caráter não-ficcional do que é relatado. É a transposição
para a escrita da identificação surrealista entre arte e vida, invertendo a relação entre
esses dois planos. Tem especial importância pelo modo como funde gêneros e pela alta
voltagem poética. Breton, nesta e em outras de suas obras também acompanhadas por
ilustrações, não abandonou as palavras. Nos milhares de páginas de poesia, narrativa em
prosa, ensaio, manifestos e artigos que deixou, como o atestam os quatro volumes da
sua obra completa na coleção Pléiade, há passagens de “descrição lingüística do real”,
mesmo acompanhadas por fotografias. Por exemplo, em O Amor Louco, as descrições
do mercado de flores em Paris e do alto do Pico de Teide nas Ilhas Canárias; em Arcano
17 há bastante sobre os rochedos da Gaspésia. Em Nadja, além de narrar os episódios
marcantes da sua relação com essa mulher misteriosa, e antes, na primeira parte do
livro, as “petrificantes coincidências” que a precederam, descreve e comenta as
fotografias e outras imagens adicionadas ao texto.
A contradição aparente – Breton fazer, em suas narrativas em prosa, o que
rejeitara no primeiro Manifesto do Surrealismo – é examinada por Jean-Luc Steinmetz
em André Breton et les surprises de l’amour fou 5[5]: sim, o surrealista descreveu cenas
e situações – mas descrevia aqueles lugares e acontecimentos em que a realidade se
comportava ou aparecia como sonho; quando o real se tornava surreal, maravilhoso. O
que Breton não queria era registrar o banal, o prosaico: “não tenho por hábito alardear
os momentos nulos da minha vida”, afirmou no primeiro Manifesto do Surrealismo.

informativo, sobre criação literária


5[5] Presses Universitaires de France, Paris, 1994.
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De qualquer modo, boas narrativas em prosa interessam por suas qualidades


poéticas, como já havia exposto outro anti-realista, Baudelaire, em sua apreciação de
Madame Bovary de Flaubert: vendo a protagonista como personagem heróica e
interpretando-a como hermafrodita, criatura superior, inverteu o julgamento moral do
próprio Flaubert. Aliás, e ainda a propósito de Flaubert, grandes obras literárias sempre
têm algo a mais, mostram outra coisa, como observou Breton nas páginas iniciais de
Nadja:6[6]
“Não sou dos que cultuam Flaubert e, no entanto, se me garantem que, segundo
sua própria afirmativa, ele quis, com Salammbô, apenas “dar a impressão do
amarelo” e, com Madame Bovary, apenas “fazer algo que tivesse a cor do mofo
daqueles cantos onde nascem tatuzinhos”, pouco se importando com o restante,
preocupações assim, acima de tudo extraliterárias, me predispõem a seu favor”:

A concomitante reedição de Nadja e reaparição do comentário de Silviano


Santiago oferecem um bom pretexto para tratar de algumas qualidades tipicamente
literárias de Breton, incluindo suas relações com outros autores, em geral, e com Gérard
de Nerval, em particular.
Ninguém escreve no vazio, a partir de nada, do zero. Criação literária sempre é
diálogo com outras leituras, mesmo no mais desenfreado espontaneísmo, na mais pura
escrita automática. Já demonstrei isso em outra ocasião, aqui em agulha7[7]. E, antes de
mim, Michael Rifaterre,8[8] ao expor o intertexto ou “inconsciente do texto” em uma
passagem do extenso poema em prosa Peixe Solúvel de Breton9[9], resultado da escrita
automática .
Em Nadja, não falta esse diálogo com outras obras e autores. Na parte inicial, de
modo explícito, ao tratar dos estranhos acontecimentos, os acasos, “coincidências
petrificantes” que prefiguram sua aparição, há o comentário sobre Flaubert, e também
sobre Huysmans, Rimbaud, Apollinaire.

6[6] Mais sobre a originalidade do Breton leitor de literatura em meu André Breton, 40 anos
depois: o crítico literário, em agulha 53.
7[7] Em meu texto sobre escrita automática publicado aqui, em Agulha 54, a escrita
automática e outras escritas
8[8] The Surrealist Libido: André Breton’s “Poisson soluble, Nº 8, em André Breton today,
organizado por Anna Balakian e Rudolf E. Kuenzli, Willis Locker & Owens, Nova Iorque, 1989
9[9] Manifestos do Surrealismo, Nau editora, Rio de Janeiro, 2001.
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A segunda parte do livro é aquela, segundo Breton na forma de “observação


neuropsiquiátrica”, em que são relatados os encontros com Nadja, ocorridos entre 4 e13
de outubro de 1926.
Na terceira parte, escrita depois de Breton saber que Nadja havia sido internada,
há poesia em prosa. Ele observa que está a escrever sobre um mundo que se
transformava durante o intervalo “que separa essas últimas linhas daquelas que,
folheando o livro, pareceriam encerrá-lo duas páginas atrás”, pois a vida e a cidade não
param de mudar. Pouco depois dos acontecimentos que acabara de relatar, seus cenários
já se haviam modificado. O teatro onde assistira a uma peça insólita estava fechado, em
reformas. A estátua de Étienne Dolet na Praça Maubert, que lhe provocava mal-estar,
cercada de tapumes, em restauração. A cidade é um organismo mutante, vivo:
“Não sou eu quem vai meditar sobre o que advém da "forma de uma cidade",
nem mesmo da verdadeira cidade, alheia e abstrata, daquela em que moro, por
força de um elemento que seria para a minha mente o que o ar é para a vida. Sem
nenhum arrependimento, agora a vejo tornar-se diferente e até fugir. Resvala, se
incendeia, afunda no redemoinho de suas barricadas, no sonho das cortinas de
seus quartos, onde um homem e uma mulher continuarão a se amar
indiferentes.”
Há aqui uma citação de Baudelaire e da sua visão do efêmero associado à
modernidade (continuo achando que esta nova edição deveria ter algumas notas de
rodapé a mais, mostrando essas conexões, óbvias para o leitor francês, mas nem tanto
para o brasileiro). Em tradução livre e literal: “De uma cidade a forma muda mais
depressa que um coração infiel”. Isso foi observado por Flávia Nascimento, tradutora e
prefaciadora de O Camponês de Paris de Aragon10[10] (outra via de acesso importante
ao surrealismo, disponível para o leitor brasileiro), citando o trecho correspondente de
O Cisne, de As Flores do Mal, e remetendo ao que Walter Benjamin escreveu sobre
ruínas da modernidade em Parque Central: “Baudelaire já constatara, antes deles, que a
forma de uma cidade muda mais rapidamente que o coração de um mortal, o que faz
com que tudo transmude incessantemente em amontoados de ruínas, em alegorias.”
(outros três ensaios importantes de Flávia Nascimento sobre a relação de surrealistas e
outros autores com Paris estão publicados aqui, em agulha).
Baudelaire não está presente apenas nesse trecho. Nadja e o conjunto de textos
surrealistas sobre o maravilhoso urbano, ao adotarem a disponibilidade e a flânerie, são

10[10] Imago, Rio de Janeiro, 1998.


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continuadoras do Baudelaire poeta de Paris. Na série Quadros Parisienses, que


compõem as Flores do Mal, é a “Cidade a fervilhar, cheia de sonhos.” Nela, “Flui o
mistério em cada esquina, em cada fronde,/ Cada estreito canal do colosso
possante.”11[11] Como crítico de arte, Baudelaire argumentou em favor da “beleza nova
e particular” presente na cidade: “A vida parisiense é fecunda em temas poéticos e
maravilhosos. O maravilhoso nos envolve e sacia como a atmosfera; mas não o
vemos.”12[12] Em um ensaio famoso, Walter Benjamin mostrou que assim se
inaugurava uma nova relação entre o poeta e a metrópole, simbolizada pelo flâneur, o
caminhante desgarrado: “Pela primeira vez, com Baudelaire, Paris se torna objeto da
poesia lírica”.13[13] Uma das conseqüências dessa flânerie, dessa errância sem destino
definido, foi o modo como Breton encontrou Nadja.
No primeiro Manifesto do Surrealismo, Breton já tomaria o partido do
maravilhoso baudelairiano em contraposição ao realismo, à submissão ao real imediato:
“Digamo-lo claramente, e de uma vez por todas: o maravilhoso é sempre belo, qualquer
tipo de maravilhoso é belo, somente o maravilhoso é belo”. Diria também, em nota de
rodapé: “O que é admirável no fantástico é que não há mais fantástico: só há o real”.
Mais à frente, contraporia o maravilhoso ao fantástico em seu prefácio para Le miroir
du merveilleux de Pierre Mabille:14[14]
“O maravilhoso, ninguém conseguiu defini-lo melhor [que Mabille] por
oposição ao “fantástico” que tende, infelizmente, cada vez mais a suplantá-lo
junto a nossos contemporâneos. É que o fantástico, quase sempre, pertence à
ordem da ficção sem conseqüência, enquanto o maravilhoso brilha na ponta
extrema do movimento vital e envolve em si, inteiramente, toda a afetividade”
Fazem parte desse maravilhoso imanente e urbano – também examinado no
ensaio de Carlos M. Luís publicado, muito sincronicamente, nesta edição de agulha –
todos os registros dos trechos de conversas, objetos encontrados, textos, desenhos, os
esboços a traço e colagens feitos por Nadja, a torrente de símbolos citados ou
graficamente reproduzidos no livro – mãos negras e vermelhas, serpentes, máscaras,
estrelas, cometas, flores, sereias, esfinges, duendes, o diabo, torres e subterrâneos de

11[11] Em Charles Baudelaire, Poesia e Prosa, organizada por Ivo Barroso, Editora Nova
Aguilar, Rio de Janeiro, 1995; tradução de As Flores do Mal por Ivan Junqueira.
12[12] Em Salão de 1846, também em Charles Baudelaire, Poesia e Prosa.
13[13] A Paris do Segundo Império em Baudelaire, em Walter Benjamin - Sociologia, tradução
e organização de Flávio R. Kothe, Editora Ática 1985, ou na série Walter Benjamin - Obras
escolhidas, da Editora Brasiliense.
14[14] Les Éditions du Minuit, Paris, 1962.
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castelos, lâmpadas, amuletos, as chamas de uma fogueira, as cores do ar – que levaram


Breton a vê-los, “nos curtos intervalos que o nosso maravilhoso estupor permitia”,
como cúmplices a contemplar “os escombros fumegantes do velho pensamento e da
vida sempiterna”. E a perguntar-se: “Em que latitude nós poderíamos estar bem, assim
entregues ao furor dos símbolos, presas do demônio da analogia, nós que nos víamos
como objetos de instâncias últimas, de atenções singulares, especiais?”
Novamente, uma citação: aqui, de Mallarmé e seu poema em prosa O Demônio
da Analogia, no qual repete, como um enigmático refrão, “la penultième est morte”, a
penúltima morreu. O Demônio da Analogia é um dos textos que Mallarmé escreveu
durante sua crise de 1867, quando achou que estava enlouquecendo ao ter experiências
de duplicação, resumidas neste comentário em uma carta a seu amigo Cazalis “Acabo
de passar um ano assustador: meu Pensamento se pensou”. P-O. Walzer, ao comentar a
“crise” de Mallarmé, vê seus poemas em prosa daquele período como precursores do
surrealismo.15[15]

Uma relação intertextual mais subterrânea, bem mais complexa, pode ser
observada na segunda parte de Nadja, no impressionante episódio da Praça
Dauphine16[16].
A 6 de outubro de 1926, Breton e Nadja chegaram a essa praça na Ilha da Cité,
onde ficam a Catedral de Notre-Dame e outras edificações históricas. Classificada por
Breton como “um dos lugares mais profundamente ermos que conheço, um dos piores
terrenos baldios de Paris”; estar lá lhe provocava aflição. Haviam sido conduzidos por
Peixe Solúvel, que Nadja acabara de ler. Em um dos trechos de Peixe Solúvel é
mencionado um hotel, o City Hotel, onde Breton havia morado. Pretendiam ir adiante,
até a Ilha de Saint-Louis, adjacente, também mencionada em outro trecho daquele
poema em prosa. Uma relação mais original com literatura, bem examinada por
Mourier-Casille (no aqui já mencionado Nadja d’André Breton): trocaram capítulos de
Peixe Solúvel; pretendiam seguir um deles e foram parar em outro, que relata um
encontro entre uma mulher, Helena, e o diabo. Dirigiam-se ao inferno.

15[15] Essai sur Stéphane Mallarmé, Poètes d’aujour’hui, Seghers, Paris, 1963
16[16] Aqui, estou reincidindo no que tratei em minha narrativa em prosa Volta, Iluminuras, São
Paulo, terceira edição em 2004, e antecipando algo de um ensaio sobre acaso objetivo que deve
sair em breve pela Perspectiva.
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Ao chegarem à praça e se instalarem em um café, iniciou-se a noite marcada por


qualquer coisa de mal-assombrado, Nadja a ver mortos circulando pela vizinhança, com
o rumor do vento – “o vento e o azul, o vento azul”, dizia – transformado em vozes
anunciando a morte, enquanto um bêbado os cobria de impropérios. Afirmou que lá
passava um subterrâneo, vindo do Palácio da Justiça, um túnel secreto que se
comunicava com outro palácio: segundo Henri Béhar em na sua biografia de
Breton17[17], escavações arqueológicas de 1963 revelaram que esse subterrâneo existe;
contudo, também constava em uma das narrativas do Fantômas de Leroux, que Nadja
poderia ter lido. Apontando para a janela de uma das casas da praça, negra na escuridão,
Nadja afirmou que em um minuto esta se iluminaria e sua cor seria vermelha: em um
minuto, a luz do quarto da janela acendeu-se, exibindo cortinas vermelhas (Breton
observou, “para benefício dos amantes de soluções simplistas”, que Nadja já havia
morado na Praça Dauphine e podia saber da janela de cortinas vermelhas). Em seguida,
alucinada, agarrou-se à grade do Palácio da Justiça e insistiu que havia estado lá em
outra vida, como acompanhante de Maria Antonieta.
Prosseguindo a caminhada, na ponte que liga a Ilha da Cité à margem direita do
Sena, o Pont Neuf, Ponte Nova, Nadja enxergou uma mão em chamas, “mão que arde
sobre as águas”, pairando no Sena. Perguntou: “O que isso significa para você: o fogo
sobre a água, a mão de fogo sobre a água?”
A noite culminou com a chegada deles ao Jardim das Tuileries, onde pararam
diante de um chafariz. Nadja observou que suas águas, elevando-se, separando-se em
dois jorros, desfazendo-se ao cair, retornando com a mesma força, e assim
indefinidamente, simbolizavam os pensamentos de ambos. Breton espantou-se com o
comentário, pois elacitava, sem saber, um trecho do que lia naqueles dias, uma vinheta
da edição de 1750 do terceiro dos Três Diálogos entre Hilas e Filônio de Berkeley, com
a seguinte legenda: Urget aquas vis sursum eadem flectit que deorsum, ilustrada por um
chafariz idêntico ao das Tuileries (conforme as reproduções no livro). A tradução seria,
aproximadamente: “A força impele as águas para o alto e ao mesmo tempo move a
superfície.” Um resumo, diz Breton, do que Nadja comentava sobre o significado do
chafariz à frente deles.

17[17] André Breton, Le grand indésirable, Calmann-Lévy, Paris, 1990.


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No prefácio a esta nova edição de Nadja, Eliane Robert Moraes observa:


“Para além dos ecos de Lautréamont e Huysmans, o que prevalece em Nadja é a
Paris onírica de Nerval. A começar pelo itinerário escolhido, evocando locais de
intensa significação para o criador de Aurélia, a exemplo da Place Dauphine,
que desperta sentimentos igualmente ambíguos no narrador [...]”
Paris onírica de Nerval, sim – mas de qual obra de Nerval? Prefácios não são
dissertações – por isso, Eliane não foi adiante no paralelo de Nadja de Breton com obras
de Nerval. Mas, entre outros lugares, a Praça Dauphine está no conto que inicia o
primeiro dos livros de narrativas em prosa de Nerval, Contes et Facécies. É A Mão
Encantada, La main enchantée: a main de gloire, a mão mágica usada por bruxos, que
deve ser arrancada de um condenado à morte, e, após o devido tratamento, permitirá,
segurando uma vela também mágica, também devidamente preparada, que seu dono
entre em qualquer lugar, atravesse qualquer porta trancada, entre outras façanhas.
No enredo de Nerval, um ingênuo é vítima das artimanhas de um bruxo: depois
de matar seu oponente em um duelo e de sua mão, autônoma, com vontade própria,
estapear um juiz, é condenado à morte. Devidamente decepada, a mão sai caminhando
sobre seus dedos, sozinha, e vai ao encontro desse bruxo (apenas para lembrar, uma
versão burlesca desse artefato tradicional de magia é a mãozinha que aparece em
Família Adams).
A Mão Encantada de Nerval abre com a descrição da Praça Dauphine; um de
seus cenários é o Palácio da Justiça; descreve o Pont Neuf, Ponte Nova, outro dos
lugares-fetiche de Breton (que acabava de ser construída no tempo da ação do conto de
Nerval, século XVI).
Seria intertextualidade, isso da mesma Praça Dauphine, o mesmo Palácio da
Justiça, o mesmo Pont Neuf, estarem nos dois textos, Nadja de Breton e A Mão
Encantada de Nerval? Ou mera coincidência, e sofro de um acesso de exagero da
interpretação? Não, pois a main de gloire também aparece em Nadja: é a mão de fogo
vista por ela, pairando sobre o Sena, e justamente do Pont Neuf.
O que caracteriza a relação Breton-Nerval em Nadja como estranha, muito
estranha, é que os episódios daquela noite na Praça Dauphine aconteceram. Trata-se,
portanto, de uma inversão da relação entre literatura e realidade; são acontecimentos da
ordem do que Breton viria a chamar de acaso objetivo.
Nenhum dos comentaristas de Nadja que cheguei a examinar – Bonnet, Moraes,
Née, Mourier-Casille, mais os textos que vêm em apêndice a esta nova edição de Nadja
9

e os que acompanham o livro de Mourier-Casille – parece haver reparado nisso. Breton


embutir a toda hora alusões e citações de outros autores em suas narrativas não é
novidade. E outros textos acontecerem, a exemplo da famosa realização de um poema
de Breton, Tournesol, Girassol, em O Amor Louco, e de outras passagens desse livro
anteciparem acontecimentos posteriores à publicação, isso sim, já foi examinado.
Há um comentário de Jean-Luc Steinmetz sobre Nerval, a propósito de Petits
châteaux de Bohême, que me parece valer , de modo mais completo, para Nadja e outras
das narrativas de Breton:
“[...] somos constantemente convidados a passar de um regime de leitura a um
outro, do domínio fictício ao domínio vivido: de toda evidência, através de
referências dadas e como que impostas, uma outra realidade tende a vir à
luz.”18[18]

Breton nunca chegou, parece-me, a publicar um ensaio sobre Nerval, a exemplo


dos que escreveu sobre Lautréamont, Jarry, Baudelaire, Apollinaire, Rimbaud e outros
poetas. Mas pode-se dizer que Breton e o surrealismo começam e terminam com
Nerval.
Começam, pois, no primeiro Manifesto do Surrealismo, dá o “estado de sonho
supernaturalista” de Nerval ao escrever os sonetos de As Quimeras como origem do
surrealismo. Cita a carta de Nerval a Alexandre Dumas que abre Les Filles du Feu,
sobre esses poemas “[...] compostos em estado de sonho supernaturalista, [que] não são
mais obscuros que a metafísica de Hegel e os Memoráveis de Swedenborg, e perderiam
seu encanto ao serem explicados, se isso fosse possível”
Breton termina em Nerval, duplamente: em Arcano 17, obra de 1947, última de
suas narrativas em prosa, fechando uma tetralogia composta por Nadja, Os Vasos
Comunicantes e O Amor Louco; e no último dos Manifestos do Surrealismo de Breton,
Do Surrealismo em suas Obras Vivas, de 1953.
Em Arcano 17, a simbologia hermética desempenha papel central, a começar
pelo título, referência à carta 17 do Tarô, a Fortuna. Em Nerval, um esoterista, a
simbologia do Tarô é importante: por exemplo, o poema El desdichado, de As

18[18] Nas Oeuvres complètes de Nerval, org. Jean Guillaume, Claude Pichois e outros,
Éditions Gallimard, Paris, vol. III, 1993.
10

Quimeras, é sobre a carta anterior, o arcano 16, da torre desabada ou “abolida”.


Interessa a seqüência das cartas do jogo do Tarô em Breton e Nerval: a carta de número
16, símbolo da destruição, segue aquela do diabo; portanto, o colapso da torre (do
consulente) é manifestação demoníaca; mas a torre fulminada por sua vez precede o
arcano 17: é a estrela da manhã, símbolo de um nascimento, da esperança no futuro e do
conhecimento, ou seja, da gnose. Nerval diz que vai morrer - pouco depois da
publicação de As Quimeras, cometeria suicídio - mas que retornará. Portanto,
simbolicamente, em Arcano 17 Breton prossegue Nerval, continua onde o poeta parou.
Um detalhe interessante, desses que permitem falar em “inconsciente do texto”,
associado ao intertexto: em El desdichado de Nerval, este verso: “Serei Amor ou
Febo? ... Lusignam ou Biron?” – Lusignan foi um cruzado que se tornou rei de
Jerusalém e de Chipre no século XII; era tido como descendente da fada-serpente
Melusina, por sua vez invocada em Arcano 17 de Breton, associada a Elisa, sua
companheira.
Em Arcano 17, Breton celebra a realização amorosa como grande síntese,
superação das antinomias, equivalente à iluminação. O corpo do livro se encerra com
reflexões sobre o sentido de uma frase de Éliphas Lévi, ao proclamar que “Osíris é um
deus negro”. Termina saudando a publicação do ensaio de Auguste Viatte sobre o
diálogo entre Éliphas Lévi e Victor Hugo, e comentando o modo como ambos, o mago e
o poeta, equipararam Lúcifer, o anjo rebelde – “que, ao nascer, negou-ser a ser escravo”,
dando à luz “duas irmãs, Poesia e Liberdade” – à estrela da manhã, signo da liberdade e
do conhecimento, equivalente “à própria revolta, a única revolta criadora de luz”; uma
luz que “só pode passar por três vias: a poesia, a liberdade e o amor.”
No final de Arcano 17, em um apêndice escrito em 1947, os encontros adquirem
mais nitidamente o caráter de uma aventura intelectual. Não são mais as mulheres,
desconhecidas com olhos e olhares fascinantes, como Nadja, as desconhecidas de Os
Vasos Comunicantes e Jacqueline Lamba em O Amor Louco, que vêm ao encontro de
Breton, movidas pelo acaso, porém obras, informações, mesmo quando trazidas por
pessoas. Terminada a Segunda Guerra Mundial, de volta a Paris, Breton recebe uma
mensagem de um amigo: “O maravilhoso. – Atenção, reflexão, lógica não me ajudam
em nada. Não me possuo mais. Eu sou, plenamente.” Encontram um desconhecido.
Segue-se um enredo através do qual chega a suas mãos o livro de Jean Richer, Gérard
de Nerval et les doctrines ésotériques. Nele foi publicado, pela primeira vez, o retrato
de Nerval com sua frase, manuscrita, “Eu sou um outro”, acompanhada por signos cuja
11

decifração é proposta por Breton. Os episódios desses dias de abril de 1947 o fazem
convencer-se de que estivera de fato em companhia de Gérard de Nerval, nas
imediações da torre Saint-Jacques, a torre medieval de onde saíam os peregrinos a São
Tiago de Compostela – um lugar extremamente significativo para Breton, que
comparece em outros de seus poemas e em O Amor Louco, além de associado á
alquimia, inclusive por Nicolas Flamel haver morado em sua proximidade. Pela
primeira vez, Breton sobe à torre Saint-Jacques: os mais familiarizados com simbologia
hermética reconhecerão o sentido dessa subida à torre: é a entrada no castelo iniciático
onde está o cálice do Graal, que equivale à pedra filosofal.
É a “virada esotérica” de Breton, simbolizada pelo encontro com Gérard de
Nerval, evidenciada através de Arcano 17, de poemas da mesma década de 1940 como
Les états géneraux, Os estados gerais, e a Ode a Charles Fourier, . e de seus dois
últimos manifestos do surrealismo. Em Prolegômenos a um terceiro manifesto do
surrealismo ou não, de 1942, volta-se novamente contra o “pensamento racionalista”, e,
frisa, “sem dar atenção às acusações de misticismo de que não serei perdoado”, propõe-
se a “convencer o homem de que ele não é obrigatoriamente o rei da criação, como se
vangloria.” Pergunta sobre a oportunidade de revelar um novo mito, o dos Grandes
Transparentes, e observa que “o homem não é talvez o centro, o ponto de mira do
Universo”, criticando “a crença de que o mundo encontra no homem o seu
acabamento.” Retomaria a crítica ao antropomorfismo e a afirmação da visão hermética
de mundo em Do Surrealismo em suas Obras Vivas, de 1953. Dando sua palavra final
em matéria de manifestos, diz, no último parágrafo, que, “a esse respeito, sua posição
[do Surrealismo] se uniria à de Gérard de Nerval no famoso soneto Versos Dourados.”
Nele, o autor de Aurélia, expressando as idéias de Fabre d’Olivet, duvida de que
sejamos o centro do universo e os detentores exclusivos da razão:
“Homem! livre pensador! serás o único que pensa
Neste mundo onde a vida cintila em cada ente?”19[19]
Expressando a visão pagã do mundo animado, Nerval diz ainda que “um
mistério de amor no metal reside dormente, e um espírito puro medra sob a crosta das
pedras”.

19[19] Na tradução de Contador Borges no prefácio de Aurélia, Iluminuras, São Paulo, 1991.
12

Tudo isso é muito estranho. Como interpretar esses modos de aparição de


Nerval, o poetamais enfronhado em doutrinas esotéricas dentre aqueles da geração
romântica, na obra de Breton? Aparição manifesta, explícita, em Arcano 17 e em Do
Surrealismo e de suas Obras Vivas; aparição latente, subterrânea, através de sinais,
décadas antes, em Nadja.
A vocação esotérica e ocultista mais acentuada em Breton o distingue de outras
figuras de frente do surrealismo, como Aragon e Éluard. Isso, pelo modo como a
simbologia comparece de modo recorrente em sua obra, e, principalmente, por haver
realizado uma relação mágica entre poesia e vida, através do acaso objetivo. Ocultismo
estava em sua formação. Marguerite Bonnet e Henri Béhar, em suas biografias de
Breton,20[20] mostram que, entre suas leituras de adolescência, estava o Sâr Joséphin
Péladan, mago de prestígio, escritor prolífico, freqüentado por simbolistas e
decadentistas. Em 1921, procurou René Guénon (a quem cita em seu último manifesto).
Na década de 1950, para aprofundar o exame das analogias entre poesia e alquimia,
intensificou o diálogo com especialistas como Eugène Canseliet e René Alleau, cujas
conferências sobre alquimia ele e outros integrantes do surrealismo freqüentaram.
Alleau, por sua vez, colaborou em publicações surrealistas.
Daí resulta, em sua obra, a profusão de símbolos: pentagramas, casas e planetas
do zodíaco, operações alquímicas. Chegou, em 1941, a criar sua própria versão do
baralho do Tarô. Antes, conforme relata nas páginas iniciais de O Amor Louco,
fascinara-se por um baralho com a bandeira da Hamburg-America Linie, “com a
magnífica divisa: “Mein Feld ist die Welt”” (meu campo é o mundo), por achar que,
nele, “a dama de paus é mais bela do que a dama de copas.” Conta como dispunha as
cartas para fazer consulta, interpondo um objeto que se assemelhava a uma raiz de
mandrágora. Parecia atribuir valor de verdade à astrologia. No Segundo Manifesto do
Surrealismo, em extensas notas de rodapé, trata de alquimia, astrologia, hermetismo.
Coloca o surrealismo sob influência de uma conjunção de Saturno e Urano, entre 1896 e
1898, coincidindo com seu nascimento, e os de Éluard e Aragon. O mapa dessa
conjunção também ilustrou em 1930 a capa do primeiro número de Le surréalisme au
service de la révolution. Em O Amor Louco, diria que a conjunção de Vênus e Marte em
seu dia de nascimento talvez o fizesse sofrer discórdias no seio do amor. Dataria um
acontecimento revelador, que lhe parecia corresponder à noção de beleza convulsiva,

20[20] Marguerite Bonnet, André Breton – Naissance de l’aventure surréaliste, Librairie José
Corti, Paris, 1988.
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deste modo: “a 10 de abril de 1934, em plena “ocultação” de Vênus pela Lua (episódio
esse que só acontecia uma vez por ano)”.
O Segundo Manifesto do Surrealismo apresenta uma duplicidade. De um lado,
no corpo do texto, afirma com ênfase a adesão ao pensamento marxista. De outro, em
detalhe extensas notas de rodapé (inaceitavelmente transformadas em notas de fim,
jogadas para o final do livro, na mais recente edição brasileira dos Manifestos pela Nau,
desrespeitando a intenção de Breton), propõe a exploração de “certas ciências”,
valorizando o conhecimento hermético e exigindo que a alquimia do verbo de Rimbaud
fosse tomada ao pé da letra.
É como se houvesse, nesses dois planos do texto, aquele do corpo e outro
subjacente, das notas de rodapé, dois pólos, o materialista e o esotérico, instâncias
historicamente antagônicas, a constituírem, nas palavras de Jean-Louis Bédouin, “uma
das mais vertiginosas interrogações que conheceu o surrealismo, e, antes dele, espíritos
tão diferentes e tão grandes quanto Achim von Arnim e Rimbaud.”21[21]
Os conteúdos esotéricos aparecem como um subsolo do texto no Segundo
Manifesto do Surrealismo. E como intertexto ou “inconsciente do texto” em Nadja,
personificados, entre outros lugares, na referência ao mesmo tempo oculta e vivida a
Nerval. E reaparecem no corpo do texto, como tema, personificados em Nerval, em
Arcano 17 e nos dois últimos manifestos (entre outros lugares – na mesma época,
também Breton publicou artigos e ensaios em que tratava de hermetismo).
Nerval, antes de suicidar-se, disse, em El Desdichado e em Aurélia, que
morreria, mas retornaria. No final de Arcano 17, Breton promove esses retorno; em
Nadja, no episódio da Praça Dauphine, já anunciava que iria resgatá-lo.

Claudio Willer
cjwiller@uol.com.br
www.secrel.com.br/jpoesia/cw.html

21[21] Bédouin, Vingt ans de surréalisme, 1939-1959, Éditions Denoël, Paris, 1961.

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