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Nas questões sobre princípios, não basta a legitimidade procedimental –a o

próprio procedimento e a ordem jurídica em seu todo têm de poder se justificar


a partir de princípios. Esses princípios legitimadores da constituição têm de
encontrar reconhecimento, por seu turno, independentemente de o direito
positivo concordar com ele ou não. Se as duas coisas divergem, a obediência
às leis não pode mais ser exigida incircustancialmente. 1

A desobediência civil tem de ser reconhecida como componente da cultura


política de uma coletividade democrática desenvolvida. 2

A desobediência civil se encontra sob as reservas que resultam forçosamente


da garantia da paz jurídica do Estado, pois o monopólio da violência é
constitutivo do Estado de direito tanto quanto a pretensão de legitimidade
democrática. A existência e o sentido da ordem jurídica em seu todo têm de
permanecer intactos. Disso resulta que a desobediência civil não pode ser
legalizada como tal.3

Essa retenção só pode ser exigida do poder público, no entanto, se a


desobediência civil satisfaz três condições – indo além do caráter simbólico,
ou seja, isento de violência, e do propósito de um apelo à maioria. A ordem
jurídica no seu todo tem de permanecer intacta; (...). Além do mais, o infrator
tem de responder pelas consequências jurídicas de seus atos. E, por fim, espera-
se que ele possa fundamentar sua desobediência a partir de princípios
legitimadores da constituição reconhecidos, sejam quais forem suas
convicções subjetivas.4

Toda democracia ligada ao Estado de direito que é segura de si mesma


considera a desobediência civil como componente normalizado, visto que
necessário, de sua cultura política.5

O uso popular da linguagem quer expressar, com o termo “resistência”, apenas


a urgência do motivo do protesto. A palavra não é empregada nem sequer de
maneira metafórica, quando designa as manifestações de desobediência civil –
ou seja, atos que são ilegais segundo sua forma, embora sejam executados em
apelo aos fundamentos legitimadores da ordem do Estado democrático de
direito, reconhecidos em comum (...). quem se decide pela desobediência civil
não quer se dar por satisfeito com que sejam esgotadas as possibilidades de
revisão institucionalmente previstas, dada o alcance de uma regulamentação
considerada ilegítima.6

1
HABERMAS, Jürgen. A nova obscuridade. Pg. 171
2
HABERMAS, Jürgen. A nova obscuridade. Pg. 173
3
HABERMAS, Jürgen. A nova obscuridade. Pg. 174
4
HABERMAS, Jürgen. A nova obscuridade. Pg. 175
5
HABERMAS, Jürgen. A nova obscuridade. Pg. 131
6
HABERMAS, Jürgen. A nova obscuridade. Pg. 132-133
A constituição tem de poder justificar-se por princípios cuja validez não pode
depender de o direito positivo concordar com eles ou não. Por isso, o Estado
constitucional moderno só pode esperar e seus cidadãos a obediência às leis se
e na medida em que se apoia em princípios dignos de reconhecimento, a cuja
luz o que é legal pode justificar-se então como legítimo – ou, dado o caso, ser
reprovado como ilegítimo.7

O Estado de direito que pretende permanecer idêntico a si mesmo se encontra


diante de uma tarefa paradoxal. Ele precisa proteger e vigiar a desconfiança
contra uma injustiça que pareça sob as formas legais, embora ela não possa
assumir uma forma inconstitucionalmente garantida. 8

O caso da desobediência civil só pode ocorrer sob as condições de um Estado


de direito intacto em seu todo (...). A possibilidade de justificar a desobediência
civil resulta para ele somente da circunstância de que as regulações legais
podem ser ilegítimas mesmo no Estado democrático de direito – no entanto,
ilegítimas não segundo os critérios de uma moral privada qualquer, de um
direito especial ou de um acesso privilegiado à verdade. São decisivos somente
os princípios morais convincentes para todos, nos quais o Estado constitucional
moderno funda a expectativa de ser reconhecido por seus cidadãos de moto
próprio. 9

(...) são os fatigados e os aflitos os primeiros a experimentar na própria carne


a injustiça. Aqueles que são os primeiros a sentir a injustiça não são dotados,
via de regra, de autoridade ou de qualquer chance privilegiada de influir – seja
por meio da pertença aos parlamentos, aos sindicatos e aos partidos, seja por
meio do acesso às mídias de massa, seja por meio do potencial de ameaça dos
que podem acenar com uma greve de investimentos durante campanhas
eleitorais. É também por essas razões que a pressão plebiscitária da
desobediência civil representa frequentemente a última possibilidade de
corrigir os erros no processo de realização do direito de colocar em marcha
algumas inovações (...). O que é prima facie desobediência pode se revelar
muito rapidamente, visto que o direito e a política são concebidos em
adaptação e revisão constantes, como a marcha pioneira de correções atrasadas
e inovações. Nesses casos, as infrações civis às regras são experimentos
moralmente fundamentados, sem os quais uma república vital não pode
conservar sua capacidade de inovação nem a crença de seus cidadãos na
legitimação.10

7
HABERMAS, Jürgen. A nova obscuridade. Pg. 136
8
HABERMAS, Jürgen. A nova obscuridade. Pg. 138
9
HABERMAS, Jürgen. A nova obscuridade. Pg. 139
10
HABERMAS, Jürgen. A nova obscuridade. Pg. 140-141
A desobediência civil se move frequentemente na penumbra da história da
época; essa penumbra dificulta a avaliação política e moral para o
contemporâneo.11

A desobediência civil tem de permanece em suspenso entre a legitimidade e a


legalidade; só assim ela sinaliza o fato de que o Estado democrático de direito
aponta, com seus princípios constitucionais legitimadores, para além de todas
as formas de sua incorporação jurídico-positiva. Visto que esse Estado
renuncia, em última instância, a requerer de seus cidadãos obediência por
razões diferentes do que a de uma legitimidade da ordem jurídica convincente
para todos, a desobediência civil faz parte do acervo irrenunciável de uma
cultura política madura.12

A desobediência civil tira sua dignidade da pretensão de legitimação do Estado


democrático de direito, fincada em um patamar elevado. Se os advogados
públicos e os juízes não respeitam essa dignidade, se perseguem o infrator de
regras como criminoso e lhe impõem penas usuais, eles decaem em um
legalismo autoritário.13

O “direito” à desobediência civil permanece em suspenso entre a legitimidade


e a legalidade, por boas razões. Mas o Estado de direito, que persegue a
desobediência civil como um crime comum, escorrega no plano enviesado de
um legalismo autoritário (...). Pois a desobediência civil no Estado de direito
está para a resistência ativa contra o Estado de não direito [Underechtstaat]
como o legalismo autoritário no Estado de direito está para a repreensão
pseudolegal do Estado de não direito.14

a desobediência civil se refere aos princípios pelos quais a própria constituição


se legitima.15

O último meio para conferir uma audiência maior e uma influência político-
jornalística aos argumentos da oposição consiste em atos de desobediência
civil, os quais necessitam de alto grau de explicação. Tais atos de transgressão
simbólica não-violenta das regras se auto interpretam como expressão do
protesto contra decisões impositivas as quais são ilegítimas no entender dos
atores, apesar de terem surgido legalmente à luz dos princípios constitucionais
vigentes (...). Independentemente do respectivo objeto da controvérsia, a
desobediência civil sempre reclama implicitamente que a formação legal da
vontade política não pode se desligar dos processos de comunicação da esfera
pública (...). deste modo, a desobediência civil refere-se à sua própria origem
na sociedade civil, a qual, quando entra em crise, serve-se da opinião pública

11
HABERMAS, Jürgen. A nova obscuridade. Pg. 141
12
HABERMAS, Jürgen. A nova obscuridade. Pg. 143-144
13
HABERMAS, Jürgen. A nova obscuridade. Pg. 144
14
HABERMAS, Jürgen. A nova obscuridade. Pg. 153-154.
15
HABERMAS, Jürgen. A nova obscuridade. Pg. 157
para atualizar os conteúdos normativos do Estado democrático de direito, e
para contrapô-los à inércia sistêmica da política constitucional.16

A justificação da desobediência civil apoia-se, além disso, numa compreensão


dinâmica da constituição, que é vista como um projeto inacabado. Nesta ótica
de longo alcance, o Estado democrático de direito não se apresenta como uma
configuração pronta, e sim, como um empreendimento arriscado, delicado e,
especialmente, falível e carente de revisão, o qual tende a reatualizar, em
circunstâncias precárias, o sistema dos direitos, o que equivale a interpretá-los
melhor e a institucionalizá-los de modo mais apropriado e a esgotar de modo
mais radical o seu conteúdo.17

16
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. II. Pg. 118.
17
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. II, pg. 119.

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