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A CRIATURA

Estava o homem sentado à sua pedra tentando acertar o dedo de seu pé


esquerdo. Mas não era qualquer dedo, mas aquele pequeno, inacessível, que
covardemente se escondia embaixo dos demais.
Naquele momento filosofava sobre a covardia e o medo, coisa que não aceitava,
pois entendia que um verdadeiro homem enfrentava seus medos, da mesma forma
como enfrentava os lobos e leões com seus caninos imensos e rugidos ameaçadores.
Conhecia a fragilidade de seu próprio corpo, sem pêlos contra o frio, sem dentes
ou garras para lutar contra seus inimigos. Mas concluía com orgulho que mesmo não
possuindo a força dos gorilas ou o tamanho dos elefantes, aos mesmos sobrepujava e
contra eles desenvolvia tamanha força, que era deles o comandante. Sabia que tinha
a maior das forças, o cérebro aguçado e sempre pronto para aprender. O que o
diferenciava dos demais animais que precisavam morrer para entender a morte.
Ele conhecia as cores e as armas. Quando acuado engendrava máquinas que
diminuía a diferença entre as forças que tinha e não tinha. Mas hoje estava
preocupado em diminuir as suas próprias fraquezas, por isso insistia em atingir
aquele dedo mínimo. Quando sentia seus músculos doendo, sabia que eram
fraquezas, por isso buscava-os e os feria, pois precisava fortalecê-los. Por isso
aquele dedo mínimo era um empecilho, escondendo-se debaixo do vizinho tornava-se
sua maior fraqueza. Antes, já havia mordido a língua até senti-la inchar; beliscado os
braços; batido na cabeça com um pau; puxado as orelhas e chutado o carvalho
repetidas vezes. Enfim se sentia forte e resistente, pois não havia dor que não
conhecesse ou que não pudesse vencer. Estava em pé, firme como uma rocha e coisa
alguma poderia abalá-lo.
Pensou logo no tigre dentes-de-sabre, com seu olhar penetrante e frio, pronto a
saltar sobre ele, já degustando em pensamento sua pele macia. Imaginou-o fixando
os olhos naquele dedo mínimo, perigosamente frágil.
De modo que não podia admitir que uma fraqueza o fizesse sucumbir diante de
seu maior inimigo, nem ele nem seus filhotes. Assim, batia firmemente no dedo
mínimo até que parasse de doer e se tornasse tão firme quanto o restante de seu
corpo. Contudo quanto mais batia mais doía, após longo período, sentou
desconsolado quase aceitando que perdera aquela batalha.
Foi então quando viu os filhotes entrando na mata e temeu pelo futuro deles.
Envolto nesses pensamentos viu-os correndo em sua direção, logo percebeu que
corriam perigo e que algum predador os mirava. Saltou da pedra e pegou sua lança,
enquanto eles abraçavam suas imensas pernas. Prostrou-se pronto para a batalha,
ainda um pouco preocupado com seu dedo mínimo, mas seus filhotes gritavam
palavras tão sem sentido sobre a mãe deles que decidiu fixar o olhar em uma moita
imensa que se remexia freneticamente à sua frente. Concluiu que a mulher tivera sido
morta por aquela criatura e que agora devia se preocupar apenas consigo mesmo e
com os filhotes.
Pela forma como as imensas folhas se moviam concluía também que se tratava
de um animal imenso e muito forte, fazendo com que seu coração disparasse e
retesasse ainda mais os músculos, pois não queria perder nenhum filhote, então
voltou a pensar no dedo mínimo e pela primeira vez em sua vida sentiu medo, sabia
que não seria fácil, mas que deveria enfrentar a fera assim mesmo. Uma vez que era
o maior dos predadores, o rei dos animais, ocupante do topo da cadeia alimentar.
Aquele que sobreviveria sempre e ainda estaria ali quando todos os seus inimigos
desaparecessem.
Respirou fundo, tentou diminuir o frio na barriga e desfazer o nó que se formava
na garganta. Mas, firmou o corpo, sabendo que o animal que vinha em sua direção
devia ser extremamente perigoso, pois apavorara seus filhotes como nunca houvera
visto antes.
Enfim, o animal que quase já se livrara dos galhos, fazia um barulho tão
ensurdecedor que aumentava ainda mais o desespero dos seus filhotes, que por sua
vez agarravam tão desesperadamente em suas pernas e coxas que podia sentir-lhes
as unhas cravando em sua pele.
Percebendo que aquela batalha seria difícil deu um ultimo olhar para eles, que
estavam petrificados e de olhos cerrados de pânico e se preparou definitivamente
para a batalha, esquecendo inclusive de seu ponto fraco, sentia aflorar o instinto de
sobrevivência.
Foi então que o imenso animal livre das plantas e folhas surgiu das sombras que
o envolvia, prostrando-se frente a eles. Tinha um olhar firme, ventas bufando, cabelos
eriçados e emanando um ódio nunca sentido em qualquer animal em toda sua vida.
Naquele momento fatal o homem apertou os olhos tentando ver melhor. Quando
pôde vislumbrar a imagem à sua frente, sentiu o pulso acelerar, a face queimar e os
músculos totalmente tensos, afrouxar. Naquele instante percebeu quão frágil era
diante daquela criatura que se prostrara diante dele e percebeu enfim que toda
aquela experiência e destreza caia por terra sem nenhum sentido, pois não seriam
suficientes para aplacar a fúria venal da criatura.
De modo que afrouxou o espírito de guerreiro, certificou que os filhotes ainda
estavam bem presos às suas pernas, deu de costas e correu pela pradaria como
nunca havia feito.
Durante as duas primeiras horas não parou de correr e nem mesmo olhou para
traz; nas oito horas seguintes procurou um lugar seguro e desconhecido, onde pôde
enfim parar e descansar, certo que a criatura já se distanciara dele e feliz, concluiu
que estavam seguros.
Nos dois dias seguintes de exílio tentou, em vão, explicar aos filhotes que
aquela criatura que os afugentara não podia ser vencido por alguém como eles,
meros homens. Mas, que em três dias a natureza aplacaria sua fúria, quando então
poderiam voltar para casa e tudo voltaria ao normal, isso os relaxou um pouco.
Logicamente esqueceu de dizer que em trinta dias correriam o mesmo risco e
assim mês após mês até o final de suas vidas, quando não fosse por conta daquela
criatura que os pusera no mundo, seria por qualquer outra que porventura viessem a
se apaixonar.
Mas enfatizou que a melhor estratégia naquela situação era fugir mesmo, e que
nesse caso não deveriam sentir vergonha, pois era questão de sobrevivência!
Por fim, como um verdadeiro rei sentado em seu trono de pedra, com os filhotes
ainda horrorizados em volta, assumia não saber como aquela transformação ocorria,
nem como evitar.
Mas que aprendera com seu pai, que aprendera com o pai dele, que a única
salvação era fugir mesmo. E que não perdessem a esperança, pois um dia, num
futuro próximo, quando os homens evoluíssem, haveria de surgir uma cura para a
TPM. Então pediu que se acalmassem e tentassem dormir.

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