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CHUVAS NÃO DERRETEM CORAÇÕES

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UM TEXTO de Paulo Mohylovski

ATO I

Cena 1

Um apartamento comum no centro da cidade. Uma noite de lua cheia.


Henrique está sentado na cama, fumando e jogando a fumaça pela janela.
Laís está de pé, diante do espelho, se admirando. Som de trânsito ao longe.

HENRIQUE

Hoje a cidade parece viva. Nunca vi tanta agitação. Parece que uma coisa
extraordinária vai acontecer, mas é sempre a mesma agitação vagabunda
de sempre. Gente de um lado, gente do outro. Carros passando a milhão,
como se fossem encontrar alguma coisa em algum lugar que ninguém sabe
onde é, mas tem que ir...
LAÍS

É que hoje é sábado...

HENRIQUE

Hoje é sábado, amanhã é domingo e assim é a vida. O que é que você fica
olhando tanto pra este espelho? Não está cansada de ver a sua cara?

LAÍS

Você não acha que meu rosto mudou nos últimos dias?

HENRIQUE

O seu rosto continua tão igual quanto o meu.

LAÍS

Não sei... é estranho... é como se eu tivesse envelhecido de uma hora para


outra. Todo mundo fala que o envelhecimento é tão imperceptível que
quando acontece, já é tarde demais e já estamos velhos. Eu sinto que
envelheci de repente nestas últimas semanas...

HENRIQUE

Pra mim, pouco me importa envelhecer ou não. Eu só não queria passar a


minha vida inteira nesta cidade. É muito melancólico nascer e morrer na
mesma cidade. Nem uma outra cidade do mundo eu conheci. Quer dizer,
tem essas cidades bestas, tipo Santos, Piedade, Salvador. Não é a mesma
coisa. Eu nunca pisei numa cidade como... Viena...ou...Amsterdã...

LAÍS
Minha prima já foi pra Amsterdã. Ela disse que é uma cidade muito louca,
que tem uma rua...

HENRIQUE

... onde as mulheres ficam nuas em vitrines.

LAÍS

Ah...é isso... como eu sou tola! Grande merda que minha prima foi pra
Amsterdã. Eu mesma nunca fui pra lugar nenhum. Eu também me sinto
enclausurada nesta cidade. Eu acho que nunca vou conseguir escapar
daqui.

HENRIQUE

Acho que ninguém escapa desta cidade...

Som de sax ao longe

LAÍS (CORRE PARA A JANELA)

Eu sempre tento adivinhar da onde vem este som. Mas são tantos
apartamentos... tanta gente...

HENRIQUE(PARA SI)

Tanta solidão...

LAÍS

Ele toca de uma maneira tão doce e suave que dá vontade de dançar...
Laís começa a rodopiar. Henrique acaba de fumar e se levanta.

LAÍS

Você vai sair?

HENRIQUE

Eu preciso sair. Não dá pra ficar preso aqui, a noite inteira...

LAÍS

Está ventando! Está ventando muito forte...

HENRIQUE

E daí?

LAÍS

Você não sabe que quando venta forte significa que vem chuva?

HENRIQUE

A chuva não vai me derreter...

LAÍS

A chuva vai derreter meu coração.

HENRIQUE
O que é isso agora?

LAÍS

Sempre quando você sai, eu me sinto muito sozinha. Eu não quero ficar aqui
presa. Por que você nunca me leva junto? Por que você não fica comigo a
noite inteira? A chuva vai derreter meu coração.

HENRIQUE

Você já disse isso, mas chuvas não derretem corações.

LAÍS

O meu coração já está quase no fim, como um sabonete que foi usado até
ficar fininho e acaba sempre escapando pelas mãos, até que a gente não
se importa mais em pegar o sabonete do chão e ele vai se esvaindo pelo
ralo, como espuma morta.

HENRIQUE

Tudo bem, Laís. Faça como quiser! Que os corações derretam, que a chuva
caia, que alguém toque um sax distante e melancólico...

Som de sax se torna audível. Laís e Henrique ficam imóveis por um momento,
até que Henrique abre a porta do armário e tira um casaco. O sax silencia
aos poucos.

LAÍS

Você vai mesmo sair?

HENRIQUE
Meus cigarros acabaram...

LAÍS

Você precisa parar de fumar.

HENRIQUE

Não hoje, Laís.

Henrique coloca o casaco e se ajeita.

LAÍS

Você não gosta de sair de sábado à noite.

HENRIQUE

Eu não vou sair, Laís. Eu vou até o bar, comprar cigarros e já volto. Qual é
o problema, afinal?

LAÍS

O problema...(ELA FICA MEIO PERDIDA, SEM SABER O QUE DIZER)O


problema é que eu preciso que você fique e me escute. Eu preciso falar
com você. Eu preciso falar com alguém. Está ouvindo? O vento está mais
forte. Daqui a pouco, vai chover. E você tem que ficar aqui pra me ouvir,
pra ouvir meu coração.

HENRIQUE

Você mesma disse que vai chover. Eu preciso sair, não aguento mais me
sentir como uma fera enjaulada.
Henrique vai em direção à porta, mas fica parado. Henrique olha para
Laís. Henrique se volta para ela, um pouco mais amigável.

HENRIQUE

Tudo bem! O cigarro pode esperar. O que você quer falar comigo?

Pausa

LAÍS

Eu acho que agora não já tem mais importância. Pode ir comprar seus
cigarros.

HENRIQUE

Mas que merda, Laís. Assim você me dá nos nervos. É por isso que eu quero
sair. Chega desta roda-viva! Chega desta coisa que nunca se completa...

Pausa longa

HENRIQUE

Não vai dizer mesmo nada?

Laís continua muda.

HENRIQUE
Olha, Laís, eu só vou comprar cigarros e já volto. Você sabe como sou
fissurado por cigarro. Você lembra daquele emprego que perdi, não
lembra? Era um horror. A gente não podia sair pra nada, até pra ir pro
banheiro tinha cinco minutos a cada três horas. Cinco minutos! O resto do
tempo era ficar ali sentado, diante daquele telefone, recebendo chamadas,
reclamações. E toda hora, "não senhora"; "sim, senhora"; "Estou verificando,
senhora"; "estou mandando, senhora". Tinha hora que eu achava que iria
enlouquecer se não desse umas tragadas. Mas não tinha jeito. O tal do
supervisor, um desses filhos da puta que infestam esta cidade, não tirava os
olhos de cima da gente. Se o cara tinha que ir no banheiro fora do horário
combinado, os tais cinco minutos a cada três horas, o filha da puta do
supervisor chamava o cara e perguntava se ele tava com algum problema,
se precisava descansar, ir pra casa. Isto era armação. Se o sujeito dizia
que tava com problema, fosse o que fosse, o supervisor até dispensava,
mas no dia seguinte, o cara tava despedido. E já tinha outro pobre-diabo
no seu lugar. Já vi gente se ajoelhando, se ajoelhando mesmo diante do
filho da puta. E ele lá, com aquela cara de esfinge, pouco se lixando pro
coitado. (VAI ATÉ O CINZEIRO E PROCURA UMA PONTA DE CIGARRO.
ENCONTRA E ACENDE. DÁ UMAS TRAGADAS). Um dia, você sabe - já te
contei esta história milhares de vezes - eu atendi uma louca no telefone. A
mulher era completamente pinel. E devia tá bêbada ou drogada,sei lá, mas
ela me encheu o saco pra valer. Começou reclamando do serviço da
companhia, depois começou a dar uma de paranóica, dizendo que tinha
gente no portão. Aí começou a chorar, dizendo que o filho batia nela.
Cara! Eu tive que dar uma de psicólogo. Fiquei mandando ela se acalmar e
depois ouvi uma ladainha sobre o filho, um cachorro perdido e sei lá mais o
que. Até que não aguentei mais e desliguei. Eu tava mesmo precisando de
um cigarro. Não quis nem saber, levantei da minha cadeira e fui fumar.
Quando voltei, o filho da puta já tava me esperando, dava pra ver
labaredas chispando dos olhos dele. O cara ainda ficou falando um
tempão sobre como a empresa funcionava, como era a ética entre os
funcionários, um monte de babaquice pra dizer que da PRÓXIMA VEZ eu ia
ser despido. Sabe o que eu fiz? Mandei o cara tomar no cu. Nossa! Enchi a
boca: Vai tomar no cu! Ele fez uma cara!... Por um momento, achei que ele
fosse chorar, mas ele só disse uma coisa: "o senhor pode passar no nosso
departamento pessoal. A partir de agora, o senhor não faz mais parte dos
nossos quadros". (HENRIQUE RI) Sabe que me senti até aliviado? Aquele
trabalho estava acabando comigo.(PAUSA) Você não vai dizer nada?

Laís fica muda por um tempo. Som de sax. Laís vai dizer alguma coisa,
Henrique faz um gesto de enfado. Ritmo da música cresce freneticamente. De
repente, um silêncio brutal. Luz sobre Laís. Escuridão em Henrique.
LAÍS

Sabe que eu quero que você perceba? Que não estou aguentando mais a
sua paixão por futilidades, por cigarros e por madrugadas insones com
seus amigos bêbados. Não, eu não vou mais apelar para que você fique...
Vá pro boteco e pros seus malditos cigarros. Eu só quero que você saiba
uma coisa. Ou duas. Não sei ainda. Mas a primeira é que odeio ficar
sozinha. Odeio ter que compartilhar a minha solidão com a chuva. Ou com
a televisão, que é pior. Esta é a primeira coisa que você deveria saber. EU
ODEIO SOLIDÃO! Mas a outra... bem, a outra eu temo que você não tenha
estrutura pra suportar, a não ser que esteja com uma porcaria de cigarro
na boca. Sabe o que representa o cigarro para você? Não, não é um
símbolo fálico; é um símbolo do seu infantilismo. O cigarro nada mais é que
a sua chupeta(RI) Ah, mas isto você resolve com seu analista, no dia que
você arrumar um... mas o que eu vou falar, Henrique... Henrique... É mesmo
este seu nome? Às vezes fico meses sem pronunciar o seu nome. E tenho
medo de errar. Mas escuta, Henrique, este meu ódio pela solidão só me
deixa cada dia mais sozinha. Eu não suporto quando você sai. Eu quero
morrer. Mas eu não vou me matar. Não deste jeito. De um outro modo muito
melhor. Porque todas as noites que você sai, eu...Bem... eu vou até o sexto
andar e você sabe por que vou até o sexto andar? Porque ali, tem aquele
artista plástico, que você admira tanto. Lembra da exposição que fomos
dele? Você adorou os quadros, as instalações, tudo. Mas ele também te
adorou. Ele adorou a maneira bajulatória que você sempre fica quando
encontra com ele no elevador. Mas ele adorou principalmente a sua
mulher.(RI COM UMA CERTA LOUCURA) Ele me encontrou chorando um dia,
sabia? Um dia não, uma noite. Ele perguntou o que eu tinha. E em todo meu
ser estava escrito uma única palavra: solidão! E você não sabe o que uma
mulher abandonada é capaz de fazer.Todas as noites, eu subo mais três
lances de escada e estou diante do apartamento dele. Pronta para ser
dele. Totalmente. Sem um único momento de arrependimento. E sabe por
que eu acho que envelheci estas últimas semanas? Porque quando eu desço
aqueles lances de escadas, por mais que eu esteja leve, feliz, me sentindo
amada, satisfeita, eu envelheço. Eu envelheço por voltar a este
apartamento, eu envelheço por ficar do seu lado. Com você, eu não sei
mais o significado do amor. Não sei mais o significado de nada. Só sei o
que é a solidão e o estrago que ela pode fazer em corações como o meu,
corações que derretem na chuva, por serem frágeis, delicados, sensíveis.
Mas você não sabe o que é um coração assim. Nunca vai saber. Pra você
só há interesse numa filosofia vazia, que justifique seus vícios e sua vida
vazia. É isso, Henrique, pode ir agora, pode ir comprar os seus malditos
cigarros, porque eu sei que um homem de verdade está me esperando.
Você está me ouvindo, Henrique? Henrique! Henrique!
Luz se acende. Laís percebe que está sozinha. ela fica nervosa. Sax toca
freneticamente. Laís começa a se coçar, aflita. Depois mexe nos cabelos.
Parece enlouquecida. Sax diminui.

LAÍS

Eu vou embora, Henrique, e não vou voltar mais.Nem pra você, nem pro
moço do sexto andar. Eu vou embora pra sempre. Você nunca mais vai
colocar os olhos em mim. Eu só tenho que esperar a chuva passar. Você
sabe, ela pode derreter meu coração.Só por um momento. Eu vou ficar aqui
quietinha.

Laís se deita no chão.

LAÍS

Eu não vou sair daqui, enquanto a chuva não passar. Eu preciso apenas
arrumar as minha coisas... pra que eu possa partir,mas a chuva não passa.
Está cada vez mais forte e você está lá fora, Henrique. E também não vai
voltar enquanto a chuva não passar. Eu vou ficar quietinha, ouvindo o som
da chuva batendo na janela e o moço tocando o sax tão lindo... tão lindo...
eu e meu coração... ouvindo o sax... e a chuva... que não passa... que não
passa... que não passa nunca...

Laís vai se encolhendo. Som de chuva forte. Música do sax cada vez mais alto.
Laís suspira e fica imóvel. Chuva batendo na janela. Silêncio absoluto.
Escuridão.

FIM

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