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A Arte da Memória e o Método


Cientifico: da memória artificial
à inteligência artificial

The art af memory, de Francis Yates. Pelican Book,


1976, 473 p.

Carlos Alberto Coimbra

A história da .rte da memória (ver seu livro anterior Giordano Bru­


no and lhe hermelic Iradilion). Ela
A arte da memória foi inventada faz uma resenha de toda tradição de
pelos gregos. Atravessou a antiguida. memória, mostrando o papel básico
de clássica como parte da retórica, s0- desta arte no desenvolvimenlO das
breviveu parcialmente ao desmantela· idéias na Europa.
mento do sistema educacional latino e Na sua origem, a arte da memória
refugiou·se nas ordens dominicana e propõe um conjunto de regras para a
franciscana durante a Idade Média. memorização de idéias ou palavras,
No Renascimento foi aos poucos abano constituindo uma técoica de imprimir
donada pelos estudiosos humanistas, lugares e imagens na memória, de ma­
mas floresceu e ampliou suas ambi· neira a fazer com que um orador pos­
ções sob as influências herméticas. sa reproduzir longos discursos com
Com a chegada do século XVII trans­ precisão infalível. Hoje, quando se
formou·se de novo, participando ati· podem obter informações ao toque dos
vamente no crescimento do novo mé­ dedos, uma mnemotécnica dessas pa­
todo cientifico. rece totalmente inútil. Mas em época
A história da arte da memória é anterior ao advento da imprensa, uma
Contada no livro de Frances A. Yates memória bem treinada era de vital im­
The arl 01 memory, um trabalho portância.
único, erudito e brilhante, que teve Simônides de Caos, o grande poeta
origem na tentativa da autora de en· profissional da era pré-socrática, a
tender os sistemas de Giordano Bruno voz da resistência pan·helênica contra
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a invasão de Xerxes, foi considerado teoria do conhecimento, onde não há


durante toda a antiguidade como o aprendizado que não passe por 11m
fundador da arte da memória. Yates dos cinco sentidos, liderados pelo
começa seu livro contando o lendário mais forte, o da visão, e onde mesmo
episódio do banquete oferecido na o raciocínio especulativo deveria estar
Tessália por 11m nobre de nome Sco­ acompanhado de imagens com as
pas. Durante a grande festa, Simôrua· quais pudesse trabalhar. Platão, para
des cantou 11m poema em homenagem quem existiam conhecimentos inatos
ao anfitrião, incluindo passagens em ou latentes, independentes de impres­
louvor a Castor e Pólux. Scopas, en· sões sensuais, exigia mais da memória.
ciumado, disse então ao poeta que só Uma memória artificial platÔnica te­
pagaria metade do preço combinado, ria de ser elaborada, não da maneira
que ele fosse conseguir o resto com a trivial de uma mnemotécruca, mas
dupla de deuses gêmeos. Pouco de· sim mantendo estreita relação com a
pois, Simônides recebeu o recado que realidade, as "realidades ideais". Aris­
dois jovens estavam esperando por ele tóteles é essencial para o desenvolvi­
lá fora. Saiu, mas não encontrou nin­ mento escolástico da arte da memória,
guém. Quando voltava, todo o salão e Platão, para as formas da arte no
do banquete desabou, matando Scopas Renascimento.
e seus convidados. Os corpos ficaram Três textos latinos da arte da me­
tão mutilados, que era impossível a mória clássica sobreviveram. Os três
identificação das vítimas para o enter­ são tratados de retórica: De Oratore,
ro. Simôruades, lembrando o lugar em de Cícero, Instituto Oratorio, de Quin­
que cada pessoa estava sentada, pôde tiliano, e o livro texto anônimo Ad
indicar às famílias quais eram seus Herennium. E é como parte da arte
parentes mortos. O episódio desastro­ da retórica que a arte da memória
so ajudou o poeta a estabelecer as ba­ percorreu toda a tradição européia,
ses de sua técnica, a criação de luga­ onde sempre teve 11m papel central,
res em ordem e a colocação de ima­ até ser esquecida há relativamente
gens fortes nos lugares criados. pouco tempo.
Pouco se sabe das origens pré-simo­ Os princípios gerais da arte são
nideanas desta arte. Alguns falam em simples. Uma descrição clara e
Pitágoras, outros em influências crítica é a de Quintiliano. O primeiro
egípcias. Supõe-se que várias das re­ passo é imprimir ou construir na me·
gras que serviam para criar e aprimo­ mória uma série de lugares. O tipo
rar o que se chamou de memória arti­ mais comum, mas não o único tipo de
ficial eram conhecidas muito antes lugar mnemônico, vem da arquitetura.
por bardos e contadores de estórias. Para se criar uma série de espaços na
Nenhum texto expondo a arte da me­ memória, um prédio deve ser lembra­
mória grega chegou até nós. Resta­ do - um palácio ou um templo -,
ram somente comentários dos filó­ tão espaçoso e variado quanto possí­
sofos. vel, com todas as salas e corredores,
Platão e Aristóteles empregaram a sem omitir suas estátuas ou sua deco­
metáfora da memória como a tábua ração interior. Depois da construção
de cera onde se escreviam e se impri­ dos lugares, as idéias ou palavras do
miam coisas. Ambos conheciam muito discurso a ser decorado são associa­
bem a arte da memória. Aristóteles das a imagens diversas. Tais imagens,
enquadrava-a perfeitamente na sua que devem ser marcantes, são então
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colocadas imaginariamente nos luga· mória artificial passa a ser um dever


res memorizados dentro do palácio. moral e religioso, um meio de se lem­
Quando se quiser lembrar os falos ar­ brar dos prazeres invisíveis do céu,
mazenados, basta que os lugares se­ das promessas de salvação do purga­
jam visitados um após o outro, reco­ tório e das tormentas eternas do infer·
Ihendo-se em cada um deles as ima­ no. Assim se cria o imaginário medie·
gens ali depositadas. Deve·se pensar vai mostrado na pintura espirirual de
nO orador da antiguidade proferindo Giotto e no sistema da Divina comé­
seu discurso como uma pessoa percor­ dia.
rendo na imaginação as dependên­ Dez anos mais novo que Tomás de
cias desta construção de memória. Aquino, Ramon Lull, nascido em Mal·
Usa·se ainda como lugar de memó­ lorea, produziu uma arte da memória
ria o mapa de uma cidade, com suas diferente, que ficou associad'a a outra
ruas, praças e monumentos, ou o tra­ ordem mendicante, a dos franciscanos.
jeto de uma viagem, com todas as Apesar de viver no auge do escolas­
suns paradas. Tanto mais espaço será ticismo, LulJ I!r3 um neoplatônico.
pl'cciso, quanto maior for a quantida­ Sem origem na tradição retórica, sua
de de material a ser lembrado. Funda­ arte não pretendia vestir intenções es·
mentai é a ordenação e a escolha das pirituais como a outra. Procurava
apOiar-se nas causas pnmClI'8S, as
• • •

imagens. Um grego, contemporâneo de


Cícero, Metrodorus de Scepsis, a "dignitates dei", ou nomes divinos,
quem se atribuem grandes feitos de semelhantes às "realidades ideais" de
memória, utilizou uma construção Platão. Lull empregou uma notação li­
mais abstrata, um sistema celestial de teral para os nomes divinos, incorpo­
lugares, baseado nas 12 constelações rando o misticismo da cabala judaica
do zodíaco, cem Irês subdivisões de que se desenvolvia na Espanha de seu
dez cada, o que lhe dava 360 lugares tempo. [ntroduziu ainda o movimento
em volta do círculo, o suficiente para na arte da memória. As letras, simboli­
guardar o que quisesse. zando os nomes divinos1 giravam em
círculos concêntricos, produzindo to­
Agostinho, o professor pagão de re­
das as combinações, e se relacionavam
tórica da Escola de Cartago, conver­
através de um tipo de "lógica natural"
teu-se ao cristianismo e abriu caminho
extraída da realidade. O luUismo co­
para as transformações que a arte da
mo memória artificial consistia basica�
memória sofreria na Idade Média.
mente na memorização das regras da
Com as invasões bárbaras, restaram
própria arte. Isso introduz uma novi­
apenas algumas descrições alegóricas
dade: a arte passa a ser uma ferramen·
do sistema educacional clássico funda·
ta de investigação, uma arte de encon­
menlado nas sete artes liberais - gra·
trar a verdade.
mática, retórica, dialética, aritmética,
geometria. música e astronomia. Nes­ o grande projeto de leibniz
sa época em que os oradores perderam
sua importância, a memória se trans­ No século XV, entre as grandes des­
fere da retórica para a ética. E é como cobertas, está sem dúvida a do mundo
parte da virtude cardinal da prudên­ grego e latino clássico. Durante toda
cia - memória. inteligência e previ· a Idade Média é pequeno o material
dência - que a memória é estudada disponível sobre a arte da memória.
pelos dominicanos Alberto Magno e Das três fontes latinas, praticamente
seu aluno Tomás de Aquino. A me· só o Ad Herennium era conhecido na
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íntegra. O texto completo do Instituto gendo o universo. Esta perpespecliva


Oratorio, de Quintiliano, foi descober- . de um universo animjsta, descrito ma�
to em 1416, e o do De Oratore, de gicarnente por leis mágico-mecânicas,
Cícero, em 1422. preparou a visão futura do universo
O resgate da obra de Quintiliano descrito matematicamenle pelas leis
colocou à disposição dos humanistas da física.
uma descrição f ria e crítica da técnica Mas como fica a antiga arte de Si­
mnemônica. Erasmo, para quem a arle mônides no século XVll? Robert
da memória era uma prática medieval, Fludd, possivelmente um dos "rosa­
acreditava até que a memória poderia cruzes" (ver outro livro de Yates The
ser melhorada com o uso de lugares e Rosicrucian enlightellment), é o últi­
imagens, mas recomendava mesmo a mo bastião do hermetismo renascen­
manei ra comum, do estudo cuidadoso tista. Sua defesa de um sistema de tea­
e da repetição freqüente. tro oculto calcado no Teatro Globo
Com a difusão da imprensa, a arte de Shakespeare (ver também Shakes­
da memória perdeu, na tradição pura­ peare last plays, de Yates) provocou
mente humaníslica, sua posição de polêmica com Kopler e Mersennes, os
destaque. Por OU lro lado, na tradição representantes do novo método.
hermético-cabalítisca do Renascimen­ IÔ um fato notável a arte da memó­
to, fundada por Pico de la Mirandola, ria não ter-se tornado apenas um ana­
ela teve uma de suas mais interessan­ cronismo com o progresso da nova era.
tes transformações. Primeiro no Tea­ Ela foi discutida seriamente, não só
tro da Memória, de Giulio CamiUo - por Fludd, mas também por pensado­
uma das pessoas mais formosas na Itá­ res que já seguiam por outros cami­
lia I! na Fra nça do Renascimento -, nhos, como Francis Bacon, Descartes
ut!pois nas várias versões do sistema e Leibniz. Com estes, a arte sofre ou­
mágico de Giordano Bruno. O pmjeto tra de suas transformações, tornando­
de CaOlHo, jamais concluído, encerra­ se não mais um m étodo de memorizar
va uma incrível visão do mundo e da a enciclopédia do conhecimento, mas
natureza das coisas, exposta num pe­ uma ferramenta na investigação da
queno teatro de madeira, dentro do enciclopédia e do mundo, com o obje­
(tual qualquer pessoa se tornaria capaz tivo de produzir novos conhecimentos.
de ralar sobre qualquer assunto. Este A arte de Simônides sobrevive como
sistema, apesar de hermético, era ror­ um fator no crescimento do método
malmente clássico. Foi o ex-dominica­ cientírico.
no Bruno quem deu o grande passo Francis Bacon e Descartes conhe­
na síntese da tradição retórica com a ciam a arte da memória, sobre a qual
arte de Ramon Lu)), introduzindo mo­ escreveram em diversas ocasiões. Am­
vimentos circulares e combinaçoes de bos pretendiam reformá-Ia e atualizá­
letras. la, para que desempenhasse um novo
Giordano Bruno inventou uma me­ papel na rev olução metodológica em
mória mágica altamente sistematizada curso.
e complexa, u,,! tipo de alquimia da Bacon não tinha apenas um conhe­
imaginação, onde as imagens dos de­ cimento completo da arte3 como era
canatos do zodíaco se combinavam nas ele mesmo um praticante. Aceitava as
casas com as imagens dos planetas. receitas clássicas e tomistas de usar lu­
Como em toda magia, ele assume a gares e imagens na memória. Em seu
existência de leis e forças ocultas re- livro Advancement of leaming, a arte
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da memória é destacada como uma das tia, contém uma longa discussão da
artes e ciências que deveriam ser re­ arte da memória nas linhas do Ad
vistas, para que deixasse de ser uma Herennium e de Aristóteles, sugerindo
técnica de ostentação vazia, tomando­ o uso de imagens, as mais naturais
se um instrumento útil de pesquisa. poSSlvelS, para representar as cOisas
• • •

Entre os novos usos da arte, Bacon su­ - podiam ser desenhos esquemáticos
geria a memorização de itens em tal ou figuras geomélricas para serem usa­
ordem, de modo a mantê-los na mente dos como um alfabeto. Leibniz via os
por determinado tempo para estudo e hieróglifos egípcios e os ideogramas
comparação. Ele estava pensando nas chineses como tendo a mesma nature­
ciências naturajs, e 8 arte de memória, za das imagens de memória.
com seus princípios de ordem e arran­ Foi no final de sua estadia em Paris,
jo, começava 8 se parecer com um mé­ depois de ter tomado conhecimemo
todo de classificação. dos recentes avanços na matemática
As conexões da história da arte da com Huyghens e Descartes, que Leib­
memória com a história do método são niz inventou o cálculo infinitesimal.
bem anteriores: remontam a Ramon Também era, como em Descartes, um
Lull, aos cabalistas e também a Gior­ cálculo de quantidades, mas seu mé­
dano Bruno. No século XVII, a pala­ todo permitia ainda o estudo da va­
vra método já estava popularizada, riação de quantidades, ou seja, do mo­
por isso foi recebido com pouca sur­ vimento. O grande projeto de Leibniz,
presa o título do livro de Descartes no entanto, era outro. Ele queria des­
Discours de la mélhode. cobrir um tipo de matemática genera­
Como Bacon, Descartes não tinha lizada, que chamava de "characteris­
em alta conta o método de Lull. Mes­ tica universalis', através da qual O ato
mo assim, exjstem certas coincidências de pensar pudesse ser substituído pelo
de objetivos entre eles. Lull prometia de calcular. Assim se poderia argu­
uma arte ou método universal geomé­ mentar em filosofia e metafísica do
trico que, apoiado na realidade, pode­ mesmo modo que em geometria e aná­
ria ser aplicado na resolução de qual­ lise. Neste projeto deveriam ser ela­
quer problema. Descartes propunha boradas listas com as noções funda­
uma nova ciência que seria capaz de mentais do pensamento, e a cada uma
resolver todas as questões relacionadas das noções associar um símbolo ou
a quantidades. Essa é a palavra-chave: caractere. Tais caracteres se relaciona­
o abandono do uso qualitativo e sim­ riam de maneira lógica, formando não
bólico dos números. s6 uma linguagem universal, mas tam­
bém um "calculus", que poderia ser
Frances Yates termina seu livro com
então aplicado na solução de todos os
Leibniz, o melhor exemplo de como a
problemas. Se surgisse qualquer con­
arte da memória e o lullismo se com­
trovérsia entre filósofos ou teólogos,
binaram nas idéias de um dvs gênios
não se brigaria por isso. Haveria tan­
do século. Leibniz, ainda em Leipzig,
ta discussão entre eles, como entre
escreveu Dissertatio de arte combi­
dois contadores. Simplesmente senta­
natoria, no qual explica seu ponto de
vista do lullismo como uma lógica na­ riam juntos à mesa, com lápis e papel
tural, seguindo a forte tendência da na mão, dizendo: "Calculemos".
época de matematização da arte. Seu Depois de ter fixado moradia em
trabalho seguinte, Nova methodus Hanover, Leibniz tentou sem êxito
discendae docendaeque iurispruden- atrair para seu projeto o imeresse de
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várias academias. Procurou incessan­ mados por pesquisadores da computa­


temente estimular a cooperação cientí­ ção e da inteligência artificial.
fica interdisciplinar, aproximando a fí­ Historicamente, ,a geração e o acú­
sica da medicina, e chegou a colecio­ mulo de dados sempre foram impor­
nar sistematicamente fatos conhecidos tantes para as ciências. Foi examinan­
sobre coisas e processos. do exaustivamente as tabelas de Tycho
Leibniz acreditava piamente na im­ Brabe que Kepler descobriu as três
portância da lógica até mesmo para a leis do movimento planetário. Foi ana­
metafísica. E é na sua doutrina esoté­ lisando quase um século de tabelas de
rica, mantida em segredo a conselho natalidade e mortalidade de Londres
de amigos, que está a parte mais inte­ que lohn Graunt pôde escrever seu
ressante de sua filosofia. Não tivessem pioneiro estudo demográfico.
seus escritos esperado quase duzentos O aparecimento de sistemas de com­
anos para serem publicados, ele seria putação eletrônica e o crescimento de
considerado o fundador da .lógica ma­ seu uso como ferramenta prática no
temática, que se tornaria conhecida gerenciamento e na pesquisa estimu­
um século e meio antes do que foi. laram a invenção de técnicas eficien­
Esta é a observação de Bertrand Rus­ tes de armazenamento e recuperação
sei, o primeiro a chamar a atenção pa­ de informações. No começo, os dados
ra o lado oculto da obra de Leibniz. eram guardados simplesmente numa
ordem seqüencial em fita magnética,
o avanço dos métodos artificiais consrituindo um arquivo. Com o sur­
gimento das unidades de disco, a velo­
Sistemas de memória mais ou me­ cidade de acesso aos dados aumentou
nos complexos são encontrados em muito, facilitando a criação de novos
muitas civilizações. Um exemplo dis­ métodos de organização e indexação.
tante é o I Ching, um dos classícos Ao se iniciar a década de 60, o con­
chineses, que classifica todas as situa­ cei to de banco de dados já estava ple­
ções através do arrsojo dois a dois de namente estabelecido.
oito qualidades fundamentais, propon­ Os primeiros modelos de banco de
do ainda regras para todas as possí­ dados usavam as formas hierárquicas
veis transformações ou mutações entre de rede. Na década de 70 começou a
cada um dos 64 diagramas obtidos. ser discutido um conceito mais versá­
Outro exemplo oriental notável é a til, o de banco de dados relacional,
lei dos cinco elementos, uma das cha­ baseado na noção matemática de rela­
ves operacionais da medicina tradicio­ ção entre conjuntos. Nos últimos anos,
nal chinesa, que, além de estabelecer um novo passo foi dado com o desen­
uma classificação da realidade, define volvimento do que tem sido chamado
relações de geração e destruição entre de banco de conhecimento. Não se
elementos, impondo assim uma "lógi­ trata neste caso de um sistema apenas
ca naruralu bem à maneira sonhada de memorização, incapaz de fornecer
por Lull e por Leibniz. qualquer outra informação não expli­
Saltando milênios, permanecem as citamente declarada pelo usuário. O
mesmas questões. A sistematização, a banco de conhecimento é um banco
representação e a manipulação do co­ de dados com uma lógica embutida
nhecimento continuam interessando os que tem assim sua capacidade amplia·
filósofos e cientistas. Nos últimos da pela possibilidade do uso de infe­
anos, esses problemas têm sido reto- rências. Este novo sistema pode, em
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certo sentido, aprender sobre um de­ tos tópicos da pesquisa em inteligên·


terminado assunto, produzindo infor­ cia artificial. Mas não é somente me·

mações não previamente programa­ tafórica a relação entre a arte da me-


das, mas contidas no banco sob forma mória e as tendências contemporâneas
implícita ou latente. na ciência da computação. Questões
Entre os sistemas baseados em co­ filosóficas colocam esta ciência na li­
nhecimento, estão os sistemas especia· nha cultural levantada pelo trabalho
listas. Estes são organizados visando a de Yates.
uma aplicação específica. A constru­ � opinião quase unânime que avan­
ção típica de um sistema especialista ços na área de sistemas inteligentes se
passa primeiro pela catalogação de tu­ darão junto com avanços na teoria do
do o que se sabe a respeito do assunto conhecimento. Estes avanços depen­
em questão. Depois é feita uma nor­ dem da colaboração interdisciplinar
matização, codificando o conhecimen­ entre filósofos, lingüistas, matemáticos
to em fatos (dados) e regras (dados e especialistas de qualquer área. De­
condicionais). No passo seguinte faz­ pendem ainda da formação de um no­
se a escolha de uma representação vo tipo de profissional, o engenheiro
adequada e transfere-se tudo para o de conhecimento, atuando no que já é
computador. O usuário tem entao a chamado de uma epistemologia apli­
seu dispor não só O saber especializa­ cada. IÔ o grande projeto de Leibniz
do, mas também um sistema que pode retomado. .
ser consultado, dentro de limites, ce­
A memória artificial era praticada
mo se consulta um especialista ou um
na antiguidade. A inteligência artifi­
oráculo.
cial é hoje um tema corrente. Pode-se
No começo da década de 80 iniciou­ dizer mesmo, segundo a subdivisão
se a primeira campanha para a elabo­ clássica e tomista da virtude da pru­
ração de um sistema especialista. Coin­ dência. que já se tem, com a modela­
cidência ou não, foi um projeto de gem de fenômenos físicos, econômicos
engenhada genética. Afinal, as ma­ e ecológicos, uma bem estabelecida
cromoléculas do ácido desoxirribonu­ previdência artificial. Não é apenas
c1éico são os lugares de memória por em relação à história da ciência, mas
excelência. A partir daí, projetos fo­ também nesse contexto das conquistas
ram criados em diversas áreas, da in­ dos métodos artificiais, que reside o
dústria à medicina, com sistemas de interesse da redescoberta, por Frances
planejamento, de controle de qualida­ Yates, da arte da memória.
de ou de diagnóstico.
Revendo as várias versões da arte
de Simônides, parecem claras as se­ Carlos Alberto Coimbra é matemático.
melhanças entre as preocupações dos trabalha no Laboratório Nacional de
Computação Científica e é secretário-nd·
autores de sistemas de memória e cer-
junto da sare regional Rio.

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