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A Didática, num certo sentido, é uma das dimensões mais específicas do magistério, pois corresponde
justamente ao cuidado para que o outro aprenda. Ao longo da história do que hoje chamamos de instituição
escolar, desde os esboços iniciais de reflexão consciente sobre a prática de ensino, passando por sua primeira
grande sistematização no final do séc. XVI e início do séc. XVII, notadamente com as obras de Ratke (1571-
1635) e Comenius (1592-1670), até os dias atuais, podemos constatar esta busca constante, este cuidado a fim
de garantir uma efetiva aprendizagem.
Nos últimos anos, tem crescido a diversidade dos espaços, tempos ou modos de ensinar e aprender.
Podemos rapidamente lembrar do impacto da educação a distância com as novas tecnologias de informação e
comunicação, as iniciativas educativas de empresas, sindicatos, partidos, movimentos sociais, a multiplicação
dos cursos de especialização e pós-graduação, o surgimento de novos cursos nas universidades, o ensino do-
méstico (homeschooling), as iniciativas das redes de televisão (canais abertos ou a cabo). São tantas as iniciati-
vas que vai ganhando consistência a idéia de uma Cidade Educadora, ou de uma Educação que ocorre em toda
a Cidade, ao invés de em alguns lugares específicos como no passado (família, igreja, escola). Também nestas
instituições clássicas têm ocorrido mudanças nas formas de ensinar e aprender. Tomando como referência a
escola, por exemplo, constatamos inovações na organização do currículo (ciclo, módulo, para além da série;
trabalho com temas geradores, projetos, complexos temáticos, para além da lógica disciplinar instrucionista;
etc.). Todavia, por maior que seja a diversidade da prática educativa, existem alguns princípios do ensinar e do
aprender que são fundamentais. Neste pequeno texto, vamos nos aproximar de um deles: as condições neces-
sárias para a aprendizagem.
Nossa preocupação de fundo é o quadro dramático da educação brasileira. Diante da constatação do
fracasso estrutural da escola, almeja-se buscar alternativas em cima do que é absolutamente necessário e dese-
jável. Porém, do ponto de vista teórico-metodológico, pode haver uma precipitação e se partir para a busca de
soluções sem que 1)se tenha maior clareza do problema, pois uma coisa é sofrer a realidade (“sentir na pele”)
e outra é compreendê-la; 2)se tenha maior clareza do horizonte, da finalidade, uma melhor definição daquilo
que queremos (função social da escola). Ora, se o plano de ação é fruto da tensão entre realidade e finalidade,
e se não temos clareza de uma e de outra, muito provavelmente chegaremos a práticas equivocadas, ainda que
cheias de boa intenção.
Uma questão que angustia cada vez mais os educadores é: Por que os alunos não estão aprendendo?
Para poder respondê-la radicalmente, temos de enfrentar uma outra: O que é necessário para que o aluno apren-
da? É o que, muito brevemente, faremos aqui.
Toda situação educativa —mesmo quando nos referimos á aprendizagem de procedimentos e valores e
não só de conceitos—, por implicar atos de consciência, envolve o conhecimento: Parece-me importante dizer
da impossibilidade, em todos os tempos, de termos tido e de termos uma prática educativa sem conteúdo, quer
dizer, sem objeto de conhecimento a ser ensinado pelo educador e apreendido, para poder ser aprendido pelo
educando. E isto precisamente porque a prática educativa é naturalmente gnosiológica (Freire, 1991). Conhe-
cer é construir significados; esta é a grande busca do ser humano, uma das suas necessidades mais radicais.
Se repararmos bem, no cotidiano estamos atribuindo sentido aos fatos mínimos que nos rodeiam (“Por que
1 Doutor em Educação pela USP, Mestre em História e Filosofia da Educação pela PUC/SP, Pedagogo, Filósofo, responsável pelo Libertad - Centro
de Pesquisa, Formação e Assessoria Pedagógica. Endereço eletrônico: celsovasconcellos@uol.com.br www.celsovasconcellos.com.br
será que aquela senhora atravessou a rua por ali?; “O que ele quis dizer quando se referiu àquilo?”); a falta de
significado aliada à sensação de impossibilidade de chegar a ele, leva o homem à angustia, ao desespero e, no
limite, à loucura. Na escola, vamos, pessoal e coletivamente, construir significados sobre diversos campos da
existência, com a mediação de saberes considerados fundamentais para a formação humana. A construção de
significados (“produto”) se dá através do estabelecimento de relações (“processo”) no sujeito, entre as repre-
sentações mentais2 (“matéria prima”) que visam dar conta das diferentes relações constituintes do objeto, ou
das diferentes relações do objeto de conhecimento com outro(s). “Conhecimento consiste numa representação
mental de relações” (Prado Jr., 1973: 51). Conhecer é “substituir essa mistura de confusão e de dissociação,
que é a representação puramente concreta das coisas, pelo mundo das relações” (Wallon, 1989: 209). Na
perspectiva dialética do conhecimento (científico, filosófico, estético), o que se visa é chegar à síntese, que é
“uma rica totalidade de determinações e de relações numerosas” (Marx, 1983: 218). Estas relações vão sendo
buscadas no tempo e no espaço, bem como nos campos lógico e/ou semântico.
Buscar o que é necessário para que o aluno aprenda possibilita dar uma orientação para o professor no
seu trabalho cotidiano, evitar reducionismos ou modismos (“atirar para todo lado” de acordo com a onda do
momento: “Agora, tem que trabalhar no concreto”, “Agora, tem que desenvolver projetos”, “Agora, tem que
derrubar paredes das sala de aula”), além de ser um ponto nuclear da atividade docente. Se o professor sabe o
que é decisivo para que o aluno aprenda, não se perde em detalhes, vai à raiz, tem o olhar dirigido para estes
elementos, procurando, de alguma forma, satisfazer tais exigências. Há ainda um aspecto delicado: muitas ve-
zes, diante da grande ênfase que se tem dado às questões emocionais, afetivas, atitudinais, relacionais, sociais,
parece que estamos fugindo do trabalho com o conhecimento na escola...
De acordo com as contribuições da epistemologia dialética, da psicologia histórico-cultural e da edu-
cação dialética-libertadora (cf. Vasconcellos), para que o educando3 aprenda é necessário:
Assim apresentadas estas exigências, pode-se ter a impressão de que a aprendizagem seria algo que
dependeria apenas do sujeito. Se analisarmos com mais cuidado, percebemos em cada uma das exigências a
inalienável presença do meio. A mediação joga um papel muito importante no processo de aprendizagem; a
rigor, a aprendizagem é mediada socialmente, uma vez que toda aprendizagem humana envolve a utilização
de instrumentos culturais (físicos e/ou, sobretudo, simbólicos). Além desta mediação mais geral, podemos ter
também a mediação presencial, que, em princípio, potencializa muito a aprendizagem (pode atuar na zona de
desenvolvimento proximal, cf. Vygotsky); é nítida a ajuda do contato com o parceiro mais qualificado, ace-
lerando, funcionando como andaime para a aprendizagem do educando. Devemos considerar a constituição
social do sujeito: o indivíduo é o ser social (Marx,). A começar do desejo (de aprender, no caso): o desejo do
sujeito nasce do desejo do outro (cf. dialética do reconhecimento, Hegel). Parafraseando Ortega y Gasset,
podemos dizer que o aluno é o aluno e suas circunstâncias., uma vez que estamos nos referindo a alunos con-
cretos. Portanto, ao analisarmos as causas da aprendizagem, temos de nos remeter a tudo aquilo que de maneira
significativa acaba interferindo nela.
2 Usamos aqui representação no sentido de ação de “apresentar de novo” o objeto (coisa, evento, situação) ao psiquismo mesmo não estando mais em sua presença, a partir de uma construção feita
pelo sujeito (signo interno); não é no sentido de “reflexo” da realidade. A representação, além de permitir o conhecimento do mundo, possibilita ter intenções, fazer planos, ou ainda imaginar.
3 Ou o sujeito humano, uma vez que esta perspectiva é geral (inclusive o professor!).
Na perspectiva dialética, o conhecimento de um objeto se dá por um sujeito concreto, numa realidade
também concreta, portanto localizada, datada, histórica.
A seguir explicitamos as exigências acima apontadas em relação ao processo de aprendizagem do
sujeito.
Há fatores que, embora desejáveis, são circunstanciais na aprendizagem humana, não são propriamente
exigências, uma vez que correspondem a situações contingenciais ao invés de necessárias. Um exemplo é o
prazer: a aprendizagem como um todo costuma trazer prazer, mas durante o processo o sujeito vive momentos
de tensão, de angústia, em que perde as certezas que tinha até então, sofre, tem vontade de desistir; portanto,
não podemos colocar o prazer como uma exigência uma vez que nem sempre está presente no processo. Outro
exemplo é o concreto: aprender a partir do concreto é uma possibilidade, especialmente para as crianças ou
para determinados tipos de objetos, mas não a única. Todavia, existem demandas que são básicas, imprescindí-
veis, para que ocorra a aprendizagem, sem distinguir um sujeito ou um objeto em particular. Cada sujeito será
caracterizado por diferentes capacidades, conhecimentos prévios, interesses, formas de atividade e de expres-
são, etc., mas as grandes exigências são as mesmas. Estamos, pois, buscando exigências que sejam necessárias
e suficientes, qual seja, que uma vez satisfeitas, o sujeito aprenderia.
Analisando do ponto de vista do sujeito, o que é preciso para que aprenda? Estamos partindo da pre-
missa de que a atividade intelectual é a mesma em toda a parte, quer nas fronteiras da sabedoria, quer numa
classe de terceiro ano primário. (...) A diferença é de grau e não de natureza (Bruner, 1978: 12-13). A con-
sideração posterior dos contextos concretos em que se dá a aprendizagem possibilitará contemplar as marcas
pessoais de cada educando, portanto, sua diversidade (assim como do objeto).
Quem aprende é o sujeito. Embora a aprendizagem se dê a partir da relação do sujeito com o objeto,
portanto, com o mundo (físico e/ou simbólico, diretamente ou através de algum instrumento) pela mediação
social, ninguém pode aprender por ele.
Retomemos, pois, nossa questão central: o que é absolutamente necessário, o que não pode faltar para
que o aluno aprenda?
Sabemos que quem aprende é um sujeito concreto, que, antes de tudo, tem uma dimensão corporal: é
sempre bom lembrar que não temos um corpo, mas que somos um corpo, que participa de várias formas do
processo de aprendizagem.4 Desde o princípio até o fim, a aprendizagem passa pelo corpo (Fernández, 1991:
59). As exigências de capacidade sensorial e motora nos remetem à base orgânica da aprendizagem. Tais ca-
pacidades são os elementos infra-estruturais do processo de aprendizagem humana (condições fisiológicas,
neurológicas, psicológicas).
Mais à frente veremos a exigência do querer para aprender. Vygotsky, em sua obra Teoria das Emoções
retoma a contribuição de Espinosa, na Ética, que entende por afetos os estados corporais que aumentam ou
diminuem a capacidade do corpo para a ação (cf. Vigotsky, 2004: 16). Por esta articulação entre uma exigên-
cia e outra, já vamos recordando o quanto a divisão entre as exigências é apenas didática, uma vez que quem
aprende o sujeito como um todo.
4 Do(s) corpo(s) de saberes aos saberes do(s) corpo(s): o que se passa nas entranhas de quem aprende (seja o aluno ou o professor)?
Os sentidos (visão, audição, tato, paladar, olfato) são canais de comunicação com o mundo. Marx, nos
Manuscritos, fala da história dos sentidos.
A saúde é uma condição para a aprendizagem; são bem conhecidos casos de crianças que com dificul-
dade na aprendizagem simplesmente porque não enxergam bem ou porque têm a audição comprometida, de
alunos que chegam cansados na escola em função do trabalho, sem contar as gravíssimas e aviltantes situações
de alunos com fome! Numa abordagem idealista, esquece-se o corpo e o professor dirige-se exclusivamente à
cabeça do educando, como se existisse tal possibilidade.
O movimento físico faz parte da aprendizagem, sendo decisivo para o desenvolvimento intelectual. Se-
gundo Wallon, a motricidade é o que permite a passagem do ato ao pensamento (cf. 1979). O ato mental reduz
o ato cinético, porém continua envolvendo atividade tônica: pensamos com o corpo. Determinados saberes, se
não passarem pelo corpo, seja da criança ou do adulto, não são internalizados.
Levar em consideração as capacidades nos remete às temporalidades, aos estágios de desenvolvimento
humano (cf. Piaget, Wallon, Vygotsky). O equipamento cognitivo de um aluno de 14 anos certamente é bem
diferente de um de 5 anos. Um fato empiricamente estabelecido e bem conhecido é que o aprendizado deve
ser combinado de alguma maneira com o nível de desenvolvimento da criança (Vygotsky, 1984: 95). Certos
estágios cognitivos, p. ex., só podem ser atingidos se o cérebro já se corticalizou mais, pois as transposições
correspondentes do concreto para o abstrato, do empírico para o virtual, exigem espaços cerebrais que só se
permeabilizarão completamente com a idade (Wallon, 1989: 521).
A capacidade de operar mentalmente (sentir, observar, comparar, julgar, transferir, classificar, criar, em
suma, de síncrese, análise e síntese) relaciona-se com o trabalhar com as representações mentais que o sujeito
já tem, bem como transformá-las, criá-las e recriá-las. As estruturas mentais (percepção, cognição) implicam
a capacidade de transformar estímulos do meio em representações mentais, e/ou de articular as representações
mentais disponíveis; enfim, criar novas representações. A capacidade de operar mentalmente diz respeito, antes
de tudo, à passagem da “matéria bruta” (os estímulos físico—químicos que vêm da realidade) para a “matéria
prima” (representações mentais) do conhecimento. O estímulo externo por si não diz nada, se o sujeito não
tiver “instrumentos” básicos de acesso e de elaboração (físico e mental), estrutura de assimilação. O estímulo
bruto não vai diretamente para a representação “conceitual”: podemos olhar algo e “não ver” determinadas
coisas por falta de “aparelho”, de “lentes” apropriadas; considerar, p. ex., a percepção grosseira da criança de 2
anos que não consegue “ver” no quarto uma pessoa escondida atrás da cortina, mesmo aparecendo claramente
seu pé. Por falta de estruturas de organização da sua representação, não consegue “ver”. Será a partir da elabo-
ração que o estímulo poderá converter-se em dado para o educando (que articulado gera uma informação, que
trabalhada se torna conhecimento).
Estas capacidades não são estáticas, ao contrário, vão se modificando, vão se constituindo e/ou aper-
feiçoando ao mesmo tempo em que o sujeito vai aprendendo. A inteligência não é inata; se desenvolve. Reto-
mamos um elemento muito importante introduzido por Vygotsky, que permite uma abordagem dinâmica do
desenvolvimento: a constatação de que o nível de desenvolvimento adquirido pelo sujeito num determinado
momento é apenas um dos níveis que devem ser considerados no processo de aprendizagem: este nível real
deve ser complementado pelo potencial, emergindo então o conceito de zona de desenvolvimento proximal:
Ela é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução inde-
pendente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas
sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes (1984: 97).
Deve ficar claro que todo ser humano tem, em alguma medida, estas capacidades, por isto, ainda que
dentro de suas limitações e peculiaridades, todo ser humano pode aprender.
2 Conhecimento prévio
5 .Vindo a constituir os “quadros conceituais” do sujeito, que passam a mediar sua relação com o mundo.
rização mecânica e não à memória em si, pois, como estamos vendo, sem memória simplesmente não há como
desenvolver qualquer aprendizagem (além de toda a questão da perda de identidade do sujeito). A memória da
criança não somente torna disponíveis fragmentos do passado, como, também, transforma-se num novo mé-
todo de unir elementos da experiência passada com o presente (Vygotsky, 1984: 41). A efetiva aprendizagem
nutre-se da memória assim como produz memória; no entanto, a memorização superficial (memória de curta
duração) não leva à aprendizagem. Se quisermos, podemos re-significar o decorar se nos remetermos à sua raiz
latina (cor,cordis: coração): saber decor é saber de coração, profundamente, algo que é muito significativo para
nós, que é facilmente acessado na memória. Portanto, se o conhecimento novo se produz a partir do prévio, a
memória tem um papel fundamental no processo de aprendizagem (e de ensino).
O exercício significativo é uma forma de fortalecer a memória, por reforçar determinadas conexões
neuronais. Mais uma vez verificamos a estreita ligação entre as exigências para a aprendizagem: no caso, entre
o conhecimento prévio e a expressão (que veremos abaixo).
3 Acesso à informação/cultura
Como o conhecimento do sujeito avança? Basicamente, existem dois caminhos: o acesso a novas
informações e o tratamento de informações que já tem. O processo básico de aprendizagem é o mesmo, qual
seja, estabelecer relações; a diferença é temporal: estabelecer relações a partir de estímulos que está recebendo
no momento ou de saberes que já tem (que, por sua vez, um dia foram estímulos).
A situação mais comum é através do acesso a fonte de novas informações. O avanço do conhecimento
aqui se dá basicamente pelo estabelecimento de relações entre as informações novas a que o sujeito tem acesso
e o seu conhecimento prévio. Ficar distante do saber já elaborado pela humanidade implica ignorância ou sua
reinvenção, o que em termos de história da espécie seria, evidentemente, um tremendo desperdício. Quando
pensamos na escola básica, esta exigência fica ainda mais clara, uma vez que o educando está diante do desafio
de se apropriar dos saberes instrumentais básicos (ler, escrever, calcular), bem como dos saberes elementares
nas varias áreas de conhecimento.
Por outro lado, o sujeito pode construir um conhecimento novo (para ele e/ou para a comunidade) só
com os elementos que já tem, mas que ainda não tinha relacionado; sabia uma coisa, sabia outra, mas não tinha
estabelecido a conexão entre elas e, ao fazê-lo, seu conhecimento se amplia. Por sua vez, estes elementos que
já tem não nasceram com ele; foram adquiridos a partir da interação com outros, em outros momentos. Nem
sempre o tempo do ensino coincide com o tempo da aprendizagem; muitas vezes, tempos depois é que o aluno
vai entender aquilo que leu ou que o professor falou6.
Até a criança sabe que vai para a escola para “aprender coisas” e sabe, inclusive, que vai aprender “coi-
sas da escola”, ou seja, ela já tem uma noção de que vai para a escola não para aprender as coisas que aprende
no seu dia-a-dia; para isto, não precisaria da escola. Vai para a escola para aprender coisas que são próprias da
escola. Ela não sabe dizer exatamente, mas, a partir da fala dos pais, do contato com irmãos ou amigos que já
freqüentaram a escola, já tem uma idéia do que é aquilo. Na Educação de Jovens e Adultos, quando trabalha-
mos de uma maneira diferente, os alunos reagem, acham que aquilo não é “aula”, não é próprio da escola, pois
o modelo que têm é aquele do professor que sabe tudo despejando na cabeça do aluno que não sabe nada, e que
depois cobra na prova que, apesar do sufoco que lhes costuma causar —levando até ao abandono do curso—,
é tida como um autêntico ritual de legitimação; uma escola com avaliação no processo não lhes parece, num
primeiro momento, realmente séria; têm a sensação de que, de alguma forma, estão sendo lesados.
6 Na linguagem popular, para denominar este fenômeno costuma-se usar o termo “Caiu a ficha”.
O chamado “saber escolar” é composto de uma série de objetos do conhecimento (físicos, sociais7 ou
lógico-matemáticos) acumulados pela humanidade (nas grandes esferas da existência: Natureza, Sociedade,
Subjetividade e Transcendência): lingüísticos, históricos, geográficos, artísticos, matemáticos, das ciências
naturais, tecnológicos, psicológicos, teológicos, filosóficos, etc.
Além do acesso à informação conceitual, devemos considerar também o acesso à informação procedi-
mental e ainda, com maior ou menor consciência, à atitudinal.8
Os objetos podem ser apresentados diretamente aos alunos (observação, visita, estudo do meio, expe-
rimentação) ou através de alguma mediação (texto, imagem, fala, modelo).
A exigência de acesso à nova informação coloca de maneira bem clara a questão da interação, a ne-
cessidade do ensino. Em estado de constante isolamento, o sujeito tem uma possibilidade bastante restrita de
novas aprendizagens.
4 Querer
Para realizar aprendizagens complexas, o sujeito precisa querer9, estar10 motivado, mobilizado. Exis-
tem infinitos objetos passíveis de conhecimento; no processo de conhecimento, o sujeito elege um, com o qual
passará a estabelecer uma relação que já não será mais de indiferença, de mera coexistência ou de justaposição.
A ação de aprendizagem corresponde a um desejo de saber. A parada da criança diante do objeto, não por
ausência momentânea de meios ou de desejo, mas para considerá-lo como tal, para disto fazer um simples
objeto de curiosidade, marca seu acesso a uma forma nova de atividade, onde a coisa cessa de ser puramente
sensorimotora e torna-se idéia (Wallon, 1989: 212).
A atividade de conhecimento, portanto, é dirigida, tem um foco, é consciente e livre, voluntária, inten-
cional. Por isto, a mobilização para o conhecimento é tão importante: sem ela o vínculo entre sujeito e objeto
não está garantido.
Esta carga afetiva envolvida no processo de conhecimento cumpre uma outra função: liberar as repre-
sentações mentais prévias relativas ao objeto, uma vez que estas não estão sempre disponíveis no sujeito (se
alguém tivesse, em termos conscientes, o tempo todo, todas as representações que já elaborou, beiraria a lou-
cura). A mobilização, num determinado momento, de uma representação, a sua ativação ou a sua reativação,
não aparecem com efeito ex nihilo. Supõem, no ator que se representa, a existência de um afeto que lhes é an-
terior e que, segundo os acasos, se poderá designar em termos de desejo, de pulsão, de vontade, de interesse,
etc. (Barbier, 1996: 42). Como diz Bruner, a mente é como guarda-chuva, só funciona aberta. Os estudos mais
recentes sobre o cérebro revelam o quanto a carga emocional influencia a memória, estando presente tanto no
processo de armazenamento quanto de resgate de representações mentais.
Toda aprendizagem nasce de uma abertura, de uma insatisfação, de uma perda —ainda que provisó-
ria— de certeza, ou de um desejo de saber mais, de aprofundar o que já sabe; se o sujeito está cercado de cer-
tezas, se não duvida, se não aspira entender melhor, não avança também no conhecimento. No fundo, trata-se
de uma situação de abertura em dupla direção: exterior (ao mundo, ao outro) e interior (às representações, ao
conhecimento prévio); o sujeito fechado, isolado, satisfeito, fica lá “com seus botões” e não se desenvolve.
Relacionando com a exigência anterior de acesso à informação, percebemos que, muitas vezes, o sujei-
to não tem interesse por determinado objeto porque não teve oportunidade de tomar contato mais significativo
7 Social aqui no sentido de convencional ou factual. Lembrar que esta divisão dos tipos de objetos é didática, não absoluta.
8 No ensino, o professor vai não só disponibilizar informações conceituais, mas também orientar o aluno de como operar com elas, revelar valores através de sua postura.
9 .Podemos ter muitas outras denominações para o Querer (embora nem todas exatamente com o mesmo significado): interesse, interesse cognoscitivo, curiosidade, curiosidade epistemológica,
vontade, desejo, necessidade, afetividade, emoção, epistemofilia, disposição epistemofílica, intencionalidade.
10 .Vejam que não dizemos “ser motivado”, pois isto poderia dar a idéia de que a motivação é algo que vem de fora. Como veremos abaixo, em nossa compreensão a mobilização se dá num processo
de interação entre o sujeito e o meio.
com o mesmo. Precisamos considerar o fato de que não existe necessidade “em geral”, ou seja, a necessidade
é objetivada, é necessidade de alguma coisa: A necessidade do homem e o objeto da necessidade estão em
correlação: a necessidade se refere em todo momento a algum objeto material ou a uma atividade concreta.
Os objetos ‘fazem existir’ as necessidades e, ao contrário, as necessidades aos objetos. A necessidade e seu
objeto são ‘momentos’, ‘lados’ de um mesmo conjunto (Heller, 1986:43).
Sintetizando, podemos dizer que, do ponto de vista epistemológico e psicológico, o “Querer” impli-
ca:
• Colocar o sujeito em ação (a afetividade é energética da ação, cf. Piaget,1978: 13). Sujeito
dispor, liberar energia psíquica para conhecer;
• A ‘eleição’ do objeto (a rigor, do ente destacado no meio de tantos outros, que assim se torna
objeto de conhecimento); direção da ação; estabelecer vínculo com objeto (ação voluntária,
atenção deliberada - cf. Vygotsky);
• O rastreamento e o trazer ao nível consciente/pré-consciente as representações mentais que o
sujeito já tem e que, de alguma forma, estão relacionadas ao objeto em estudo; liberar repre-
sentações prévias;
• Manter o vínculo com o objeto de conhecimento durante o processo de aprendizagem (persis-
tência).
5 Agir
O ser humano se constitui por sua atividade, em todos os aspectos11, inclusive no conhecimento. O
conhecimento é estabelecido no sujeito por sua ação sobre o objeto.
A ação de aprendizagem do sujeito pode ser em termos predominantes12:
14 Tal ação é mais bem expressa pelo conceito “atividade” (cf. Marx, Vygotsky, Leontiev).
15 Podemos lembrar daquelas brincadeiras onde o sujeito tem de adivinhar qual o objeto escolhido pelo grupo, através de perguntas.
16 .Usufruir sem colocar o objeto em questão.
Comumente não há uma reflexão mais cuidadosa sobre a síncrese no processo de aprendizagem, uma
vez que se privilegia a abordagem sobre a análise e a síntese. Além de seu papel intrínseco na construção do
conhecimento, em função de sua característica de abertura e indefinição, a síncrese tem também importante
repercussão na mobilização para a aprendizagem, como ponte entre as necessidades ontológicas e as episte-
mológicas.
Muitas vezes há uma referência como que pejorativa ao sincretismo; ocorre que não há outra condição
para se dar o conhecimento. É uma passagem necessária para a construção do edifício do conhecimento. Além
disto, é o espaço possível para a criatividade, para o pensamento se abrir para novos possíveis: na escala do
indivíduo, a persistência de um certo sincretismo, sob o formalismo usual e coletivo da percepção ou do co-
nhecimento, é, provavelmente, a condição, em todas as áreas, estética ou erudita, de uma invenção verdadei-
ramente nova (Wallon, 1989: 194). Portanto, justamente em função do caos das representações do sujeito, este
pode ser um momento extremamente criativo, de abertura a novos possíveis, a outras leituras, outras relações
entre o conhecimento prévio que é acionado e o objeto de conhecimento em questão.
Relações essenciais
Num determinado objeto, o sujeito pode vislumbrar uma multiplicidade quase que infindável de rela-
ções. O que se espera do educando, quando se trabalha com o conhecimento científico, filosófico ou estético17,
é que seja capaz de construir as representações mentais das relações essenciais (necessárias, não-aleatórias –
daí a vinculação do conhecimento com a idéia de verdade) que definem o objeto, bem como depurar os nexos
estranhos (obstáculos epistemológicos - cf. Bachelard). Para que lhe faça um sentido mais profundo, o aluno
tem de fazer uma abordagem do objeto de tal forma que o objeto possa se “revelar” nas suas múltiplas relações
(interna e externas). No processo de análise, o sujeito precisa ir além da aparência (Criticidade).
A ação do sujeito deverá ser adequada ao tipo de aprendizagem que se pretende fazer.
A imitação, o mimetismo, é uma importante estratégia para se iniciar a aprendizagem; mas, ao longo
do processo, deverá ser superada.
6 Expressar-se
17 .Não estamos, neste momento, nos referindo a outros tipos de conhecimento, como o mítico, o religioso, o intuitivo ou o senso comum —embora tenham íntimas relações (cf. Wallon, 1989:
339.).
a vivência. Muitas vezes, o sujeito tem para si que já elaborou o saber num nível satisfatório, mas quando vai
expressá-lo percebe que não estava tão claro assim como pensava.
A questão da aprendizagem é complexa, pois o conhecimento vai se consolidando à medida que as re-
lações do novo conceito com as representações mentais prévias do sujeito vão se estabelecendo; isto pode levar
tempo, ou melhor, pode exigir um alto grau de utilização dos conceitos em diferentes situações para estabele-
cer tais relações e as consolidar. A questão não é usar no sentido de repetição, mas sim o estabelecimento de
relações em níveis cada vez mais abrangentes e complexos. É claro que isto supõe o uso, porém não no sentido
mecânico (o uso mecânico não leva muito longe, uma vez que não está vinculado às estruturas de significação
do sujeito, e sim à memória superficial). Se o sujeito elabora um conceito e depois não trabalha mais com ele,
ficará num nível de apropriação mais pobre do que um outro que vai articulando em sua atividade.
A expressão, portanto, tem a ver com:
O conhecimento conceitual (em particular o científico e o filosófico) é construído tendo como media-
ção fundamental a linguagem verbal (mental, oral ou escrita).
A linguagem é portadora da cultura desenvolvida pelo homem. Na origem, estava a ação, a prática, o
trabalho; o homem começa a pensar desafiado por problemas da realidade. Do aperfeiçoamento do trabalho,
vêm os instrumentos; do trabalho, a necessidade da comunicação; do aperfeiçoamento da comunicação, a lin-
guagem; do avanço da linguagem, a fala. A internalização da linguagem verbal possibilita o sujeito regular os
processos de pensamento, de registro (interno —memória— e externo —símbolos, escrita—), de intercâmbio
social (interação, cooperação) e de auto-regulação (atenção voluntária, planejamento). Na verdade, quando o
sujeito se apropria da linguagem, não está trabalhando diretamente, mas está atuando numa esfera de media-
ção do trabalho, ou seja, na gênese da espécie a linguagem foi fruto do trabalho humano. O neófito é inserido
desde logo neste universo simbólico, sendo a linguagem primeiro um fenômeno interpsíquico para depois ser
intrapsíquico (cf. Vygotsky).
De um modo geral, quando há referência à linguagem verbal pensa-se na sua função de comunicação
que, de fato, é maior importância. Todavia, é preciso perceber uma outra sua função: a de organização mental,
de instrumento de pensamento. Quando o sujeito está diante de um objeto desconhecido, pergunta-se: o que é
isto? Começa a descrever (analisar): é branco, tem três hastes, é de plástico, veio com a pizza... Vejam que o
tempo todo está presente a linguagem. Podemos nos dar conta do quanto a linguagem verbal é um instrumento
adequado de conhecimento justamente em função de seu caráter analítico-sintético. Uma palavra, por exem-
plo, ao mesmo tempo em que é utilizada para identificar a presença de determinado atributo na realidade, é
também “uma legião”, qual seja, representa um conjunto de outros objetos que não aquele que neste momento
está sendo apontado. O conteúdo da experiência humana, formada historicamente, é generalizado e fixado
sob a forma verbal (Leontiev, 1978: 183). A linguagem tem esta característica de generalizar, de abstrair, sair
da experiência imediata, todavia, simultaneamente, pode ser utilizada como forma de penetração nesta mesma
realidade. O caso da menina Helen Keller é bastante esclarecedor do papel da linguagem. Sendo cega, muda e
surda, viveu junto aos familiares até os sete anos; mas num mundo à parte. Quando sua professora particular
Anne Sullivan, escreveu á-g-u-a na mão aberta da garota enquanto jorrava água da bica, seu mundo mudou
totalmente, teve uma espécie de vertigem; ato contínuo, seu rosto iluminou-se e uma alegria sem igual tomou
conta dela, que queria saber agora o nome de tudo que tocava. Tinha adentrado, finalmente, no universo sim-
bólico, propriamente humano.
A unidade fundamental da linguagem é a palavra (cf. Vygotsky, 1987, 2001; Luria, 1987), na qual po-
demos identificar estes dois componentes básicos:
Apresentadas as exigências, a pergunta que emerge é: quais as repercussões didáticas? O ensino é uma
atividade em que há intenção deliberada de aprendizagem do outro; as exigências indicam aqueles pontos
fundamentais sobre os quais o professor deverá ficar atento no processo de mediação. A partir disto, a grande
questão a ser colocada é justamente esta: que didática melhor favorece o atendimento às exigências para a
aprendizagem do aluno?
Só a título de provocar a reflexão, trazemos algumas questões em relação a cada exigência:
O professor deve ser um especialista, no melhor sentido deste termo, em aprendizagem e desenvolvi-
mento humano. Pode tornar-se um investigador observando, por exemplo, seu próprio processo de aprendiza-
gem (metacognição), mas sobretudo o processo de seus alunos.
A atividade docente tem uma série de condicionantes. A concepção epistemológica e metodológica
do professor é apenas um deles. Por isto é que, simultaneamente, o professor deve estar comprometido com
o resgate da dignidade profissional do magistério, seja em termos de formação (inicial e continuada), salário,
condições de trabalho, valorização e respeito profissional, bem como com a transformação da sociedade, que
tantos reflexos tem em seu trabalho.
Considerando o fato de se realizar na escola um trabalho que atinge a muitos bem como a diversidade
dos educandos, a exigência que se coloca é a da aprendizagem de todos os alunos. Aqui é preciso enfrentar
com muito rigor e coragem, não ficando restrito ao âmbito da boa vontade de um ou outro professor, mas pen-
sando na alma da prática educativa, no currículo, e, neste, no seu núcleo duro, na forma de organizar os tempos,
espaços, saberes, recursos. Precisamos de coragem e ousadia para assumir uma didática que ajude a reinventar
a prática educativa onde quer que se realize, de forma especial na escola.
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